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Editorial
N
ós, editores e conselheiros, dedicamos este número da re-
vista Olhar ao querido Prof. Dr. Mark Julian Cass, que
não está mais entre nós. Julian, além do brilhantismo in-
telectual, foi colaborador deste periódico e companheiro
permanente dos colegas da UFSCar sempre que sua ajuda, compreen-
são e apoio foram necessários: sem alarde e sem interesse particular
investido; com a sensibilidade que lhe era peculiar. Que fique registra-
do aqui nosso adeus coletivo, carinhoso e cheio de saudades!
Noite
(j. monzani)
na madrugada
um murmúrio
doce, quente, aquoso
apita
vento ou
canto o que dá
no mesmo
no verso
de ser sendo.
Josette Monzani
Júlio Cesar De Rose
(editores)
Apresentação
9
Léa Silveira
Sosa
165
Luna Yamanik
Colegio Antonio José Sucre
Erik Diesel
Poemas
171
Juan Toro Castillo
C
iente da importância do debate e da variação de perspectivas intelectuais para a
formação do estudante e do professor, a área de Filosofia do Departamento de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras decidiu realizar anual-
mente um colóquio e uma aula magna. Os textos ora coligidos foram apresenta-
dos no primeiro desses colóquios, cujo tema foi “Filosofia e Política”. A ocasião congregou
professores da casa e convidados em torno de um tratamento do assunto que envolveu os
períodos medieval, moderno e contemporâneo. Passo agora a uma breve apresentação de
cada um desses textos.
Inicialmente, o Professor da UFLA, Luiz Marcos da Silva Filho, descortina na re-
flexão agostiniana fatores que delineiam a origem da teocracia cristã, institucionalizada
a partir do século VI. É pela defesa da existência, na condição de queda, da libido como
figura da vontade que implica o emprego do livre-arbítrio na direção de um divórcio em
relação a Deus, que Agostinho procura sustentar a necessidade do exercício de repressão
e de imposição de mecanismos de correção e disciplina, mediante o qual o poder polí-
tico deve corresponder a uma espécie de terapêutica das almas. O desenvolvimento do
argumento se depara, assim, com um paradoxo, aparente, na ideia de que o castigo a que
o homem é submetido por desobedecer a Deus é algo que tanto mais favorece a desobe-
diência. O autor mostra que a consequência da estratégia de denúncia de distanciamento
entre querer e poder é a fundamentação da definição de “povo”, não mais a partir de um
critério moral, mas a partir da própria vontade, trazendo como correlato uma desnatura-
lização da política.
Na sequência, o Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, André Mia-
tello, apresenta alguns aspectos da reflexão política de Vicente de Beauvais, reflexão que,
segundo o autor, localiza-se em território distinto do aristotélico. O objetivo de Miatello
não é perscrutar origens da monarquia absolutista na obra no frade dominicano da Baixa
Idade Média – embora não deixe de indicar obras em que foi empreendido o percurso que
parte das chamadas monarquias medievais para chegar ao regime absolutista monárquico
que distinguiu a história política da Europa a partir do século XV –, mas destacar por que
veios o preceito de conciliação à fé cristã não destitui de racionalidade a reflexão que a
toma em consideração ao eleger por objeto o exercício do poder. Miatello defende que é
possível encontrar, na obra de Beauvais, elementos para sustentar que a relativização da
autonomia da política não corresponde, a contrapelo do resultado verificado em Agosti-
nho – ao estabelecimento de uma equivalência entre política e teocracia.
Já o terceiro texto, diferentemente do segundo, explora a relação entre Aristóteles
e um pensador medievo. Tal relação não é, no entanto, ressaltada senão para mostrar
o quanto o relato que Guilherme de Ockham oferece da Política de Aristóteles é já, e
inevitavelmente, mais do que relato, revelando-se ocasião para a manifestação de um po-
sicionamento próprio, especialmente naquilo que diz respeito à construção de estratégias
de argumentação. Tomando como fio condutor essa hipótese de leitura e explorando as
características próprias a cada um dos três tipos de principados – despótico, real e político
–, bem como o menor ou maior valor, do ponto de vista da ideia de perfeição, a ser atribuí-
do à vila, à cidade, ao reino etc.; Carlos Oliveira, Professor da Universidade Federal de São
Carlos, mostra que aquilo que Ockham procura fazer é explicitar os fundamentos de um
regime monárquico. O autor se posiciona contra uma leitura de Ockham que se arrisca
a ser reducionista na medida em que circunscreve o estabelecimento de um fundamento
racional para a monarquia papal como objetivo de sua discussão da Política e ainda na
medida em que não chega a divisar que a distinção por ele operada, via linguagem aristo-
télica, entre governo para o bem comum e governo para o bem privado se subordina à ne-
cessidade de mostrar que o governo para o bem comum comporta, em si mesmo, diversas
possibilidades e que a eleição de uma dentre elas deve ponderar determinadas condições
capazes de informar por que uma forma é preferível às demais.
Em seguida, Fernando Mattos, Professor da Universidade Federal do ABC, desen-
volve uma argumentação voltada para a defesa da existência, na filosofia kantiana, de um
papel a ser desempenhado pela faculdade da imaginação na razão prática. Sem deixar de
pontuar que Kant afirmara expressamente que apenas o entendimento atua na aplicação
da lei moral aos objetos da natureza para a constituição do juízo prático, Fernando Mattos
alega, no entanto, que a referência a uma operação de síntese entre virtude e felicidade na
determinação do conceito de sumo bem convoca uma reflexão a respeito do espaço que a
imaginação poderia aí ocupar uma vez que se encontra delineada, na razão teórica, como
faculdade responsável pela síntese em geral. As proposições metafísicas que participam
da razão prática como seus postulados, apesar de serem incapazes de engendrar conhe-
cimento, não deixam de ser proposições teóricas, diz o autor; sendo-lhes por isso mesmo
inescapável o caráter sintético, implicam, ipso facto, a incidência da imaginação. Fernan-
do Mattos problematiza possíveis consequências dessa hipótese tomando como ponto de
partida leituras a ela afins, em particular aquelas de M. Heidegger e de H. Arendt.
Léa Silveira
Professora do Departamento de Ciências Humanas da UFLA
Resumo: N’A cidade de Deus, Agostinho apresenta ambivalente concepção de política, pois a política ad-
quire ou positividade ou negatividade conforme a identidade ou a contradição de uma civitas ou res publica
consigo mesma. Mais precisamente, a cidade celeste, que guarda dois modos de existência, um na história,
outro na eternidade, conquista progressivamente identidade na medida em que na história há processo
coerente dela em direção a seu modo de existência por excelência, na eternidade; já a cidade terrena existe
na história em contradição e conflito, ao tornar-se escrava da própria libido de dominação, de maneira que
sua história é de progressiva danação e perda de ser. Uma cidade guarda, pois, estatuto político a despeito
de sua orientação ou de sua desorientação moral. Além do mais, o fundamento da política agostiniana não
é nem a natureza, nem a razão. Assim, em declarada ruptura com a reflexão política ciceroniana, Agostinho
empreende uma desnaturalização da política e fundamenta-a em certo conceito de vontade.
PALAVRAS-CHAVE: POLÍTICA, MORAL, HISTÓRIA, VONTADE
1 “‘Whether St. Augustine realized the enormous significance of what he was saying may be doubted; this definition
[CD XIX, 24] is indeed practically the definition of Cicero, but with the element of law and justice left out, and no more
***
fundamental difference could well be imagined, for Cicero’s whole conception of the State turns upon this principle, that it is
a means for attaining and preserving justice.’ [‘St. Augustine and the City of God’, The Social and Political Ideas of Some
Great Mediaeval Thinkers, ed. F. J. C. Hearnshaw, p. 50.]”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Va-
lue of Civil Society”, p. 172. McIlwain, por sua vez, supõe que a definição agostiniana seria mera variante da ciceroniana,
devendo ser lida como “simply a rhetorical device”. ADAMS, J. D. Op. cit., p. 173. Adams se refere à seguinte obra de
McIlwain: The Growth of Political Thought in the West, from the Greeks to the End of the Middle Ages. O artigo de Adams
é estudo extremamente informativo no que concerne à literatura crítica que, no século XX, interpretou a definição
agostiniana de populus.
2 “moral value”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Value of Civil Society”. In: DONNELLY, D.
F. The City of God: a Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995; p. 171.
3 “Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus”. AUGUSTINUS. De
ciuitate dei, XIX, xxiv. Na ausência de menção, todas as traduções são de nossa responsabilidade.
4 “Secundum istam definitionem nostram”. AUGUSTINUS. Op. cit., loc. cit.
5 “Romanus populus populus est et res eius sine dubitatione res publica.”. Ibid., loc. cit. Obviamente, a redefinição de
populus redefine o sentido de res publica, a despeito de os termos da definição desta não se alterar(em): res publica res
populi. Tanto Cícero quanto Agostinho definem res publica como “coisa do povo”, mas o sentido de “república” varia
conforme a definição de “povo”.
6 A leitura de um Cícero estoico, sem dúvida, é polêmica. Defendemo-la, porém, a partir de Barros, Grimal, Revelli,
Watson, entre outros. Watson, por exemplo, diz que “the leading proponent of the importance of the development of a
law for all men is Cicero. And the main source for the ideas of Cicero on this matter was Stoic philosophy”. WATSON. “The
Natural Law and Stoicism”. In: LONG, A. A. Problems in Stoicism. London: The Athlone Press, 1996, p. 225. No mundo
romano, Agostinho, por exemplo, compreendia Cícero, antes de tudo, próximo do estoicismo: “Cicero in pluribus fuisse
Stoicum quam veterem Academicum vult videri.”. AUGUSTINUS (1955). De civitate dei, XIX, iii, 2.
7 “[…] populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et
utilitatis communione sociatus.”. CICERO. De re publica, I, xxv, 39. No livro III do diálogo, Cícero esclarece que o conceito
de ius presente na definição de populus se refere ao direito natural, pois há identidade entre lex, ratio e natura: “[…] est qui-
dem vera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna, quae vocet ad officium iubendo, vetando
a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut vetat, nec improbos iubendo aut vetando movet. Huic legi nec
obrogari fas est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari potest, nec vero aut per senatum aut per populum
solvi hac lege possumus, neque est quaerendus explanator aut interpres eius alius [Sexto Aelius], nec erit alia lex Romae, alia
Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et [ut] sempiterna et immutabilis continebit,
unusque erit communis quasi magister et imperator omnium deus: ille legis huius inventor, disceptator, lator; cui qui non
parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis aspernatur hoc ipso luet maximas poenas”. CICERO. De re publica, III, xxii, 33.
8 “[…] profecto, ut videatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda, quae diligit. […] tanto utique melior, quanto
in melioribus, tantoque deterior, quanto est in deterioribus concors.”. AUGUSTINUS. Op. cit., XIX, xxiv.
9 “Generaliter quippe civitas impiorum, cui non imperat Deus oboedienti sibi, ut sacrificium non offerat nisi tantummo-
do sibi, et per hoc in illa et animus corpori ratioque vitiis recte ac fideliter imperet, caret iustitiae veritate.”. Ibid., XIX, xxiv.
O que impulsiona Agostinho em busca daquele fundamento por meio de uma inspe-
ção da memória e de si mesmo é o amor ao amor de Deus. Infelizmente, não nos toca exa-
minar aqui as razões metafísicas de Agostinho para, com base em Paulo, definir Deus como
amor e explicar por que o amor é o conceito explicativo da dinâmica entre Deus e a criação.
Em linhas gerais, Deus é amor porque, como de Deus nada se predica, mas tudo que é
atribuído a Ele é a sua própria substância, como Agostinho bem mostra nas Confissões, IV,
10 Cf. De ciuitate dei, XIX, xvi; XIX, xvii; Sermões 13, 302; Epístolas 133, 134, 153, e todo o material referente à contro-
vérsia donatista. Segundo Dawson, “Augustine was the originator of the mediaeval theocratic ideal”. DAWSON, C. “St.
Augustine and his Age”, apud PARKER, Th.-M. “St. Augustine and the Conception of Unitary Sovereignty”, p. 951.
11 “Recordari volo transactas foeditates meas et carnales corruptiones animae meae, non quod eas amem, sed ut amem te,
Deus meus. Amore amoris tui facio istuc, recolens vias meas nequissimas in amaritudine recogitationis meae, ut tu dulcescas
mihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura, et colligens me a dispersione, in qua frustatim discissus sum, dum ab uno te
aversus in multa evanui.”. AUGUSTINUS. Confessionum, II, i, 1. (Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. Grifo nosso.)
12 Cf. AUGUSTINUS. De libero arbitrio, II, xviii, 49; GILSON, É. Introdução ao estudo de santo Agostinho, p. 277.
13 Cf. NOVAES, M. “Vontade e contravontade”. In: NOVAES, A. (org.). O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002, p. 59-76.
14 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 73.
15 “A vergonha (pudor) suscitada pelo despertar no homem da libido indica, não a descoberta de sua nudez, mas a
perda de seu poder sobre seus órgãos sexuais”. SENELLART, M. Op. cit., p. 88.
16 “Merito huius libidinis maxime pudet, merito et ipsa membra, quae suo quodam, ut ita dixerim, iure, non omnimodo
ad arbitrium nostrum movet aut non movet, pudenda dicuntur, quod ante peccatum hominis non fuerunt. Nam sicut
scriptum est: Nudi erant, et non confundebantur (Gn 2, 25), non quod eis sua nuditas esset incognita, sed turpis nuditas
nondum erat, quia nondum libido membra illa praeter arbitrium commovebat, nondum ad hominis inoboedientiam redar-
guendam sua inoboedientia caro quodammodo testimonium perhibebat”. AUGUSTINUS. De civitate dei, XIV, xvii.
17 “Et ideo illae nuptiae dignae felicitate paradisi, si peccatum non fuisset, et diligendam prolem gignerent et pudendam
libidinem non haberent. Sed quomodo id fieri posset, nunc non est quo demonstretur exemplo. Nec ideo tamen incredibile
debet videri etiam illud unum sine ista libidine voluntati potuisse servire, cui tot membra nunc serviunt. An vero manus et
pedes movemus, cum volumus, ad ea, quae his membris agenda sunt, sine ullo renisu, tanta facilitate, quanta et in nobis
et in aliis videmus, maxime in artificibus quorumque operum corporalium, ubi ad exercendam infirmiorem tardioremque
naturam agilior accessit industria; et non credimus ad opus generationis filiorum, si libido non fuisset, quae peccato inobo-
edientiae retributa est, oboedienter hominibus ad voluntatis nutum similiter ut cetera potuisse illa membra servire?”. Id. De
ciuitate dei, XIV, xxiii, 2. Cf. Ibid., XIV, xxiv, 1-2.
18 “Nam postea quam praecepti facta trasgressio est, confestim gratia deserente divina de corporum suorum nuditate
confusi sunt. Unde etiam foliis ficulneis, quae forte a perturbatis prima comperta sunt, pudenda texerunt; quae prius eadem
membra erant, sed pudenda non erant. Senserunt ergo novum motum inoboedientis carnis suae, tamquam reciprocam
poenam inoboedientiae suae. Iam quippe anima libertate in perversum propria delectata et Deo dedignata servire pristino
corporis servitio destituebatur, et quia superiorem dominum suo arbitrio deseruerat, inferiorem famulum ad suum arbi-
trium non tenebat, nec omni modo habebat subditam carnem, sicut semper habere potuisset, si Deo subdita ipsa mansisset.
Tunc ergo coepit caro concupiscere adversus spiritum, cum qua controversia nati sumus, trahentes originem mortis et in
membris nostris vitiataque natura contentionem eius sive victoriam de prima praevaricatione gestantes.”. Ibid., XIII, xiii.
(Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.)
19 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo, p. 85.
20 “[…] o pecado original, ‘tentativa orgulhosa de Adão de estabelecer seu próprio governo autônomo’, marca o começo
da servidão do homem”. SENELLART. Op. cit., p. 73. Se aqui coubesse, poderíamos mostrar que a exegese do relato do pe-
cado original no livro XIV d’A cidade de Deus se dá, a um só tempo, como crítica da pretensão de autarkéia, seja de Adão,
seja de algum sábio estoico, seja de qualquer outro homem ou filósofo que pretenda alcançar por si mesmo a perfeição.
21 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?” AUGUSTINUS. De ciuitate dei,
XIV, xv, 2. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.)
22 “Initium enim omnis peccati superbia est (Eclo 10, 13/15). Quid est autem superbia nisi perversae celsitudinis appeti-
tus? Perversa enim est celsitudo deserto eo, cui debet animus inhaerere, principio sibi quodammodo fieri atque esse princi-
pium.”. Ibid., XIV, xiii. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo nosso para demarcar a citação.)
23 “Nam quae hominis est alia miseria nisi adversus eum ipsum inoboedientia eius ipsius, ut, quoniam noluit quod po-
tuit, quod non potest velit? In paradiso enim etiamsi non omnia poterat ante peccatum, quidquid tamen non poterat, non
volebat, et ideo poterat omnia quae volebat”. Ibid., XIV, xv. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo
nosso para demarcar a citação.)
24 “[…] athletam Christi, doctum ab illo, unctum de illo (Gl 1, 12), crucifixum cum illo (Gl 2, 19), gloriosum in illo”. Ibid.,
XIV, ix, 2. A referência é a Paulo.
25 “[…] cupientem dissolvi et esse cum Christo”. Ibid., loc. cit. Muito provavelmente se trata de citação indireta da Epis-
tola aos Filipenses 1, 23.
