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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)

Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)

Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade


Federal de São Carlos. Ano 15. Número 28 (Jan-Jun/2013).
São Carlos: UFSCar, 2013.

Semestral
ISSN 1517-0845

1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I.


Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação
e Ciências Humanas.

CDU 168.522 (05)


ANO 15 – NÚMERO 28 – JAN-JUN/2013
CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Revista Olhar Ano 15 – Número 28 – Jan-Jun/2013
Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH)
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Gilmar de Carvalho (UFC) Michigan – USA)
Editorial

N
ós, editores e conselheiros, dedicamos este número da re-
vista Olhar ao querido Prof. Dr. Mark Julian Cass, que
não está mais entre nós. Julian, além do brilhantismo in-
telectual, foi colaborador deste periódico e companheiro
permanente dos colegas da UFSCar sempre que sua ajuda, compreen-
são e apoio foram necessários: sem alarde e sem interesse particular
investido; com a sensibilidade que lhe era peculiar. Que fique registra-
do aqui nosso adeus coletivo, carinhoso e cheio de saudades!

Noite
(j. monzani)

na madrugada
um murmúrio
doce, quente, aquoso
apita

vento ou
canto o que dá
no mesmo
no verso
de ser sendo.

Josette Monzani
Júlio Cesar De Rose
(editores)

Capa: Marcon Rodrigues


48 anos, sul de Minas Gerais
E-mail: <mrr.2010@hotmail.com>
Sumário
DOSSIÊ I COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS

Apresentação
9
Léa Silveira

Crítica à autonomia do poder político em Agostinho


13
Luiz Marcos da Silva Filho

A realeza cristã em Vicente de Beauvais (séc. XIII)


25
André L. Pereira Miatello

Ockham leitor da Política de Aristóteles


40
Carlos Eduardo de Oliveira

Kant e a imaginação: imaginando um outro Kant?


64
Fernando Costa Mattos

Kant, Fichte e a Revolução Francesa


80
João Geraldo Martins da Cunha

Poder, política e verdade em Michel Foucault: notas sobre


91
as implicações práticas do discurso
André Constantino Yazbek

Sem nome não sei de ti


102
Carlos Rosa

La casada infiel (A casada infiel)


105
Federico Garcia Lorca
Tradução de Guilherme Mansur
Realismo Milagroso: Espinosa, Deleuze, e Luz Silenciosa de
107
Carlos Reygadas
Niels Niessen

Direito à comunicação: atualidade do debate histórico como


132
bandeira de luta pela democratização
Chalini Torquato Gonçalves de Barros

Las diversas repercusiones en los espectadores argentinos en


145
relación a diversos dispositivos: a propósito de la imagen del
rostro del Che Guevara
Lic. Jimena Cecilia Trombetta

Estruturas (in)visíveis: o conteúdo e a forma em Zelig, de Woody


154
Allen
André Rui Graça

Sosa
165
Luna Yamanik
Colegio Antonio José Sucre
Erik Diesel

Os malditos da vida humana: la Rochefoucauld e seu


168
antimoralismo
Magdalena Mendonça

Poemas
171
Juan Toro Castillo

Poética y procesos de creación video-cinematográfica brasileña


173
en la contemporaneidad
Angélica Marisol Mora Vázquez
DOSSIÊ
I COLÓQUIO
DE FILOSOFIA
DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE
LAVRAS
APRESENTAÇÃO

C
iente da importância do debate e da variação de perspectivas intelectuais para a
formação do estudante e do professor, a área de Filosofia do Departamento de
Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras decidiu realizar anual-
mente um colóquio e uma aula magna. Os textos ora coligidos foram apresenta-
dos no primeiro desses colóquios, cujo tema foi “Filosofia e Política”. A ocasião congregou
professores da casa e convidados em torno de um tratamento do assunto que envolveu os
períodos medieval, moderno e contemporâneo. Passo agora a uma breve apresentação de
cada um desses textos.
Inicialmente, o Professor da UFLA, Luiz Marcos da Silva Filho, descortina na re-
flexão agostiniana fatores que delineiam a origem da teocracia cristã, institucionalizada
a partir do século VI. É pela defesa da existência, na condição de queda, da libido como
figura da vontade que implica o emprego do livre-arbítrio na direção de um divórcio em
relação a Deus, que Agostinho procura sustentar a necessidade do exercício de repressão
e de imposição de mecanismos de correção e disciplina, mediante o qual o poder polí-
tico deve corresponder a uma espécie de terapêutica das almas. O desenvolvimento do
argumento se depara, assim, com um paradoxo, aparente, na ideia de que o castigo a que
o homem é submetido por desobedecer a Deus é algo que tanto mais favorece a desobe-
diência. O autor mostra que a consequência da estratégia de denúncia de distanciamento
entre querer e poder é a fundamentação da definição de “povo”, não mais a partir de um
critério moral, mas a partir da própria vontade, trazendo como correlato uma desnatura-
lização da política.
Na sequência, o Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, André Mia-
tello, apresenta alguns aspectos da reflexão política de Vicente de Beauvais, reflexão que,
segundo o autor, localiza-se em território distinto do aristotélico. O objetivo de Miatello
não é perscrutar origens da monarquia absolutista na obra no frade dominicano da Baixa
Idade Média – embora não deixe de indicar obras em que foi empreendido o percurso que
parte das chamadas monarquias medievais para chegar ao regime absolutista monárquico
que distinguiu a história política da Europa a partir do século XV –, mas destacar por que
veios o preceito de conciliação à fé cristã não destitui de racionalidade a reflexão que a
toma em consideração ao eleger por objeto o exercício do poder. Miatello defende que é
possível encontrar, na obra de Beauvais, elementos para sustentar que a relativização da
autonomia da política não corresponde, a contrapelo do resultado verificado em Agosti-
nho – ao estabelecimento de uma equivalência entre política e teocracia.
Já o terceiro texto, diferentemente do segundo, explora a relação entre Aristóteles
e um pensador medievo. Tal relação não é, no entanto, ressaltada senão para mostrar
o quanto o relato que Guilherme de Ockham oferece da Política de Aristóteles é já, e
inevitavelmente, mais do que relato, revelando-se ocasião para a manifestação de um po-
sicionamento próprio, especialmente naquilo que diz respeito à construção de estratégias
de argumentação. Tomando como fio condutor essa hipótese de leitura e explorando as
características próprias a cada um dos três tipos de principados – despótico, real e político
–, bem como o menor ou maior valor, do ponto de vista da ideia de perfeição, a ser atribuí-
do à vila, à cidade, ao reino etc.; Carlos Oliveira, Professor da Universidade Federal de São
Carlos, mostra que aquilo que Ockham procura fazer é explicitar os fundamentos de um
regime monárquico. O autor se posiciona contra uma leitura de Ockham que se arrisca
a ser reducionista na medida em que circunscreve o estabelecimento de um fundamento
racional para a monarquia papal como objetivo de sua discussão da Política e ainda na
medida em que não chega a divisar que a distinção por ele operada, via linguagem aristo-
télica, entre governo para o bem comum e governo para o bem privado se subordina à ne-
cessidade de mostrar que o governo para o bem comum comporta, em si mesmo, diversas
possibilidades e que a eleição de uma dentre elas deve ponderar determinadas condições
capazes de informar por que uma forma é preferível às demais.
Em seguida, Fernando Mattos, Professor da Universidade Federal do ABC, desen-
volve uma argumentação voltada para a defesa da existência, na filosofia kantiana, de um
papel a ser desempenhado pela faculdade da imaginação na razão prática. Sem deixar de
pontuar que Kant afirmara expressamente que apenas o entendimento atua na aplicação
da lei moral aos objetos da natureza para a constituição do juízo prático, Fernando Mattos
alega, no entanto, que a referência a uma operação de síntese entre virtude e felicidade na
determinação do conceito de sumo bem convoca uma reflexão a respeito do espaço que a
imaginação poderia aí ocupar uma vez que se encontra delineada, na razão teórica, como
faculdade responsável pela síntese em geral. As proposições metafísicas que participam
da razão prática como seus postulados, apesar de serem incapazes de engendrar conhe-
cimento, não deixam de ser proposições teóricas, diz o autor; sendo-lhes por isso mesmo
inescapável o caráter sintético, implicam, ipso facto, a incidência da imaginação. Fernan-
do Mattos problematiza possíveis consequências dessa hipótese tomando como ponto de
partida leituras a ela afins, em particular aquelas de M. Heidegger e de H. Arendt.

10 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Elementos da defesa transcendental dos direitos humanos empreendida por Fichte
são abordados por João Cunha, Professor da Universidade Federal de Lavras, sob o leit-
motiv do juízo a respeito do direito de revolução. Tendo pontos em comum com Kant
– a adoção da tarefa de mostrar como a razão pode determinar por inteiro a liberdade
e como esta pode fundamentar o juízo político à luz da consideração do contrato social
como Ideia reguladora (e não como fato) – e retirando daí seu ponto de partida e sua
inspiração, Fichte alcança, relativamente a Kant e a esse respeito, um veredicto contrário,
pois, enquanto este reputa ilegítimo tal direito na proporção em que a revolução equi-
valeria a romper com o caráter publicizável da ação no âmbito do direito público, para
Fichte o direito à revolução é inalienável porque o mundo mesmo não guarda outro sen-
tido senão aquele que converge para a efetivação da “liberdade cosmológica” como sua
finalidade. Que a relação entre uma constituição – por mais que vise à liberdade como
destinação humana – e o reino dos fins seja sempre assintótica, isto é, por mais que a re-
flexão transcendental indique o lugar de ancoragem da lei moral mas não o modo de sua
realização, isso, para Fichte, não põe em xeque o direito de revolução; tem, na verdade,
um efeito contrário porque não permitirá situar nenhum estado de coisas como imutável,
nenhuma constituição desprovida de espaço para um esforço a mais.
André Yazbek, também Professor da UFLA, fecha o dossiê com um texto que, si-
tuando A ordem do discurso como interface entre arqueologia e genealogia, discute as
feições que M. Foucault destina à problematização da ideia de verdade, informando, de
saída, a dimensão à qual se dirige o exercício mediante o qual este avança a tarefa crítica.
Pois que, sob pena de enredamento no irracionalismo, não se trata de situar como alvo
a noção de validade proposicional – não é no nível interno ao discurso, bem entendido,
que se tece o conluio entre aquilo que opõe o verdadeiro ao falso e aquilo que se expressa
como violência –, mas de, suspendendo de certo modo esse registro da questão, procurar
demarcar e denunciar, talvez em sua sombra ou a contraluz, mecanismos que se valem do
exercício do poder para a organização do discurso de modo que tal organização, então
compreendida como regime de verdade, desempenhe função maior na determinação de
identidades e no desenho de exclusões institucionais. André Yazbek direciona sua argu-
mentação para encerrar o artigo com uma indicação de qual seria o papel do intelectual
numa perspectiva foucaultiana.
Segue-se, assim, a primeira produção bibliográfica coletiva oriunda da equipe de Fi-
losofia da UFLA. Sendo esse o caso, convém aqui dizer algo a respeito de seu perfil e de
seu projeto.
A Universidade Federal de Lavras, que abriga uma tradição centenária na área de
Ciências Agrárias, tendo, além disso, já se consolidado em diversas outras áreas de co-
nhecimento, até recentemente não contava, no entanto, com a área de Ciências Humanas.
A ocasião efetiva para alterar esse cenário se deu no contexto do Programa de Apoio a
Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), quando a ins-
tituição elaborou um projeto que envolvia a redefinição curricular de todos os seus cursos

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 11


no sentido de inserir um grupo de disciplinas obrigatórias cuja maior parte pertencia à
área de humanas. Tal projeto ensejou a contratação de um grupo de professores que logo
encontrou caminhos para propor a criação de novos cursos de graduação, com o que sua
atuação seria ampliada para além do núcleo básico de disciplinas de serviço, trazendo
como consequência a necessidade de abraçar, nos mais diversos aspectos, um outro tipo
de uma inserção institucional.
No caso da Filosofia, a opção foi por propor um curso de licenciatura cuja chave
central é a aposta em uma estreita conexão de mão dupla entre Filosofia e história da
Filosofia (o conhecimento filosófico não podendo prescindir de sua história; a história
da Filosofia sendo, em si mesma, filosófica) não apenas no que concerne à formação do
estudante, mas também no que diz respeito ao futuro exercício da docência no Ensino
Médio. Localizamos, assim, no horizonte de nosso projeto, a perspectiva de que a prática
docente em Filosofia no Ensino Médio não seja pautada por um espontaneísmo que, em
nome de um suposto didatismo, abrisse mão do conhecimento propriamente filosófico ou
o relegasse a segundo plano.
À luz da apresentação do eixo que guiou nossa lida com algo que pode bem adequa-
damente e em amplo sentido, acredito, ser chamado de kαιρός, encerro essa apresentação
endereçando uma palavra de agradecimento tanto aos Profs. Josette Monzani e Julio César
de Rose, por convidarem a equipe de Filosofia da UFLA para colaborar com a Revista
Olhar e acolher o dossiê, quanto aos autores que o compuseram e ainda a todos os colegas
que apoiam, mediante palavras e gestos, o projeto de realização do Curso de Filosofia da
UFLA. Esse apoio é, para nós, sinônimo de aposta renovada em um lugar onde o afeto
pode – no sentido da legitimidade – vincular-se à res publica.

Léa Silveira
Professora do Departamento de Ciências Humanas da UFLA

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CRÍTICA À AUTONOMIA DO
PODER POLÍTICO EM AGOSTINHO
LUIZ MARCOS DA SILVA FILHO*

Resumo: N’A cidade de Deus, Agostinho apresenta ambivalente concepção de política, pois a política ad-
quire ou positividade ou negatividade conforme a identidade ou a contradição de uma civitas ou res publica
consigo mesma. Mais precisamente, a cidade celeste, que guarda dois modos de existência, um na história,
outro na eternidade, conquista progressivamente identidade na medida em que na história há processo
coerente dela em direção a seu modo de existência por excelência, na eternidade; já a cidade terrena existe
na história em contradição e conflito, ao tornar-se escrava da própria libido de dominação, de maneira que
sua história é de progressiva danação e perda de ser. Uma cidade guarda, pois, estatuto político a despeito
de sua orientação ou de sua desorientação moral. Além do mais, o fundamento da política agostiniana não
é nem a natureza, nem a razão. Assim, em declarada ruptura com a reflexão política ciceroniana, Agostinho
empreende uma desnaturalização da política e fundamenta-a em certo conceito de vontade.
PALAVRAS-CHAVE: POLÍTICA, MORAL, HISTÓRIA, VONTADE

Critique to the autonomy of political power in Augustine


Abstract: In the City of God, Augustine shows an ambivalent conception of politics, because the politics ac-
quires positivity or negativity according to the identity or contradiction of a civitas or res publica with itself.
More precisely, the celestial city, which has two modes of existence, one in the history, other in the eternity,
progressively conquers identity as in history succeeds a coherent process towards its genuine mode of ex-
istence, in eternity. On the other hand, the earthly city exists in the history in contradiction and conflict in
becoming slave of its own libidinousness of dominance so that its history is one of a progressive damnation
and lost of being. Therefore a city holds political statute in despite of its moral orientation or disorientation.
Moreover, the Augustinian foundation of politics is neither the nature nor the reason. Thus, notably against
Cicero, Augustine enterprises a denaturalization of politics and founds it in a certain concept of will.
KEYSWORDS: POLITICS, MORALS, HISTORY, WILL
P
ara tratar da crítica à autonomia do poder político em Agostinho, apresentare-
mos, em princípio, a definição de “república” e de “povo” que Agostinho elabora
n’A cidade de Deus contra as definições que Cícero dispõe em Da república. O
que mais nos importará sobretudo na definição de “povo” é o fato de ela ser des-
tituída de critério moral para conferir estatuto político a uma multitudo, a um conjunto de
inumeráveis seres racionais. O expediente de Agostinho para destituir de critério moral a
sua definição de populus é fundamentá-la na “vontade”. O fundamento de uma res publica
é certo conceito de “vontade” e não a “razão” ou a “natureza”, como se dava em Cícero.
Isso significa que Agostinho empreende uma desnaturalização da política, de forma que
concede que civitates não fundamentadas moralmente ou, se preferirmos, fundamentadas
na perversão da natureza humana possam guardar o mesmo status político de uma cidade
moralmente orientada. Por conseguinte, tanto a ordenada “república celeste” quanto a
desordenada “república terrena” são “repúblicas”.
A desnaturalização da política, todavia, não se dá em função de um divórcio entre
“política” e “moral” que procure conceder positividade à “política”. Ao contrário, Agos-
tinho confere estatuto político também a uma república moralmente desorientada para
demarcar a negatividade da autonomia da “política”. A bem de compreender isso, sere-
mos conduzidos ao segundo momento de nossa exposição, no qual examinaremos que
conceito de “vontade” Agostinho elabora para conceder a possibilidade de uma política
estremada da moral. Veremos, assim, que, em Agostinho, “vontade” é não uma faculdade
da alma, mas sua própria substância, junto com a “inteligência” e a “memória”.
A “vontade”, bem entendida na filosofia agostiniana, é a “vontade livre”, o “livre-arbí-
trio”, a partir do qual o homem guarda a liberdade de se apartar de Deus e de ter a soberba
pretensão de idealmente buscar a autarkéia. Assim, o que move a soberba pretensão hu-
mana de autarkéia, e nisto se revela sobretudo um acerto de contas de Agostinho com o
estoicismo, é a “vontade”, mais precisamente uma figura da “vontade” que o autor chama de
“libido de dominação” (dominandi libido) ou, como muitas traduções, “desejo de domínio”.
Então, no momento em que trataremos do conceito agostiniano de “vontade”, de “livre-
arbítrio” e de “liberdade”, o exame da “libido” esclarecerá por que a “vontade” é a substância
da alma e por que “libido”, como desejo de não mais desejar a Deus, mas de desejar ser
Deus, isto é, desejar a dominação das criaturas, significa o uso do livre-arbítrio por parte
do homem para divorciar-se de Deus e de si mesmo, de sua própria natureza. Para Agos-
tinho, a fundação da história e de certa política apartada da moral reside no movimento
da “vontade” que torna o homem escravo da “libido”. Desse modo, a crítica agostiniana ao
ideal notadamente estoico de autarkéia é a um só tempo crítica à autonomia da política.
Por fim, no terceiro e último momento de nossa exposição, reavaliaremos, em de-
sacordo com as leituras de Carlyle, McIlwain, Adams1 e O’Donovan, o significado da

1 “‘Whether St. Augustine realized the enormous significance of what he was saying may be doubted; this definition
[CD XIX, 24] is indeed practically the definition of Cicero, but with the element of law and justice left out, and no more

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ausência de “valor moral”2 na definição agostiniana de “povo” no interior de um projeto
de crítica à autonomia do poder político e de construção de uma forma de governo com
traços teocráticos, na qual o “poder político”, com seus instrumentos coercitivos de “corre-
ção” e “disciplina”, seja instrumento da moral.