26 “Ex hoc iure ac bono credo raptas Sabinas. Quid enim iustius et melius quam filias alienas fraude spectaculi inductas
non a parentibus accipi, sed vi, ut quisque poterat, auferri? Nam si inique facerent Sabini negare postulatas, quanto fuit
iniquius rapere non datas! iustius autem bellum cum ea gente geri potuit, quae filias suas ad matrimonium conregionalibus
et confinalibus suis negasset petitas, quam cum ea, quae repetebat ablatas. Illud ergo potius fieret; ibi Mars filium suum
pugnantem iuvaret, ut coniugiorum negatorum armis ulcisceretur iniuriam, et eo modo ad feminas, quas voluerat, perveni-
ret. Aliquo enim fortasse iure belli iniuste negatas iuste victor auferret; nullo autem iure pacis non datas rapuit et iniustum
bellum cum earum parentibus iuste suscensentibus gessit.”. Ibid., II, xvii.
27 Cf. Ibid., I, i-xxxvi.
28 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?”. Ibid., XIV, xv, 2.
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Brepols, 1955.
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* Luiz Marcos da Silva Filho é professor de Filosofia Medieval da Universidade Federal de Lavras.
A realeza cristã em
Vicente de Beauvais (séc. XIII)
ANDRÉ L. PEREIRA MIATELLO*
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a ideia de realeza defendida pelo dominicano Vicente de Beau-
vais em sua obra De morali principis institutione; analisamos principalmente os capítulos V e VI, nos quais Vi-
cente tenta explicar, por um lado, por que um Deus bom pode permitir o governo de maus reis e, provando-se
que maus reis são instrumentos providenciais, como é que eles podem ser recompensados. O retrato do mau
rei, proposto por Vicente, pode ser interpretado inversamente como traços do bom rei: apesar de exercer um
poder estruturalmente negativo, já que nasceu do pecado (ambitio potestatis), o rei pode e deve colaborar com
Deus na economia da salvação assumindo um ministério sobre as almas na forma de um rei-pastor.
PALAVRAS-CHAVE: MONARQUIA CRISTÃ, PODER POLÍTICO, PASTORADO RÉGIO
Introdução
1 Para este artigo, utilizei a edição crítica estabelecida por Carmen de Acuña (2008) e publicada na Biblioteca de
Autores Cristianos de Madri.
2 O fato de nem mesmo Étienne Gilson, em seu A filosofia na Idade Média (1995), sequer mencionar, salvo engano, o
nome de Vicente de Beauvais, é sintomático dessa negação.
3 Nos autem non ideo hec omnia inculcavimus ut potestatem reprobemus aut reprehendamus. Nam, ut ait quidem
sapiens: Deus potentes non abicit cum et ipse sit potens [Jó 36, 5]. Verum homines eius appetitu vel amore deterrere inten-
dimus (…). (VICENTE DE BEAUVAIS, 2008:86)
Bibliografia
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* André L. Pereira Miatello é professor de História Medieval da Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: < andremiatello@gmail.com>.
Política de Aristóteles
Resumo: O artigo trata do relato feito por Guilherme de Ockham sobre a distinção, proposta na Política
de Aristóteles, de três comunidades que são o ponto de partida da análise sobre as formas “temperadas” e
“corrompidas” de governo (“policiae”) segundo as quais a cidade (“civitas”) pode ser governada. É também
proposta uma análise que visa destacar algumas das particularidades da leitura ockhamiana deste tema.
PALAVRAS-CHAVE: GUILHERME DE OCKHAM, POLÍTICA, ARISTÓTELES, CIDADE (“CIVITAS”),
FORMAS DE GOVERNO (“POLICIAE”)
1 Na tradução apontada do texto de Ghisalberti é, porém, evidente a omissão de uma negação que dá sentido à expo-
sição. Assim, à página 272, deve-se ler: “… Os primeiros dois [isto é, o Dialogus e as Oito questões sobre o poder do Papa]
não contém uma exposição direta do pensamento do autor …”.
***
A seção do Dialogus que iremos tratar aqui é um trecho da única parte desta obra
que veio a lume como resultado da edição crítica atualmente capitaneada pelo Comitê de
Textos Medievais da Academia Britânica, e foi publicada apenas em 2011. Há, porém, uma
tradução dessa seção para o inglês, (OCKHAM, 1995, p. 117-207) baseada numa versão
prévia da edição do texto latino agora publicada. O trecho (3.1 Dial. II)2 trata dos modos
de governo. O valor do texto escolhido para o presente artigo baseia-se no fato de que
ele apresenta a única análise, da qual se tem conhecimento, em que Ockham se dedica
mais extensamente à apresentação do texto da Política de Aristóteles, concentrada mais
detidamente nos capítulos 3 a 8 do trecho indicado, mas, ainda assim, retomada em várias
passagens de todo o livro II.3
Ali, a exposição do texto aristotélico é proposta como uma espécie de preparação ne-
cessária para a discussão do governo da Igreja. Aproximando da discussão dos textos bíbli-
cos e próprios do direito canônico os princípios da filosofia aristotélica, uma apresentação
geral da Política de Aristóteles aparece como necessária para o esclarecimento dos vários
termos gregos (e, portanto, propositadamente colocados como “exteriores” ao debate ecle-
sial) que vão circunstancialmente se fazendo presentes ao debate. De acordo com o relato
atribuído ao discípulo, a exposição do significado dessas palavras se faz necessária espe-
cialmente porque participam da discussão pessoas que são “apenas juristas e outros que
não tiveram nenhum contato com a filosofia moral”. (OCKHAM, 2011, p. 171; 3.1 Dial. II, 3)
A estratégia adotada, porém, é facilmente percebida. Antes que preencher lacunas
ou prestar auxílio a um eventual desconhecimento da filosofia de Aristóteles, a exposição
proposta visa dar vez a uma discussão que possa pôr a claro as próprias bases segundo as
quais Ockham entende tanto a filosofia aristotélica, quanto, num ajuste ainda mais amplo,
mostrar em que sentido deve ser interpretado até mesmo o que é proposto de acordo com
a tradição, os escritos e as leis pertinentes ao que é próprio da cultura eclesial.
Dado o texto, o interesse do leitor tenta ser provocado pelo próprio modo em que
a questão é apresentada. Afinal, segundo o mote proposto pelo discípulo, “dado que ele
[Aristóteles] tenha tratado em vários lugares sobre essa matéria e que se repute que tenha
procedido sensatamente muitas vezes, não será oferecida [por meio da exposição] uma
2 A referência remete à localização do texto independentemente da edição e/ou tradução empregada. Assim, por
exemplo, “3.1 Dial. II, 4” deve ser lida: “Dialogus, Parte 3, Tratado 1, Livro II, capítulo 4”. Sempre que conveniente, apon-
taremos a edição latina seguindo essa indicação mais geral.
3 “Referências explícitas à Política de Aristóteles são encontradas nos capítulos 2, 6, 7, 9 10, 13, 17 e 19; e à Ética Nico-
maquéia nos capítulos 1, 2, 6, 8, 13 e 20.” (Shogimen, 2007, p. 177, n. 111)
Em 3.1 Dial. II, 3, (OCKHAM, 2011, p. 172 ss.) respondendo ao apelo feito pelo “dis-
cípulo”, Ockham propõe-se a fazer um apanhado (“recitabo”) do que seria a “intenção de
Aristóteles segundo a opinião de alguns, embora nem todos concordem em tudo”. (ibidem,
p. 172) A fórmula segundo a qual se vê proposta a exposição é conhecida de outras passagens
do texto ockhamiano. Sua pretensão, porém, não é exatamente a de indicar alguma forma
de descompromisso do autor com o relatado, como pode parecer à primeira vista. Tal como
Ockham já teria anunciado no prólogo desse mesmo texto do Dialogus (em trecho, aliás,
que daria as razões do caráter “não polêmico” segundo o qual a obra foi propositadamente
elaborada), tal estratégia visaria antes fazer com que “a convicção que nasce da exposição
seja devida à evidência intelectual e não à autoridade.” (vide ESTÊVÃO, 1995, p. 5 s.)
As vantagens dessa estratégia já haviam sido anunciadas ainda mais explicitamente
por Ockham no Prólogo de seu Comentário para a Física de Aristóteles:
Portanto, parece óbvio que, mesmo se as opiniões apresentadas, ainda que em linhas
gerais, puderem ser consideradas bastante aceites,4 há que se ponderar (aliás, como o pró-
prio Ockham parece insistir) que não há como não ver na exposição proposta o reflexo
do que venha a ser a opinião do próprio expositor. Afinal, por mais que se pretenda um
relator fiel da opinião alheia, o próprio autor não escapa de confessar que seu relato con-
tém tanto aquilo que declaradamente disse o Filósofo quanto aquilo que ele, relator, julga
que Aristóteles deveria ter dito. Consequentemente, antes que uma declaração de isenção,
trata-se de uma declaração de interesses: o relato não visa um ajuste daquilo que diz Aris-
tóteles com o que é defendido pela fé católica, mas, antes, uma exposição tanto do que é
dito pelo Filósofo como, quando necessário, daquilo que o relator entende que seria sua
posição. Em suma, o óbvio: não há exposição sem interpretação. Mais importante que os
“pontos comuns” com outros autores, portanto, é a devida avaliação da estratégia seguida
por Ockham em sua exposição.
Ockham inicia sua exposição do texto aristotélico lembrando que Aristóteles propõe
“três comunidades nas quais alguém (ou alguns) deve (ou devem) governar [sc. “princi-
pari”] aos outros.” (OCKHAM, 2011, p. 172) Trata-se da conhecida distinção proposta por
Aristóteles entre a casa, (tratada por Ockham ainda em 3.1 Dial. II, 3) a vila (3.1 Dial. II,
4) e a cidade. (3.1 Dial. II, 5) Logo de partida, Ockham aponta que a casa abarcaria ain-
da outras três “combinações, comunidades ou conjugações”: a relação entre o esposo e a
esposa, chamada por Aristóteles de “nupcial”, a relação entre o pai e o filho, que pode ser
chamada de “paterna”, mas que, no vocabulário empregado por Aristóteles seria chamada
de “celmostina”, ou seja, “formativa dos filhos” (“factiva filiorum”), e, por fim, a relação
entre o senhor e o escravo, chamada por Aristóteles de “despótica”.
O cuidado com a apresentação exata dos vocábulos, que, aliás, já havia sido anuncia-
do como a principal tarefa dessa exposição, dá vez à apresentação do que parece ser a base
4 Shogimen, 2007, p. 177 s., por exemplo, afirma que, em linhas gerais (“although their reasons varied”), a interpre-
tação visada por Ockham compartilha a de vários pensadores políticos da escolástica, apontando até mesmo pontos
comuns às exposições de Ockham e de Tomás de Aquino.
5 Note-se que o termo latino “dominus” e seus cognatos podem tanto ser vertidos pelos cognatos de domínio como
pelos cognatos de senhorio, em português.
“tanto aqueles que carecem de razão de modo que não sabem reger
a si mesmos, ainda que sejam robustos de corpo a ponto de poder
se dedicar a outros (os quais, segundo Aristóteles, são ditos serem
naturalmente servos), quanto aqueles que são servos segundo a lei
justa, porque são aprisionados na guerra justa ou são, de algum
outro modo, feitos servos de outros”. (Ockham, 2011, p. 173)
6 A caracterização da relação entre esposo e esposa como aristocrática é literalmente proposta por Aristóteles na
Ética Nicomaquéia: (Aristótes, 1959, p. 413 s. [VIII, 12, 1160b 33 – 11161a 1]) “A comunidade do marido e de sua mulher
parece ser de tipo aristocrático (o marido exercendo a autoridade em razão da dignidade de seu sexo, e nas matérias em
que a mão de um homem deve se fazer sentir; mas os trabalhos que convêm a uma mulher, ele os abandona). Quando
o marido estende sua dominação sobre todas as coisas, ele transforma a comunidade conjugal em oligarquia (dado que
ele age desse modo violando aquilo que cabe a cada casal, e não em virtude de sua superioridade).”
7 Mais exatamente: cap. 12, 1259b 1-3.
Mas essa lição não parece corresponder exatamente àquela que foi tomada pelos co-
mentários medievais, que seguem a tradução (completa) de Guilherme de Moerbeke9 – à
qual, diga-se, não se sabe se Ockham teve acesso direto – que traz a seguinte versão para
o trecho que acabamos de citar:
Também a ilustração do caso do homem que possui uma natureza “falha” pode fa-
cilmente ser recuperada, por exemplo, no comentário de Tomás de Aquino. A respeito do
mesmo trecho do texto aristotélico, Tomás escreve:
11 Em suas “notas explicativas” para o texto grego da Política de Aristóteles, Newman, 1887, p. 210, por exemplo,
defende que o trecho em pauta deve ser entendido assim: “Aristóteles sustenta que embora no geral e como aquele que
comanda o homem seja superior à mulher, há, contudo, tarefas que ela pode executar melhor do que ele, e isso deve ser
levado em conta quando se determina a posição da esposa na casa.” (O grifo é nosso.)
Mas ainda que seja possível tomar as interpretações avançadas por Ockham como
leituras já correntes em sua época, chama a atenção o fato de que ele tenha reduzido a
interpretação da natureza a uma operação racional que independe da vontade. Excluída
a vontade, a razão segue ao que é naturalmente mais perfeito em si mesmo. Como visto, a
perfeição do homem consiste na sabedoria e na virtude. Sua imperfeição, na ausência delas.
Nesse sentido, a imperfeição que é própria à mulher e da qual o “homem efeminado” com-
partilha, de acordo com essa interpretação, não é outra senão a impossibilidade de alcançar
a sabedoria e a virtude. Reduzidas as diferenças desse modo, Ockham tira proveito de algo
que aparece no texto de Alberto como uma hipótese aparentemente absurda e sequer é
mencionado por Tomás: a possibilidade de se considerar uma mulher mais sábia que um
homem sem que isso tenha de ser visto, como sugere Alberto, como algo contrário à natu-
reza, ou, até mesmo, sem que isso tenha de ser considerado como relacionado apenas àquilo
que pretensamente “convém à mulher”, como sugere o texto da própria Ética Nicomaquéia.
Essa possibilidade aparece noutra seção de seu Dialogus, como pode ser visto aqui:
Portanto, dado o que é ensinado pela fé cristã, a mulher (cristã) pode desde já ser
considerada, se não mais, ao menos tão sábia e virtuosa quanto o homem, podendo
também ela sobressair-se em matéria de “sabedoria, santidade, potência e virtude”. (vide
OCKHAM, ibidem, p. 51; 1 Dial. VI, 94) Voltando à exposição do texto aristotélico, pare-
ce interessante destacar que, postas as coisas deste modo, a principal tese defendida por
Ockham nessa primeira aproximação da Política de Aristóteles não é senão a de que o
fundamento que confere justiça ao poder exercido pelo governante na Política não é outro
que a excelência ou maior perfeição intelectual e moral daquele que governa. Sem esta
excelência, ainda que preenchendo a todos os outros requisitos mencionados, o governo,
seja ele despótico, paterno ou nupcial, seria em si mesmo injusto.
Em 3.1 Dial. II, 4 Ockham se ocupa, num capítulo bem curto, do segundo tipo de co-
munidade mencionado por Aristóteles na Política, que é a vila. Mais uma vez, é o conceito
de perfeição entendida como quantidade o critério tomado por Ockham para caracterizar
a distinção da vila seja com relação a casa, seja com relação à própria cidade. A vila é mais
perfeita que a casa “porque é composta de muitas casas como se de partes”. Mas, seguindo
o mesmo critério quantitativo, ainda que pela via oposta, a vila não pode ser considerada
tão perfeita quanto a cidade ou uma comunidade ainda superior “que compreenda muitas
vilas, circunvizinhanças ou cidades”. (OCKHAM, 2011, p. 175)
No entanto, o ponto principal ao qual Ockham mais dedica sua atenção nesse capí-
tulo é a descrição do melhor tipo de governo para a vila. E a inflexão da descrição gira em
torno do que é apresentado como mais “racional/razoável” ou “sensato”: “racionabile”. Se-
gundo Ockham, quando a vila compõe-se de descendentes de um parente comum ainda
vivo (sc. “processit ex uno parente superstite”),
é sensato que seja regida por ele segundo a vontade, não segundo
a lei no que diz respeito àqueles que descendem dele, se a natureza
nele não falha, tal como os filhos são regidos pelo pai. Quanto às es-
posas das quais não é parente, é sensato que governe politicamente,
porque a razão exige que conserve a lei do matrimônio, segundo
a qual o esposo e a esposa são julgados muitas vezes como iguais.
No entanto, se a multidão das casas da vila não descende de um
parente comum, é sensato que seja governada por algum regime
semelhante àquele pelo qual a cidade é governada. (OCKHAM,
2011, p. 175. O grifo é nosso.)
12 Aristóteles, 1872, p. 1 [I, 1, 1252a 1-7]: “Dado que vemos toda cidade existindo como certa comunidade e toda comu-
nidade instituída para algum bem (com efeito, vê-se que em virtude do bem dela, todos fazem tudo), é manifesto que
todos presumem algum bem; ora, maximamente o preeminentíssimo de todos a maximamente preeminente de todas e
que abarca a todas as outras. Ora, essa é a que é chamada de cidade e de participação [communicatio] política.” – “Quo-
niam omnem civitatem videmus communitatem quandam existentem et omnem communitatem boni alicuius gratia
institutam (eius enim quod videtur boni gratia omnia operantur omnes), manifestum quod omnes quidem bonum ali-
quod coniecturant, maxime autem principalissimi omnium omnium maxime principalis et omnes alias circumplectens,
haec autem est quae vocatur civitas et communicatio politica”.