***

Comecemos então a examinar a definição de “povo” de Agostinho. “Povo é o con-


junto de inumeráveis seres racionais associado pela concorde comunhão de coisas que
amam”.3 Nessa definição, o “amor” ou a “vontade” é o liame fundamental para um con-
junto de seres racionais constituir “povo”. Isso quer dizer que o amor pode ser orienta-
do para qualquer finalidade, seja para Deus, seja para a dominação imperial: se for um
desejo compartilhado, é o bastante para que um conjunto de homens adquira o estatuto
político de “povo”. Eis por que imediatamente a seguir Agostinho diz que, segundo sua
definição,4 “o povo romano é povo, e sua res, sem dúvida, república”.5 O mesmo é possível
dizer dos atenienses e de Atenas, bem como dos homens de outras regiões da Grécia;
deve-se ainda estender a definição para o Egito, para a primeira Babilônia dos assírios,
para todo e qualquer conjunto de cidadãos que compartilhem o desejo, que orientem
toda a sua existência para os mesmos fins e edifiquem instituições em função disso. As-
sim, com tal definição, Agostinho pretende dar conta de todos os gêneros de amor que
um conjunto de homens possa guardar, e o que se adquire é propriamente o traço de de-
finição, de universalidade, para populus. Afinal, uma definição de “povo” fundamentada
na “razão” e na “natureza”, como se dá em Cícero, não é definição, porque é carente de
universalidade. Com efeito, nem todos os “povos” cumprem os critérios de “razão” nem

fundamental difference could well be imagined, for Cicero’s whole conception of the State turns upon this principle, that it is
a means for attaining and preserving justice.’ [‘St. Augustine and the City of God’, The Social and Political Ideas of Some
Great Mediaeval Thinkers, ed. F. J. C. Hearnshaw, p. 50.]”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Va-
lue of Civil Society”, p. 172. McIlwain, por sua vez, supõe que a definição agostiniana seria mera variante da ciceroniana,
devendo ser lida como “simply a rhetorical device”. ADAMS, J. D. Op. cit., p. 173. Adams se refere à seguinte obra de
McIlwain: The Growth of Political Thought in the West, from the Greeks to the End of the Middle Ages. O artigo de Adams
é estudo extremamente informativo no que concerne à literatura crítica que, no século XX, interpretou a definição
agostiniana de populus.
2 “moral value”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Value of Civil Society”. In: DONNELLY, D.
F. The City of God: a Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995; p. 171.
3 “Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus”. AUGUSTINUS. De
ciuitate dei, XIX, xxiv. Na ausência de menção, todas as traduções são de nossa responsabilidade.
4 “Secundum istam definitionem nostram”. AUGUSTINUS. Op. cit., loc. cit.
5 “Romanus populus populus est et res eius sine dubitatione res publica.”. Ibid., loc. cit. Obviamente, a redefinição de
populus redefine o sentido de res publica, a despeito de os termos da definição desta não se alterar(em): res publica res
populi. Tanto Cícero quanto Agostinho definem res publica como “coisa do povo”, mas o sentido de “república” varia
conforme a definição de “povo”.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 15


realizam a natureza humana, a humanitas, a partir dos quais Cícero, em ambiência do
médio estoicismo,6 elabora sua definição.7
Em outras palavras, a definição agostiniana voluntarista de populus confere à políti-
ca, em contraposição à ciceroniana, a possibilidade de autonomia, precisamente porque
nela não há critério moral para delimitar qual conjunto de seres racionais constitui “povo”
e qual não constitui. Porém, não nos enganemos, como já apontamos, ao estremar “polí-
tica” de “moral”, ao realizar a desnaturalização da política, Agostinho não pretende, como
talvez Maquiavel pretenda, conceder positividade à “política”. Ao contrário, Agostinho
confere estatuto político também a uma república moralmente desorientada para demar-
car a negatividade da autonomia da “política”. Toda a análise política de Agostinho, toda
a análise pormenorizada da História de Roma, realizada nos cinco primeiros livros d’A
cidade de Deus, está a serviço da moral. Tanto é que, imediatamente após a apresentação
de sua definição de “povo”, Agostinho afirma com todas as letras que não se trata de esti-
mar todos os povos apenas por serem “povos” e terem edificado “repúblicas”, pois, “para
ver o que é cada povo, é preciso examinar as coisas amadas”, e um povo será “tanto melhor
quanto melhores as coisas que o unirem, e tanto pior quanto piores forem”.8 O critério de
delimitação, não político, mas moral, para surpresa do leitor, é precisamente a virtude.
Um povo será melhor do que outro na medida em que for virtuoso, em que for justo. Não
à toa, Agostinho diz que os romanos, os atenienses, os egípcios, os assírios e outros cons-
tituem “povos”, sim, mas não conhecem a verdadeira justiça, porque não amam a Deus
em comunhão e, desobedientes ao Criador, não permitem que a alma e a razão imperem
retamente sobre o corpo e os vícios,9 e, para Agostinho, o vício dos vícios, o vício gerador
de todos os outros vícios, é a “libido”. A surpresa, para leitor desavisado, é verificar que
Agostinho, imediatamente após estremar “política” de “moral”, lança mão da virtude da
“justiça”, como critério moral, para julgar a excelência dos povos, o que significa que o

6 A leitura de um Cícero estoico, sem dúvida, é polêmica. Defendemo-la, porém, a partir de Barros, Grimal, Revelli,
Watson, entre outros. Watson, por exemplo, diz que “the leading proponent of the importance of the development of a
law for all men is Cicero. And the main source for the ideas of Cicero on this matter was Stoic philosophy”. WATSON. “The
Natural Law and Stoicism”. In: LONG, A. A. Problems in Stoicism. London: The Athlone Press, 1996, p. 225. No mundo
romano, Agostinho, por exemplo, compreendia Cícero, antes de tudo, próximo do estoicismo: “Cicero in pluribus fuisse
Stoicum quam veterem Academicum vult videri.”. AUGUSTINUS (1955). De civitate dei, XIX, iii, 2.
7 “[…] populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et
utilitatis communione sociatus.”. CICERO. De re publica, I, xxv, 39. No livro III do diálogo, Cícero esclarece que o conceito
de ius presente na definição de populus se refere ao direito natural, pois há identidade entre lex, ratio e natura: “[…] est qui-
dem vera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna, quae vocet ad officium iubendo, vetando
a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut vetat, nec improbos iubendo aut vetando movet. Huic legi nec
obrogari fas est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari potest, nec vero aut per senatum aut per populum
solvi hac lege possumus, neque est quaerendus explanator aut interpres eius alius [Sexto Aelius], nec erit alia lex Romae, alia
Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et [ut] sempiterna et immutabilis continebit,
unusque erit communis quasi magister et imperator omnium deus: ille legis huius inventor, disceptator, lator; cui qui non
parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis aspernatur hoc ipso luet maximas poenas”. CICERO. De re publica, III, xxii, 33.
8 “[…] profecto, ut videatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda, quae diligit. […] tanto utique melior, quanto
in melioribus, tantoque deterior, quanto est in deterioribus concors.”. AUGUSTINUS. Op. cit., XIX, xxiv.
9 “Generaliter quippe civitas impiorum, cui non imperat Deus oboedienti sibi, ut sacrificium non offerat nisi tantummo-
do sibi, et per hoc in illa et animus corpori ratioque vitiis recte ac fideliter imperet, caret iustitiae veritate.”. Ibid., XIX, xxiv.

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expediente de desnaturalização da política, o expediente de conferir estatuto político a
“povos” constituídos por homens com a natureza fraturada, permite a Agostinho realizar
crítica moral ainda mais refinada e severa da tradição pagã e de “repúblicas” que não
dispõem seu aparato político e militar de “correção” e “disciplina” a serviço da orientação
moral da Igreja.10
O esboço da forma de governo da “teocracia” não é, porém, tão simples. Vimos que
“povo” para Agostinho é uma multidão de seres racionais associados por um desejo em
comum. Qual é então a legitimidade de regime de governo que recorra a instrumentos de
coerção e até mesmo a violência física para reprimir práticas orientadas por desejos libi-
dinosos? O desejo que um conjunto de homens deve compartilhar para constituir “povo”
não é desejo que cada cidadão tem e compartilha a partir de vontade livre, a partir do
livre-arbítrio? Se sim, qual a legitimidade de república e de regime de governo em que os
cidadãos que constituem “povo” apenas o constituem porque seus desejos são orientados
para o mesmo fim a partir de instrumentos coercitivos de “correção” e “disciplina”? Essas
dificuldades nos encaminham para o segundo momento de nossa exposição. Afinal, para
responder, temos de compreender melhor o fundamento voluntarista de “povo” por meio
de estudo dos conceitos de “vontade”, “livre-arbítrio” e “liberdade”. Uma passagem das
Confissões é esclarecedora:

Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de mi-


nha alma, não porque as ame, mas para te amar, ó meu Deus. É por
amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos
caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas es-
pero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura, e
quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos inte-
riores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me
de tua Unidade.11

O que impulsiona Agostinho em busca daquele fundamento por meio de uma inspe-
ção da memória e de si mesmo é o amor ao amor de Deus. Infelizmente, não nos toca exa-
minar aqui as razões metafísicas de Agostinho para, com base em Paulo, definir Deus como
amor e explicar por que o amor é o conceito explicativo da dinâmica entre Deus e a criação.
Em linhas gerais, Deus é amor porque, como de Deus nada se predica, mas tudo que é
atribuído a Ele é a sua própria substância, como Agostinho bem mostra nas Confissões, IV,

10 Cf. De ciuitate dei, XIX, xvi; XIX, xvii; Sermões 13, 302; Epístolas 133, 134, 153, e todo o material referente à contro-
vérsia donatista. Segundo Dawson, “Augustine was the originator of the mediaeval theocratic ideal”. DAWSON, C. “St.
Augustine and his Age”, apud PARKER, Th.-M. “St. Augustine and the Conception of Unitary Sovereignty”, p. 951.
11 “Recordari volo transactas foeditates meas et carnales corruptiones animae meae, non quod eas amem, sed ut amem te,
Deus meus. Amore amoris tui facio istuc, recolens vias meas nequissimas in amaritudine recogitationis meae, ut tu dulcescas
mihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura, et colligens me a dispersione, in qua frustatim discissus sum, dum ab uno te
aversus in multa evanui.”. AUGUSTINUS. Confessionum, II, i, 1. (Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. Grifo nosso.)

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16, ao explicitar a impotência das categorias aristotélicas para investigar Deus, então o amor
de Deus permite dizer que a própria substância de Deus é amor, isto é, “vontade”. Como
Deus teria criado o homem a sua imagem e semelhança, a substância do homem também
é “vontade”. Então, por natureza, o homem aspira a Deus, por natureza a participação do
homem com o Ser supremo se dá também pela “vontade”, pelo desejo do fundamento.
A “vontade”, como liame entre o Criador e a criatura racional, é a “vontade ordenada”,
mas essa “vontade” é livre, e o fato de ela ser livre não é um mal; pelo contrário, é um bem
que eleva em perfeição a criatura racional, acima das irracionais.12 O que pode ser um mal,
e nisto consiste o “mal moral” em Agostinho, é o uso que o homem pode fazer da liber-
dade. O abuso da liberdade, para Agostinho, consistiu no divórcio do homem com Deus,
consistiu na ruptura da participação ontológica no Ser supremo que o primeiro homem,
Adão, realizou ao recusar seu posto de criatura e ter tido a soberba pretensão de tornar-se
Deus. Ao aspirar deixar de aspirar ao fundamento, a consequência inevitável para o ho-
mem é a queda em condição fraturada. Que exatamente se encontra fraturado no homem
em sua condição pecaminosa? O homem todo se encontra fraturado: sua substância, a
“vontade”, a “inteligência” e a “memória”. O que se instaura no homem é o conflito inte-
rior, conflito dele consigo mesmo, “rixa interior” — como diz Agostinho no livro VIII das
Confissões —, cuja expressão é o conflito exterior, conflitos civis e bélicos. Uma vez que o
homem se encontra apartado do Ser, a consequência do conflito é a aniquilação, o não-ser,
que para o homem individual se apresenta como a “morte”.
A “rixa interior”, o conflito do homem consigo mesmo, é conflito da “vontade” contra
ela mesma, e essa figura da “vontade”, mais precisamente da “contravontade”,13 chama-se
“libido”. Segundo Sennelart, “é na dramaturgia do pecado original, e na grandiosa ence-
nação agostiniana da sedução, do sexo e da morte, que devemos buscar os fundamentos
de sua teologia política”.14 A reflexão — antes de dramaturgia e encenação — agostiniana
sobre a sedução, o sexo e a morte encontra-se nos livros XIII e XIV d’A cidade de Deus,
nos quais há definição da “libido” como desejo sexual, originário de todas as outras libi-
dos, entre as quais a “libido de dominação” (dominandi libido), em contexto de exegese do
relato bíblico do pecado original.
N’A cidade de Deus, XIII, xiii, e em XIV, xvii, Agostinho examina diretamente a pri-
meira contradição exterior que sucedeu ao homem após a falta original de Adão e Eva e
que foi motivo de vergonha. Logo após a primeira falta os primeiros homens se envergo-
nharam de estar nus, mas a vergonha não foi da nudez em si, porquanto antes da queda
Adão e Eva já estavam nus e não se envergonhavam de si mesmos. A vergonha, quando
surge, relaciona-se ao que a nudez passa a revelar: desacordo do homem consigo mesmo.

12 Cf. AUGUSTINUS. De libero arbitrio, II, xviii, 49; GILSON, É. Introdução ao estudo de santo Agostinho, p. 277.
13 Cf. NOVAES, M. “Vontade e contravontade”. In: NOVAES, A. (org.). O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002, p. 59-76.
14 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 73.

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Trata-se de vergonha consequente do movimento carnal que surge nos homens, com
a natureza cindida.15 Antes de pecar, Adão e Eva viviam nus e tinham os órgãos genitais,
mas não se envergonhavam de si mesmos e do movimento daqueles porque não havia a
libido.16 O que Agostinho quer dizer é que antes do pecado, com a natureza íntegra, os ór-
gãos genitais eram submissos, obedeciam à vontade e não se rebelavam contra a castidade.
Apenas se movimentavam se o homem quisesse que se movimentassem, como qualquer
outra parte do corpo,17 e a geração poderia unir homem e mulher corporalmente sem libi-
do. Dessa forma, após o pecado e com a transgressão da natureza, o primeiro movimento
desordenado, porque ordenado não pela vontade, mas pela contravontade, experimenta-
do pelo homem é o movimento carnal.