Assim, ainda que muitas das características próprias da cidade possam ser atribuídas
ao reino ou ao ducado, a (mais ampla) preeminência que é a distintiva da cidade se dá
graças ao fato de seus habitantes viverem em conjunto num mesmo lugar. É importante
notar que será a essa característica própria da cidade (e não do reino ou do ducado) que
Ockham associará a ordenação relativa ao regime político (sc. “policia”) adotado pela ci-
dade: “a cidade é a multidão dos cidadãos que habitam a cidade; a organização deles é
chamada de ‘policia’ [sc. “regime político”].”. A ordem é a característica fundamental para
a constituição da cidade: “sem ordem não há cidade”. Como consequência disso, Ockham
sustenta que apenas poderá ser chamada de cidade aquela que possuir “um governante
ou governantes e sujeitados”. E assim como se sugere que possa haver mais de um tipo
Nessa descrição, a inserção da temática do bem comum não faz qualquer menção à
preeminência do bem, ignorando a discussão tal qual arquitetada no começo da Política
que, como já foi apontado, ata a preeminência do bem àquela da cidade. O “bem comum”
aparece principalmente como o critério que separa boas formas de governo de formas
corrompidas. É interessante lembrar aqui que a associação do “bem comum” ao bem pre-
eminentíssimo visado pela cidade sai da forja de Tomás de Aquino. Propondo uma apro-
ximação da análise do texto da Política com o que é discutido no texto da Ética, Tomás
Apesar do que acabamos de ver afirmado, como, aliás, já foi apontado quando da
discussão acerca do poder paterno, Ockham insistirá logo em seguida que caracteriza a
melhor forma de monarquia que o governante possa governar antes segundo a sua própria
vontade que segundo a lei. Desta vez, porém, Ockham se dedica a explicar um pouco
melhor o alcance dessa afirmação, permitindo-nos entender de que maneira ela continua
válida mesmo quando tem-se em conta que o bem comum deve sobrepor-se à vontade:
Assim, ainda que o déspota possa governar seus servos “principalmente em vista do
que é útil para si”, ele não poderá, porém, fazê-lo de modo a ir contra o bem comum, o qual
inclui a seus próprios servos. Consequentemente, a principal característica desse princi-
pado acaba reduzida ao fato de que o governante pode empregar os servos segundo seu
interesse, o que jamais poderá ser feito no principado real. E na mesma passagem citada,
é possível ver também o que é próprio do “segundo” passo antes mencionado. Nele vê-se
que Ockham amplia um pouco mais a ideia já trabalhada de que a justiça desse principado
obedece a um limite natural, ao afirmar que, no principado despótico, o senhor pode go-
vernar segundo seu bem próprio “contanto que em nada atente contra a lei divina ou natu-
ral”. Como característica da ação sábia e virtuosa aparece, portanto, o respeito à lei natural.
Assim caracterizado o principado despótico, Ockham mostra que a principal dife-
rença entre ele e o principado real não é senão o fato de que, além de não poder se servir
Porque diz respeito à liberdade natural que nenhum livre possa ser
empregado segundo a vontade daquele que emprega, mas não é
contra a liberdade natural que alguém livre seja sensatamente em-
pregado para o bem comum, visto que qualquer um tenha de pre-
ferir o bem comum ao privado. (OCKHAM, 2011, p. 177)
Apesar de, aqui, a liberdade natural não parecer ser nada mais que contraponto à
servidão natural, o tema da natureza aparecerá ainda uma vez na definição do principado
régio indicando algo que pode ser visto como o limite que levará ou não à adoção dessa
policia. Sumarizando as características que devem pertencer ao monarca, Ockham propõe
uma descrição que parece apontar ainda a base daquilo que compõe o bem comum:
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Resumo: Começando por apresentar algumas diferentes leituras sobre o papel da imaginação na filosofia
kantiana, em especial aquelas de Martin Heidegger e Hannah Arendt, este artigo pretende discutir em que
medida esse papel seria desempenhado também no âmbito prático dessa filosofia, em particular na Crítica
da razão prática. Embora Kant não seja explícito a respeito disso, os postulados da razão prática pura são
então tomados como um caso especial em que isto ocorreria.
PALAVRAS-CHAVE: KANT, IMAGINAÇÃO, HEIDEGGER, POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA
Não à toa, Heidegger se baseia sobretudo na primeira edição da Crítica da razão pura
para sustentar sua interpretação, já que em tal edição, em particular na sua versão da “De-
dução transcendental dos conceitos puros do entendimento”, a imaginação é tratada com
muito maior destaque do que o seria na segunda edição do livro. É bem verdade que o pró-
prio Heidegger procura explicar esse “recuo” de Kant mostrando que ele não teria alterado
o lugar da imaginação no sistema de nossas faculdades cognitivas: a modificação no trata-
mento se deveria antes a uma opção por deixar em segundo plano esse tão obscuro tema,
concentrando-se preferencialmente no que seria fundamental para o conhecimento objetivo
do mundo (aquilo que, nos termos heideggerianos, constituiria o conhecimento ôntico da
realidade, por oposição ao ontológico, responsável por tratar da constituição subjetiva do
Dasein humano).
Seja como for, o fato é que a interpretação heideggeriana confere à imaginação um
estatuto extremamente privilegiado. Insurgindo-se contra a maior parte das leituras até
então existentes, muito particularmente aquela dos neokantianos de Marburg – com
quem, na figura de Cassirer, Heidegger se defrontara no célebre encontro de Davos (um
dos motes para a elaboração de seu livro) –,3 tal interpretação propõe pensar a compreen-
são kantiana da subjetividade como uma “fundamentação da metafísica (Grundlegung der
Metaphysik)”, de tal modo que a imaginação, nossa faculdade de sintetizar representações
no tempo, demarcaria o horizonte de possibilidades que são constitutivas de nosso existir
finito no mundo, i.e. de nosso Da-sein.
1 Heidegger se baseia na famosa passagem da “Introdução” à Crítica da razão pura: “…there are two stems of human
cognition, which may perhaps arise from a common but to us unknown root, namely sensibility and understanding,
through the first of which objects are given to us, but through the second of which they are thought.” (KrV, A 16/ B 29)
Há um razoável consenso, entre os intérpretes de Kant, quanto a ser a imaginação essa raiz comum aos dois troncos.
Quanto a este ponto, vale consultar o artigo de Dieter Henrich “On the Unity of Subjectivity” (in: HENRICH, D. The
Unity of Reason. Cambridge: Harvard University Press, 1994).
2 HEIDEGGER, M. Kant und das Problem der Metaphysik. In: Gesammtausgabe, I.Abteilung, Band 3. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 151.
3 No prefácio à sua primeira edição, o próprio Heidegger se refere às conferências ministradas em Davos como pre-
paratórias para o livro. Cf. HEIDEGGER, Kant und das Problem der Metaphysik, p. XVI.
4 Para um esclarecimento razoavelmente detalhado dessa interpretação, vale conferir um estudo recente de fôlego:
REBERNIK, P. Heidegger interprete di Kant. Finitezza e fondazione della metafisica. Pisa: Edizioni ETS, 2006.
5 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 43.
6 Poder-se-ia argumentar que a intersubjetividade, e mesmo a capacidade de nos colocarmos no ponto de vista do
outro, é fundamental para qualquer tipo de juízo, inclusive o determinante. Onora O’Neill, por exemplo, sugere algo
nessa direção. Mesmo admitindo essa possibilidade, contudo, seria necessário reconhecer uma diferença substancial
no grau de importância da intersubjetividade – e da imaginação – para os dois tipos de juízo (a menos que se voltasse
à chave heideggeriana, que não é o caso nem com O’Neill nem com Arendt). Cf. O’NEILL, O. Constructions of Reason.
Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge: C.U.P., 1989.
7 Seguindo Daniel T. Peres, um kantiano brasileiro que se tem dedicado ao tema da imaginação no âmbito da filosofia
prática, valeria lembrar os nomes de Cornelius Castoriadis, Alain Renaut e François Lyotard, além do recente trabalho
de Jane Kneller, que já se tornou uma referência nos estudos sobre a imaginação em Kant: KNELLER, J. Kant and the
Power of Imagination. Cambridge: C.U.P., 2007. Cf. PERES, D. “Imaginação e razão prática”. In: Analytica. Rio de janeiro,
vol.12, n.1, 2008, p.99-130.
8 Como diz o mesmo Peres, “qualquer interpretação da relação entre imaginação e razão prática em Kant, mesmo
correndo o risco da leitura retrospectiva, isto é, lançar luz sobre o conjunto da obra crítica a partir de uma perspectiva
que se apresenta apenas em 1790, se vê obrigada a partir da Crítica da faculdade de julgar. Melhor uma leitura retros-
pectiva, mas que tenha suporte textual, do que apelar para um sentido profundo não-pensado, onde a não exatidão é o
único resultado a que se pode chegar.” (Idem, p. 103) Como se pode notar, Peres alude aqui às leituras de perfil heideg-
geriano, em particular àquela de Bernard Freydberg, que mencionaremos a seguir.
9 KpV, Ak.V, 69: “… a lei moral não possui nenhuma outra faculdade de conhecimento que mediasse a aplicação
da mesma a objetos da natureza, a não ser o entendimento (não a imaginação); o qual pode atribuir a uma ideia da
razão não um esquema da sensibilidade, mas uma lei”. As citações de Kant são traduzidas diretamente do alemão, com
consulta à tradução de Valério Rohden para a Martins Fontes: KANT, I. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
10 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy, p. 84.
11 Um ponto de vista que é adotado por Kant em textos como, por exemplo, Ideia de uma história universal e À paz
perpétua.
12 Cf. CASTORIADIS, C. “The greek polis and the creation of democracy”. In: ______. Philosophy, Politics, Autonomy. Essays
on Political Philosophy. New York, Oxford: Oxford University Press, 1991, p.81-123. Citado por PERES, D., op. cit., p. 101.
13 Desenvolvi uma breve reflexão sobre esse tema do “conhecimento prático” em um artigo publicado nas atas do
X.International Kant Congress, de 2005. Cf. MATTOS, F. “Kant’s practical knowledge as a result of the connection between
speculative metaphysics and rational faith.” In: TERRA, R., RUFFING, M. et. al. Recht und Frieden in der Philosophie
Kants. Akten des X. Internationalen Kant-Kongress. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008, vol. 3, p.259-268. Trata-se
de uma reflexão desenvolvida a partir de minha dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo em
2001. Cf. MATTOS, F. Conhecimento prático e metafísica especulativa em Kant. Dissertação de Mestrado, 117 páginas. São
Paulo: Depto. de Filosofia da USP, 2001.
14 Não nos esqueçamos, contudo, dos bons trabalhos que, a seu tempo, julgaram necessário insistir nesse ponto.
Um caso exemplar é o de Lewis W. Beck, que, em seu clássico comentário à Crítica da razão prática, se esforça para
demontrar a inexistência de qualquer vínculo entre a doutrina dos postulados e a fundamentação da moralidade, que
seria estritamente racional. Beck chega a lamentar que Kant tenha tratado desses velhos temas. Cf. BECK, L.W. A
Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, p. 236. Outro importante nome a ser lembrado, no contexto europeu
continental, é o de Gérard Lebrun, que, em seu Kant et la Fin de la Métaphysique, também se esforça por mostrar que
os “velhos conceitos” – como Deus e alma – já não se referem a objeto algum, constituindo antes uma “radioscopia de
significações”. Cf. LEBRUN, G. Kant et la Fin de la Métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 263.
15 Cf. MARTIN, G. Immanuel Kant. Ontologie und Wissenschaftstheorie. Berlim: W.de Gruyter, 1969.
Comecemos, agora, pelas palavras do próprio Kant. Após abrir a “Dialética da razão
pura prática” com um curto – e bastante genérico – capítulo sobre a “dialética da razão
pura em geral”, Kant logo especifica a dialética da razão prática como uma dialética “na
determinação do conceito de sumo bem” e, em seguida, começa a explicar, de maneira
bastante precisa, o cerne da questão que constitui “a antinomia da razão prática”:
16 FREYDBERG, B. Imagination in Kant’s ‘Critique of Practical Reason’. Indianapolis: Indiana University Press, 2005.
17 KpV, Ak.V, 113.
Uma vez, porém, que a promoção do sumo bem, cujo conceito con-
tém tal ligação, é a priori um objeto necessário de nossa vontade,
e é inseparavelmente interconectado à lei moral, a impossibilidade
do primeiro tem de provar a falsidade da última. Se, portanto, o
sumo bem é impossível segundo regras práticas, então também a
lei moral, que nos ordena promovê-lo, tem de ser fantasiosa, dire-
cionada a fins imaginários vazios e, portanto, falsa em si mesma.20
Embora, em princípio, a não realizabilidade do sumo bem não afetasse, como vimos
insistindo, a fundamentação da moralidade,21 aqui Kant parece indicar que, se ele não for
18 Estamos parafraseando a célebre passagem de B 103: “A síntese em geral é, como veremos mais à frente, o mero
efeito da imaginação, uma função cega mas indispensável da alma, sem a qual jamais teríamos conhecimento algum,
mas da qual raramente tomamos consciência” (KrV, A 78, B 103).
19 FREYDBERG, op. cit., p. 3.
20 KpV, Ak.V, 114.
21 Este é um ponto fundamental para Beck: “nós não nos devemos deixar enganar, como eu acredito que Kant se enga-
nou, pensando que a sua possibilidade (do sumo bem) é diretamente necessária à moralidade, ou que nós temos o dever
moral de promovê-lo, como se fosse um dever distinto do nosso dever tal como determinado pela mera forma (e não
pelo conteúdo ou objeto) da lei moral”. BECK, L., op. cit., p. 245.
Os termos aqui empregados por Kant parecem reforçar o vínculo, apontado por
Heidegger no contexto teórico e explorado por Freydberg no contexto prático, entre, de
um lado, o modo como a razão pensa (imagina) o supra-sensível e, de outro, a finitude
enquanto seu elemento constitutivo, já que constitutivo do Dasein humano. Trata-se, com
efeito, de um “complemento para a nossa incapacidade” quanto a realizar o sumo bem no
mundo, uma meta que nós mesmos nos colocamos desde o ponto de vista inteligível (atra-
vés da lei moral). Assim como o nosso entendimento, no contexto teórico, imprimia ao
mundo natural a necessidade e a universalidade que, em nossa finitude básica (demarcada
pela sensibilidade), não éramos capazes de assegurar (vide o modo como Hume formu-
lara o problema da causalidade), a razão tratará agora de assegurar ao mundo (em geral)
um curso moral que, enquanto seres sensíveis finitos, não somos capazes de assegurar: as
ideias de alma e Deus, que apareciam como hipóteses reguladoras no contexto teórico,
recebem um acréscimo predicativo (a alma é imortal e Deus é o autor moral do mundo)24
e se convertem em postulados cuja “dignidade”, na medida em que neles acreditemos, não
é nem um centímetro menor que aquela do saber teórico.25
Essa é, aliás, uma possível razão para Kant introduzir uma seção sobre o primado da
prática entre a “superação crítica da antinomia” e as seções que tratarão especificamente
dos postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus: é preciso reforçar a hie-
rarquia existente, quando temos em vista a nossa existência em geral (e não apenas a sua
dimensão cognitiva), entre a razão prática, que nos dá um sentido e um rumo para viver, e
a razão teórica, cuja atividade não poderia ser considerada um fim em si mesmo, mas tem
antes de subordinar-se àquela. Ao deixar isso claro, Kant prepara o terreno para estabe-
lecer, como postulados, as tais conexões sintéticas que, a partir da liberdade, reforçarão o
vínculo entre virtude e felicidade nos termos de um progresso infinito da espécie humana:
Contra aqueles que propõem interpretar a imortalidade da alma como uma conti-
nuidade indefinida da espécie humana, essa passagem mostra tratar-se de uma suposição
relativa ao “mesmo ser racional” (dasselbe vernünftige Wesen) e, na sequência, indica que
o seu vínculo com a lei moral é “inseparável” (unzertrennlich). É evidente que tal supo-
sição não pode constituir conhecimento no sentido estrito do termo (este é um ganho,
por assim dizer, de que a filosofia crítica nunca voltou atrás), mas a sua natureza é de
uma proposição teórica (portanto sintética) e, nesta medida, envolve a participação da
imaginação. E o que confere legitimidade a ela – outro ponto que a passagem citada deixa
claro – é esse vínculo com a lei moral, que a torna o resultado não de uma arbitrariedade
subjetiva individual (como seria o caso em produtos da imaginação leere eingebildete),
mas de “uma lei prática indondicionada”, a mesma lei que
A existência de Deus vem completar, assim, o conjunto de três postulados que, cor-
respondentes às ideias com que a razão especulativa buscara solucionar as suas próprias
aparentes contradições (os paralogismos, as antinomias e o ideal de completude), permi-
tem firmar uma “visão moral do mundo” (para usar os pejorativos termos de Hegel sem
qualquer conotação pejorativa!) em que a liberdade passa a ser vista como convergente,
num futuro hipotético (daí a sua realização constituir uma tarefa infinita), com a realidade
empírica, uma realidade em que o ser racional não podia, em princípio, reconhecer-se
plenamente, visto não ser, no fim das contas, mais do que o conjunto de possibilidades
estabelecido pela estrita conjunção de sensibilidade e entendimento.28 Não se trata, natu-
Como dito anteriormente, a grande questão suscitada por esse “truque” de Kant, com
que ele “revalida”, por assim dizer, os conceitos clássicos da metafísica (Deus, liberdade
e alma como bases dos três ramos da metaphysica specialis), diz respeito ao quanto ele
comprometeria a integridade de sua filosofia enquanto crítica. Ora! Se a primeira parte
da metafísica – a ontologia – se ocupa das nossas faculdades mentais, isto significa que
ela é, antes de tudo, uma ontologia do ser humano: é o sentido em que Heidegger a consi-
dera uma (re-)fundação da metafísica como analítica da finitude humana. E é justamente
nisto que estaria a sua radicalidade crítica: solapando as bases do que costumava ser uma
ontologia do mundo, ela se cinge ao ponto de vista humano (“demasiado humano”, diria
Nietzsche) para investigar os horizontes de possibilidade oferecidos a nós enquanto se-
the sensible world, and of the faculty of determining one’s will according to the law of an intelligible world, that is, of freedom;
the third from the necessary condition of the existence of the summum bonum in such an intelligible world, by the supposition
of the supreme independent good, that is, the existence of God.” (KpV, Ak.V, 132)
29 KpV, Ak.V, 133.
Não seria exagerado dizer, a esta altura (segundo a interpretação que vimos sugerin-
do), que é assim que funciona, segundo Kant, a imaginação do homem justo. Embora o
entendimento, cuja função é aplicar conceitos aos dados sensíveis, jamais pudesse auto-
rizar semelhantes afirmações, a sua imaginação, guiada pela lei moral – e pelo interesse
***
A interpretação aqui sugerida não é, por certo, das mais ortodoxas. Ao insistir na im-
portância da imaginação, corremos sempre o risco de imaginar demais. O próprio Freydberg,
cujas teses foram bastante inspiradoras para nossa reflexão, parece ir longe demais ao falar
em um “primado da imaginação” na filosofia kantiana.32 Um pouco mais comedidos, por
assim dizer, procuramos insistir sempre no fato de que, ao ir além do sensível, a imaginação
(e com ela o pensamento, a mente) opera sob o comando da lei moral, portanto sob um pri-
mado da razão prática – ponto em que Kant é particularmente incisivo. De qualquer forma,
procuramos mostrar que, constitutiva do nosso pensar desde o âmbito teórico, a imaginação
também tem de possuir uma função reconhecida no âmbito prático, em particular no que
diz respeito aos postulados da razão prática: imortalidade da alma, liberdade e existência de
Deus. Com isso, a filosofia moral kantiana adquire, de fato, uma coloração menos cinzenta
(como propõe Freydberg),33 mas não chega a desviar-se de seu núcleo racionalista e univer-
salista, nem de sua inscrição em uma ontologia da finitude que, se bem compreendida, pode
oferecer muito mais possibilidades ao ser humano do que uma mera teoria do conhecimen-
to (Cassirer) ou uma filosofia moral centrada somente na política (Hannah Arendt).