Tão logo se levou a efeito a transgressão do preceito, desamparados


da graça de Deus, [os primeiros homens] envergonharam-se da
nudez de seus corpos. Por isso cobriram suas vergonhas com folhas
de figueira, as primeiras, talvez, que se lhes depararam em meio à
perturbação. Tais membros já os tinham antes, mas não eram ver-
gonhosos. Sentiram, pois, novo movimento em sua carne desobe-
diente, como castigo devido à desobediência. Comprazida no uso
desordenado da própria liberdade, desdenhando servir a Deus, a
alma viu-se despojada da primeira sujeição do corpo e, por haver
livremente abandonado o Senhor superior, não mantinha submisso
o servo inferior nem mantinha submissa a si mesma a carne, como
teria podido manter sempre se houvesse permanecido submissa a
Deus. A carne começou, então, a desejar contra o espírito. Nesse
combate nascemos, arrastando o gérmen de morte e trazendo em
nossos membros e em nossa viciada natureza a alternativa de luta e
vitória da primeira prevaricação.18

15 “A vergonha (pudor) suscitada pelo despertar no homem da libido indica, não a descoberta de sua nudez, mas a
perda de seu poder sobre seus órgãos sexuais”. SENELLART, M. Op. cit., p. 88.
16 “Merito huius libidinis maxime pudet, merito et ipsa membra, quae suo quodam, ut ita dixerim, iure, non omnimodo
ad arbitrium nostrum movet aut non movet, pudenda dicuntur, quod ante peccatum hominis non fuerunt. Nam sicut
scriptum est: Nudi erant, et non confundebantur (Gn 2, 25), non quod eis sua nuditas esset incognita, sed turpis nuditas
nondum erat, quia nondum libido membra illa praeter arbitrium commovebat, nondum ad hominis inoboedientiam redar-
guendam sua inoboedientia caro quodammodo testimonium perhibebat”. AUGUSTINUS. De civitate dei, XIV, xvii.
17 “Et ideo illae nuptiae dignae felicitate paradisi, si peccatum non fuisset, et diligendam prolem gignerent et pudendam
libidinem non haberent. Sed quomodo id fieri posset, nunc non est quo demonstretur exemplo. Nec ideo tamen incredibile
debet videri etiam illud unum sine ista libidine voluntati potuisse servire, cui tot membra nunc serviunt. An vero manus et
pedes movemus, cum volumus, ad ea, quae his membris agenda sunt, sine ullo renisu, tanta facilitate, quanta et in nobis
et in aliis videmus, maxime in artificibus quorumque operum corporalium, ubi ad exercendam infirmiorem tardioremque
naturam agilior accessit industria; et non credimus ad opus generationis filiorum, si libido non fuisset, quae peccato inobo-
edientiae retributa est, oboedienter hominibus ad voluntatis nutum similiter ut cetera potuisse illa membra servire?”. Id. De
ciuitate dei, XIV, xxiii, 2. Cf. Ibid., XIV, xxiv, 1-2.
18 “Nam postea quam praecepti facta trasgressio est, confestim gratia deserente divina de corporum suorum nuditate
confusi sunt. Unde etiam foliis ficulneis, quae forte a perturbatis prima comperta sunt, pudenda texerunt; quae prius eadem

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A “libido”, assim, faz que o homem se envergonhe do que se tornou porque, posto ele
em contradição e conflito consigo mesmo, expressa perda de identidade, “‘doença da alma’
(Confissões, VIII, ix, 21) cujo sintoma geral, que ele [Agostinho] descreve com uma preci-
são clínica, consiste na insubmissão dos órgãos sexuais”.19 Mais precisamente, a insubmis-
são dos membros expressa o divórcio entre o querer e o poder. Após o uso ilegítimo, após
o abuso da liberdade, o livre-arbítrio da vontade deixa de ser livre, isto é, perde a liberdade
de fazer o bem, e o homem torna-se condenado ao vício, escravo da “libido”.20
Afinal, “que se retribuiu como pena ao pecado da desobediência senão a
desobediência?”21 A desobediência de si mesmo contra si mesmo é a consequência con-
traproducente do desejo do homem de ordenar-se a si mesmo no cosmo. Aqui compre-
endemos melhor em que consistiu a primeira vontade má. Ao pretender ordenar-se, o ser
humano instaura desordem em si mesmo que é, por assim dizer, abertura para sucessão de
desordens, decorrentes da primeira. A fratura original era inevitável e, por isso, foi aconte-
cimento justo e merecido, na medida em que o “apetite de celsitude perversa”, a “soberba”,
ousou querer o que não pode por natureza, a saber, “desertar o princípio a que o ânimo
deve estar unido e fazer-se de certa maneira princípio para si e sê-lo”.22
Desse modo, uma vez que o homem não quis o que podia, a queda foi precisamente
em condição em que, de forma viciada, quer o que não pode. É verdade que por natureza
o homem não podia tudo, mas nele havia identidade porque apenas “queria o que podia
e, assim, podia tudo o que queria”.23 Eis por que pode haver identidade mesmo em cria-
tura carente de plenitude de ser. A natureza do homem, sabidamente, é mutável, ainda
que imortal, mas guarda identidade em função de adequação entre aquilo que o homem
quer e aquilo que pode querer. Isso não quer dizer, por consequência, que por natureza
não suceda no homem conquista permanente de identidade. Como dinâmica ou processo

membra erant, sed pudenda non erant. Senserunt ergo novum motum inoboedientis carnis suae, tamquam reciprocam
poenam inoboedientiae suae. Iam quippe anima libertate in perversum propria delectata et Deo dedignata servire pristino
corporis servitio destituebatur, et quia superiorem dominum suo arbitrio deseruerat, inferiorem famulum ad suum arbi-
trium non tenebat, nec omni modo habebat subditam carnem, sicut semper habere potuisset, si Deo subdita ipsa mansisset.
Tunc ergo coepit caro concupiscere adversus spiritum, cum qua controversia nati sumus, trahentes originem mortis et in
membris nostris vitiataque natura contentionem eius sive victoriam de prima praevaricatione gestantes.”. Ibid., XIII, xiii.
(Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.)
19 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo, p. 85.
20 “[…] o pecado original, ‘tentativa orgulhosa de Adão de estabelecer seu próprio governo autônomo’, marca o começo
da servidão do homem”. SENELLART. Op. cit., p. 73. Se aqui coubesse, poderíamos mostrar que a exegese do relato do pe-
cado original no livro XIV d’A cidade de Deus se dá, a um só tempo, como crítica da pretensão de autarkéia, seja de Adão,
seja de algum sábio estoico, seja de qualquer outro homem ou filósofo que pretenda alcançar por si mesmo a perfeição.
21 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?” AUGUSTINUS. De ciuitate dei,
XIV, xv, 2. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.)
22 “Initium enim omnis peccati superbia est (Eclo 10, 13/15). Quid est autem superbia nisi perversae celsitudinis appeti-
tus? Perversa enim est celsitudo deserto eo, cui debet animus inhaerere, principio sibi quodammodo fieri atque esse princi-
pium.”. Ibid., XIV, xiii. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo nosso para demarcar a citação.)
23 “Nam quae hominis est alia miseria nisi adversus eum ipsum inoboedientia eius ipsius, ut, quoniam noluit quod po-
tuit, quod non potest velit? In paradiso enim etiamsi non omnia poterat ante peccatum, quidquid tamen non poterat, non
volebat, et ideo poterat omnia quae volebat”. Ibid., XIV, xv. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo
nosso para demarcar a citação.)

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em direção ao Ser, a progressiva aquisição de identidade ou de ser ou de semelhança da
imagem divina não se realiza por meio da obtenção de identidade continuamente maior
entre querer e poder e diminuição de qualquer alteridade entre ambos. É certo que com
conquista de ser o santo se torna, como um atleta, capaz de feitos cada vez mais gloriosos,24
mas o alargamento do poder ocorre em simultaneidade e em unidade com o do querer, que
é progressivamente maior vontade e poder não do homem, mas de Deus no homem que se
dissolve n’Ele.25
Por que, afinal, há fundo comum entre a libido sexual e a libido, por assim dizer,
política, a “libido de dominação”? Ora, a libido consiste na perversão do desejo pelo fun-
damento, na perversão do desejo a Deus, o único que deve ser desejado por si mesmo. De-
sejar alguma coisa por si mesma, na filosofia agostiniana, tem nome, e esse nome é “gozar”
ou “fruir”, ambas traduções legítimas de frui, que significa gozar, fruir, alguma coisa por
si mesma, opondo-se a uti, “usar”. A libido sexual deseja outra criatura por si mesma, de
forma que, por isso, todas as outras modalidades de “libido” são libidos porque desejam o
“gozo”. A “libido de dominação”, que impulsionou, por exemplo, o Império Romano, dese-
ja toda a criação por si mesma, e, não à toa, a análise agostiniana do fundo comum entre as
várias classes de libido explicita que elas podem guardar expressão conjuntamente. A His-
tória de Roma é testemunho histórico da consonância entre elas. Afinal, desde a fundação
de Roma, em que houve o rapto das sabinas,26 encontramos exemplos de conciliação de
várias classes de libido em um projeto comum. O evento histórico de conjugação de libi-
dos examinado por Agostinho com mais vagar refere-se, todavia, à queda (excidium) de
Roma, em que os invasores desejavam a um só tempo e ao menos a dominação da cidade,
a subjugação sexual das mulheres e a conquista de ouro e prata.27
A partir disso, já nos encaminhando para o terceiro e último momento de nossa
exposição, precisamos resgatar a questão da desobediência como consequência da própria
desobediência.28 A desobediência da vontade que se volta contra si mesma, como vimos, é
o descompasso entre querer e poder. O homem por si mesmo não mais pode estabelecer
governo de si, governo dos próprios desejos desordenados. É a partir desse diagnóstico da
condição humana que Agostinho procura justificar a legitimidade do poder repressivo. A

24 “[…] athletam Christi, doctum ab illo, unctum de illo (Gl 1, 12), crucifixum cum illo (Gl 2, 19), gloriosum in illo”. Ibid.,
XIV, ix, 2. A referência é a Paulo.
25 “[…] cupientem dissolvi et esse cum Christo”. Ibid., loc. cit. Muito provavelmente se trata de citação indireta da Epis-
tola aos Filipenses 1, 23.
26 “Ex hoc iure ac bono credo raptas Sabinas. Quid enim iustius et melius quam filias alienas fraude spectaculi inductas
non a parentibus accipi, sed vi, ut quisque poterat, auferri? Nam si inique facerent Sabini negare postulatas, quanto fuit
iniquius rapere non datas! iustius autem bellum cum ea gente geri potuit, quae filias suas ad matrimonium conregionalibus
et confinalibus suis negasset petitas, quam cum ea, quae repetebat ablatas. Illud ergo potius fieret; ibi Mars filium suum
pugnantem iuvaret, ut coniugiorum negatorum armis ulcisceretur iniuriam, et eo modo ad feminas, quas voluerat, perveni-
ret. Aliquo enim fortasse iure belli iniuste negatas iuste victor auferret; nullo autem iure pacis non datas rapuit et iniustum
bellum cum earum parentibus iuste suscensentibus gessit.”. Ibid., II, xvii.
27 Cf. Ibid., I, i-xxxvi.
28 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?”. Ibid., XIV, xv, 2.

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“incapacidade [de o homem] obedecer-se a si mesmo, da qual a libido é o sintoma: tal é,
para Agostinho, a condição decaída do homem que justifica o uso da coerção”.29
Para retomar a definição voluntarista de “povo” e explicitar o significado da “vonta-
de” como fundamento da política, o expediente de conferir estatuto exclusivamente po-
lítico, não moral, a “povos” e “repúblicas” orientados pela “libido de dominação” que os
cidadãos compartilham permite a Agostinho empreender severa crítica à autonomia do
poder político, consequência do desejo de autonomia, de autossuficiência, de cada cida-
dão, que, como a cidade terrena, ao pretender dominar a criação é ele mesmo dominado
pela própria libido de dominação.30 Tal desapreço por uma “política” estremada da “mo-
ral”, por sua vez, é ocasião para Agostinho pretender legitimar uma estrutura de poder, no
caso a estrutura de poder imperial de Roma, que esteja a serviço da orientação moral da
Igreja para estabelecer a coesão de desejos ordenados na sociedade.

Agostinho defendeu a visão de que as estruturas de autoridade que


davam coesão à sociedade leiga poderiam ser convocadas para dar
apoio à igreja católica: os imperadores deveriam comandar seus sú-
ditos, os senhores de terras, seus lavradores (açoitando-os, quando
necessário), e os chefes de família, suas mulheres e filhos, a fim de
trazê-los de volta para a unidade da igreja católica.31

Para Agostinho, a repressão dos desejos desordenados e a vigilância dos corpos é,


portanto, poder de coerção terapêutico necessário para os cidadãos, destituídos, como
vimos, da identidade entre querer e poder.32 Afinal, a disciplina dos corpos e da carne,
que se rebelam em cada um dos cidadãos e os tornam ameaça social se não forem repri-
midos, guarda o propósito de limitar o poder político para fim não político, mas moral,
isto é, guarda o propósito de usar o poder político com a finalidade de uma “medicina
das almas”.33 Está aí disposta a base para forma de governo inédita até então na história,
a teocracia cristã, que se institucionalizaria como forma de governo da Igreja sobre os

29 SENELLART, M. Op. cit., p. 88.


30 “Unde etiam de terrena civitate, quae cum dominari adpetit, etsi populi serviant, ipsa ei dominandi libido dominatur,
non est praetereundum silentio quidquid dicere suscepti huius operis ratio postulat si facultas datur.”: “Por isso, também
a respeito da cidade terrena –, que, com o desejo de dominar, e não obstante povos sejam seus escravos, é dominada
pela própria libido de dominação –, não deixarei passar em silêncio tudo aquilo que o plano desta obra exigir e a minha
capacidade permitir dizer”. AUGUSTINUS. De ciuitate dei, Praefatio.
31 Peter Brown. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1990, p. 327. Sobre a legitimidade da coerção e da violência física quando bem orientada, cf. AUGUSTINUS.
De ciuitate dei, XIX, xiv.
32 “O poder não é mais a consequência de uma vontade que obedece, mas o meio de coagi-la a obedecer. Se bastava
a Adão querer o bem para exercer seu poder, é preciso que os homens submetam-se a um poder para serem capazes de
bem querer. Desse modo Agostinho apaga o limite […] entre a autoridade espiritual e a coerção secular”. SENELLART,
M. Op. cit., p. 88. (Grifo do autor.)
33 Cf. SENELLART, M. Op. cit., p. 89.

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reinos a partir do século VI, com Gregório Magno, em larga medida por meio do resgate
da teorização política agostiniana.

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WATSON, G. “The Natural Law and Stoicism”. In: LONG, A. A. Problems in Stoicism. London:
The Athlone, 1996.

* Luiz Marcos da Silva Filho é professor de Filosofia Medieval da Universidade Federal de Lavras.
A realeza cristã em
Vicente de Beauvais (séc. XIII)
ANDRÉ L. PEREIRA MIATELLO*

Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a ideia de realeza defendida pelo dominicano Vicente de Beau-
vais em sua obra De morali principis institutione; analisamos principalmente os capítulos V e VI, nos quais Vi-
cente tenta explicar, por um lado, por que um Deus bom pode permitir o governo de maus reis e, provando-se
que maus reis são instrumentos providenciais, como é que eles podem ser recompensados. O retrato do mau
rei, proposto por Vicente, pode ser interpretado inversamente como traços do bom rei: apesar de exercer um
poder estruturalmente negativo, já que nasceu do pecado (ambitio potestatis), o rei pode e deve colaborar com
Deus na economia da salvação assumindo um ministério sobre as almas na forma de um rei-pastor.
PALAVRAS-CHAVE: MONARQUIA CRISTÃ, PODER POLÍTICO, PASTORADO RÉGIO

Christian kingship in Vincente of Beauvais (XIIIth century)


Abstract: This article aims to discuss the idea of kingship defended by the Dominican Vincent of Beauvais
in his work De morali principis institutione; we analyze especially Chapters V and VI, in which Vincent tries
to explain, first, why a good God can allow the government of a bad king and, proving that bad kings are
providential instruments, how they can be rewarded. The portrait of the bad king, proposed by Vincent, can
be interpreted inversely as traces of the good king: despite exercising a power structurally negative, since it
was born in sin (ambitio potestatis), the king can and must cooperate with God in the economy of salvation
assuming a ministry of the souls in the form of a shepherd-king.
KEYWORDS: CHRISTIAN MONARCHY, POLITICAL POWER, ROYAL PASTORATE

Introdução

Ao propor como tema de discussão alguns aspectos do pensamento político de Vi-


cente de Beauvais, importante erudito do séc. XIII ocidental – mais propriamente aquilo
que pensava sobre os fundamentos e os limites da ideia de poder, de modo particular, o
poder régio ou principesco –, pretendo circunscrever um conjunto de conceitos relativos
ao governo dos homens que, do ponto de vista aqui adotado, esteve na base de práticas
de poder e que nasceu da observação e experiência de estruturas sociais concretas e para
servir a estas mesmas estruturas. E nem podia ser diferente, pois o referido autor organi-
zou sua obra de tal forma que, pela sua leitura, os destinatários originais da mensagem,
isto é, os reis de França e Navarra, bem como seus filhos e cortesãos, pudessem lançar
mão de conselhos de ação e exemplos de conduta. A despeito dos referenciais históricos
aqui evocados, é minha intenção problematizar as considerações políticas vicentinas à luz
das auctoritates que ele próprio elegeu como base de sua argumentação e, a partir desse
procedimento, inseri-lo na discussão contemporânea em torno do poder e do governo na
Baixa Idade Média.
É provável que os Études sur Vincent de Beauvais, théologien, philosophe, encyclopé-
diste, de J.-B. Bourgeat, publicados em 1856, tenham sido a primeira investigação moderna
sobre Vicente de Beauvais. Apesar disso, só muito recentemente é que a crítica começou
a fazer das obras vicentinas um assunto de estudo, reservando-lhe um destacado posto na
história da educação, como se pode ver em Astrik Ladislas Gabriel (1956) ou em John Ellis
Bourne (1960); no que se refere aos aspectos políticos de sua produção, os estudos são ain-
da mais recentes, datando, por exemplo, do colóquio de Montreal, em abril de 1988, cujo
conjunto de comunicações foi publicado com o título: Vincent de Beauvais. Intentions et
réceptions d’une oeuvre encyclopédique au Moyen Âge, em 1990. Nesse volume, destacam-
se os artigos de Elizabeth Brown (Vincent de Beauvais and the reditus regni francorum ad
stirpem Caroli imperatoris), de Mireille Schmidt-Chazan (L’idée d’Empire dans le Speculum
historiale de Vincent de Beauvais) e, principalmente de Robert J. Schneider (Vincent of
Beauvais’ Opus universale de statu principis: a reconstruction of its History and Contents),
que é, também, o editor de uma das mais recentes publicações críticas da maior obra
política de Vicente, o De morali principis institutione. (SCHNEIDER, 1995)1 Muito mais
recentemente ainda, encontra-se a obra de Javier Vergara (La educación política en la Edad
Media: el Tractatus de morali principis institutione de Vicente de Beauvais, una apuesta
prehumanista de la politica), publicado em 2010.
A relativa juventude dos estudos sobre Vicente de Beauvais contrasta com o já tradi-
cional interesse pelos estudos monárquicos no âmbito da história do pensamento político
e das instituições medievais. Ora, é justamente no domínio de uma certa tendência tele-
ológica de se estudar a política e as instituições políticas, que predomina desde o século
XIX, que a obra de Vicente de Beauvais parece ter algo a dizer. Em que pesem as muitas
abordagens e métodos utilizados pelos estudiosos das instituições políticas, os trabalhos
sobre as monarquias ditas medievais geralmente foram feitos tendo em vista a monarquia
do Estado absolutista e, como parte de uma leitura teleológica, os críticos olharam para a

1 Para este artigo, utilizei a edição crítica estabelecida por Carmen de Acuña (2008) e publicada na Biblioteca de
Autores Cristianos de Madri.

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Baixa Idade Média a fim de encontrar ali as raízes do absolutismo monárquico que mar-
cou boa parte da história dos Estados europeus a partir do séc. XV.
Tal maneira de interpretar pode ser vista, por exemplo, nas obras de José Antonio
Maravall (1986) Adeline Rucquoi (1987), Jacques Le Goff (1996) e Jean-Philippe Genet
(1998); este último autor, aliás, publicou, em 2003, a La genèse de l’État moderne, que teria
começado, justamente, no século XIII. Genet inicia seu livro evocando o que ele chamou
de “o primado da guerra”, uma vez que, segundo ele, o Estado moderno procede do feu-
dalismo, sistema político-social movido pela guerra: assim, para organizar as batalhas, os
reis precisavam do apoio de seus vassalos que, reunidos em assembleia junto de seu rei,
permitiram a emergência de um novo tipo de Estado.
Sem querer invalidar os trabalhos aqui apontados, minha abordagem pretende ser
um pouco diferente; não é minha intenção procurar as origens do Estado moderno, nem
mesmo as origens da monarquia medieval. Espero discutir alguns aspectos do pensamen-
to político do frade dominicano Vicente de Beauvais, que lidou de perto com a prática do
poder monárquico na corte de Luís IX, rei de França.
A inspiração para estas reflexões veio da metodologia e das discussões de Yves Sas-
sier (2002), que, ao estudar a “realeza e a ideologia na Idade Média”, preferiu interpretar
o pensamento político medieval a partir de sua relação com os referenciais políticos da
Antiguidade Tardia, ou o Baixo Império, como ele chama o período. Segundo Sassier,
o conteúdo das ideias políticas dos autores medievais não prenuncia aquelas do Estado
dito moderno, mas, ao contrário, aponta para as convicções político-religiosas do Israel
bíblico e do Império romano: assim, ao invés de olhar para a frente, o futuro do Estado,
Sassier convida a olhar para trás, para o passado greco-romano e judaico-cristão porque
constituem os marcos incontornáveis do exercício do poder durante o período medieval.
Em se tratando do século XIII, a questão é bastante delicada e talvez por isso Sassier
tenha circunscrito seu trabalho até o século XII. Ora, por várias razões, o século de Vicen-
te de Beauvais pode ser tomado como momento importante de inflexão do pensamento e
da história política: por um lado, temos a recém-fundada universidade de Paris e o desen-
volvimento e consolidação do método escolástico, cujos mestres também foram autores
de obras políticas de grande envergadura, como a Eruditio regum et principum (1259), de
Gilberto de Tournai, sucessor de Boaventura de Bagnoregio na cátedra de teologia de Pa-
ris, o De regno (c.1266), de Tomás de Aquino, o De regimine principum (c.1280), de Egídio
de Roma e o De morali principis institutione (1263), de Vicente de Beauvais; por outro
lado, temos o crescimento da universidade de Bolonha e o incremento dos estudos sobre o
direito, canônico e civil. É no século XIII que também vários reinos se afirmam a partir de
um cariz nacional e seus reis, a despeito do imperador romano-germânico, reivindicam o
poder exclusivo dentro de seus reinos (rex imperator in regno suo), levando a uma primei-
ra reflexão sobre a noção de soberania: também nesse campo os autores como Gilberto de
Tournai, Vicente de Beauvais e Tomás de Aquino deram forte contribuição, como o caso
particular da obra vicentina nos serve de indício.

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No campo da teologia, da filosofia e do direito, houve um visível aumento de inte-
resse pela reflexão sobre a função dos reis, sobre os critérios de governo, sobre a realidade
do reino, suas instituições e sua natureza. A motivação pode ter tido várias causas, mas,
dentre elas, há que se destacar o peso que as traduções das obras políticas de Aristóteles,
iniciadas por Guilherme de Moerbecke, em 1260, exerceram sobre os leitores da língua
latina, marcando assim outra inflexão de relevo no campo das indagações políticas. Os
comentários escolásticos à obra de Aristóteles provocaram um profundo abalo no pensa-
mento político cristão sobretudo porque, a partir da base conceitual aristotélica, tornou-se
possível pensar o poder temporal como autônomo em relação ao poder espiritual e assim
foi possível atribuir legitimidade própria à ciência política (scientia civilis).
O caminho aberto pela redescoberta da política aristotélica e pelo pressuposto de que
o poder de governar dado aos reis não vem da Igreja, mas diretamente de Deus, inspirou a
Monarquia de Dante Alighieri e o Brevilóquio sobre o principado tirânico, de Guilherme de
Ockham; mas são obras do século XIV e talvez por isso os historiadores acima citados te-
nham estudado a instituição monárquica medieval como origem do absolutismo moderno.
Vicente de Beauvais não foi tão longe. Para ele, a matéria política constituía sim uma
ciência civil mas, apesar de conhecer a obra de Aristóteles, concebeu o poder e o governo
dos reinos segundo outras bases teóricas, como espero mostrar neste texto. O pensamento
político vicentino é devedor daquela característica comum que, de certa forma, aproxi-
mava as mais diversas interpretações sobre a política, como a platônica e ciceroniana,
e os mais variados regimes de governo, como os reinos federados, o império romano-
germânico, as monarquias ditas feudais, o reino papal, as repúblicas urbanas, as cidades
comunais, os principados. Refiro-me à fé cristã e à instituição que lhe sustenta, a Igreja.
No que se refere à fé e à Igreja, devemos lembrar que não lidamos com um monolito
estanque: aquilo que os primeiros cristãos chamavam de depositum fidei contou historica-
mente com um largo processo de revelação em que a gradativa inteligibilidade do mistério
deu origem à história dos dogmas e que, de alguma maneira, sincronizava o passado e o
presente, ou seja, a ecclesia cristã primitiva e a societas christiana ou a res publica christia-
norum, do século XIII.
Correndo o risco de parecer superficial e evasivo, insisto em dizer que os reinos, a
começar pelo Império romano, no século IV, quando aceitaram a fé cristã e permitiram
a influência da Igreja, começaram a agir politicamente segundo os pressupostos do depo-
situm fidei, o que provocou uma considerável mudança de perspectiva nos modos de se
conceber a vida social e a natureza da própria sociedade. De todas as mudanças de para-
digma que ocorreram ao longo dos cinco primeiros séculos, vou destacar apenas uma: por
mais divinizado que o Império romano pudesse ter sido, por mais que ele se considerasse
protegido pelos deuses, acreditava-se que sua própria existência e realidade eram estrutu-
ras autossuficientes e autônomas, formando uma realidade absoluta; disso nasceu a visão
civilizatória que levou os romanos a acreditar que ocupavam o ponto mais elevado na
escala de perfeição política e cultural.

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A adoção do cristianismo lentamente minou as bases desse sistema; autores como
Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona apresentam uma concepção da civitas romana
ou dos reinos ditos bárbaros como expressões provisórias ou temporais da vida social de
homens que eram, no fundo, peregrinos e estrangeiros, não mais cidadãos no sentido
estrito: enquanto o antigo Império romano baseava-se na tradicional noção republicana
de cidadania, o novo Império romano cristão, nascido da conversão de Constantino e
Teodósio, precisou admitir a recente noção bíblica de paroikia, ou, em latim, peregrinatio:
em outras palavras, aquilo que para os antigos romanos significava a vida fora da civitas [a
peregrinatio] e, portanto, longe de uma comunidade de direitos, tornou-se contraditoria-
mente a única – ou a mais patente – condição de vida política: os reinos inevitavelmente
se tornaram estruturas relativas.
A relatividade das instituições humanas favoreceu a projeção de paradigmas extra-
temporais sobre as realidades históricas esvaziando de sentido implícito as comunidades
políticas; doravante, o reino de Deus passou a ser a medida dos reinos dos homens; os
vínculos sociais prescindiram do sangue, da cultura, da etnia, da nação, da língua e reivin-
dicaram a identidade da fé. Os reinos deixaram de representar o ponto máximo da orga-
nização da vida humana para se tornar uma condição para que a vida humana alcançasse
o máximo de sua existência num plano extraterreno, no além: daí falarmos que a política,
na Idade Média, possuía um forte cariz escatológico.
Pensando em termos de política romana, o cristianismo esvaziou o significado do
poder público, do governo e das prerrogativas da administração dos reinos; talvez por
isso, sobretudo a partir do século XVIII, os filósofos oriundos da burguesia refutaram
o sistema político cristão, considerando-o uma aberração completa; mas pensando em
termos de política cristã, o cristianismo deu novo significado ao poder, às relações sociais
e ao governo: a chave da equação é que foi mudada, pois a vida política foi posposta à vida
da alma, a qual deveria presidir toda a existência humana. Se isso estiver correto, temos
um indício de resposta sobre por que os pensadores do medievo compuseram tão poucos
tratados propriamente políticos e muitos tratados ascéticos. Na grande maioria dos casos,
a reflexão política medieval, exceção seja feita aos séculos XIII em diante, aparece indire-
tamente em obras de cunho historiográfico, pastoral e teológico: em uma Vida de santo,
em um sermão, em uma crônica, em um tratado dogmático.
Para boa parte dos historiadores contemporâneos, influenciados pelo liberalismo
iluminista, política é a modalidade principal de existência humana, é o jeito específico que
os homens têm de interagir entre si, de maneira ordenada. A política, como tal, comporta
a definição e a atribuição de papéis sociais voltados para a ordenação da vida comunitária
e esses papéis fazem referência a uma manifestação particular de convivência chamada
Estado. Desse ponto de vista, a realidade do Estado constitui o locus privilegiado da vida
social e, por isso, pensa-se que seja onipresente e, mais ainda, racional, isto é, explicável e
inteligível por si, por suas próprias categorias, sem referência a nenhuma instância trans-

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cendental. Desde o século XVI, os politólogos falam em “razão de Estado” para designar
essa existência empírica, absoluta e incontornável chamada Estado.
Visto por esse ângulo, muitos eruditos afirmaram que na Idade Média não existia Es-
tado, já que a noção genérica e territorialmente indefinida de cristandade diluiria os laços
racionais do Estado. E como entre a não razão e a desrazão o caminho é curto, os eruditos
começaram a ver na política medieval apenas o seu aspecto sagrado e supersticioso, o que,
de certa forma, parece explícito ao notarmos que os primeiros trabalhos do século XX
que se voltaram para o tema da política medieval privilegiaram os aspectos mágicos da
realeza, como Os reis taumaturgos (1927), de Marc Bloch, influenciado pela antropologia
de James Frazer.
Mas, uma coisa é relacionar a realeza dos monarcas medievais ao poder de Deus, ou-
tra coisa é dizer que os monarcas eram dotados de um poder mágico: a visão da historio-
grafia, nesse sentido, tendeu a frisar as supostas características folclóricas das sociedades
medievais, submetendo estas sociedades aos ditames e pressupostos da razão de Estado.
Penso que não deve ser sem propósito que Marc Bloch escolheu pesquisar o caráter mi-
raculoso dos reis, que era, por assim dizer, uma crença heterodoxa, isto é, não contem-
plada pelos tratados políticos e teológicos do período: procurou-se estudar as concepções
“germânicas” do poder monárquico, entendendo por “germânico” o contrário da cultura
política romana, isto é, expressão de crenças mágicas e míticas.
Quando o historiador parte desse pressuposto corre o risco de fazer uma grave acusa-
ção ao passado, mesmo que indiretamente: se os pensadores medievais diminuíram o sig-
nificado autônomo do político, consequentemente despiram de racionalidade o exercício
do poder e as estruturas políticas; eles, então, revestiram de magia (leia-se religião) aquilo
que nada teria a ver com religião. Surge daqui a crença de que a política medieval só tinha
uma expressão, a teocracia. Admitindo a premissa de que o Ocidente laico e supostamente
democrático crê que as leis civis são totalmente independentes de qualquer lei religiosa,
os críticos costumam associar as leis religiosas ao fanatismo e até ao terrorismo: teocracia
não só perdeu referência à razão, como passou a ser uma desrazão, um absurdo em termos.
Ora, Michel Senellart (2006) adverte sobre a ineficácia de se estudar história polí-
tica a partir das ausências de certos conceitos e instituições num dado período e região.
Fugindo de uma história da institucionalização do Estado e sua gradativa burocratização
ou aparelhamento júridico e militar, Senellart tenta responder como um conceito aparen-
temente não político (como regimen) entrou para a linguagem política medieval e moldou
as práticas políticas: no âmbito do vocabulário político medieval, a presença de regimen
(traduzido por governo) nos mostra que o ato de governar precede ao Estado e que gover-
no é um exercício político e não um órgão ou entidade; governo também não supõe um
aparelho de Estado e não tem um sentido burocrático-administrativo ligado a um poder
central, estabelecido por um acordo jurídico; também se pode dizer que governo não é
dominação e que possui uma multiplicidade de fins, não só aqueles considerados públi-
cos; governar é um exercício que extrapola os aspectos judiciais, contratuais e militares:

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no limite, não se reduz ao âmbito do poder. Governar é verbo que define relações entre
pessoas, não entre pessoas e coisas, como território, estruturas de poder, órgãos públicos:
os pensadores políticos da Idade Média entendiam o governo como uma arte ordenada
segundo pressupostos morais, pedagógicos, espirituais e técnicos, já que governar supõe
conduzir pessoas naquilo que elas têm de especificamente humano, ou seja, sua dimensão
imanente e transcendente.
Se partirmos dos referenciais teóricos mobilizados pelos pensadores medievais, par-
ticularmente Vicente de Beauvais, verificaremos o quanto o cristianismo, como bem ex-
plica Ernest Cassirer, em O mito do Estado (2003), reelaborou e transformou o arcabouço
filosófico/político da Antiguidade, aceitando seus termos, sem aceitar suas premissas. A
questão de uma teocracia é aqui assunto menor, pois trata-se de identificar o núcleo gera-
dor de sentido não só ao discurso político propriamente dito, mas à vida social efetiva. As
teorias políticas de Vicente de Beauvais, como o leitor poderá verificar, o distanciaram de
seu confrade Tomás de Aquino que, no De regno, escrito pela mesma época do De morali
principis institutione, deu à noção de res publica um sentido natural de convívio entre os
homens, uma etapa propedêutica na procura humana pela felicidade. No entanto, esse
distanciamento, além de apontar para a diversidade conceitual no seio da Ordem domi-
nicana, nos mostra o quanto ambos os autores lidavam de maneiras diferentes com as
autoridades da cultura política greco-romana, partindo das mesmas referências bíblicas.
Assim, o que vemos se descortinar aos nossos olhos não é o predomínio de um dog-
matismo religioso ou clerical, que teria gerado a teocracia na Idade Média; ao contrário,
vemos que tais pensadores queriam encontrar a conciliação dos argumentos da razão com
o depositum fidei, uma vez que, em âmbito cristão, pensar a política deixou de ser um
exercício de busca por uma sociedade perfeita, como vemos na tradição platônica e, de
certa forma, ciceroniana, mas a tentativa de sanear a sociedade defeituosa que se expe-
rimentava todos os dias. Todas essas questões ficarão mais elucidadas ao lançarmos um
olhar mais detido nos argumentos mobilizados por Vicente de Beauvais, em seu tratado
sobre a educação dos príncipes.

Vicente de Beauvais e a política

É provável que os críticos e especialistas do pensamento filosófico medieval não con-


siderem o frade dominicano Vicente de Beauvais entre aqueles que mereceriam o epíteto
de filósofos;2 talvez o principal motivo desse juízo decorra da própria apresentação que
Vicente faz de si, em seus livros, ao se denominar lector et compilator, isto é, um professor/
preceptor e um compilador de temas eruditos, muitos dos quais relativos ao âmbito da

2 O fato de nem mesmo Étienne Gilson, em seu A filosofia na Idade Média (1995), sequer mencionar, salvo engano, o
nome de Vicente de Beauvais, é sintomático dessa negação.