Referências bibliográficas
ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.
Resumo: À luz do debate entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein, este artigo pretende medir as diferenças
entre os juízos políticos de Kant e Fichte quanto ao direito de Revolução. Além disso, também pretende
mostrar que, muito embora muitos fatores tenham contribuído para que o “reino dos fins” chegasse à Terra,
as análises tanto especulativas quanto políticas de Fichte podem ser lidas como uma importante defesa da
liberdade e libertação do homem. Isso para concluir que o direito de revolução em Fichte pode significar
uma defesa dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: KANT, FICHTE, REVOLUÇÃO, LIBERDADE, DIREITOS HUMANOS
1. Socialismo moral
1 Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke, vol.1, Dietz Verlag, Berlin, 1982, p. 369-445. As citações foram retiradas da
versão eletrônica www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1899/sozrefrev/index.htm, autorizada pelo editor.
2 Jean Jaurès, Les orgines du socialisme allemand, trad. Adrien Veber, Paris, Les Écrivans Réunis, 1927, p. 13-4.
3 Idem, p. 22.
4 Por isso, já em Lutero, encontramos a idéia de que a “fecundação do dinheiro é uma coisa contra a natureza”, idem, p. 27.
5 Idem, p. 35.
6 Idem, p. 42.
7 Idem, p. 46.
8 Idem, p. 51 e 53.
9 Neste sentido é sintomática a leitura de L. Goldmann, segundo a qual (diante da questão, há algum meio para o
homem empírico atingir o incondicionado, o soberano bem?), “Em seus principais representantes, Fichte, Schelling e
Hegel, do mesmo modo que em ‘seu herdeiro materialista’, Marx, o idealismo alemão foi uma tentativa de responder
positivamente a essa questão”, Origem da dialética, a comunidade humana e o universo em Kant, Trad. Haroldo Santiago,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.251.
10 Marx & Engels, Die Deutsche Ideologie, – I. Feuerbach, in: Werke, vol. 3, Berlim, Dietz Verlag, 1958, p. 177.
11 J. Droz, L’Allemagne et La Révolution Francaise, p. 9, apud, Ricardo R. Terra, Passagens, estudos sobre a filosofia de
Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p. 102.
12 J. Droz, La formación de la unidad alemana, 1789-1871, trad. Miguel L. Remedios, Barcelona, Ed. Vincens-vives,
1973, p. 28.
13 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, BA p. 47. As obras de Kant serão citadas a partir da edição Werke in Zehn
Bänden, Weischedel, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983. As citações de Fichte serão feitas a partir da
edição Fichtes Werke, Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1971.
14 Ibid., B62/A61ss. Segundo Philonenko, teria sido a proximidade com o pensamento reacionário de Rehberg – que
afirma, contra Rousseau, a necessidade de uma autoridade estatal que possa corrigir a fraqueza humana – o motivo pelo
qual Kant teria separado os temas em 1795/6. Philonenko, Théorie et Praxis dans la pensée morale et politique de Kant et
Fichte em 1793, Paris, Vrin, 1976, p. 27-30. O que pode ser justificado, pois em duas ocasiões Kant, em À Paz Perpétua,
faz questão de argumentar, mantendo a tese de que a revolução é sempre ilegítima (crime), contra a possibilidade de
restauração, B78/A73 e B103/A97.
15 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B73/A68.
16 Ibid., B73/A68.
17 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B76/A70-1.
18 Comentando a distinção de Kant, E. Kouvélakis, Philosophie et révolution, p. 37, afirma: “O ato de fundação da
política faz apelo a um elemento que a abole e procura, simultaneamente, um sentido totalizante”. E conclui: “Mas é pre-
cisamente sobre este ponto que a indeterminação efetiva do critério proposto aparece mais claramente. A categoria que
permitiu fundar na razão a via das reformas pelo alto, aquela do ‘político moral’, é, com efeito, a que servirá igualmente
***
para justificar tanto a ditadura da virtude de Robespierre quanto sua ‘retificação’ thermidoriana. (…) Os adversários
reacionários das Luzes não são certamente os únicos ‘moralistas políticos’; o próprio dos preceitos morais é precisamen-
te poder servir para a justificação de não importa qual política, a menos que se refira a uma legitimidade absolutista”.
Argumento que pode ser estendido ao juízo político de Fichte.
19 M. Gueroult, Études sur Fichte, p. 199: “O que Kant recusa ao povo, ser juiz e parte ao mesmo tempo, Fichte recusa
ao soberano”.
20 A referência a Fichte não é absolutamente certa, pois em 1795, J. B. Ehrard, médico e discípulo de Kant, publicou Über
das Recht des Volks zu einer Revolution, na qual distingue a revolução da rebelião, defendendo a primeira e recusando a
segunda. Inspirado em Kant, Ehrard sustenta o direito de revolução a partir da distinção entre: “poder legal” (rechtlich) e
“poder legítimo” (rechtmäβig). Cf. Raulet, Aufklärung. Les Lumières allemandes, Paris, Flamarion, 1995, p. 376-380.
21 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B98/A92.
22 P. Aubenque, “A prudência em Kant”. In: A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Edi-
torial, 2003, p. 322.
23 Ibid., p. 338.
24 Uma análise contrária ao juízo de Aubenque é a que faz Ricardo R. Terra, “Determinação e Reflexão em À Paz
Perpétua”, in: Passagens, estudos sobre a filosofia de Kant, p. 85-99. Ele procura mostrar que uma análise da filosofia
política de Kant a partir da dicotomia entre juízos determinantes e reflexionantes evita a conclusão de Aubenque e,
ao mesmo tempo, permite a incorporação da prudência nos esquemas conceituais do primeiro. Assim, como o juízo
político é tanto reflexionante quanto determinante, podemos considerar as instituições “buscando sua máxima” e, então,
determiná-las pela universalidade da lei (p. 98). De qualquer forma, as instituições são avaliadas “em função do sentido
da história”; por conseguinte, no que concerne ao meu argumento, a política – no plano geral de sua consideração, e não
de ações particulares – é focada pelo viés da história, como discurso sobre o sentido moral necessário da humanidade.
25 P. Aubenque, “A prudência em Kant”, p. 339.
Sob a questão “Um povo tem, em geral, o direito de mudar sua constituição políti-
ca?”, (Cap. 1 das Beiträge) Fichte apresenta o tema da “aplicação” da lei moral aos eventos
políticos; para tanto, introduz a relação de imanência entre dois conceitos chaves em sua
argumentação: a destinação (Bestimmung) do homem e a própria liberdade. Na medida
em que esses conceitos estão numa relação recíproca – algo que não podemos demons-
trar aqui –, Fichte pretende extrair o caráter inalienável do direito de mudar a consti-
tuição (Staatsveränderungen), i.e., pretende legitimar o direito de revolução. Garantido
esse direito, o juízo sobre a Revolução Francesa pode então ser “retificado”. Para dizer
numa palavra, certo desnível entre a liberdade como “origem” e fundamento de nossa vida
(consciência), nosso “eu”, e, de outro lado, a liberdade como liberdade total que plasma a
realidade, a qual só pode ser pensada como destinação, faz com que o primeiro sentido de
liberdade fundamente o direito de mudar as Constituições (como estruturações estatais)
em nome da consumação da liberdade na segunda acepção, a “finalidade” subjacente ao
sentido mesmo do “mundo”. Por isso, se ao final das contas, Fichte diverge inteiramente de
Kant quanto ao direito de revolução, isso não impede que ambos concebam a liberdade –
que torna o homem fim em si – como o fundamento do juízo político e, por isso mesmo,
ele, o direito de revolução, deve ser vinculado ao sentido da história (Weltgeschichte) e não
à história empírica (Historie) de Rehberg.26
Da premissa de que todas as sociedades civis (bürgerlische Gesellschaft), conforme
ensina Rousseau, se fundam, “no tempo”, sobre um contrato,27 E. Rehberg sustenta, contra
Rousseau, o seguinte. Como todas as constituições, como contratos originários, se fundam
sobre o direito do mais forte, a desigualdade de direitos é parte estrutural das próprias so-
ciedades humanas. Segundo Rehberg, é exatamente isso que os intérpretes revolucionários
de Rousseau notadamente teriam ignorado ao exigir uma igualdade na “Declaração dos
direitos do homem”. A “sabedoria histórica” de Rehberg reduz, para Fichte, o futuro ao
passado e o possível ao real; para Kant, de outro lado, toma equivocadamente o contrato
social como fato e não como Idéia. Se Fichte, de um lado, mantém-se kantiano porquanto
pretende pensar o contrato a partir da lei moral e da liberdade; de outro lado, pelos deslo-
camentos que opera na equação kantiana entre liberdade e lei moral, pretende extrair um
juízo político bastante inusitado aos olhos de Kant: o direito de revolução.
O interessante no contratualismo de Fichte é que ele modifica significativamente a
noção de “estado de natureza”: seu sentido é a própria lei moral como lei natural do ho-
mem.28 Da premissa de que a lei moral deve ser o ponto de apoio transcendental do juízo
político (como ensina Kant nos Apêndices À Paz Perpétua), Fichte pretende inferir que ela
29 O genitivo deve ser entendido em sentido “objetivo”, i.e., trata-se de submeter a sensibilidade e não de ser, obvia-
mente, submetido por ela.
30 Fichte, op. cit., p. 87-8.
31 Fichte, Beiträge, SW, vol. 6, p 89.
32 Philonenko sustenta que outros kantianos, mais ortodoxos que Fichte, como T. Schmalz e G. Hufeland, vão na
mesma direção de fundar o direito na lei moral, Théorie et práxis, p. 115.
33 Hegel, Phänomenologie des Geistes, Berlim/Frankfurt, Verlag Ullsteim, 1973, p.327-334, “Die absolute Freiheit und
der Schreken”.
34 Ibid., p 102.
Resumo: A partir de uma breve caracterização da filosofia de Michel Foucault, este artigo pretende retraças
as exigências políticas da correlação, postulada por seu pensamento, entre a manifestação da verdade e o
exercício do poder.
PALAVRAS-CHAVE: MICHEL FOUCAULT, PODER, VERDADE, AÇÃO INTELECTUAL
Power, politics and truth in Michel Foucault: notes on the practical implications of speech
Abstract: From a brief characterization of the Michel Foucault’ philosophy, this paper aims to retrace the
political demands of the correlation, postulated by his thought, between the manifestation of the truth and
the exercise of the power.
KEYWORDS: MICHEL FOUCAULT, POWER, TRUTH, INTELLECTUAL ACTION
C
om o intuito de evitar certas facilidades no trato com o pensamento de Michel
Foucault, certas leituras apressadas que pretendem aprisioná-lo no registro cô-
modo de um irracionalista – um pensador cuja tarefa consistiria, ingenuamen-
te, em um mero ataque à “imemorial” separação entre o verdadeiro e o falso –,
gostaria de iniciar minha exposição explorando um trecho da aula inaugural pronunciada
pelo filósofo no Collège de France em 1970, posteriormente publicada sob o título de A
ordem do discurso:
Esta citação demarca suficientemente bem o registro no qual Foucault opera suas
análises discursivas. Para o filósofo, não se tratava de abordar os enunciados do ponto de
vista de sua validade proposicional: no nível da proposição – é o que se lê acima –, a sepa-
ração entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional,
nem violenta. Sendo assim, é em “outra escala” que devemos situar o trabalho realizado
por Michel Foucault: tomando o discurso a partir de suas condições de enunciação e cir-
culação, tratava-se de explicitar os efeitos de exigência e coerção exercidos pela norma do
verdadeiro nos domínios aos quais ela é aplicável.2 Por verdade, Foucault compreende “um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados”.3 Enunciados que terão como seu correlato indispensável
práticas sociais e institucionais diversas.
Pelos motivos expostos acima, a tarefa a que Foucault se propõe demanda uma
“nova” démarche – ou método – no trato com a análise discursiva, um procedimento que
suspenda a questão acerca dos critérios de validade dos enunciados proposicionais para
explicitar o discurso em seus efeitos práticos de exclusão e partilha, por vezes, exclusão e
inclusão para fixar identidades. Em consequência, o objeto das investigações foucaultia-
nas não é exatamente a ciência, mas sim o saber: o discurso (independentemente de seu
grau de cientificidade e/ou validade) compreendido em sua materialidade mesma como
prática regrada e cotidiana de ordenamento de nossa experiência.4
Um saber como o da medicina, por exemplo, constitui, na medida de seu desenvol-
vimento histórico, uma reorganização da experiência do homem não doente e por isso
mesmo também uma definição do homem modelo. Seu discurso de “verdade objetiva” sus-
cita práticas de efeito normativo que “não apenas a autoriza a distribuir conselhos de vida
equilibrada, mas também a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade
em que se vive”.5 Aqui se joga, a um só tempo, tanto a arqueologia como a possibilidade de
uma genealogia.
uma vez por todas, este livro não é escrito por uma medicina contra uma outra, ou contra a medicina, por uma ausência
de medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo que tenta extrair da espessura do discurso [médico]
as condições de sua história”. C.f., Idem ibidem, p. XVIII.
6 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 10 (Grifo nosso).
7 Idem ibidem, p. 35.
8 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 13.
9 Para dar uma definição concisa do poder disciplinar – conceito que terá tratamento sistemático em Vigiar e punir,
obra de 1975 –, digamos que se trata de uma modalidade de poder nascida entre fins do século XVIII e início do século
XIX, e que será descrita por Foucault em termos de uma “tecnologia política do corpo” que consiste em: 1. uma “arte de
distribuição dos espaços” nos quais estão os indivíduos; 2. na regulação de seus gestos; 3 na vigilância constante sobre
eles. Cf. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975, p. 31.
No curso que Foucault dará no Collège de France no ano letivo de 1975-1976, inti-
tulado Em defesa da sociedade, encontramos um complemento adequado para a devi-
da compreensão desta menção a um “combate em torno do estatuto da verdade”. Nesta
ocasião, Foucault apresentará seu programa genealógico como um esforço destinado a
***
14 FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: cours au Collège de France (1975-1976). Collection “Hautes Études”.
Paris: Gallimard/Seuil, 1997, p. 10.
15 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 37. Neste caso, Foucault está se referindo a um conjunto de procedi-
mentos que consiste em “impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que
todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam”. C.f. Idem ibidem, p. 37-38.
16 Em A ordem do discurso, o tema da genealogia refere-se ao contexto específico de investigação de “como se formaram,
através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção [discursivos] séries de discursos; qual foi a norma específica de
cada uma e quais foram suas condições de aparecimento, de crescimento e de variação”. Cf. Idem ibidem, p. 60-61.
Só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecun-
didade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em
contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria
destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa
história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-
la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assu-
me a tarefa [por exemplo] de justificar a interdição e definir a lou-
cura; todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora
nos servir de sinais, ativos sem dúvida, para o trabalho de todo dia.19
17 Idem ibidem, p. 9.
18 Idem ibidem, p. 13.
19 Idem ibidem, p. 20-21.
20 FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Collection Tel. Paris: Gallimard, 2007, pp. 535-536.
21 ERIBON, Michel Foucault, op. cit., p. 222. Não à toa, Eribon menciona a “multidão” que teria sido atraída para a
aula inaugural de Foucault dizendo que, para a crônica da época, ela se assemelhava a “delegações enviadas por maio de
1968”. C.f. Idem ibidem, p. 225.