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filosofia. Ora, o gosto enciclopédico e o acúmulo de referências alheias parecem ter sido
levados em conta ao negar a Vicente um pensamento próprio e autêntico. Pode-se supor
que a expressão compilator, usada pelo dito frade, fosse apenas um gesto de modéstia e
uma declaração de humildade, já que sua vasta obra nada tem de humilde. Não se trata de
afirmar ou negar o estatuto de filósofo a este pensador do século XIII, mas de superar o
estereótipo e indagar dele o que pensava da política. No que tange a este aspecto, não fica-
remos decepcionados: Vicente ofereceu uma importante contribuição ao pensamento po-
lítico medieval ao escrever o De morali principis institutione, obra que propunha dissertar
sobre a natureza e a função dos reis, a ética dos governantes e os critérios do bom governo.
Como parte de uma tendência do período, esta obra nasceu de uma demanda muito
precisa, qual seja, a sua nomeação como pregador e professor da corte de Luís IX, rei de
França, na abadia régia de Royaumont, em 1247. A extensa e intensa convivência com os
membros do séquito real, a necessidade de lidar com a educação dos príncipes e cortesãos,
o mister de pregar diante dos maiorais do reino e ainda ter de aconselhar o monarca co-
locaram Vicente no foco da atenção do rei Luís e de sua esposa, Margarida da Provença,
que lhe pediram para escrever uma obra para a educação de seus filhos, os príncipes da
Francia. Na verdade, o que estava em jogo não era uma teorização da política ou uma con-
sideração ideal da ação política, mas a proposição de atitudes muito concretas relativas ao
projeto político que Vicente, na esteira dos pensadores de sua Ordem religiosa, concebia
como idôneo para o reino da França e, no limite, para todo reino cristão.
Ora, a proximidade entre a Ordem dominicana e a casa régia capetíngia vinha de
longa data; Luís IX e seus correligionários encontraram na escola teológica dos frades
Pregadores, fundada em Paris, um impressionante apoio ideológico que foi retribuído por
meio de uma evidente colaboração régia na fundação de novos conventos. Se levarmos
em conta que, por volta de 1260, o dominicano Tomás de Aquino escreveu o De regno ao
rei de Chipre, Hugo II de Lusignan, cuja linhagem possuía estreitos vínculos com os ca-
petíngios, e que nesse momento a ilha de Chipre contatava com quarenta e seis conventos
dominicanos, enquanto todo o Oriente Médio só tinha dezoito, podemos ter uma ideia de
como a aliança com a monarquia podia ser interessante para os frades de São Domingos.
Parece-me certo que os dominicanos não estavam em busca de algumas vantagens
econômicas; como frades Pregadores, sabiam que o ofício de pregar exigia que todos os
ambientes da vida social fossem de algum modo tocados pela pregação e, no limite, trans-
formados pela ética da penitência. A obra de Vicente de Beauvais decorre desse pressu-
posto que ele declara no prólogo do De morali principis institutione: ele esperava educar
os reis, mas também oferecer a seus confrades de Ordem um conteúdo abalizado para
lidarem com os poderes terrenos segundo a lógica ascética que possuíam. Com relação a
isso, acredito que os frades dominicanos não se diferenciavam muito de seus colegas fran-
ciscanos que, seja na universidade de Paris, como professores, ou nas cortes régias, como
preceptores e conselheiros, ou nas cidades comunais, como pregadores e pacificadores,
souberam forjar uma linguagem política que conciliou os “instrumentos comunicativos,

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as tipologias textuais, oratórias e conceituais bastante variadas e conectadas entre si”
(EVANGELISTI, 2002, p. 315) para propor, no âmbito da política, uma resposta satisfató-
ria aos apelos da pregação que constituía a natureza mesma das duas Ordens mendican-
tes. Esses religiosos, aproveitando-se ao máximo do patrimônio de conhecimento que as
recém-fundadas universidades custodiavam, foram os principais artífices da tradução, no
plano teórico e prático, do sentido antigo de civitas para o sentido cristão, (ARTIFONI,
1994, p. 159) oferecendo às instituições medievais e, hoje, à história do pensamento polí-
tico, um vocabulário bastante desenvolvido e denso que nos ajuda a entender a política
no séc. XIII. Nesse processo de tradução cultural, alguns conceitos foram particularmente
evidenciados, como o de justiça, lei natural, governo; outros surgiram de uma secular
convivência entre a res publica romana e a ecclesia cristã, como o governo pastoral e o
voluntarismo político. Observemos essas questões mais de perto.

Vicente de Beauvais e a realeza cristã: uma análise dos


capítulos V e VI do ‘De morali principis institutione’

Vicente de Beauvais começa seu tratado partindo da negatividade da política e,


por extensão de sentido, da vida social. A república é negativa na medida em que ela é
consequência de um desvio de conduta que aconteceu logo que os primeiros homens fo-
ram criados por Deus e que pôs fim à igualdade natural dos homens. Por amarem aquilo
que não lhes pertencia, os primeiros pais subverteram sua condição e, iguais que eram,
tornaram-se rivais porque passaram a disputar o poder. A monarquia, portanto, foi inau-
gurada quando os homens foram tomados pela ambição de dominar (ambitio potestatis),
o que coincide com a perversão da vida social ou o fim do tempo em que a natureza estava
em seus eixos e os homens eram iguais. Em sentido cristão, a história da queda prefigura,
ao inverso, a história do reerguimento ou da salvação. A monarquia, como todo poder ter-
reno, não conhece origens positivas, mas a providência a adaptou como forma temporária
de ajudar os homens no estágio da vida histórica. Os reis existem como instrumentos de
Deus para distribuir a justiça e para impedir que a ambição de dominar impossibilite o
convívio dos homens.
No capítulo V, Vicente tenta resolver a seguinte questão: se Deus é a fonte de todo
o poder e Deus é bom, como pode haver governadores maus? Como se pode observar, o
Pregador está diante de uma possível incoerência do sistema explicativo cristão e seu papel
é dirimir, justamente, qualquer possível ocasião de incoerência. Para tanto, ele dá duas res-
postas: a primeira se refere ao caráter pessoal do governante: o príncipe é homem e, como
homem descende de Adão, o que faz com que ele tenha um defeito congênito na vontade
da alma: esta é depravada e é a vontade depravada que quer as coisas ruins e erradas. O
poder, em si, pode ser bom, mas se o governante tiver uma vontade ambígua, será um mau
governante.

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A segunda resposta depende da primeira, e se refere ao caráter coletivo do reino:
não é só o governante que pode ter uma vontade má e perversa, mas também o seu povo;
como o sentido coletivo depende da natureza individual de cada pessoa, concebida como
um membro de um corpo, membros ruins provocam a ruína de todo o corpo social. Eis
o resultado da aplicação da metáfora organicista de sociedade: a cabeça pode ser boa,
mas se os braços ou pernas ou rins ou fígado forem ruins, também a cabeça sofrerá a
consequência das doenças. Assim, homens bons podem se tornar maus governantes; eles
podem ficar piores quando se tornam reis de homens maus; donde o ditado greco-romano
e judeu-cristão de que o povo tem o governante que merece.
Ora, esse raciocínio já havia aparecido antes, quando Vicente explicava por que
os homens, iguais por natureza, ficaram desiguais depois do pecado: há uma ordem no
mérito (os melhores governam os piores) e uma ordem no demérito (os piores acabam
piorando os melhores): o mérito supõe a recompensa, o demérito, a punição. No fundo,
a questão continua sendo a do pecado original: internamente desordenados, os homens
fazem o mundo todo se desordenar, inclusive os reinos; Vicente já prepara, no capítulo V,
a continuação da resposta dada no capítulo VI: Deus só pode dar coisas boas, mas há pes-
soas que merecem receber o mal; então, é preciso que haja um intermediário entre o Bem
e o mal para dar a cada um o que lhe é devido. Assim, o mau governante é a forma que a
providência divina encontrou para castigar os maus. Neste ponto, Vicente se vale de uma
longa citação de Santo Agostinho (De diversis quaestionibus octoginta tribus liber unus), da
qual destaco a seguinte passagem: “Lex naturalis transcripta est in animam rationalem” (“a
lei natural foi transcrita na alma racional”), na qual “alma racional” é sinônimo do próprio
gênero humano.
Em termos agostinianos, a lei natural é a lei que não depende de nenhum legislador
humano, que não foi feita por assembleias constituintes e, por isso, não está escrita em li-
vro algum; está escrita na natureza, isto é, na criação, porque seu autor é Deus e Deus se dá
a conhecer pela sua criação; esta lei natural é acessível aos homens porque ela está inscrita
nas consciências; em outras palavras, todo homem, pelo fato de ser homem, é capaz de
distinguir o bem do mal mesmo que seja um analfabeto e mesmo que viva isolado.
É no Comentário ao salmo 57 que Agostinho destrincha a questão: é lei natural aquilo
que se diz: “não faças ao outro aquilo que não queres que te façam”; segundo Agostinho,
este preceito já era verdadeiro muito antes de ser escrito na bíblia; e por que precisou ser
escrito? Porque os homens deixaram de ouvir a própria consciência. Por quê? Porque,
depois do pecado, o homem exteriorizou-se, fugiu de si mesmo; Agostinho escreve no
comentário ao salmo: “não digo que não estivesse escrita nos corações, mas tu eras um
fugitivo de teu próprio coração”. Dito de outro modo, o homem que não ouve a voz de sua
consciência erra; e ao errar torna-se merecedor de castigo porque Deus dá a cada um o
que merecem suas obras: está aqui a justificativa proposta por Vicente de Beauvais para
explicar a maldade de certos reis.

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Toda essa argumentação sobre a função teológica do mau governante permite que,
à contra-luz e como num espelho, possamos vislumbrar os traços do bom governante:
no entendimento vicentino, o bom governante é aquele que faculta ao súdito ouvir a voz
da própria consciência, isto é, respeitar a lei natural, a fim de agir corretamente. Ora, le-
var o súdito a ouvir a consciência não era propriamente um atributo régio, muito menos
político, que não lida com a dimensão interior dos cidadãos, mas com os mecanismos
da sociabilidade: tal procedimento, portanto, não é originário da experiência histórica
greco-romana, mas do Israel bíblico que invocava um Deus-pastor e, de bom ou mau gra-
do, atribuía aos reis uma espécie de pastorado. A dinâmica ascética cristã, sobretudo em
contexto monástico, maximizou a compreensão de governo, enquanto governo pastoral,
pois tratava-se de ajudar a alma-ovelha a encontrar a melhor pastagem, isto é, o estilo de
vida mais conveniente à sua condição: o abade, como líder de um rebanho de monges,
ou então o bispo, como líder de uma comunidade de cristãos, dirigia a consciência ou a
interioridade de seus filhos espirituais, normatizando seus afetos e suas ações em âmbi-
to comunitário. A transposição da compreensão monástica de governo das almas para
o governo dos súditos não demorou muito e já vemos delineadas as referências mestras
em obras como as de Gregório Magno, Isidoro de Sevilha, Jonas de Órleans, Bernardo de
Claraval, João de Salisbury, Vicente de Beauvais, entre outros. Desse ponto de vista, o bom
governante é o rei-pastor.
Michel Foucault (2003) e Michel Senellart (2006) mostram que o governo pastoral se
exerce sobre pessoas, não sobre coisas, como território ou instituições; é nesse sentido que
Vicente de Beauvais confirma os pressupostos do pastorado régio: tanto o bom quanto o
mau rei exercem seu ofício sobre pessoas! No sentido individual e coletivo.
É aqui que a autoridade de Agostinho retorna, pela evocação do Livro das Oitenta
e três questões (De diversis quaestionibus octoginta tribus liber unus): Agostinho discorre
sobre alguém que faz um pacto de paz com seu inimigo e depois descumpre o pacto; ele
enganou e, portanto, merece ser enganado; quem vai enganá-lo? Deus? Não, Deus é in-
capaz de enganar. Um homem justo? Não, o homem justo não volta atrás do que disse. É
preciso que haja um homem traidor, um mentiroso, um homem escravo de suas paixões,
internamente desordenado que já não saiba mais distinguir o bem do mal. Esse homem
será como o carrasco que executa a sentença de morte que ninguém quer executar, apesar
de a condenação ter sido justa. Vicente de Beauvais se apropria da citação de Agostinho,
que nada tem a ver com a questão dos maus reis, e a transpõe para a análise da realeza; os
maus reis existem para castigar os homens maus.
O capítulo VI tem também um grande problema para resolver: se os reis maus são
instrumentos de Deus para fazer justiça, merecem eles a recompensa? A questão é séria,
pois Vicente afirmara que cada um recebe aquilo que merece. Nesse caso, Vicente precisou
estabelecer uma diferença entre intenção [intentio] e ação [actio]: a ação pode ser meritó-
ria, mas se foi feita com má intenção, aquele que agiu mal perde completamente seu méri-
to; Vicente toma o exemplo bíblico do rei Senaquerib que, aliás, é uma história complicada.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 35


Segundo o capítulo dez do Livro de Isaías, Deus usou Senaquerib, rei da Assíria,
como uma vara ou bastão para castigar o povo de Israel que se afastara da justiça (opressão
de órfãos e viúvas, confisco de bens dos fracos e pobres, etc.): esta foi a interpretação do
profeta; na verdade, Senaquerib não tinha a menor ideia da vontade do Deus de Israel; ele
invadiu o país por volta de 701 a.C. para dominá-lo e saqueá-lo; não o fez para obedecer a
Deus, mas para satisfazer sua ganância; nesse caso, a intenção de Senaquerib era dominar,
sua ação foi destruir, portanto, houve uma má intenção e uma má ação; por isso ele mere-
ce o castigo (enquanto executor de má ação com má intenção).
Ora, aqui reside um ponto complicado da filosofia judaico-cristã da história: há
uma providência que tudo conhece e tudo sabe, mas essa mesma providência também
concedeu a cada homem o livre arbítrio, pelo qual o querer divino não anula o querer
humano; enquanto detentor de livre arbítrio, Senaquerib agiu mal e pagou por isso, mas
Deus, enquanto providência, usou o rei como um vara: a vara não sabe o que pensa o seu
manipulador e, por isso, apesar de imperfeita, a vara pode ser usada de maneira perfeita.
Além disso, Senaquerib, Nabucodonosor ou o faraó do Egito, que foram reis opressores
de Israel, só foram reis por causa da vontade divina, fazendo valer a autoridade evangélica
que afirmava que “não há poder que não tenha vindo de Deus”. Se a fonte do poder é boa,
mesmo que a ação do príncipe seja má e feita com má intenção, ele pode colaborar com o
projeto de Deus de salvar os seus eleitos.
Esse projeto divino de salvação diz respeito a cada homem, em particular, e a todos,
coletivamente (omnes et singulatim, como encontramos no texto de Michel Foucault): Deus
cuida de um homem chamado José do mesmo jeito que cuida de Jerusalém e que cuida de
Israel e que cuida do Oriente, da Ásia, do mundo inteiro; se ele perdoa os pecados de um
pecador, perdoa também os pecados da cidade, do reino, do mundo; se concede um anjo da
guarda a cada homem, o concede a cada cidade e a cada reino; se ele pode usar um homem
como instrumento, pode usar também uma cidade e um reino para fazer o bem, ainda que
esses instrumentos não saibam a intenção oculta de Deus.
Assim, apesar de instâncias negativas, o reino e o rei adquirem significado positivo
quando vistos sub specie aeternitatis: esse é o caminho tomado por Vicente para discorrer
sobre um tema que, para ele, era tanto mais urgente quanto mais premente. Ao negar po-
sitividade às estruturas e procedimentos políticos, o frade Pregador não invalidava a par-
ticipação régia ou estatal naquilo que era fundamentalmente positivo, a vida das almas.
Não sem razão, escreveu ele, no capítulo IX: “de nossa parte, ao contrário, não falamos
todas essas coisas para reprovar ou repreender o poder [dos reis]. Pois, como disse aquele
sábio: ‘Deus não despreza os poderosos porque ele mesmo é poderoso’. Em verdade, que-
remos dissuadir os homens de seu apetite ou amor pelo poder”.3 Desse modo, o ministério

3 Nos autem non ideo hec omnia inculcavimus ut potestatem reprobemus aut reprehendamus. Nam, ut ait quidem
sapiens: Deus potentes non abicit cum et ipse sit potens [Jó 36, 5]. Verum homines eius appetitu vel amore deterrere inten-
dimus (…). (VICENTE DE BEAUVAIS, 2008:86)

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sobre as almas, que faz o rei se tornar um pastor, lhe reserva um posto muito superior,
porque mais antigo. O poder não pode ser amado porque é terreno, e é terreno no sentido
de que passou a existir na ordem terrena, isto é, na ordem temporal ou no mundo após o
pecado: esse mundo irá desaparecer.
Reservando ao rei um papel junto às consciências (e junto às almas), Vicente de Be-
auvais reafirma a tradicional sobreposição de auctoritas [autoridade] e potestas [poder]:
a primeira permanece porque está ligada ao princípio fundante, Deus. O segundo é tran-
sitório porque surgiu em consequência do afastamento do princípio fundante: potestas
é aquela operação coercitiva que visa ordenar a sociedade em vista da auctoritas, como
Vicente expõe nos capítulos V e VI. Desse ponto de vista, a autoridade está na Igreja, o
poder, no reino; a primeira é eterna, o segundo perecível; amar o poder terreno é como
se apaixonar por um desenho nas nuvens. Se a autoridade está na Igreja, é ela que deve
restaurar a ordem temporal, incluindo aí os males da corte, os defeitos do poder régio: a
ecclesia [igreja], entendida em seu sentido espiritual e místico, é aquela sociedade em que
a charitas [o amor] não sofreu a depravação da ambitio [do desejo descontrolado]; por
isso, a ecclesia é a restauradora por excelência e o rei é um ministro dela.
Se temos visto que Vicente é um grande agostiniano, pois para ele o fruto do pecado
é a exteriorização do homem que impede que ele se veja como é, percebemos também
que o dominicano acrescenta à lógica de Agostinho o tema da máscara, que encontramos
em Sêneca. O homem exterior usa uma máscara para aparecer, na frente dos outros, dife-
rente do que é; o homem interior, ao contrário, não precisa de máscara, nem de fantasia
ou roupas requintadas; o homem interior, como vimos, não precisa nem mesmo das leis
positivas, pois ele sempre é capaz de ouvir a voz da consciência; já o homem exterior, “é
um fugitivo do próprio coração”: daí que precisa da potestas, isto é, da coerção física. A
meu ver, Vicente de Beauvais vai gradativamente conferindo um novo sentido à dinâmica
de fundação da res publica que, uma vez tendo sido fundada, não desaparece mais. O novo
sentido é mais propriamente uma transposição, pois Vicente desencarna a res publica, da
mesma forma que desencarna o rei.
Em Vicente de Beauvais, o pregador e o politólogo deram-se as mãos para sustentar
as práticas de governo de Luís IX, rei de França, cultuado como rei santo, defensor da cris-
tandade latina, inclusive no Oriente. O discurso do frade, além de isentar a bíblia de con-
tradições, procurava justificar e legitimar os maus reis da dinastia merovíngia e carolíngia,
de cuja linhagem Vicente acredita que vieram os reis capetíngios, como Luís IX. Podemos
também dizer que Vicente justificava e legitimava as ações belicosas do rei santo, em suas
muitas campanhas de cruzada. Não à toa, Vicente recorre a Graciano para dizer que o der-
ramamento de sangue causado pelas guerras, quando é diretamente um mandato divino
e quando claramente se faz para cumprir a justiça divina é uma ação sem culpa. Enfim, a
obra política de Vicente de Beauvais se insere naquela perspectiva ética antiga, ressigni-
ficada pela tradição cristã e, no século XIII, novamente interpretada tendo em vista um
tipo de realeza que já não aceita mais ser vista como instrumento da justiça divina e espera

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também governar segundo as conveniências e os interesses da experiência social, como
podemos encontrar no Dialogus inter regem Henricum II et Abbatem Bonaevallensem, de
Petro de Blois. Se é certo dizer que as premissas políticas de Vicente de Beauvais indicam
um plano discursivo prestes a ser abandonado, talvez não consigamos entender por que
suas obras foram intensamente lidas e copiadas sobretudo a partir do século XIV e, com a
invenção da imprensa, no séc. XV, receberam ainda mais divulgação e notoriedade.