22 FOUCAULT, Michel. “Préface à Enquête dans vingt prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard,
2001, pp. 1063-1064. Em artigo dedicado às posições intelectuais de Sartre e Foucault, Renato Janine Ribeiro resume de
modo adequado o ineditismo da ação política proposta pelo GIP: “O GIP foi algo inédito, pelo menos na França (a Anis-
tia Internacional tinha, no mundo afora, uma atuação que recobria alguns de seus aspectos e ultrapassava outros, mas
sem a doutrinação francesa). Não defendia os presos políticos em particular, mas – sobretudo – os de direito comum.
Ora, os intelectuais, franceses ao menos, podiam se interessar pelos presos, mas só para conferir sentido e destinação a
sua luta; pois foi justamente o que Foucault se proibiu.” Cf. RIBEIRO, Renato Janine. “O intelectual e seu outro: Foucault
e Sartre”. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/
Departamento de Sociologia, v. 7, ns. 1-2, out. 1995, p. 169-170.
23 FOUCAULT, Michel. “Qui êstes-vous,professeur Foucault?”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 634. O leitor
atento já deve ter notado, aqui como em ouros lugares, o acento nietzschiano das considerações de Foucault, a começar
pelo uso do termo genealogia, bem como vontade de verdade: “Que sentido teria nosso ser inteiro, senão o de que, em
nós, aquela vontade de verdade teria tomado consciência de si mesma como problema? Neste tomar consciência de si
da vontade de verdade vai, de agora em diante – disso não há dúvida nenhuma –, a moral ao fundo”. Cf. NIETZSCHE, F.
“Para a genealogia da moral”. In: Obras incompletas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 331. Mas
trata-se apenas de um acento: seriam necessárias diversas mediações para compreendermos a apropriação de Nietzsche
feita por Foucault, algo do qual não podemos nos ocupar nesta exposição. Ao leitor interessado, cf. o belo artigo de
Oswaldo Giacóia a esse respeito: GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Filosofia da Cultura e Escrita da Historia: notas sobre
as relações entre os projetos de uma Genealogia da Cultura em Foucault e Nietzsche”. In: O Que nos Faz Pensar, Rio de
Janeiro, v. 03, 1990, p. 24-50.
***
Constituir uma nova política da verdade – eis o centro de uma atividade intelectual
não mais conformada às formas tradicionais de intervenção política. Esta tarefa – cujo ob-
jetivo seria o de desvincular o poder da verdade das formas hegemônicas atuais –, requer
um tipo intelectual que não é mais o portador da verdade de seu tempo, posto que isto sig-
nificaria repor em circulação a mesma “política de saber” que a ele caberia denunciar. Não
24 FOUCAULT, Michel. “Sur les prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1044. Como exemplo ilustrativo, que
se tome as palavras do Foucault de Vigiar e punir, relativa aos mecanismos do poder disciplinar em sua generalidade: “A
psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de reti-
ficar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de
uma instância disciplinar à outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder/saber
próprio de toda disciplina”. FOUCAULT, Surveiller et punir, op. cit., p. 186. Sendo assim, “Devemos ainda nos admirar se
a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, e que todos eles se pareçam com as prisões?”. C.f.
Idem ibidem, p. 187.
25 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14.
A teoria como prática nos remete a um ponto importante da tarefa intelectual: não se
trata tanto de possuir o saber do poder, mais sim de denunciar o poder do saber. Se a teoria
é já uma prática – “local, regional” –, é porque as formas vinculantes do poder não são
aquelas de uma unidade homogênea e facilmente identificável; se a intervenção política é
pontual, isso ocorre não por deficiência da ação, mas pela exigência (ela própria genealó-
gica) de que é preciso ferir o poder em seu exercício regrado e cotidiano, em seu registro
capilar: lutas concernentes ao aparato judiciário, à medicina, à psiquiatria, à sexualidade.
“Se faço as análise que faço”, dirá Foucault nos anos 1970, “não é porque há uma polêmica
que eu gostaria de arbitrar, mas porque fui ligado a certos combates: medicina, psiquiatria,
penalidade”.27 Trata-se, para este intelectual, de promover o desmascaramento da realida-
de política das relações entre e verdade e poder.
Uma tal caracterização do trabalho intelectual, por sua vez, responde à analítica do
poder desenvolvida por Foucault: todo saber é político, e já a arqueologia, ao não nos reme-
ter a um sujeito fundador28, deve desdobrar-se no reconhecimento (genealógico) de que
são as relações de poder que constituem os sujeitos como objetos do discurso verdadeiro,
conformando-os aos esquadros do saber/poder. Em outros termos: a analítica foucaultiana
do poder nos remete justamente às relações históricas da “forma sujeito” em sua articu-
lação com as regras que instituem domínios de sujeição e objetivação dos indivíduos por
26 FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1176.
27 FOUCAULT, Michel. “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 29.
28 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 46-49.
Bibliografia
29 FOUCAULT, “Préface”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 135.
30 FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Dits et écrits II. 1976-1988, op; cit., p. 1393.
31 FOUCAULT, Michel. L’usage des plaisirs. In: Histoire de la Sexualité, v. 2. Bibliothèque des Histoires. Paris: Galli-
mard, 1984, p. 15.
32 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14 (Grifo nosso).
, e o Tsunami sabe de desastres, não sou de atentar nos malabarismos da mídia, a na-
tureza tem seu fluxo, homens não passam de pó na orla, a morte é do jogo, mas é
a articulação camuflada e invisível nos sinistros que me interessa e me leva a fruir
; os pássaros, estes são eternos
, assim também o sobrenadar litígios linguísticos, marcar caminhos no deserto, tanto faz o
número de atalhos, quantos mais, melhor, é da regra multiplicidades, delírios e diferenças,
e a morte estará sempre atrelada ao gozo, derradeiro orgasmo gerador das inquietudes que
nos levam a Marte
, apenas folheio Frieze, fotografia como estilo de vida, um entre tantos instrumentos de
distração e manipulação conceitual, poderia fazê-lo com as revistas Caras e Cult, a por-
nografia de Zéfiro, sem possibilidade de consumo a periferia sonoriza ou lota as igrejas
evangélicas
, a jovem africana em teste para modelo veste a pouca roupa com sua pele, quase nua,
inversão do olhar, fotografias permitem devaneios circenses, as coxas carnosas e um olhar
divorciado do corpo, de fundo a pele de um tigre em extinção, poderia ser a dela, eu nas
duas cadeiras vazias, natureza morta não fosse o vento e o pássaro a ciscar distrações
, são do homem burocracias e tecnocracias insalubres, atestar o óbito é ter a certeza abso-
luta do fim da carne, se arte é vida, a morte mais uma vez fica à mercê e órfã, caldo amorfo
do caos, mas não estou aqui para armar palavras no vento, sou mais de rastros nas invisi-
bilidades, das osmoses e rasuras nos desertos, como o urubu sobrevoo as carniças e o abs-
trato dos restos, vapor fruto da putrefação e desejoso de fogo, caçador de impertinências
, identificar o escroto como escroto, o lixo como lixo, é obra do estruturalismo, Não fosse
o cheiro, o lixo seria uma obra de arte, Maria Gabriela Llansol, o olhar das recicladoras
no entorno souberam da sensibilidade de Paulo Bruscky, identificar o imponderável nos
terços e nas rezas é como procurar a luz no silêncio e o ruído na escuridão
(montei uma teia de aranha nos olhos e deixei-os vagar nas desoras das bibliotecas)
, no não lugar encontram-se as oportunidades aquosas, a alquimia dos sais, o olhar deve
ter o viés da cegueira para acentuar a forma, o cheiro e a sonoridade do que invisível e
inacabado, sem a fala de aprisionados no céu da boca, que o fluxo vaporiza através do
arcabouço ósseo, como um rio
, morrer é esse lançar-se e diluir-se nas águas, não é de profundidades aquosas o corpo,
nem a alma de alturas, o dodecafônico dos reflexos vocais foram registrados nas pedras
ou em livros, é do cupim criar estranhezas em linearidades e imagens, o tempo tem essa
função no pensamento humano
, há fissuras e canais na terra e no ar, está mais fácil alcançar Roma que o amor, as pulgas e
os carrapatos sabem mais de nosso sangue que a ciência, a vulva esconde a essência que a
orquídea apresenta sem temor ao inseto, é preciso avançar no emaranhado e abrir portas
para sentir a cor, o sabor e o aroma do fruto procriador
, os destroços sabem da realidade de suicidas que se lançam no vazio e acolhidos pelo as-
falto já não oxigenam a matriz, a casa da justiça sabe fazer lero-leros de palavras, São João
da Cruz poetizou nas paredes da prisão, a perversidade reconhece as dobras da inocência
e das letras
, se sei de algo é que mais não sei, o derradeiro sabe da ilusão de sua existência, em folha
me encolho na dormência da noite, se verbo há deve ser delírio de vento, depois só o so-
nho sabe de falésias, falácias e cios…
NIELS NIESSEN*
(Tradução de Hugo Castilho dos Reis e Josette Monzani. Revisão filosófica de Luiz Henrique1 Monzani)2
Um certo espírito5
1 Artigo originalmente publicado na revista Discourse, 33.1, Inverno de 2011, Wayne State University Press, Detroit,
Michigan, p. 27-54. Republicado aqui com autorização do autor.
2 Hugo Reis é mestre pelo programa de Imagem e Som (UFSCar), pesquisador do cinema de Carlos Reygadas; Josette
Monzani é profa. dos Mestrados em Imagem e Som e Estudos de Literatura da UFSCar. Luiz Henrique Monzani é dou-
torando em filosofia pela UFSCar e bolsista CAPES.
3 Cavell, Stanley. The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, edição ampliada, Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1979, 24.
4 Deleuze, Gilles. Cinema 2: The Time-Image, trad. Hugh Tomlinson e Robert Galeta, London: Continuum, 2005, 72.
No Brasil: DELEUZE, G. A imagem -tempo. Trad: Eloísa de Araujo Ribeiro. Revisão filosófica: Renato Janine Ribeiro.
São Paulo: Brasiliense, 1990.
5 Nota do autor: Gostaria de agradecer a Cesare Casarino e Adair Rounthwaite pelos comentários sobre versões
anteriores deste ensaio.
6 Co-produção do México, França, Países Baixos e Alemanha.
7 Produção italiana.
Em última análise […] podemos dizer que Milagre em Milão re-
presenta alegoricamente, no vôo final dos pobres, a capacidade
paradoxal do filme neorrealista de converter pessimismo em um
ato de fé imanente, dado que um milagre só pode emergir de uma
perspectiva contingente e imanente. Talvez essa seja a razão pela
qual muitos críticos veem Milagre em Milão como o último filme
neorrealista, como um tipo de apoteose da forma que tornou ex-
plícita as reivindicações do neorrealismo, não para com o realismo,
mas para com a fé e a crença no mundo.8
Nesse ensaio, irei empregar o conceito paradoxal de milagre imanente para discutir
as aspirações mágicas do cinema para redimir a realidade. Irei analisar as implicações
do desejo do cinema de realizar o impossível e de revelar o mundo. O que é uma ima-
gem que busca tornar-se una com seu objeto de representação? Como alguém reconhece
este milagre pelo qual o cinema aspira a se tornar o mundo? E o milagroso, como sugere
Ricciardi, implica necessariamente numa fuga da imanência e do realismo? São questões
como essas que irei abordar ao longo de minha discussão sobre o filme Stellet Licht, o qual
lerei seguindo a Ética, de Bento Espinosa (publicado postumamente em 1677). Entretanto,
não irei tratar o filme de Reygadas como uma expressão direta da teoria da imanência
de Espinosa, porque rotular Luz Silenciosa como um texto “espinosista”, excluiria outras
interpretações mais místicas do filme. Tão pouco irei usar o elaborado tratado de Espi-
nosa sobre as emoções como uma ferramenta analítica para dissecar o dilema moral do
protagonista de Stellet Licht, um fazendeiro menonita – porque o problema de Johan é por
demais clássico para isso: ele se apaixonou por outra mulher que não sua esposa, mãe de
seus filhos. Mesmo assim, o filme de Reygadas compartilha um certo espírito com a filoso-
fia de Espinosa. Não só seria um erro conceber Espinosa como um pensador secular, dado
que ele se ofendeu ao ser chamado de ateísta,9 como ainda muitos de seus amigos e de-
fensores eram menonitas.10 Portanto, sugiro que a milagrosa imagem-tempo que é o filme
de Reygadas mostre-se relevante para a compreensão do terceiro tipo de conhecimento ou
8 Ricciardi, Alessia. Immanent Miracles: from De Sica to Hardt and Negri. Modern Language Notes 122, n. 5 (2007):
1138–65, citação em 1157.
9 Ver, por exemplo, Balibar, Étienne. Spinoza and Politics, trad. Peter Snowdon , London: Verso, 1998, 6.
10 Como Gilles Deleuze aponta em seu Spinoza: Practical Philosophy, trad. Robert Hurley, San Francisco: City Light
Books, 1988, o Treatise on the Emendation of the Intellect (1632-77) de Espinosa, se inicia de maneira menonita, seguindo
um itinerário espiritual. Além disso, durante sua vida, Espinosa fez amizade com vários menonitas, que também foram
responsáveis pela publicação de alguns de seus livros após sua morte. No entanto, ao invés de ver as influências do
panteísmo menonita na filosofia de Espinosa, Deleuze explica esse contato pelo fato de Espinosa ter sido atraído pela
tolerância do círculo menonita. No Brasil, ambos os livros encontram-se publicados. Cf: DELEUZE, G. Espinosa. Filoso-
fia prática. Trad. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. Rev. téc: Eduardo D. Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta, 2002;
e, SPINOSA, B. Tratado da correção do intelecto. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis
(Filosofia). Homepage do grupo: <http://br.egroups.com/group/acropolis/>. Ainda pode ser consultada: ESPINOSA, B.
Tratado da reforma da inteligência. Trad. e notas: Lívio Teixeira. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.
11 Deleuze, Gilles. Cinema 1: The Movement Image, trad. Hugh Tomlinson e Barbara Habberjam, London: Continuum,
2005, xix. No Brasil: Imagem-Movimento. Trad: Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.
12 Deleuze apresenta essa transição de um cinema do movimento para um cinema do tempo como um processo que se
dá de modo distinto em diferentes momentos e em diferentes lugares. Um fator constante é que esta transição é marcada
por “uma crise da imagem-ação”, sendo essa imagem-ação indicativa de um tipo de cinema que se tornou dominante no
período que se estende até a Segunda Guerra Mundial. Deleuze escreve em Cinema 1, “Foi antes de tudo na Itália que se
deu a grande crise da imagem-ação. A data foi algo em torno de 1948, na Itália; 1958, na França; 1968, na Alemanha” (215).
13 Deleuze, Cinema 2, 79, ênfase no original.
14 A ausência de Espinosa é implicitamente compensada pelo fato de que os livros Cinema são em grande parte es-
truturados em torno da epistemologia de Henri Bergson, formulada em Matéria e Memória (Matière et mémoire, 1869).
A teorização de Bergson sobre a relação entre o sujeito do conhecimento, da memória e do mundo – uma teorização
segundo a qual o sujeito, entendido como o locus da experiência, seria uma imagem que, simultaneamente, é especial e
totalmente imanente à imagem que é o mundo – é amplamente compatível com a teoria da imanência de Espinosa.
15 Produção França/Itália.
As maneiras pelas quais Stellet Licht cita Ordet , que numa entrevista Reygadas chama
de “um milagre do cinema”,19 são numerosas, incluindo elementos narrativos, mise-en-scè-
ne, diálogo, nomes dos personagens, ritmo e atmosfera. Stellet Licht certamente também é,
parafraseando Deleuze, “o triunfo de uma perspectiva propriamente temporal ou até mes-
mo espiritual” – como foram os filmes anteriores de Reygadas, Japón (2002)20 e Batalha no
Céu (Batalla en el cielo, 2005).21 Igualmente importantes, porém, são as diferenças entre os
dois filmes. Ao contrário de Ordet, Luz Silenciosa é em cores, cuja importância não pode
ser subestimada; Reygadas engendra “perspectivas atmosféricas” de paisagens pictóricas
16 Produção dinamarquesa.
17 Essa chegada anacrônica é parte do que compõe a imagem-tempo. Porque mesmo que a “alma do cinema” (Cinema
1, 210) tenha passado do movimento para o tempo no curso do século XX, simultaneamente, a imagem-tempo direta
sempre esteve lá. Deleuze escreve em Cinema 2, “A imagem-tempo direta é o fantasma que sempre assombrou o cinema,
mas coube ao cinema moderno dar corpo a este fantasma” (40).
18 Deleuze, Cinema 1, 110-11. Esta passagem é tomada de um trecho de Cinema 1, no qual Deleuze discute Dreyer em
relação à imagem-afeto, o tipo de imagem-movimento que Deleuze associa ao close-up. Para Deleuze, a epítome da
imagem-afeto é o filme de Dreyer, A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928).
19 Na mesma entrevista, Reygadas também fala sobre suas outras influências: “Eu gosto muito de Roberto Rossellini,
dadas as condições em que ele teve que filmar, com tudo o que havia lá… Para mim, Dreyer também é grande. Ordet
(1954) é um dos filmes mais emocionantes que eu já vi na minha vida, um milagre do cinema. Bresson também é um
mestre, especialmente na forma como ele trabalha com não-atores e como usa o som. A Man Escaped (1956) é um
favorito. Tarkovsky foi o que realmente abriu meus olhos. Quando vi seus filmes, percebi que a emoção poderia sair
diretamente do som e da imagem e não necessariamente a partir da contação de histórias” (citado em Tiago de Luca,
“Carnal Spirituality: the films of Carlos Reygadas”, Senses of Cinema 55 [2010], www.sensesofcinema.com/2010/feature-
articles/carnal-spirituality-the-films-of-carlos-Reygadas-2 / # 2 [acesso em 18 de Dezembro 2010]).
20 México et al.
21 França et al.
Luz silenciosa
Do início ao fim do filme de Reygadas, o tempo está fora dos eixos. Stellet Licht é
emoldurado por duas longas e lentas tomadas panorâmicas “aceleradas” do nascer e do
pôr do sol, acompanhadas por sons da natureza: grilos, pássaros, uma vaca (figura 1).
Através da ilusão de tempo real que esses longos planos criam, dificilmente se percebe que
imagem/som, que tem um tempo normal, não está em sincronia. Entre estes dois planos
se passa um “dia” cinematográfico com mais de duas horas de duração, ao longo do qual as
estações mudam enquanto o tempo em si é levado a uma imobilidade.
22 Numa entrevista com Reygadas publicada no jornal holandês de Volkskrant (Amsterdam) ele expõe sua intenção
com a relação entre o Plautdietsch falado e as legendas, que nem sempre traduzem literalmente as palavras dos persona-
gens: “Ninguém no cinema entende aquela linguagem, oferecendo a Reygadas a possibilidade de manipular as legendas
de acordo com sua própria visão. ‘Dessa forma eu poderia manter o texto universal e neutro o tanto quanto possível’”
(ver Bor Beekman, “Acteurs Schaden de Film”, Cinema.nl, www.cinema.nl/artikelen/3205063/acteurs-schaden-de-film
[acesso em 1 Novembro 2009], tradução nossa). Em outras palavras, neste filme, os subtítulos não são simplesmente uma
tradução do diálogo sobre a banda sonora, mas pertencem ao original e, nesse sentido, são parte integrante da imagem.
23 Demorou três anos para Reygadas estabelecer relações com a comunidade menonita do norte do México, retratada
no filme, e que é também a comunidade à qual Cornelio Wall, que interpreta o papel de Johan, pertence. No Canadá,
em outra comunidade menonita, Reygadas encontrou Miriam Toews, que interpreta Ester. Maria Pankratz (Marianne),
que é de origem alemã-casaquistã, ele só descobriu depois de ter alugado um apartamento em Amsterdam e procurado
comunidades de agricultores holandeses e alemães (ver Beekman, “Acteurs Schaden de Film”).
O quarto, sua brancura, o milagre e a maneira como ele é filmado, são todas citações
diretas a Ordet. No filme de Dreyer, o milagre se dá quando Johannes ressuscita Inger, sua
cunhada, falecida durante o parto. Johannes, 27 anos, um antigo estudante de teologia,
acredita que ele é o “Cristo vivo”. Porque ele é. No entanto, quando no início do filme ele
afirma em uma de suas profecias que ele voltou “para dar testemunho de [seu] Pai que está
nos Céus – e para operar milagres”, nem a sua família, o pastor da aldeia, nem o especta-
dor acredita nele. Todos acham que ele enlouqueceu depois de estudar Søren Kierkegaard,
uma crença que faz com que Inger, por sua vez, afirme ao marido que “Johannes talvez
esteja mais perto de Deus do que o restante de nós”.
Ordet se passa numa comunidade rural protestante na Jutlândia Ocidental (Dina-
marca), que se encontra internamente dividida em torno da questão sobre o que constitui
o Protestantismo correto. Esta divisão se manifesta na rivalidade entre duas famílias. A
família Borgen, a qual Johannes e Inger pertencem, e na qual a família de Johan e Esther
em Stellet Licht é livremente baseada, é de Luteranos tradicionais. Já os Petersens estão no
centro de uma seita fundamentalista. Quando Peter Petersen se opõe ao casamento entre
sua filha Anne e Anders Borgen, o pai deste último, Morten, acusa Peter de administrar
um grupo de “coveiros”, enquanto associa sua própria cristandade à “vida”. No entanto,
é a morte que irá reunir novamente os dois clãs, quando Morten e Peter fazem as pazes
em frente ao caixão de Inger. Em seguida, Johannes retorna, depois de ter desaparecido
no campo por vários dias. “Você encontrou seu juízo novamente”, exclama o pai quando
percebe que a loucura deixou os olhos de seu filho. “Nenhum de vocês teve a ideia de
pedir a Deus para trazer Inger de volta a vocês de novo”, Johannes responde friamente. Ele
ainda é o salvador. Tudo o que teria sido necessário para ele salvar a vida de Inger é que
uma pessoa, apenas uma, expressasse a sua fé nele. “Inger”, diz ele, “você deve apodrecer,
porque os tempos estão podres. Coloquem a tampa”.
26 Spinoza, Benedict de. A Theologico-Political Treatise, in The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R. H. M. Elwes
(New York: Dover, 1951), 86–87. Em francês: SPINOZA, B. Oeuvres 2: Traité théologico-politique. Trad: Charles Appuhn.
Paris: Garnier-Flammarion, 1965. Em português: ESPINOSA, B. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins, 2003.
27 Este “ou” é traduzido como “ou, em outras palavras”.
28 Spinoza. Theologico-Political Treatise, 81.
Na leitura que Deleuze faz de Espinosa, Deus é expressividade, o que explicita (lite-
ralmente desdobra-se) a si mesmo e que está implicado em cada coisa. Deus se expressa
através de sua infinidade de “atributos”, que podem ser pensados como perspectivas sobre
a substância que é simultaneamente parte integrante da substância e da qual apenas sua
extensão e pensamento estão disponíveis para o intelecto humano. Deus expressa a si
mesmo, e é somente através de suas expressões que a mente pode obter o conhecimento
adequado; isto é, o conhecimento das causas pelas quais os modos são afetados. Os modos
são definidos como “as afecções de uma substância, ou [sive], aquilo que existe em outra
coisa, por meio da qual é também concebido”.30 Esta “outra coisa” é a substância. Espinosa
distingue entre modos de extensão e de pensamento; isto é, corpos e ideias. Crucial é que
os corpos e as ideias estão em relação de paralelismo, isto é, a ideia de uma coisa existe
totalmente separada da existência desta coisa. Um ser humano é também um modo, um
corpo-mente. É um corpo na medida em que é considerado sob o atributo da extensão; é
uma mente na medida em que é considerado sob o atributo do pensamento.31
Como seres humanos se relacionam com a substância divina da qual eles provém?
Espinosa distingue entre três tipos de conhecimento modal: a imaginação, a razão e a in-
tuição. Enquanto a imaginação pertence ao mesmo tempo às afecções (corporais) e à per-
cepção de signos, as quais produzem apenas conhecimento inadequado, passivo; os dois
últimos pertencem ao conhecimento adequado e à atividade da mente, no sentido de que
eles aumentam o poder de atuação da mente, seu poder de ser afetada. Por “adequação”,
29 DELEUZE. Expressionism in Philosophy: Spinoza, trad. Martin Joughin (New York: Zone Books, 1992), 181–82.
30 Spinoza, Benedict de. Ethics, trad. G. H. R. Parkinson (Oxford: Oxford University Press, 2000), I.D5. (Refiro-me a
passagens da Ética, na parte do texto em que eles aparecem, “P” se referindo a proposição, “S” para escólio, “D” para de-
monstração, “A” para um axioma, “Def ” para definição, “C” para corolário, e “L” para lema.) Todos os modos individuais
são compostos; isto é, são por sua vez constituídos de modos menores que “comunicam seus movimentos um ao outro
por alguma proporção fixa” (Ethics, II.P13.L3.CA2.Def). Ver, Espinoza, B. Etica. Trad: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007.
31 Na medida em que os atributos são paralelos um ao outro, corpo e mente são, também, mas isso não significa que
eles estão desconectados, já “que o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo existente em ato.
Ademais, como não existe nada de que não se siga algum efeito, se, além do corpo, existisse ainda outro objeto da mente,
deveria necessariamente existir em nossa mente a ideia desse efeito. Ora, não existe nenhuma ideia desse efeito. Logo, o
objeto de nossa mente é o corpo existente e nenhuma outra coisa” (Ethics, II.P13). Uma maneira de pensar essa relação
de conectividade paralela se assemelha à conexão entre duas pistas condutoras entre as quais corre a corrente alternada
que as liga e as separa, sendo Deus esta corrente, a quintessência monista das coisas, em si.
32 Ethics, II.P40.S2.
33 Ibid., V.P36.
34 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 296.
35 Ethics, V.P36.
36 Ibid., V.P36.S.
37 “Tal como a luz manifesta a si e a escuridãou, assim é a verdade para si e para a falsidade” (Ethics, II.P43.S).
38 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 137, ênfase no original.
39 Ethics, V.P36.
40 Ibid., V.P23.S
41 Ibid.
42 Ibid., III.P9.S.
Embora esse exemplo continue a ser pouco expressivo sobre a intuição, ele, no en-
tanto, ilustra a relação da intuição com a razão. De uma perspectiva modal, a razão é o
fundamento indispensável para o conhecimento intuitivo. Tal como o comerciante que
imediatamente disse “6” precisou, obviamente, ter uma ideia da proporcionalidade. Caso
contrário, ele também poderia ter escolhido “4” (sequência linear), ou “5” (sequência de
números primos), ou qualquer número – porque para cada sequência finita, digamos yi,
de comprimento n, existe uma função f(x) tal que yx = f(x) para todo x ≤ n, com x e n intei-
ros positivos. A intuição é a sua própria razão, neste exemplo, o conhecimento da propor-
cionalidade. É a razão incorporada que se retirou de si mesma, através da sua utilização.
Através desta incorporação, a razão torna-se invisível, o que explica a segunda divisão na
qual esse tipo de conhecimento vem à mente.
Do ponto de vista modal, esse instante de intuição só pode ser expresso como um
instante anacrônico, um “flash” instantâneo em que o tempo não faz sentido como resul-
tado do não-reconhecimento diacrônico do sincrônico, da eternidade. É a temporalidade
dos déjà vus e das visões, de fantasmas e de profetas, de milagres, fenômenos nos quais o
próprio tempo parece estar fora de lugar. É também a temporalidade da imagem-cristal,
o que me leva de volta para Stellet Licht, porque um aspecto do filme de Reygadas que até
agora apenas apontei é sua intrincada representação e desenvolvimento do tempo.
Imediatamente após o nascer do sol que dá início ao filme, corta-se para um relógio
de parede que indica 6:27 a.m.. No pêndulo que balança, o espectador vê o reflexo da famí-
lia de Johan e Ester reunida em torno da mesa do café. Eles estão orando, olhos fechados,
contra o pano de fundo do monótono tique-taque do relógio. Terminado o café, Johan
permanece sentado sozinho à mesa. Ele então se levanta, pára o relógio e novamente se
senta à mesa, onde desata a chorar. A cena da cozinha demora quase 10 minutos e define o
ritmo do restante da narrativa. No final do filme, pouco antes de Johan ir ver Ester, o mes-
mo relógio é alterado de novo pelo pai de Johan: 7:41 p.m.. Apesar desse parar e avançar
do relógio de parede ser outra citação significativa a Ordet44, o que implica para a nossa
leitura do filme essa representação da narrativa de Stellet Licht, fora do tempo diacrônico?
Um pouco mais de treze horas de tempo diegético são mostradas como se passadas no
intervalo entre o nascer e o pôr do sol, mas durante esse dia choveu, nevou e ficou quente o
suficiente para ir nadar ao ar livre. O ritmo lento do filme é enganador, porque na verdade
o tempo voa em Stellet Licht. Seu milagre não só ocorre no instante infinitesimal em que
Esther abre os olhos – uma revelação que, em retrospecto, “lava” ou “encharca” as imagens
43 Ibid., II.P40.S2.
44 Em Ordet, o relógio de parede na fazenda do Borgen é interrompido logo após a morte de Inger, e reiniciado pouco
depois de sua ressurreição.
Tempos Cristais
48 Volosinov, Valentin Nikolaevich. Marxism and the Philosophy of Language, trad. Ladislav Matejka and I. R. Titunik
(Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973), 148. Ver: Bakhtin, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da lingua-
gem. Trad: Michel Lahud e Yara F. Vieira, com colaboração de: Lúcia Wisnik e Carlos Henrique D. C. Cruz. São Paulo:
Hucitec, 1986.
49 V. N. Volosinov escreve: “O discurso quase-direto, com sua capacidade de transmitir simultaneamente a identificação
com e a independência, a distância de suas próprias criações, foi um meio extremamente adequado para Flaubert encar-
nar essa relação de amor e ódio que ele mantinha com seus personagens” (Marxism and the Philosophy of Language, 152).
50 Pasolini, Pier Paolo. “The ‘Cinema of Poetry’” in Heretical Empiricism, trad. Ben Lawton, Louise K. Barnett, ed.
Louise K. Barnett (Washington DC: New Academia, 2005), 167–86, citação em 176 (publicado originalmente em 1972).
Cf, Pasolini, P.P. Empirismo hereje. Trad: Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
51 Ibid., 178.
52 Ibid., 179.
53 “… E todas as noites de sábado que eu posso / Germaine, eu escuto o meu cabelo crescer / eu faço glub, glub, eu
faço miam miam / eu marcho gritando: Paz no Vietnã / Porque, afinal, depois de tudo eu tenho minhas opiniões / eu
venho buscar meus bombons…” Em contraste com esta versão de 1967, a versão original de 1964 de Les Bonbons era uma
canção de amor bastante tradicional: “J’vous ai apporte des bombons / parc’que les fleurs c’est perissable…” [“Eu te trouxe
bombons / porque as flores são perecíveis”].
Provavelmente, Johan, como seus filhos, não entende as palavras. Mas, imerso na
gravação preto-e-branca granulada da expressiva performance de Brel, em total oposição
ao seu amargo problema, está a repentina felicidade de Johan, a simples felicidade a que
ele está prestes a renunciar por amor. No cerne dessa felicidade, está aberta a visão de
mundo de seus filhos, para os quais “bom dia” realmente significa “bom dia” e uma canção
engraçada, uma canção engraçada. O espectador não irá chegar mais perto do que isso da
alma de Johan, de sua mente vacilante.
O que quero ilustrar com esses exemplos é que o discurso indireto livre, no cinema,
assim como em outras práticas, deve ser concebido como uma postura em relação à rea-
lidade ao invés de um estilo de representação. O discurso indireto livre é um esforço em
direção à mútua determinação do ponto de vista narrativo e do enredo-espaço, em direção
a um ponto onde os dois se tornam imanentes um ao outro. Esse espaço é simultaneamen-
te o ambiente ficcional no qual os personagens habitam, viajam ou passeiam, e o espaço
textual em que a narrativa se desenrola. No cinema, este espaço textual é a combinação do
quadro e da trilha sonora, o lugar do som-imagem cinematográficos em si. Num cinema
de expressão, estas duas dimensões do enredo-espaço estão interligadas na medida em
que se fundem ou parecem fundir-se. Se o cinema fosse o mundo, o “testemunho” desse
instante em que se dá essa fusão seria o que Espinosa chama de intuição.
No nível fenomenológico da diegese, a imanência é alcançada através da mútua de-
terminação dos personagens (ou modos, em geral) e do espaço representado; no nível
ontológico da imagem como imagem, isto é alcançado através da mútua determinação do
espaço diegético e do espaço tela-banda sonora. A primeira dimensão de ‘imanentização’
tem lugar ao nível do espelho e se reflete sobre a essência dos personagens como modos. A
segunda dimensão tem lugar ao nível da semente e expressa a Natureza cinematográfica,
isto é, sua produção de imagens em movimento. Em analogia com a discussão de Espino-
sa sobre as essências, a primeira consiste no desejo dos personagens, e a última na mera
existência do som-imagem, no fato de que o som-imagem do cinema é, antes de ser outra
54 BAZIN, André. “Umberto D: A Great Work” (1952), em What Is Cinema? vol. 2, ed. e trad. Hugh Gray (Berkeley:
University of California Press, 2005), 61-82, citação em 82. Cf: Bazin, A. O cinema. Trad: Eloísa A. Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
55 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (1936), em Illuminations: Essays and Re-
flections, trad. Harry Zohn, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken Books, 1969), 217-52, citação em 234. Cf: Benjamin,
W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Cf: Benjamin, W. A obra de arte na época de sua reproduti-
bilidade técnica in BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Trad: Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1985.
56 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility [First Version]” (1935), trad. Mi-
chael Jennings, Grey Room 39 (2010): 11-37, citação em 28.
57 Ibid., 29.
58 HANSEN, Miriam. “Benjamin, Cinema and Experience: ‘The Blue Flower in the Land of Technology’”. New German
Critique 40 (1987): 179-224, citação em 209.
59 DELEUZE, Cinema 2, 79.
O ponto de indivisibilidade entre esses dois lados é o que reside na essência da ima-
gem-cristal, na e da qual captamos, como num flash, a promessa de um cinema imanente:
para ver “o próprio tempo, um pouco de tempo em estado puro, a própria distinção entre
duas imagens que continuam a se reconstituírem”.63 É um vislumbre daquilo que, simulta-
neamente, causa a si mesmo e tudo mais, causa imanente.
Do espelho à semente: é esta passagem que Stellet Licht nos faz sentir. Ao envolver seus
espectadores, o filme os faz perceber que eles foram envolvidos desde o início. Depois de
aparentemente começar com uma representação de mundo em que as fronteiras entre o real
e o irreal são claras, Stellet Licht, pouco a pouco, explicita-se como uma expressão do espí-
rito divino. Mas no momento em que o espectador percebe – e para a maioria das pessoas
esse momento será o da ressurreição de Esther – que presente e passado, real e virtual, não
60 Ibid., 72.
61 Ibid., 68.
62 Ibid., 72.
63 Ibid., 79.
Luz silenciosa
Precisamos, portanto, voltar ao corpo celeste que aparece no início do filme, e que é
representado como o fornecedor de energia da ressurreição de Esther: o sol. Mas o sol não
é Deus, e se for, Deus está ali, como luz, a “matéria” da qual o cinema é feito. Em repetidas
ocasiões ao longo de Stellet Licht, a imagem é banhada pela luz solar, quando a luz é refra-
tada pela lente em pontos coloridos, translúcidos. Verde, laranja, azul, rosa. Eles são a luz
silenciosa do título do filme. Como confetes, eles são polvilhados sobre a imagem, sobre
a paisagem, sobre os animais, e sobre Johan e Marianne se beijando no campo (figura 5).