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VICENTE DE BEAUVAIS. De la formación moral del principe. Edición bilingüe preparada por
Carmen Teresa Pabón de Acuña. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 2008. vol. 680.

* André L. Pereira Miatello é professor de História Medieval da Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: < andremiatello@gmail.com>.

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Ockham leitor da

Política de Aristóteles

CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA*

Resumo: O artigo trata do relato feito por Guilherme de Ockham sobre a distinção, proposta na Política
de Aristóteles, de três comunidades que são o ponto de partida da análise sobre as formas “temperadas” e
“corrompidas” de governo (“policiae”) segundo as quais a cidade (“civitas”) pode ser governada. É também
proposta uma análise que visa destacar algumas das particularidades da leitura ockhamiana deste tema.
PALAVRAS-CHAVE: GUILHERME DE OCKHAM, POLÍTICA, ARISTÓTELES, CIDADE (“CIVITAS”),
FORMAS DE GOVERNO (“POLICIAE”)

Ockham reader of Aristotle’s Politics


Abstract: This paper deals with William of Ockham’s exposition of the distinction between three “commu-
nities” which are the starting points of the analysis of the main “temperate” and “corrupted” types of govern-
ment or “constitutions” (“policiae”) of the City (“civitas”) in Aristotle’s Politics. An analysis which shows
more accurately some of the particularities on the Ockhamian interpretation of this subject is also proposed.
KEYWORDS: WILLIAM OF OCKHAM, POLITICS, ARISTOTLE, CITY (“CIVITAS”), CONSTITU-
TION (“POLICIA”)

É já bastante conhecida dos estudos sobre a filosofia medieval a narrativa segundo a


qual a trajetória intelectual de Guilherme de Ockham (ca. 1228-1347) acabou, levada pela so-
matória de uma série de acasos, cindida em duas fases bem demarcadas. A primeira selou-se
dedicada à elaboração das bases de seu “nominalismo”, por meio da redação de seus traba-
lhos filosóficos e teológicos. A segunda foi forçosamente voltada à “polêmica” que Ockham
sustentou contra o Papado, na qual foram redigidos todos os seus escritos políticos. Em
comum para a história posterior, as duas fases deixaram para leitores e intérpretes da obra
ockhamiana a dificuldade de bem julgar os limites e as especificidades de sua proposta.
Mais particularmente no que diz respeito às obras políticas, ainda em 1974, McGrade
(2002, p. 28 ss.) aponta a variedade e discrepância das leituras que propuseram caracterizar
essas obras desde como o retrato de um laicista que, por meio de suas polêmicas com o
papado, “destruiu a ordem social medieval”; ou, no exato oposto, de um teólogo, antes que
interessado, exasperado com questões políticas às quais se voltou apenas quando as cir-
cunstâncias o obrigaram e, ainda assim, apenas do ponto de vista de sua teologia, até como
a descrição de uma figura tão multifacetada que, ao mesmo tempo em que permite enxer-
gar seu autor como um “expoente de ideias clássicas e modernas como equidade, utilidade
pública e razão de estado”, mostra-o como um “reverente defensor da tradição medieval”.
É fato, porém, que é também bastante recente seja o acesso a versões mais confiáveis
das obras ockhamianas, seja a própria descoberta do rol completo dessas obras. Basta
lembrar que as obras filosóficas e teológicas, correspondentes à primeira fase da vida de
Ockham, foram apresentadas em sua totalidade numa edição “crítica”, que se propôs dis-
tinguir obras originais de duvidosas e “espúrias”, apenas no final da década de 1980. Já os
escritos políticos sequer foram ainda totalmente editados. Natural, portanto, a dificuldade
de avaliar uma obra que, ainda hoje, não está completamente acessível.
No que diz respeito, estreitando um pouco mais a nossa consideração, ao tema que
nos propomos expor, há ainda que se julgar a melhor abordagem dos textos a serem con-
siderados. Afinal, segundo uma leitura que até há pouco não parece ter sido contestada
(proposta por Boehner, 1943, p. 466 s. e corroborada, por exemplo, em Ghisalberti, 1997,
p. 2721 e Souza, 2002, p. 11 s.), o leitor deve ainda separar os escritos políticos de Ockham
em ao menos dois grupos: o primeiro contendo aqueles que claramente desvelam o pen-
samento ockhamiano e o segundo aqueles outros que não passariam “de meras discussões
do problema sem revelar a opinião pessoal do autor”. Entre esses últimos, estaria o Dia-
logus, o principal objeto de nossa análise, além das Oito questões sobre o poder do Papa.
Dado que a descrição que caracteriza essa divisão não seja isenta de dificuldades,
talvez seja proveitoso tomar como ponto de partida a descrição oferecida em Shogimen,
2007, p. 159: de um lado, há os escritos polêmicos de Ockham que contêm afirmações mais
enfáticas, uma crítica direta e se pretendem uma espécie de alerta sobre o perigo potencial
das posições combatidas, correspondentes ao primeiro grupo há pouco mencionado. De
outro lado, estão os escritos mais sistemáticos e abrangentes, tais como o Dialogus, des-
crito por Shogimen como uma “discussão enciclopédica” e “impessoal do poder papal na
forma de um diálogo entre Mestre e Discípulo”, ou melhor, entre professor e aluno. Resta-
ria ver, portanto, se a diferença relatada pode acarretar qualquer dificuldade para a iden-
tificação da posição de Ockham nos textos pertencentes a esse segundo grupo, como por
vezes se pretende sugerir, ou se não seria, antes, nada mais do que a simples constatação da
diversidade de estilos na composição das obras analisadas. Ou seja, é preciso verificar se o

1 Na tradução apontada do texto de Ghisalberti é, porém, evidente a omissão de uma negação que dá sentido à expo-
sição. Assim, à página 272, deve-se ler: “… Os primeiros dois [isto é, o Dialogus e as Oito questões sobre o poder do Papa]
não contém uma exposição direta do pensamento do autor …”.

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caráter “impessoal” e “enciclopédico” da exposição pode nos oferecer algo mais do que a
simples coleção de um amontoado de opiniões…

***

A seção do Dialogus que iremos tratar aqui é um trecho da única parte desta obra
que veio a lume como resultado da edição crítica atualmente capitaneada pelo Comitê de
Textos Medievais da Academia Britânica, e foi publicada apenas em 2011. Há, porém, uma
tradução dessa seção para o inglês, (OCKHAM, 1995, p. 117-207) baseada numa versão
prévia da edição do texto latino agora publicada. O trecho (3.1 Dial. II)2 trata dos modos
de governo. O valor do texto escolhido para o presente artigo baseia-se no fato de que
ele apresenta a única análise, da qual se tem conhecimento, em que Ockham se dedica
mais extensamente à apresentação do texto da Política de Aristóteles, concentrada mais
detidamente nos capítulos 3 a 8 do trecho indicado, mas, ainda assim, retomada em várias
passagens de todo o livro II.3
Ali, a exposição do texto aristotélico é proposta como uma espécie de preparação ne-
cessária para a discussão do governo da Igreja. Aproximando da discussão dos textos bíbli-
cos e próprios do direito canônico os princípios da filosofia aristotélica, uma apresentação
geral da Política de Aristóteles aparece como necessária para o esclarecimento dos vários
termos gregos (e, portanto, propositadamente colocados como “exteriores” ao debate ecle-
sial) que vão circunstancialmente se fazendo presentes ao debate. De acordo com o relato
atribuído ao discípulo, a exposição do significado dessas palavras se faz necessária espe-
cialmente porque participam da discussão pessoas que são “apenas juristas e outros que
não tiveram nenhum contato com a filosofia moral”. (OCKHAM, 2011, p. 171; 3.1 Dial. II, 3)
A estratégia adotada, porém, é facilmente percebida. Antes que preencher lacunas
ou prestar auxílio a um eventual desconhecimento da filosofia de Aristóteles, a exposição
proposta visa dar vez a uma discussão que possa pôr a claro as próprias bases segundo as
quais Ockham entende tanto a filosofia aristotélica, quanto, num ajuste ainda mais amplo,
mostrar em que sentido deve ser interpretado até mesmo o que é proposto de acordo com
a tradição, os escritos e as leis pertinentes ao que é próprio da cultura eclesial.
Dado o texto, o interesse do leitor tenta ser provocado pelo próprio modo em que
a questão é apresentada. Afinal, segundo o mote proposto pelo discípulo, “dado que ele
[Aristóteles] tenha tratado em vários lugares sobre essa matéria e que se repute que tenha
procedido sensatamente muitas vezes, não será oferecida [por meio da exposição] uma

2 A referência remete à localização do texto independentemente da edição e/ou tradução empregada. Assim, por
exemplo, “3.1 Dial. II, 4” deve ser lida: “Dialogus, Parte 3, Tratado 1, Livro II, capítulo 4”. Sempre que conveniente, apon-
taremos a edição latina seguindo essa indicação mais geral.
3 “Referências explícitas à Política de Aristóteles são encontradas nos capítulos 2, 6, 7, 9 10, 13, 17 e 19; e à Ética Nico-
maquéia nos capítulos 1, 2, 6, 8, 13 e 20.” (Shogimen, 2007, p. 177, n. 111)

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pequena oportunidade aos estudiosos de entender quem, e de que modo, entre os católicos,
deve governar aos outros, tanto no que diz respeito ao espiritual, como no que diz respeito
ao temporal.” (ibidem, p. 172. O grifo é nosso)
Em outras palavras, Ockham parece indicar desde o início da discussão, ao menos
enquanto hipótese e ainda que pela personagem do aluno, a possibilidade da análise de
vários tipos de governo para a Igreja Católica. Hipótese que acabará se convertendo numa
possibilidade de fato, por meio da proposta de ao menos dois modelos, que, sob certas
circunstâncias, poderiam ser intercambiados de acordo com as necessidades históricas:
o pontificado (descrito como um “principado semelhante ao principado real”, ou seja, a
monarquia) e o governo (sc. “principatum”) aristocrático (vide, especialmente, Ockham,
2011, p. 203-209; 3.1 Dial. II, 20. Para um resumo da posição de Ockham nesse trecho, vide
Kilcullen, 1999, p. 314 s.)
Além disso, a formulação apresentada aponta a oportunidade de se discutir não só o
modo de governo segundo o qual os católicos devem ser regidos, mas inclusive de se pôr
em xeque o próprio perfil de quem deve governá-los. Saliente-se, ainda, que, apesar da re-
ferência ao espiritual e ao temporal, trata-se aqui de uma análise exclusiva do poder Papal,
sem que seja colocada em questão a importância – ou a extensão – do poder secular.
A exposição de Ockham toma como ponto de partida principalmente os livros I, III
e IV da Política de Aristóteles. Os assuntos tratados são basicamente dois: a formação da
cidade e as principais formas de governo e suas degenerações. Exatamente porque se trata
de uma exposição bastante sucinta, chamam a atenção os pontos escolhidos por Ockham
para serem enfatizados. Vejamos, ainda que resumidamente, quais são eles.

1. O natural e justo. A constituição da casa e a distinção dos


principados despótico, real e político

Em 3.1 Dial. II, 3, (OCKHAM, 2011, p. 172 ss.) respondendo ao apelo feito pelo “dis-
cípulo”, Ockham propõe-se a fazer um apanhado (“recitabo”) do que seria a “intenção de
Aristóteles segundo a opinião de alguns, embora nem todos concordem em tudo”. (ibidem,
p. 172) A fórmula segundo a qual se vê proposta a exposição é conhecida de outras passagens
do texto ockhamiano. Sua pretensão, porém, não é exatamente a de indicar alguma forma
de descompromisso do autor com o relatado, como pode parecer à primeira vista. Tal como
Ockham já teria anunciado no prólogo desse mesmo texto do Dialogus (em trecho, aliás,
que daria as razões do caráter “não polêmico” segundo o qual a obra foi propositadamente
elaborada), tal estratégia visaria antes fazer com que “a convicção que nasce da exposição
seja devida à evidência intelectual e não à autoridade.” (vide ESTÊVÃO, 1995, p. 5 s.)
As vantagens dessa estratégia já haviam sido anunciadas ainda mais explicitamente
por Ockham no Prólogo de seu Comentário para a Física de Aristóteles:

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 43


Na realidade, se bem que o Filósofo, graças ao auxílio divino, tenha
descoberto muitas e grandes coisas, misturou, levado pela fraqueza
humana, alguns erros com a verdade. Portanto, ninguém me atri-
bua as concepções que eu referir, pois que não procurarei expor o
meu parecer de acordo com a verdade católica, mas o que esse filósofo
aprovou ou o que acho que deveria aprovar segundo seus princípios.
Sem perigo espiritual, podem-se imputar ao pensamento de alguém
coisas diversas e até contrárias, desde que não seja um autor da Sa-
grada Escritura. Nem constitui depravação um erro nessa matéria.
Ao contrário, em tal interpretação cada um conserva sem risco a
liberdade do juízo. (OCKHAM, 1973, p. 341. Os grifos são nossos.)

Portanto, parece óbvio que, mesmo se as opiniões apresentadas, ainda que em linhas
gerais, puderem ser consideradas bastante aceites,4 há que se ponderar (aliás, como o pró-
prio Ockham parece insistir) que não há como não ver na exposição proposta o reflexo
do que venha a ser a opinião do próprio expositor. Afinal, por mais que se pretenda um
relator fiel da opinião alheia, o próprio autor não escapa de confessar que seu relato con-
tém tanto aquilo que declaradamente disse o Filósofo quanto aquilo que ele, relator, julga
que Aristóteles deveria ter dito. Consequentemente, antes que uma declaração de isenção,
trata-se de uma declaração de interesses: o relato não visa um ajuste daquilo que diz Aris-
tóteles com o que é defendido pela fé católica, mas, antes, uma exposição tanto do que é
dito pelo Filósofo como, quando necessário, daquilo que o relator entende que seria sua
posição. Em suma, o óbvio: não há exposição sem interpretação. Mais importante que os
“pontos comuns” com outros autores, portanto, é a devida avaliação da estratégia seguida
por Ockham em sua exposição.
Ockham inicia sua exposição do texto aristotélico lembrando que Aristóteles propõe
“três comunidades nas quais alguém (ou alguns) deve (ou devem) governar [sc. “princi-
pari”] aos outros.” (OCKHAM, 2011, p. 172) Trata-se da conhecida distinção proposta por
Aristóteles entre a casa, (tratada por Ockham ainda em 3.1 Dial. II, 3) a vila (3.1 Dial. II,
4) e a cidade. (3.1 Dial. II, 5) Logo de partida, Ockham aponta que a casa abarcaria ain-
da outras três “combinações, comunidades ou conjugações”: a relação entre o esposo e a
esposa, chamada por Aristóteles de “nupcial”, a relação entre o pai e o filho, que pode ser
chamada de “paterna”, mas que, no vocabulário empregado por Aristóteles seria chamada
de “celmostina”, ou seja, “formativa dos filhos” (“factiva filiorum”), e, por fim, a relação
entre o senhor e o escravo, chamada por Aristóteles de “despótica”.
O cuidado com a apresentação exata dos vocábulos, que, aliás, já havia sido anuncia-
do como a principal tarefa dessa exposição, dá vez à apresentação do que parece ser a base

4 Shogimen, 2007, p. 177 s., por exemplo, afirma que, em linhas gerais (“although their reasons varied”), a interpre-
tação visada por Ockham compartilha a de vários pensadores políticos da escolástica, apontando até mesmo pontos
comuns às exposições de Ockham e de Tomás de Aquino.

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de um dos principais temas do capítulo: a explicação do sentido de dominium, termo que
aparece na descrição da relação existente entre o senhor (“dominus”) e o escravo.5 Logo
após alcunhar a relação entre o senhor e o escravo de despótica, tal como, no mais, o faz o
próprio Aristóteles, Ockham propõe uma importante observação:

Aristóteles chama a terceira [combinação, entre o senhor e o es-


cravo,] de “despótica”, isto é, senhorial [ou dominativa]; com efeito,
“déspota” é o mesmo que “senhor”, e o principado despótico é o
principado senhorial [“dominativo” ou “de domínio”: “principatus
dominativus”]. (OCKHAM, 2011, p. 172. O grifo é nosso)

O objetivo dessa observação/paráfrase é declarado logo em seguida: a palavra “do-


mínio” (/“senhorio”) e seus cognatos têm acepções equívocas no seu emprego na “filosofia
natural e moral, bem como nas ciências legais e na fala vulgar, a qual é frequentemente
empregada pelas Divinas Escrituras.” (Grifo nosso) Uma vez apontada a relação entre o
termo “déspota”, oriundo do grego, e o termo “senhor” (“dominus”), Ockham defende ser
importante saber que, no contexto que nos interessa, isto é, na análise política, o termo “se-
nhor” pode ser encontrado na Política de Aristóteles em ao menos dois sentidos diversos.
No primeiro deles, “senhor” não poderia ser identificado com o que Aristóteles cha-
ma de “déspota”, nem o principado no qual ele “governa” (“principatur”) seria chamado
por Aristóteles de “despótico”. Nesse sentido, “senhor” é aquele que domina os sujeitados
(literalmente, sujeitos) livres “não principalmente segundo o que é útil para si, mas princi-
palmente segundo o que é útil para os súditos”. (OCKHAM, 2011, p. 172)
No segundo sentido, “senhor” pode ser identificado com o que Aristóteles chama de
déspota, e seu principado, com o principado despótico. Trata-se do senhor “com respeito
aos sujeitados não livres, mas servos, que são posses do senhor tal como outras coisas
temporais são chamadas a posse de alguém”:

Tal déspota, assim como possui outras coisas em vista do que é


útil para si e não do que é útil para elas, assim governa os servos
principalmente em vista do que é útil para si e não principalmente
em vista do que é útil para os servos (apesar de frequentemente, se-
gundo Aristóteles, o que é conveniente para o servo o ser também
para o senhor). (ibidem, p. 173)

A distinção entre os dois sentidos de domínio se mostra importante principalmen-


te quando se constata que, na Política, o domínio é atribuído ao rei. Segundo Ockham,

5 Note-se que o termo latino “dominus” e seus cognatos podem tanto ser vertidos pelos cognatos de domínio como
pelos cognatos de senhorio, em português.