Mais do que revelar a presença do equipamento do cineasta, esses pontos testemunham
sua recusa em proteger a imagem da abundância de luz. Os pontos em que eles ocorrem
constituem momentos de sobre-representação, não num sentido espetacular ou simbóli-
co, mas como a representação excedendo a si mesma e, assim, tornando-se expressiva. Ao
superexpor-se ao mundo, a imagem se expõe como imagem. Há simplesmente muita luz, e
o único lugar para onde essa luz pode ir é a “superfície” da imagem, onde ela se move com
a câmera, e adere à realidade diegética, criando assim uma membrana entre o espectador
e a imagem real do filme. A imagem do filme então se faz sentir e de alguma forma se
modifica de dentro para fora, voltando-se para as coisas intangíveis, “leve como a luz”, da
qual ela é feita.64
* Niels Niessen obteve seu PhD em Literatura Comparada na Universidade de Minnesota (USA). Seu traba-
lho apareceu em publicações como Cinema Journal, Screen e Discourse. Atualmente trabalha no manus-
crito de seu primeiro livro, A Cinema of Life: The New Realism of the French-Walloon “Cinéma du Nord.”
Resumo: O presente estudo se propõe a entender a base de sustentação argumentativa que orienta o discur-
so da sociedade civil na defesa pela democratização da comunicação. O levantamento analítico se desen-
volve a partir das discussões acerca do direito à comunicação da década de 1970 quando se anunciava uma
Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. As ações da sociedade civil, desde então, passam
a ser pautadas pelo princípio dos direitos à comunicação ligada à visão essencialista dos direitos humanos,
como parte inseparável dos direitos civis e sociais, defendendo participação de todos pela transformação da
sociedade. Mesmo enfrentando a fragilidade de não estar claramente formalizado na legislação brasileira, o
direito à comunicação, enquanto proposta emancipadora, ainda se repercute na atualidade e se materializa
na militância das entidades de organização civil que emergem como atores sócio-políticos nessa nova con-
figuração do espaço público de discussões.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO À COMUNICAÇÃO, DEMOCRATIZAÇÃO, MOBILIZAÇÃO SOCIAL
O autor não oferece, contudo, uma definição própria, mas orienta que para tentar
alcançá-la é preciso englobar as necessidades da comunicação, seus problemas e possi-
bilidades, mas evitando excessiva generalização, ou seja, ela não deve ser distendida para
incluir uma gama de liberdades – como de expressão, de opinião, de informação, de im-
prensa, do profissional jornalista, etc. – pois elas não possuiriam a mesma importância
Ao contrário, portanto do que é sustentado pelo discurso liberal, que entende qual-
quer tipo de intervenção do Estado como censória, a normatização regulamentar é funda-
mental justamente para o estabelecimento de diretrizes capazes de garantir a integridade
de uma atividade essencialmente pública, dada a sua importância para a cidadania e cul-
tura nacionais.
Philip Lee (1995), por sua vez, identifica a proposta do empoderamento e inclusão do
cidadão como aspectos centrais do direito à comunicação:
2 “Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais
concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado.
Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém
um diálogo democrático e equilibrado. Essa ideia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das
ideias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos”. (UNESCO, 1980, p. 300)
4 <www.crisbrasil.org.br>.
5 <www.fndc.org.br>.
Conclusão
6 <www.intervozes.org.br>.
7 Proposta firmada em 2009 com o Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (LaPCom)
e o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(NETCCON).
8 <http://sites.google.com/site/direitoacomunicacaoindicadores/>.
Referências
Resumen: El presente trabajo se ocupa de analizar las diferentes prácticas espectatoriales (cine- video) y su
relación con la utilización del dispositivo fotográfico. Para dicho análisis aplicado a estudiar la representa-
ción del rostro del Che muerto, se utilizan las teorías de Comoli, Bellour, Agamben, Deleuze y Barthes, las
cuales trabajan sobre los conceptos de espectador, cine, video, fotografía y dispositivo. El corpus fílmico a
trabajar se compondrá de ocho films que representaron la imagen mencionada desde diferentes posiciones
subjetivas e históricas.
PALABRAS CLAVES: CHE GUEVARA, DISPOSITIVO, ESPECTADOR
Introducción1
1 Teníamos la intención de trabajar con un corpus mayor de registro sobre datos duros que dieran cuenta de la reper-
cusión en los estrenos comerciales, sin embargo dentro del registro en las revistas Deisica no se encuentran registros de
los films hasta 1998. En los números que trabajan desde dicho año en adelante sólo registramos tres films con estreno
comercial de los cuales solo dos tienen un número de espectadores específico. Los films registrados son Ernesto Che Gue-
vara, el diario de Bolivia del suizo Richard Dindo que fue estrenado el 14 de mayo de 1998 quedando en el puesto 200 en
la lista del ranking de films comercializados pero sin datos con respecto a la cantidad de espectadores; Che… Ernesto de
Miguel Pereira que fue estrenado el primero de octubre de 1998 quedando en el puesto 207 también sin datos que refieran
a la cantidad de espectadores. Otro registro de Deisica, quizás el más completo, se puede observar con Che, un hombre
nuevo de Tristan Bauer que figura como una de las películas nacionales más taquilleras del año con 31.215 espectadores
distribuidos en 1593 funciones dadas en trece semanas (a 20 espectadores por función) que fue comercializada por Dis-
tribution Company Arg. S.A. entre la semana 41 y la 52. De los años 1995, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2006, 2007
(averiguar sobre 1997) no hay registros de estrenos comerciales con dicha temática, solo se registró un tele film en el año
2005 de Alberto Nhasliah Chemen llamado Negro Che. Queda por fuera la década del ’80 ya que la revista no existía.
Che: ¿Muerte de la utopía?2 (Fernando Birri, 1997-1999), Che. Hasta la victoria siempre
(Juan Carlos Desanzo, 1997),3 Che la eterna mirada (Edgardo Cabeza, 1997-2008),4 El che
un hombre de este mundo, (Marcelo Schapces, 1999),5 El día que mataron al Che, (Pacho
O’Donell, 2007) (Editado por Clarín y exhibido por tv) Los últimos días del Che, (Matías
Gueilburt, se estrenó 7/10/07 en The History Chanel) y Che un hombre nuevo,6 (Tristan
Bauer, 2010)), teniendo en cuenta las formas de difusión (cine comercial, cine clandestino,
televisión, videos, internet).
Una primera separación evidente es el conocimiento o desconocimiento del espec-
tador sobre la figura mítica, mientras que los espectadores de televisión, cine comercial,
videos e internet varían–quienes poseen un saber previo sobre la figura y quienes no- en la
clandestinidad se tiende a tener como espectador modelo a quien tiene conocimiento pro-
pio sobre la imagen del Che Guevara. También se tendrá en cuenta la complejidad desde
la utilización que realicen sobre las fotografías, ya que las mismas serían reconocidas o no
por un público más especializado, por ejemplo los dos famosos casos: la foto tomada por
Korda y la tomada por Alborta, siendo esta última la que iremos a analizar.
Para hacer el análisis espectatorial emplearemos la teoría de Comolli en Ver y poder,
la teoría de Raymond Bellour, la teoría de Barthes sobre la expectación fotográfica y los
textos de Agamben y de Deleuze que analizan el concepto de dispositivo, ya que tendrá
diferentes significaciones frente al espectador específico que quiera dirigirse.
2 El 6 de abril de 1997 en el suplemento radar de Página 12 sale publicado el proyecto de Fernando Birri, con sus
entrevistas en calle Florida. Hace mención como la misma se plantea como un ensayo polémico, en el que discute con
algunos intelectuales volcados hacia la crítica del guerrillero.
3 El film de Desanzo fue estrenado en el Cine Tita Merello, el 9 de octubre, para ser primero en taquilla habiendo
vendido 32 mil entradas en veintidós cines. La repercusión en críticas según los afiches publicados en los diarios fue
buena, sin embargo la película fue criticada por varios críticos aunque enarbolada por la opinión del público según un
articulo del Página 12. La contradictoria difusión hizo que de todas maneras se entrevistara al actor, al director y hasta
se entrevistó al compositor de la música Frank Fernández.
4 Sale el4 de octubre de 2008 un artículo que comenta por el propio director el perfil del film que sería vendido como
DVD por el Página 12 al día siguiente.
5 Se estrena el 11 de noviembre de 1999, y declara en una entrevista al página 12, haber realizado un film donde el Che
es quitado del pedestal.
6 El film fue estrenado en 2010 en salas de cine, aunque el proyecto comenzó en 1997, y luego fue difundido en dvd.
La repercusión de dicho documental fue la mayor registrada entre los films nacionales, en tanto espectadores, y en tanto
difusión, son múltiples los registros críticos positivos y el seguimiento de la creación de la película con entrevistas a Bauer.
Partiendo de esta cita el dispositivo ubica un realizador que varía de acuerdo a que
contexto lo sujetó, es decir las instancias políticas por las que era atravesado. Así vemos
tres momentos históricos diferentes: el primero responde a la época de La hora de los
Hornos, con la actividad clandestina del grupo Cine Liberación, el segundo al período
neoliberal -donde tras el treinta aniversario de la muerte del Che Guevara hubo alrededor
de ocho proyectos nacionales7 de la mano de Luis Puenzo (nunca realizado), Aníbal Di
Salvo8, Juan Carlos Desanzo, Tristan Bauer (2010), Fernando Birri (1999), Miguel Pereira
(1998), Edgardo Cabezas (2005) y Marcelo Shapces (1999) de los cuales sólo se concretaron
7 Los films registrados en el año 1997, tuvieron una gran repercusión en los diarios La Nación, Clarín y Página 12 donde
fueron fuertemente criticados desde diferentes puntos de vista. La época pedía que se construyera una revisión histórica
sobre el héroe guerrillero, para generar una contrapartida frente a la despolitización propagada desde el menemismo. Así
Aníbal Di salvo, Juan Carlos Desanzo (ya director de su film Eva Perón) Fernando Birri, (quien propagó estas palabras
mencionadas), realzaron los films: El Che, Hasta la victoria, siempre y Che, ¿Muerte de la utopía?, respectivamente.
8 El Che de Aníbal Di Salvo se dio a conocer en septiembre de 1995 como un proyecto de Fernando Siro (quien luego
renunciaría a su rol de director para volcarse a la política) con guión de Agustín Pérez Pardella, autor que había escrito
el musical, Eva Perón, la mujer del siglo en 1985. En la breve información que dio el diario La Nación mencionaba las
locaciones en las cuales se iba a filmar (Argentina, Bolivia y Brasil) y los actores que iban a participar sin mencionar
quien interpretaría al Che (Miguel Ángel Solá, Angela Molina, Darío Grandinetti, Imanol Arias, Alfredo Alcón, Osvaldo
Laport, Cecilia Roth, Federico Luppi, entre otros). Ya en el año 1996 se vuelve a informar que el film que iba a ser filmado
por Siro, pasó a ser material de Di Salvo, y que los actores serían Miguel Ruiz Díaz (Che), Emilia Mazer (Tania), Federico
Oliveira (Regis Debray), Norman Brisky (Terán). Estos vaivenes en el proyecto, que contó con 2.200.000 de dólares (de
los cuales el INCAA contribuyó con 700.000 pesos), daban cuenta que el film apuntaba a ser una superproducción y
tenía la meta de lograr una amplia taquilla que no ha sido registrada, probablemente por las malas críticas acontecidas
posteriormente que criticaban las escenas de emboscadas y tiroteos. (Escenas que habían sido previstas por el film y
mencionadas por los diarios durante el período de rodaje. Al punto de tomarle a Di Salvo, una declaración en la que con-
fiesa que Pombo le había sugerido hacer un Rambo con ideología socialista) Entonces, en este caso hay dos puntos de
vista incluso por los mismos diarios, el primero es la impronta de difundir el rodaje, su estadía en salta, su presupuesto,
su superproducción y en una segunda instancia marcar críticas que menosprecian el resultado del film, desde este punto
de vista el film termina con una alta propaganda (positiva y negativa) que no llega a tener la repercusión que se esperaba.
El universal, en efecto, no explica nada, sino que lo que hay que ex-
plicar es el universal mismo. Todas las líneas son líneas de variación
que no tienen ni siquiera coordenadas constantes. Lo uno, el todo,
lo verdadero, el objeto, el sujeto no son universales, sino que son
procesos singulares de unificación, de totalización, de verificación,
de objetivación, de subjetivación, procesos inmanentes a un deter-
minado dispositivo. Y cada dispositivo es también una multiplici-
dad en la que operan esos procesos en marcha, distintos de aquellos
procesos que operan en otro dispositivo. (DELEUZE, 1989)
Así cada film utiliza de forma disímil los recursos cinematográficos y a su vez in-
cluyen de diversas maneras el dispositivo fotográfico.
En esta cita Comolli refiere en algún punto a que esa disposición material del cuerpo
trasciende al espectador que se encuentra sujetado, atado su ojo al de la cámara. Este tema
pasa a ser de gran importancia ya que implica una doble actividad política por parte del que
define la concatenación de las imágenes, por que cada plano del Che muerto y su subsiguien-
te imagen requiere una definición política, tanto en ficción como en documentales. Y esa de-
finición política también será expuesta en el tratamiento particular de la foto del Che muerto.
Bellour plantea que la utilización del congelado en la imagen marca una inmovilidad
que juega con lo único real: la muerte. Sin embargo, agrega, que ese detener el tiempo la
retorna a una vida indeterminada o duradera de acuerdo al relato. En este sentido, vere-
mos como en muchos films, el rostro del Che muerto es utilizado de este modo: fijando esa
fotografía para hacerla vivir como imagen, cambiando su plasticidad con las panorámicas
impresas en las mismas o los cambios de ángulos sobre el material fotográfico utilizado.
Otra cuestión importante que se debe evaluar es como retorna a esa vida la imagen a partir
del siguiente fotograma, es decir, qué enigma se plantea en ese pasaje entre una instantánea
y la otra. Y éstas podrán ser una nueva foto, un nuevo ángulo, testimonios de personajes
de la historia o incluso unas sucesivas sobreimpresiones que incluyan discursos del Che en
vida. Desde este aspecto podemos observar como se produce así entre foto, cine, video una
multiplicidad de superposiciones, de configuraciones poco previsibles. (BELLOUR, 2009: 14)
La de Aborta y la captura
Analizar La hora de los hornos, simplemente es repetir las palabras de Mariano Met-
sman, quien sostuvo como el film alcanzó una difusión clandestina o semi-clandestina
en Argentina y en los festivales internacionales en los que fue exhibida. En ese período,
señala como eran ocupados los últimos cuatro minutos con la imagen del Che-muerto/
Che-Cristo, buscando como “film-acto” “un acto político alrededor de su circulación clan-
destina”. (Metsman, 1996:18) Metsman en su artículo destaca como la provocación política
de exponer al Che muerto como elemento de reacción, no era así percibida por los espec-
tadores cubanos, quienes veían en esa imagen un final de derrota.
Sin utilizar específicamente las fotografías en Hasta la victoria siempre de Juan Carlos
Desanzo, se narra y se ritualiza la escena de captura. En la misma se representa un vía
crucis, que comienza a justificar esa mirada religiosa en los testimonios de los pobladores
entrevistados en diferentes documentales. Además, este aspecto religioso llega a su máxi-
ma expresión una vez que el Che es representado muerto, donde los planos en la camilla y
su traslado en el helicóptero con el rostro mirando al cielo, incluye por analogía la foto de
Alborta, a ese perfil sobrenatural al que fue vinculado. En este aspecto el tiempo del plano
en movimiento responde a un tiempo detenido que busca la contemplación de ese ascenso
a la memoria del espectador. Ese plano cumple la función de recurrir a cada subjetividad
que irá a descubrir el punctum del que habla Barthes, ese plus que cada hombre le imprime
a una fotografía de modo subjetivo.
Otro modo narrativo de la captura y de la muerte se observa en Che un hombre
nuevo de Tristan Bauer. Aquí la escena de captura se representa a través de seis fotografías
(entre las cuales se encuentra la que le sacó Rodríguez al Che con las manos atadas) que se
acercan lentamente forjando un cierre del plano. En este caso, el tiempo de las fotografías
exige esa contemplación y la subjetividad del espectador que renueva su atención con
el sonido de la cámara fotográfica en cada cambio de instantánea. Posteriormente a esa
escena se sucede una donde ingresa el sonido del helicóptero para luego ver su llegada a
Otra manera de filmar la fotografía que se distancia de la idea del santo, es mediante
la mostración de los diarios de la época. Así, en Che un hombre de este mundo, el hecho
es narrado de esa manera, sin embargo las mismas son seguidas por un discurso del Che
que declara la desconfianza en el imperialismo, un discurso que lo hace vivir, junto a la
declaración de su hermano Roberto Guevara que asegura que el Che ésta vivo y que las
fotografías son falsas.
Por último hay que mencionar dos documentales expuestos en la televisión y vendi-
dos en los diarios, El día que mataron al Che de Pacho O’Donell y Los últimos días del Che
guionado y conducido por Jorge Lanatta. El día que mataron al Che ubica al espectador
A modo de conclusión
AGAMBEN, G. “¿Qué es un dispositivo?”, Sociológica, Año 26, n. 73, 2011, p. 249-264, mayo-
agosto.