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embora possa ser encontrado no texto aristotélico que o rei é o senhor daqueles que são
sujeitados a ele, jamais se deve considerar que o rei seja chamado de despótico ou que o
principado real seja confundido com o despótico. E se considerarmos mais atentamente
o texto de Ockham, veremos que essa confusão entre o despotismo e o senhorio do rei
parece poder se dar por duas razões. Uma é a equivocidade já apontada do termo “domi-
nium” e de seus cognatos. Outra, ainda não mencionada, é a identificação que, segundo
Ockham, pode ocorrer entre o principado despótico e o principado tirânico (lembre-se
que a tirania, para Aristóteles, é uma degeneração da monarquia. Consequentemente, o
tirano não é senão uma degeneração da figura do rei.).
Ockham relata que o principado tirânico às vezes é chamado de despótico em razão
de uma grande semelhança existente entre esses dois tipos de principado, mas essa iden-
tificação tomaria o principado despótico num sentido inadequado. Assim, para traçar
melhor a diferença entre os dois principados, Ockham retoma a caracterização da relação
de senhorio própria do principado despótico. Em sua interpretação, Aristóteles teria con-
siderado que são servos de modo justo

“tanto aqueles que carecem de razão de modo que não sabem reger
a si mesmos, ainda que sejam robustos de corpo a ponto de poder
se dedicar a outros (os quais, segundo Aristóteles, são ditos serem
naturalmente servos), quanto aqueles que são servos segundo a lei
justa, porque são aprisionados na guerra justa ou são, de algum
outro modo, feitos servos de outros”. (Ockham, 2011, p. 173)

Nessa caracterização, Ockham declaradamente pretende destacar um único ponto: a


característica do principado despótico é a justiça segundo a qual se dá a sujeição do servo.
“Desse modo, o principado despótico, que se dá unicamente a respeito de tais servos, tan-
to é justo como lícito e bom”. Por outro lado, o principado tirânico caracteriza-se por ser
“injusto, ilícito e mal; donde, também segundo Aristóteles, a tirania é uma péssima forma
de política [sc. “pessima policia”].” (vide Ockham, ibidem, p. 173).
Vistas as características do principado (/governo) despótico ou “senhorial”, Ockham
passa à análise da caracterização de outro tipo de principado, próprio da relação entre pai
e filhos. Trata-se do principado paterno, que governa os filhos enquanto livres, ou seja,
não como servos. Aqui, a atenção de Ockham se voltará ao esclarecimento da qualificação
atribuída por Aristóteles a esse tipo de principado. Com efeito, diferenciando-o do prin-
cipado despótico, é facilmente constatável que Aristóteles teria, várias vezes no primeiro
livro da Política, dado ao governo dos filhos “enquanto livres” o nome de principado real
(isto é, régio).
O problema visto por Ockham quanto a isso é o de que a relação entre pai e filhos
não parece contemplar todos os aspectos que permitem a caracterização do principado
real senão sob circunstâncias muito específicas. Em outras palavras, na interpretação de

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Ockham, o principado real parece ter um caráter diverso daquilo que é próprio ao princi-
pado paterno, “uma vez que o principado real não se dá senão a respeito da cidade ou do
reino (que é maior que a cidade e no mais das vezes engloba muitas cidades)”. A princípio,
esse “caráter” não parece estar baseado em nada mais que uma relação quantitativa. Ape-
nas se diria que o pai governa os filhos regiamente quando a casa na qual se dá o principa-
do não fizer parte de uma vila, uma cidade ou um reino, ou seja, “quando a casa não for
parte de uma comunidade mais perfeita”; sendo que “perfeita” não é tomada inicialmente
noutro sentido que o de “mais completa”, ou seja, em suma, maior. O exemplo dado para
ilustrar tal principado é o dos governos de Adão e de Noé, que só poderiam ter sido cha-
mados de régios enquanto eles governaram seus filhos antes destes terem constituído suas
próprias casas. Ainda assim, ressalta Ockham, esse tipo de “governo”, ou, retomando mais
fielmente o termo latino, “principado”, não poderia ser chamado de real se tomássemos
esse último termo numa acepção estrita. Mas, ainda que, em certo sentido, falsa, Ockham
aponta que não é sem motivo que o próprio Aristóteles propõe essa identificação entre o
principado paterno e o real: de fato, existe uma “grande semelhança [do principado pater-
no] com o principado real considerado estritamente”.
Ou seja, Ockham denuncia estar na base dessa confusão um jogo de definições pró-
prio daquele que distingue definições latas de estritas. Afinal, se o principado paterno
não pode ser considerado um principado real quando tomada uma acepção estrita do
que venha a ser um principado real, é exatamente porque o principado paterno é muito
semelhante ao principado real tomado nesta acepção estrita que costuma ocorrer a iden-
tificação entre os dois. Falta, portanto, pôr às claras a medida segundo a qual será possível
aferir essa diferença.
Ockham o faz propondo um segundo critério, que desta vez nada tem de quantitati-
vo, na classificação do principado real. Segundo esse novo critério, que Ockham alega po-
der ser encontrado no capítulo 15 do terceiro livro da Política de Aristóteles, apenas pode
ser chamado, de modo mais adequado e autêntico, de “rei” aquele que governa “a todos os
livres – principalmente em razão do que é útil para os sujeitados – segundo a sua vontade,
não segundo a lei”: o rei não tem de se submeter à lei.Assim, quando a casa não faz parte
de uma comunidade mais perfeita, o pai governa os filhos “de acordo com o que é útil para
eles”. Caracteriza esse governo o fato de que ele se dá de acordo com a vontade do próprio
pai, não segundo uma lei, donde a possibilidade desse governo ser em certo sentido cha-
mado de principado real. No entanto, e aqui segue a razão de toda a dificuldade envolvida,
quando a casa faz parte de uma comunidade mais perfeita, ainda que governe os filhos
“de acordo com o que é útil para eles”, nem sempre o pai poderá fazê-lo de acordo com
sua própria vontade, por exemplo, impondo ao delito cometido pelos filhos o castigo que
achar mais conveniente, mas terá de aceitar e seguir o que a eles for imposto por aquele
que rege ou a vila, ou a cidade, ou o reino. (cf. OCKHAM, 2011, p. 174) Neste sentido, o
principado paterno diz menos respeito ao principado régio que àquela primeira definição
de “senhorio” (“dominium”), segundo a qual é senhor “aquele que domina os sujeitados

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livres não principalmente segundo o que é útil para si, mas principalmente segundo o que
é útil para eles”.
A última relação analisada é a existente entre o esposo e a esposa, na qual será pro-
posta uma curiosa definição de natureza. Inicialmente, Ockham se preocupa em traçar a
especificidade dessa relação. Em primeiro lugar, afirma que a relação entre o esposo e a
esposa não pode ser caracterizada como despótica porque a esposa não é serva do esposo.
Depois, acrescenta que essa relação também não pode ser caracterizada como real, tanto
porque o esposo não deve governar a esposa segundo a vontade dele, mas deve fazê-lo se-
gundo “a lei do matrimônio”, como porque o esposo “não tem tanto poder sobre a esposa
quanto tem o pai sobre os filhos”. Isso observado, a descrição do que é próprio ao princi-
pado do esposo para com a esposa é dada numa sentença breve: “quando a sua casa não é
parte de uma comunidade mais perfeita, o esposo então governa a esposa pelo principado
político.” (vide OCKHAM, 2011, p. 174)
A alusão às dificuldades de interpretação apresentadas quando da identificação do
poder paterno e real não parece poder ser negligenciada aqui. Em suma, de modo seme-
lhante àquele descrito na relação entre o principado paterno e o real, o principado do
esposo para a esposa parece guardar certas características comuns às do principado polí-
tico, embora não possa ser confundido com ele. A semelhança entre os dois estaria no fato
de que o principado político é definido por Ockham como o principado em que os que
governam “sobressaem-se, segundo a virtude e a sabedoria, aos que são sujeitados a si”,
(fórmula praticamente idêntica à que propõe o melhor tipo de governo aristocrático: cf. 3.1
Dial. II, 7)6 enquanto o principado do esposo para a esposa seria definido como aquele em
que “naturalmente o esposo ultrapassa a esposa segundo a sabedoria e a virtude – a não
ser que algo aconteça contra a natureza, conforme Aristóteles em Política I, cap. 10,7 assim
como acontece com os homens afeminados”. (OCKHAM, 2011, p. 174. O grifo é nosso.)
Se, de um lado, a principal diferença entre o principado nupcial e o político não
parece ir além de um dado meramente quantitativo (o principado político é relativo a
mais sujeitados que o principado nupcial) unido à caracterização específica da “lei ma-
trimonial”, por outro, chama a atenção a admissão do papel da natureza como fiadora da
validade de tal principado: é ela que garante a própria justiça do principado. Estendendo
essa característica para todos os tipos de principado relatados, Ockham afirma que se a
natureza falhar para o governante, nenhum principado sob seu comando será natural-
mente justo, seja ele nupcial, paterno ou despótico. Em contrapartida, se a natureza não

6 A caracterização da relação entre esposo e esposa como aristocrática é literalmente proposta por Aristóteles na
Ética Nicomaquéia: (Aristótes, 1959, p. 413 s. [VIII, 12, 1160b 33 – 11161a 1]) “A comunidade do marido e de sua mulher
parece ser de tipo aristocrático (o marido exercendo a autoridade em razão da dignidade de seu sexo, e nas matérias em
que a mão de um homem deve se fazer sentir; mas os trabalhos que convêm a uma mulher, ele os abandona). Quando
o marido estende sua dominação sobre todas as coisas, ele transforma a comunidade conjugal em oligarquia (dado que
ele age desse modo violando aquilo que cabe a cada casal, e não em virtude de sua superioridade).”
7 Mais exatamente: cap. 12, 1259b 1-3.

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falta ao esposo, pai ou déspota, seus principados são naturais: “isto é, provenientes não da
instituição humana, mas da razão natural”. (OCKHAM, ibidem. O grifo é nosso.)
Também merecem atenção tanto o modo segundo o qual a natureza do homem é
descrita como superior à da mulher como o exemplo que ilustra o caso do homem que
possui uma natureza “falha”. Quanto ao primeiro ponto, facilmente se percebe que a leitura
proposta por Ockham diverge ligeiramente do que é encontrado em certas traduções mais
recentes da Política de Aristóteles. Na tradução inglesa, por exemplo, encontramos a se-
guinte lição, repetida, com poucas nuances, em várias outras traduções contemporâneas:8

Pois embora possa haver exceções para a ordem da natureza, o


homem é, por natureza, mais apto para o comando [sc. “fitter for
command”] que a mulher, assim como o mais velho e maduro é su-
perior ao jovem e mais imaturo. (ARISTÓTELES, 1952, p. 22; 1259b
1-4. O grifo é nosso.)

Mas essa lição não parece corresponder exatamente àquela que foi tomada pelos co-
mentários medievais, que seguem a tradução (completa) de Guilherme de Moerbeke9 – à
qual, diga-se, não se sabe se Ockham teve acesso direto – que traz a seguinte versão para
o trecho que acabamos de citar:

Com efeito, o macho é por natureza mais preeminente que a fêmea,


a não ser que se dê de outro modo contra a natureza, bem como o
mais velho e perfeito o é que o mais novo e imperfeito. (ARISTÓ-
TELES, 1872, p. 49. O grifo é nosso)

A principal diferença parece estar no fato de que “preeminente”, ou melhor, o termo


latino “principalior”, empregado originalmente por Moerbeke e que tentamos traduzir por
aquela palavra, abarca um campo semântico maior do que o sugerido pelas traduções
lembradas.10 “Principalior” é um comparativo que remete tanto à significação de supe-
rioridade, como também aponta, pela própria raiz da palavra, uma relação com o que é

8 Por exemplo, além de Aristóteles1952, também 1984, 1985, 1993, 2008.


9 É de Moerbeke a primeira tradução da Política de Aristóteles para o latim. Ele foi responsável pela elaboração de
duas versões: a primeira, incompleta, data de 1264 e contém apenas os dois primeiros livros. A segunda, completa, data
de aproximadamente 1269.
10 No que diz respeito às traduções latinas imediatamente sequentes à de Moerbeke, a tradução de Leonardo Bruni, de
1437, adota nesse trecho a mesma solução da versão medieval, apesar de omitir a cláusula “por natureza” (cf. a tradução
de Bruni em Alberto Magno, 1891, p. 70). Provavelmente, o primeiro a propor uma tradução do trecho em pauta mais
assemelhada à encontrada nas versões contemporâneas foi Joaquim Perion, que traduziu a Política aristotélica em torno
do ano de 1540. Em sua versão, vê-se uma solução perifrástica para a tradução do termo em questão: “Pois o macho é
por natureza mais apto ao principado que a fêmea, …” – “Nam et mas ad prinpatum aptior est natura, quam foemina
…” (Aristóteles, 1557, livro I, cap. 8. Grifo nosso.), no que é seguido, pouco depois, em 1585, por Denys Lambin: “… pois
o macho é por natureza mais apto para obter o principado que a fêmea, …” – “Nam et mas ad principatum obtinendum
aptior est quam foemina, natura …”. (Aristóteles, 1810, p. 400. O grifo é nosso.)

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próprio do príncipe ou soberano. Assim, na tradução latina, a relação da palavra com a
ideia de comando, que parece ser a principal sugerida por traduções mais recentes,11 não é
senão um dos aspectos contemplados pelo termo.
Ao afirmar que “o esposo naturalmente ultrapassa [sc. “excedit”] a esposa segundo a
sabedoria e a virtude”, Ockham decide interpretar a “preeminência natural” do texto aris-
totélico como uma superioridade no sentido intelectual e moral, sem envolver diretamente
nessa consideração os aspectos relativos a uma possível “dignidade de ofício” (como suge-
re, por exemplo, o texto citado da Ética) ou mesmo seu caráter prático. Porém, ainda assim,
ao fazer isso ele não parece afastar-se do que, de fato, era uma interpretação corrente do
texto, que já havia sido proposta, por exemplo, por Alberto Magno em seu Comentário
para a Política de Aristóteles (aliás, o primeiro comentário medieval dedicado a esse livro
aristotélico). Comentando a passagem destacada do texto aristotélico, Alberto teria escrito:

E [Aristóteles] acrescenta a razão dos governos [nupcial e paterno],


ao dizer: com efeito, o macho é por natureza, isto é, naturalmente,
mais preeminente que a fêmea. E uma vez que alguém pode pro-
por a objeção de que alguma mulher é mais sábia e corajosa que
o homem, prossegue com o acréscimo: a não ser que de fato se dê
de outro modo contra a natureza, a saber, que o homem regrida e a
mulher progrida: mas isso é contra a ordem da natureza. Com efei-
to, é da natureza da mulher o ter conceitos inconstantes, em razão
da umidade; ora, do homem, em razão da compleição contrária, é o
ter concepções firmes”. (ALBERTO MAGNO, 1891, p. 75)

Também a ilustração do caso do homem que possui uma natureza “falha” pode fa-
cilmente ser recuperada, por exemplo, no comentário de Tomás de Aquino. A respeito do
mesmo trecho do texto aristotélico, Tomás escreve:

Manifesta, em terceiro lugar, que os dois principados [nupcial e


paterno] se deem segundo a natureza, uma vez que sempre o que
é mais preeminente [sc. “principalius”] quanto à natureza, governa
[sc. “principatur”], como se concluiu acima. Ora, o macho é natural-
mente mais preeminente que a fêmea, a não ser que algo aconteça
contra a natureza, assim como nos homens afeminados: e, seme-
lhantemente, o pai é naturalmente mais preeminente que o filho,
assim como o mais velho ao mais novo e assim como o perfeito ao

11 Em suas “notas explicativas” para o texto grego da Política de Aristóteles, Newman, 1887, p. 210, por exemplo,
defende que o trecho em pauta deve ser entendido assim: “Aristóteles sustenta que embora no geral e como aquele que
comanda o homem seja superior à mulher, há, contudo, tarefas que ela pode executar melhor do que ele, e isso deve ser
levado em conta quando se determina a posição da esposa na casa.” (O grifo é nosso.)

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imperfeito; portanto, naturalmente o macho governa a fêmea e o pai
os filhos.” (TOMÁS DE AQUINO, 1971, I, l. 10, n. 2. O grifo é nosso.)