BARTHES, R. La cámara lúcida. Nota sobre la fotografía. Buenos Aires: Paidós, 2004.
BELLOUR, R. Entre-Imágenes. Foto. Cine. Video. Buenos Aires: Colihue, 2009.
COMOLLI, J. Ver y Poder. La inocencia perdida: cine, televisión, ficción, documental. Buenos
Aires: Aurelia Rivera: Nueva Librería, 2009.
DELEUZE, G. “¿Qué es un dispositivo?”, Michel Foucault, filósofo. Gedisa, Barcelona, 1989,
p. 155-163.
METZMAN, M., “La hora de los hornos, el Che y Perón. Vida y muerte de una imagen”. Film 21,
Agosto Septiembre, 1996, p. 16-22.
DEISICA, Revista del Sindicato de la Industria Cinematográfica Argentina, marzo, 1999.
Filmografía
* Lic. Jimena Cecilia Trombetta es doctoranda-becaria tipo I, CONICET, México. E-mail: <jimenaceci-
lia83@gmail.com>.
Resumo: Este texto pretende reflectir sobre as tensões inerentes ao conteúdo e forma fílmicas, e ao modo
como o mock-documentary nos demonstra isso. Através de uma análise fílmica meticulosa do exemplo de
Zelig, é nosso objectivo pensar acerca da ténue linha que separa os conceitos de documental e ficção e de
questões que se prendem com o cómico e a subversão da fórmula do cinema documental.
PALAVRAS-CHAVE: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, TEORIA DO CINEMA
Abstract: This text intends to meditate on the tensions inherent to the content and form in film, and on the
way the mock-documentary practice exposes that. Through a meticulous film analysis, and using the ex-
ample of Zelig, it is our goal to think about the thin line that divides the concepts of documental and fiction
and about questions regarding the comic and the subversion of the formula of documental cinema.
KEYWORDS: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, FILM THEORY
S
ituado naquele que Maurice Yacowar (YOCOWAR, 2006, p. 78-80) e Sam B.
Girgus (GIRGUS, 1993, p. 5-6) consideram ser o ponto de maturidade do perío-
do paródico de Woody Allen – de Annie hall (1977) em diante, e especialmente
durante a década de 1980 –, Zelig (1983) é frequentemente incluído não só no
contexto particular da filmografia de Allen, como também no corpus da então recente e
ainda hoje escassa prática do mock-documentary1 (pseudo-documentary, entre outros ter-
mos, é um sinónimo frequente). Com efeito, de acordo com Yacowar, os anos oitenta tes-
1 Pese embora que seria possível avançar com uma tradução do termo (algo como ‘documentário farsesco’, ‘pseudo
documentário’ ou ‘falso documentário’) , penso que, à falta da existência deste em grande parte da literatura corrente so-
bre o tópico, é melhor opção manter o anglicismo. Por outro lado, nenhuma das alternativas normalmente apresentadas
me parece traduzir capazmente a intenção da expressão original.
temunharam o surgimento de “uma visão mais profunda e pessoal”2 (YOCOWAR, 2006,
p. 79) no estilo de Allen: “agora, o parodista fala directamente”. (YOCOWAR, 2006, p. 79)
Um comediante já estabelecido (Allen começou a vender anedotas e guiões aos mé-
dia desde o início dos anos 50, e Zelig é a sua décima terceira longa-metragem), por esta
altura o escritor/realizador já havia demonstrado e consolidado um dos principais traços
de estilo do seu cinema: a sua própria imagem, enquanto referência. Interligando cons-
cientemente a sua persona (e todos os aspectos psicológicos que lhe são adjacentes) e a
personagem à qual dá corpo, o público tende a naturalmente estabelecer um continuum
entre as duas. (HÖSLE, 2007, p. 3)
Normalmente considerado como um paradigma da corrente do mock-documentary
(sendo várias vezes evocado enquanto estudo de caso quando este tópico é abordado), Ze-
lig é, porém, um claro exemplo de como por vezes a comédia se revela um meio apropria-
do para trazer à superfície problemáticas sérias, relacionadas com questões fundamentais
(tais como problemas políticos e sociais da sociedade contemporânea, ou reflexões sobre a
cultura), gerando assim, conscientemente, uma forma de riso particularmente estimulan-
te do ponto de vista intelectual. Como Vittorio Hösle propôs no seu ensaio seminal sobre
2 Tendo em conta que a maioria das fontes consultadas se encontram escritas em língua inglesa e não existem ainda
disponíveis em edição portuguesa, a tradução das citações é da minha responsabilidade.
3 Convém neste ponto relembrar que Sigmund Freud, a neurose e a psique humana são lugares-comuns nos filmes
de Allen.
4 O cinejornal será utilizado várias vezes ao longo do filme, evocando a célebre parodia a “March of Time” feita em
Citizen kane.
Bibliografia
ALLEN, Woody. Three Films of Woody Allen. London: Faber and Faber, 1990.
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010.
AUFDERHEIDE, Patricia. Documentary Film: A Very Short Introduction to, Oxford: Oxford
University Press, 2007.
BOLTER, David; Richard Grusin. Remediation: Understanding New Media, Cambridge (MA)
and London: The MIT Press, 2000.
BORDWELL, David e Kristin Thompson. Film Art: An Introduction. New York: McGraw-Hill, 2010.
COLOMBANI, Florence. Woody Allen. Paris: Cahiers du Cinema, 2010.
CHRISTLEY, Jaime. Chris Marker. Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/2002/gre-
at-directors/marker/>. Acesso em: 10 Janeiro 2012.
* André Rui Graça é licenciado em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e con-
clui actualmente o mestrado em estudos fílmicos na University College London (Reino Unido). Nesse
âmbito, tem desenvolvido investigação em torno da dicotomia entre cinemas nacionais e a indústria de
Hollywood. Adicionalmente, o seu interesse académico incide sobre cinema documental, ontologia da
imagem e música no cinema. Email: < andreruig@gmail.com >.
O poema é sobre uma mulher muito livre: nomeando sete personagens da Bíblia, ela
exemplifica o seu agir. A minha inspiração foram personagens de mulheres transgressoras
que trabalhei na minha tese de graduação. A minha formação é em Literatura Espanhola
e o nome do trabalho e “Esposas en La Furia de Silvina Ocampo”.
Erik Diesel*
Luna Yamanik
A minha amiga Juzeth teve uma situação muito triste há cerca de um ano atrás quando a
pequena Luna nasceu e esteve em desengano no hospital. Faz cerca de dois anos que Juzeth
perdeu o seu pai. Ele desencarnou muito jovem. Finalmente, no México, a linguagem Maia
tem variações das que Ix Chel e Yamanik são feitas.
Erik Diesel
“Colegio Antonio José Sucre” foi o meu primeiro soneto e é sobre a dor que a morte de
uma criança tatua no coração, e além disso, na razão. Três das quatro personagens do
poema têm sido parte do núcleo da minha vida. O poema é um tributo a eles.
Erik Diesel
MAGDALENA MENDONÇA*
Resumo: O propósito maior deste artigo é o de sinalizar o quanto perigoso é considerar o pensar de la
Rochefaucauld como similar a um de uma pensamento moralista. Trata-se de destacar o quanto o autor das
célebres Máximas e Reflexões, em pleno século XVII recusou veementemente o caráter coercitivo da moral,
endossada pelo pensar cristão e humanista, bem como dos adeptos do determinismo no que se refere à con-
duta humana que tão fortemente desprezavam a temática e relevância das paixões. Trata-se, sobretudo, de
pontuar o quanto o pensamento Rochefauldiano é atual e atemporal, pois, ainda pode nos mostrar os mitos
e pressupostos presentes nas crenças da Psicologia Comportamental ou do Behaviorismo e suas técnicas.
PALAVRAS-CHAVES: ANTIHUMANISMO, MORALISMO, DETERMINISMO
Abstract: The major purpose of this article is to signalize how dangerous it is to consider the Rochefaucauld
thinking as similar to the thinking of a moralist. It intends to emphasize to which extent the author of the
celebrated MAXIMS AND REFLECTIONS, in the midst of the Seventeenth Century vehemently refuted
the repressive character of morals , endorsed by the humanist and Christian thinking, as well as the fol-
lowers of determinism in regards to the human conduct , those who so strongly despised the propositions
and relevance of strongest feelings, such as passion. It intends, mainly, to punctuate the extent to which the
Rochefaucauld thinking is current and timeless, since still can show us the miths and assumptions present
in the beliefs of the Behaviorist Psychology or Behaviorism and their techniques
KEYWORDS: ANTI-HUMANISM, MORALISM, DETERMINISM
S
ão poucos os especialistas da psicomportamental que não se valeram da “grande
ferramenta” de modelagem do comportamento infantil, o célebre timeout. Consi-
derada de grande valia tal procedimento técnico consiste em controlar os arroubos
de um dito ato anti-social, que devidamente censurado é acompanhado de uma
retirada do “sujeito” de um grupo quando este vai de encontro ao imperativo do coleti-
vo. A regra maior prescreve que se deve conscientizar o sujeito pela privação do prazer da
companhia do grupo à cada apresentação de um ato inconveniente ou rebelde e isso, ao lon-
go de um tempo, tem como efeito a extinção do comportamento indesejável que, em poucas
palavras, pode ser dito mecanismo de socialização. Ainda hoje não são poucos os técnicos
que não deixam de recomendar tal procedimento em creches, escolas primárias, etc…
Deixando a querela do ser (visto como um em-si) civilizado, que mais parece ades-
trado, pode-se pensar no que há de humanismo cristão por trás de tal crença. Não é nada
fácil remar contra tal correnteza, que o digam aqueles pensadores do século XVII, como
Pascal, Montaigne, Hume que se debatiam com o ideal imaginário de uma vida pautada
sob os referenciais do bem e do mal e que por isso não eram afeitos ao moralismo, mas
nem por isto deixaram de se encantar pela temática da moral. Importa, aqui lembrar, La
Rochefaucauld, pois inegavelmente foi ele – que antes daquele outro apelidado, devido
à sua poesia corrosiva contra os ‘bons costumes’, de ‘boca do inferno’, e, ainda antes de
Nietzsche –, quem se incumbiu de apresentar a plausibilidade de se pensar em um modo
de vida humana mais pautada pelas paixões do que pela razão.
Convém, aos desavisados, advertir: tais autores de obras esconjuradas e malditas não
conheceram senão o disfarce para lograr não cair nas armadilhas de seus inimigos ardi-
losos. Eis a razão de uma das maiores obras de la Rochefoucauld, Máximas foi feita na
Holanda sem a sua devida autoria.
De fato, em nada deve agradar as falas de um vozeirão que ecoa na contramão do
ideário da boa convivência, que ´confere às ações o funcionamento passional que desvela
com clareza a inquietude de um impulso que nada pode deter, mesmo na maior aparência
de mansidão. E aqui não cabe enquadrar uma forma outra de pensar o agir humano, não
mais a partir dos cânones do bem/mal, virtude e vício. Parece ser justamente tal lógica que
o filósofo do século XVII quer questionar com a força das suas máximas arrebatadoras.
Dando-se ao prazer dos ares de um sobrevôo seguido de argúcia e sutileza em bom termo,
La Rochefoucauld, contra a mediocridade de um comportamento dito normal, humano
e social, refuta a tradição aristotélica e seus sonhos de uma vida harmônica socialmente,
quando fala em nome das paixões violentas e adverte com ironia singular: “Há no coração
humano uma germinação perpétua de paixões” (máxima 10), e, “As paixões têm uma in-
justiça e um interesse próprio que tornam perigoso segui-las e necessário delas desconfiar,
ainda que muito razoáveis pareçam” (máxima 9).
Com a força das paixões é que ele esbraveja contra o teísmo e determinismo incrus-
tado no humanismo cristão, ao dizer: “Por mais vantagens que conceda a natureza, não é
ela somente, mas a fortuna e ela, que fazem o herói” (máxima 53). E dá mostras suficientes
do seu pensar singular sobre a razão quando reconhece: “Não temos força o bastante para
seguir toda a nossa razão” (máxima 42). E com fôlego não deixa de zombar do mito do es-
sencialismo, dos adoradores do imutável e da sua fixidez imponderada, quando anuncia:
“A felicidade está no gosto, não nas coisas, é por ter o que amamos (desejo, busca, ânsia de
apropriação) que somos felizes, não por ter o que os outros acham amável” (máxima 48). E
já na antecipação de Freud, pensa alto: “É difícil definir o amor: o que dele se pode dizer é
Referências bibliográficas
* Magdalena Mendonça é doutora em filosofia pela UNICAMP, SP, autora de O problema do Eu no ceticis-
mo de David Hume. São Cristóvão, SE: Editora UFS; Aracaju, SE: Fundação Oviedo Teixeira, 2003.
Es probable que alguna vez hayamos perdido (entiéndase perder como dejar de exis-
tir) a un ser querido o algún objeto de gran valor, y las reacciones que tenemos al respecto
son distintas, algunas más dolorosas, otras no tanto. Todo depende del sujeto/objeto de
valor perdido. El proceso que sigue a esa pérdida se llama duelo, el cual se define como “la
reacción frente a la pérdida de una persona amada, un objeto o un ideal, como la patria,
la libertad, etc.”1 Muchas veces la melancolía se desata después de un duelo. Sigmun Freud
llama melancolía a lo que ahora suele describirse como estados de depresión.
Estos tópicos, el duelo y la melancolía, son los ejes sobre los que gira el filme brasi-
leño Os famosos e os duendes da morte (Los famosos y los duendes de la muerte, 2009), la
ópera prima de Esmir Filho que en 101 minutos narra a través de una bella composición
audiovisual la historia de un chico que escribe en un blog, donde usa el sobrenombre “Mr.
Tambourine Man”. Es fanático de Bob Dylan, al punto de planear un viaje casi imposible,
como modo de escape, desde su suburbio rural hasta la ciudad brasileña en la que pronto
tocará el cantante.
El tema de la muerte, por el tamaño de la comunidad, es común y ocasionalmente
constante, de tal manera que se comparte un sentimiento de melancolía desatado por el
duelo que se respira en el ambiente, principalmente al cruzar un puente que comunica a
una parte de la comunidad con otra, pues éste se ha usado como trampolín suicida. Mr.
Tambourine tiene un mejor amigo llamado Diego, quien recientemente perdió a su her-
mana después de haber planeado un suicidio con su novio, el cual no murió.
1 Sigmund, Freud, Obras completas. Buenos Aires, Amorrorto editores, 1978, vol. XIV, p. 241.
Después de una perdida, se confía en que pasado cierto tiempo se superará. La me-
lancolía se caracteriza por el desinterés hacia el mundo exterior, la pérdida de la capacidad
de amar, regularmente se exterioriza en autorreproches, autodenigraciones y ocasional-
mente en castigo. Así vemos a Mr. Tambourine negándose a llevarle flores a su padre al
panteón. O a una mujer (otro personaje) que decide suicidarse al negarse la existencia
después de la muerte de su esposo.
Freud afirma que el duelo consiste en comprender que el objeto amado ya no existe,
por lo que ahora se tiene que inhibir toda libido enlazada a ese objeto. En este proceso es
comprensible toda renuencia, ya que la existencia del objeto perdido sigue presente en la
psique. Cada uno de los recuerdos y las expectativas anudabas al objeto son clausurados,
sobreinvestidos. Vemos a Mr. Tambourine refugiado en el ciberespacio, sitio donde tam-
bién sufre otro duelo por la muerte de la hermana de su mejor amigo, chica por la que
sentía atracción. El protagonista obtiene experiencias vicarias observando videos del ser
deseado en la red, de un primer amor que no pudo ser.
En el mundo virtual no existe la muerte, todo es un viaje mental, una ensoñación,
en ese mundo online todo es más seguro y también más libre, es el medio que utiliza Mr.
Tambourine para despegarse de la soledad y la melancolía de su habitación. Esta película
se mueve entre la realidad, el sueño y un universo virtual que sobrevisten la melancolía
de los habitantes del Brasil alejado del turismo donde se desarrolla la trama. Una pequeña
población colonizada por alemanes, perfecta para que los adolescentes protagónicos pa-
seen su angustia y sus deseos entre realidades alternas.
No siempre el sujeto/objeto de valor está realmente muerto, pero quizá se perdió
como objeto de amor (por ejemplo, el caso de una novia abandonada o un ideal). En
ocasiones no atinamos a discernir con precisión lo que se perdió, aquí entra el papel de
la melancolía, la cual es “la pérdida del objeto sustraída de la conciencia; a diferencia del
duelo, en el que no hay nada inconsciente que atañe a la pérdida”.2
En Os famosos e os duendes da morte los personajes coinciden en que realmente lo
que han perdido no son seres queridos u objetos de gran valor, sino el ideal de la libertad,
por lo menos así lo dan a entender los adolescentes protagonistas. Tienen grandes ansias
por llenar el vacio que sienten en su vida, es decir, encontrar la libertad, abandonar su
comunidad y volar, volar lejos hasta sentirse libres.
Pero la melancolía implica más que el duelo: una rebaja en su sentimiento yoico, un
enorme empobrecimiento del yo. En el duelo el mundo se hace pobre y vacío; en la melan-
colía eso le ocurre al yo mismo. Un claro ejemplo sucede cuando una vecina, madre de un
compañero de clase de Mr. Tambourine, se suicida, y hasta con los sentimientos del propio
Mr. Tambourine. Los personajes se sienten vacios por sus pérdidas, una por su esposo, el
otro por su libertad y el resto por diversas razones. Su melancolía en realidad son querellas
de estar con alguien que ya no existe o de hacer algo que desean.
2 Ibíd, p. 243.
Ficha técnica
Bibliografía
Sigmund, Freud. Obras completas. Buenos Aires: Amorrorto editores, 1978, vol. XIV.
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