Mas ainda que seja possível tomar as interpretações avançadas por Ockham como
leituras já correntes em sua época, chama a atenção o fato de que ele tenha reduzido a
interpretação da natureza a uma operação racional que independe da vontade. Excluída
a vontade, a razão segue ao que é naturalmente mais perfeito em si mesmo. Como visto, a
perfeição do homem consiste na sabedoria e na virtude. Sua imperfeição, na ausência delas.
Nesse sentido, a imperfeição que é própria à mulher e da qual o “homem efeminado” com-
partilha, de acordo com essa interpretação, não é outra senão a impossibilidade de alcançar
a sabedoria e a virtude. Reduzidas as diferenças desse modo, Ockham tira proveito de algo
que aparece no texto de Alberto como uma hipótese aparentemente absurda e sequer é
mencionado por Tomás: a possibilidade de se considerar uma mulher mais sábia que um
homem sem que isso tenha de ser visto, como sugere Alberto, como algo contrário à natu-
reza, ou, até mesmo, sem que isso tenha de ser considerado como relacionado apenas àquilo
que pretensamente “convém à mulher”, como sugere o texto da própria Ética Nicomaquéia.
Essa possibilidade aparece noutra seção de seu Dialogus, como pode ser visto aqui:

Discípulo: […] diga brevemente por que se diz que as mulheres


não devem absolutamente ser excluídas, contra a vontade delas, do
concílio geral.
Mestre: Diga-se que isso se dá em razão da unidade da fé dos ho-
mens e das mulheres, que diz respeito a todos e na qual não há
macho e fêmea, assim como conforme o Apóstolo na Epístola aos
Gálatas, cap. 3 [vers. 28], no novo homem ‘não há macho e fêmea’.
Por isso, quando a sabedoria, a bondade ou a potência da mulher
for necessária para a discussão da fé, que é maximamente discutida
no concílio geral, cumpriria não excluir a mulher do concílio geral.
(OCKHAM, 2012, p. 12; 1 Dial. VI, 85)

Portanto, dado o que é ensinado pela fé cristã, a mulher (cristã) pode desde já ser
considerada, se não mais, ao menos tão sábia e virtuosa quanto o homem, podendo
também ela sobressair-se em matéria de “sabedoria, santidade, potência e virtude”. (vide
OCKHAM, ibidem, p. 51; 1 Dial. VI, 94) Voltando à exposição do texto aristotélico, pare-
ce interessante destacar que, postas as coisas deste modo, a principal tese defendida por
Ockham nessa primeira aproximação da Política de Aristóteles não é senão a de que o
fundamento que confere justiça ao poder exercido pelo governante na Política não é outro
que a excelência ou maior perfeição intelectual e moral daquele que governa. Sem esta
excelência, ainda que preenchendo a todos os outros requisitos mencionados, o governo,
seja ele despótico, paterno ou nupcial, seria em si mesmo injusto.

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Ockham encerra esta primeira parte da discussão apontando que os modos de go-
verno considerados dizem respeito ao governo da casa, isto é, à “economia”, no sentido
em que o termo é empregado por Aristóteles. A observação, mais uma vez, se deve a um
uso diverso do termo por parte do vocabulário eclesial: no direito canônico, “ecônomo” é
aquele que cuida do governo eclesiástico, administrando as coisas que dizem respeito aos
“cânones”, também chamado de “preposto”. Mais uma vez, é notável que a importância
da distinção esteja na proposta de se evitar uma possível confusão que poderia surgir da
ignorância da diferença de relações pressupostas entre governantes e governados nos dois
casos, divergência que ilustra mais uma vez que embora o discurso eclesiástico (isto é, dos
“juristas”, do “direito canônico”) e o aristotélico possam convergir no que diz respeito aos
termos empregados, são frequentemente diversos em seus significados.

2. O “sensato” e a “ordem” como conceitos fundamentais. A


definição de vila e de cidade:

Em 3.1 Dial. II, 4 Ockham se ocupa, num capítulo bem curto, do segundo tipo de co-
munidade mencionado por Aristóteles na Política, que é a vila. Mais uma vez, é o conceito
de perfeição entendida como quantidade o critério tomado por Ockham para caracterizar
a distinção da vila seja com relação a casa, seja com relação à própria cidade. A vila é mais
perfeita que a casa “porque é composta de muitas casas como se de partes”. Mas, seguindo
o mesmo critério quantitativo, ainda que pela via oposta, a vila não pode ser considerada
tão perfeita quanto a cidade ou uma comunidade ainda superior “que compreenda muitas
vilas, circunvizinhanças ou cidades”. (OCKHAM, 2011, p. 175)
No entanto, o ponto principal ao qual Ockham mais dedica sua atenção nesse capí-
tulo é a descrição do melhor tipo de governo para a vila. E a inflexão da descrição gira em
torno do que é apresentado como mais “racional/razoável” ou “sensato”: “racionabile”. Se-
gundo Ockham, quando a vila compõe-se de descendentes de um parente comum ainda
vivo (sc. “processit ex uno parente superstite”),

é sensato que seja regida por ele segundo a vontade, não segundo
a lei no que diz respeito àqueles que descendem dele, se a natureza
nele não falha, tal como os filhos são regidos pelo pai. Quanto às es-
posas das quais não é parente, é sensato que governe politicamente,
porque a razão exige que conserve a lei do matrimônio, segundo
a qual o esposo e a esposa são julgados muitas vezes como iguais.
No entanto, se a multidão das casas da vila não descende de um
parente comum, é sensato que seja governada por algum regime
semelhante àquele pelo qual a cidade é governada. (OCKHAM,
2011, p. 175. O grifo é nosso.)

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Em suma, vê-se que, nessa descrição, Ockham insiste claramente na valorização de
uma forma monárquica de governo: sempre que possível, o governo segundo a vontade
deve ser preferido ao governo segundo qualquer lei. Também parece interessante o fato
de que essa preferência deve ser buscada mesmo sendo óbvio que, na vila, esse governo
segundo a vontade jamais poderá ser aplicado a todos os seus habitantes. Afinal, note-se
que o governo do “patriarca” apenas pode ser realizado desse modo para aqueles que são
seus descendentes. Donde se destacar uma importante nuança a reger esse critério de
preferência e que depois será valiosa inclusive para mostrar que o governo monárquico,
embora preferido, não se constitui numa escolha irrevogável nem incontornável; (cf. 3.1
Dial. II, 19; OCKHAM, 2011, p. 203, especialmente.) a saber, o sensato ou razoável.
Note-se que quando a comunidade pode ser regida pelo parente do qual todos des-
cendem, tomá-lo como regente é uma escolha sensata por duas razões: porque ele pode
regê-los segundo sua vontade “no que diz respeito àqueles que descendem dele” e pelo fato
de que se supõe que esse governante governe com “sabedoria e virtude”: se a natureza nele
não falha. Quando a natureza falha, isto é, quando esse possível governante não é mais
sábio e virtuoso que aqueles que a ele estão sujeitos, o mais sensato, ainda que menos de-
sejável “por si”, então, não pode ser senão adotar o mesmo tipo de governo mais adequa-
do àqueles que não têm nenhum parentesco comum, ou seja, “algum regime semelhante
àquele pelo qual a cidade é governada”.
A cidade, tema de 3.1 Dial. II, 4, (OCKHAM 2011, p. 175 s.) é assim definida por Ockham:

A terceira comunidade, composta de várias vilas, é chamada ‘ci-


dade’, dita por Aristóteles, em Política I [1, 1252a 5], ser preemi-
nentíssima [sc. “principalissimam”] entre todas as comunidades.
(OCKHAM, ibidem, p. 175)

No texto citado da Política, segundo a tradução de Moerbeke,12 Aristóteles põe a pre-


eminência da cidade ligada à preeminência do bem. Segundo os comentários de Alberto
Magno e de Tomás de Aquino para este trecho, fica claro, porém, que nem a máxima
preeminência da cidade é derivada dessa preeminência do bem, nem se dá o contrário.
O nexo entre a cidade e o bem superlativamente preeminentes se dá em razão da própria
preeminência de ambos. Tomás de Aquino, por exemplo, assim explica essa relação:

12 Aristóteles, 1872, p. 1 [I, 1, 1252a 1-7]: “Dado que vemos toda cidade existindo como certa comunidade e toda comu-
nidade instituída para algum bem (com efeito, vê-se que em virtude do bem dela, todos fazem tudo), é manifesto que
todos presumem algum bem; ora, maximamente o preeminentíssimo de todos a maximamente preeminente de todas e
que abarca a todas as outras. Ora, essa é a que é chamada de cidade e de participação [communicatio] política.” – “Quo-
niam omnem civitatem videmus communitatem quandam existentem et omnem communitatem boni alicuius gratia
institutam (eius enim quod videtur boni gratia omnia operantur omnes), manifestum quod omnes quidem bonum ali-
quod coniecturant, maxime autem principalissimi omnium omnium maxime principalis et omnes alias circumplectens,
haec autem est quae vocatur civitas et communicatio politica”.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 53


Depois, quando diz ora, maximamente, mostra que aquele bem
para o qual a cidade está ordenada é preeminentíssimo entre todos
os bens humanos, por tal razão: se toda comunidade está ordena-
da para o bem, é necessário que aquela comunidade que é maxi-
mamente preeminente, seja maximamente conectiva do bem que,
entre todos os bens humanos, é preeminentíssimo. […] Ora, é ma-
nifesto que a cidade inclui todas as outras comunidades, pois tanto
a casa como a vila estão compreendidas sob a cidade. É assim que
a própria comunidade política é a comunidade preeminentíssima.
[…]. (TOMÁS, 1971, I, l. 1, n. 3)

Ou seja, a cidade apenas pode ser considerada preeminentíssima porque é a mais


ampla de todas as comunidades. A explicação, no que toca a essa tese principal, é a mes-
ma de Alberto Magno. Ockham, no entanto, nem faz inicialmente qualquer referência à
ligação entre a cidade e o bem nem parece ancorar a explicação da preeminência máxima
da cidade em sua amplitude quando comparada a outras comunidades. Sua explicação do
emprego desse superlativo como a principal marca da distinção entre a cidade e outros
tipos de comunidades se dá do seguinte modo:

O que se diz [a saber, que a cidade é “a mais preeminente entre to-


das as comunidades”] tem a verdade a respeito da comunidade dos
que habitam juntos, não a respeito da comunidade dos que habitam
em lugares distantes e em várias cidades, a qual é reino ou ducado,
cada um dos quais pode ser chamado ‘comunidade’ porque diz res-
peito àqueles que juntos têm muitos em comum e são regidos por
um governante; e muito do que é dito sobre a cidade deve ser pro-
porcionalmente entendido sobre o reino e qualquer comunidade
que circunscreva várias cidades. (OCKHAM, 2011, p. 175)

Assim, ainda que muitas das características próprias da cidade possam ser atribuídas
ao reino ou ao ducado, a (mais ampla) preeminência que é a distintiva da cidade se dá
graças ao fato de seus habitantes viverem em conjunto num mesmo lugar. É importante
notar que será a essa característica própria da cidade (e não do reino ou do ducado) que
Ockham associará a ordenação relativa ao regime político (sc. “policia”) adotado pela ci-
dade: “a cidade é a multidão dos cidadãos que habitam a cidade; a organização deles é
chamada de ‘policia’ [sc. “regime político”].”. A ordem é a característica fundamental para
a constituição da cidade: “sem ordem não há cidade”. Como consequência disso, Ockham
sustenta que apenas poderá ser chamada de cidade aquela que possuir “um governante
ou governantes e sujeitados”. E assim como se sugere que possa haver mais de um tipo

54 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


de organização no que diz respeito ao governo escolhido, Ockham destaca que na cidade
mais perfeita também há diversidade entre súditos/sujeitados:

com efeito, alguns são súditos enquanto servos ou assalariados, ou


ainda banausi. (Ora, são chamados de ‘banausi’ aqueles que, traba-
lhando manualmente ou corporalmente, maculam seu corpo com
seu trabalho, e, na cidade que emprega uma policia temperada e
sensata, não são propriamente cidadãos.). Outros são súditos na
cidade de modo que participam de algum modo do governo, pois,
embora não governem, atingem de algum modo o governo, pois
são chamados para o juízo e a deliberação ou elegem o governante
ou mesmo os eleitores do governante. (ibidem, p. 175 s.)

Desse modo, a ordenação da cidade comporta, além de tipos diversos de príncipes/


governantes, tipos diversos de súditos, que passam desde aqueles que apenas prestam ser-
viços, remunerados ou não, salubres ou não (os últimos sendo aqueles que sequer são
considerados cidadãos nos regimes “temperados e sensatos”), até aqueles que têm algum
poder de decisão quanto aos rumos da ordenação da cidade. Também parece interessante
destacar que o caráter quantitativo da perfeição é, pela primeira vez, relegado a um plano
secundário: certamente, segundo o critério quantitativo, o ducado e o reino são mais per-
feitos que a cidade porque maiores, mas, segundo Ockham, isso não seria suficiente para
fazê-los mais preeminentes que a cidade. Desta vez o critério para a excelência é o modo
de organização da communitas, segundo o qual, para a máxima preeminência, é requerido
que seus habitantes vivam conjuntamente num mesmo lugar.
O último esclarecimento que Ockham pretende prestar de um termo mais ligado ao
que é próprio da cidade é a apresentação do significado de policernia, palavra que, pro-
vavelmente, não é senão uma reprodução equivocada – saída talvez da pena do próprio
Ockham – da transliteração de πολίτευμα (politeuma ou, no latim do XIV, policeuma)
e que, de acordo com o termo grego original, tal como empregado na Política, significa
algo como “a autoridade suprema” (NEWMAN, 1902, p. 185) ou, num sentido mais geral,
“governo”. Segundo Ockham, “policernia” tem ao menos três significados diversos:

O governante [sc. “principans”] na cidade às vezes é chamado por


Aristóteles de ‘policernia’. Ora, segundo alguns, policernia tem três
significados: com efeito, significa, em primeiro lugar, a imposição
da ordem da policia [isto é, do “regime político”]; em segundo
lugar, aquele que impõe a ordem; em terceiro, significa a própria
ordem imposta, que é a policia. E, assim, policernia num de seus
significados é o mesmo que o senhor e o governante na cidade.
(ibidem, p. 176)

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 55


Dois pontos merecem ser destacados no trecho citado. O primeiro, a afirmação de
que a ordem da cidade não é outra coisa que seu “regime político”, policia. O outro, a
identificação proposta, ainda que condicionalmente, por Ockham entre o termo grego
policernia, tomado no sentido de governante, com o senhor e o “principans in civitate”.
Com a insistência da fórmula “o governante na cidade”, Ockham parece não fazer
mais que retomar uma ideia que já havia sido anunciada quando da distinção entre o prin-
cipado régio e o principado paterno. Em sentido estrito, o principado paterno é menos um
governo (“principatus”) que um domínio (“dominium”), e o pai, menos um governador
(“principans”) que um senhorio (“dominans” ou “dominus”). Como se viu, o ponto prin-
cipal da diferença entre esses dois tipos de “comando” era a possibilidade daquele que tem
súditos sob si poder ou não agir segundo sua vontade. No entanto, se até agora se insistiu
nas diferenças entre o poder paterno e poder régio, sempre na intenção de limitar o que é
próprio do primeiro, na discussão a seguir Ockham mostrará um sentido de domínio que,
embora seja completamente adequado ao pai, não pode ser assumido pelo governante
da cidade, sobre o qual será possível dizer que tem o domínio de algo apenas em certo
sentido (“quodammodo”). O conceito de “ordem” também será retomado, desta vez, como
base de outro conceito, que apontamos ter sido inicialmente negligenciado na exposição
de Ockham: o “bem”, ou melhor, o “bem comum”. Trata-se do início da análise das três
formas (ou regimes) de governo: a monarquia (3.1 Dial. II, 6), a aristocracia (3.1 Dial. II, 7)
e a timocracia (3.1 Dial. II, 8).

3. As formas de governo – o “bem comum” e a justiça como bases


da “policia”:

Ockham começa sua descrição das formas de governo ou policiae separando-as em


duas espécies “primeiras”: o principado “temperado e reto” e, seu antagonista, o prin-
cipado “viciado e transgressor”. (OCKHAM, 2011, p. 176-179; 3.1 Dial. II, 6) Será como
um dos pilares dessa análise que a noção de bem, que apontamos ter sido negligenciada
quando da exposição do que é característico da cidade, aparecerá apresentada sob a noção
de “bem comum”. No entanto, ainda que o conceito de “bem comum” seja fundamental
para a distinção entre a boa e a má policia, (veja-se SHOGIMEN, 2007, p. 177) não é ele o
principal assunto visado por toda essa exposição da opinião de Aristóteles.
Segundo determinada leitura, o ponto principal da exposição ockhamiana do texto
aristotélico estaria em distinguir a boa forma de governo daquela própria seja ao prin-
cipado tirânico, seja ao principado despótico. Nesse sentido, “o uso feito por Ockham
da linguagem aristotélica serve para distinguir claramente entre o governo para o bem
comum e o governo para o bem privado”, além de fornecer “um fundamento racional para
a monarquia papal.” (cf. SHOGIMEN, loc. cit.) Essa, porém, corre o risco de ser uma des-
crição reducionista da proposta ockhamiana. Afinal, o objetivo de Ockham parece mais

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amplo, senão outro: o debate do texto aristotélico não serve exatamente para propor um
fundamento racional para a monarquia papal. Serve, antes, e entre outras coisas, para pôr
a claro quais são os fundamentos de uma monarquia (o que é algo bem diverso). Tam-
bém, e principalmente, para dar vez à consideração da possibilidade de haver outros tipos
excelentes de governo, que, dadas certas circunstâncias, podem ser uma melhor opção à
monarquia inclusive para a Igreja, ainda que, nesse último caso, essa possibilidade seja
vista claramente como uma exceção que deve ser abandonada, em favor da monarquia,
assim que possível (essa, com efeito, é a discussão que se dá especialmente em 3.1 Dial. II,
18-20). Assim, o uso da linguagem aristotélica serve não só para distinguir “o governo para
o bem comum” do “governo para o bem privado”, mas, também e principalmente, para
mostrar tanto a existência de diversas formas de governo em vista do bem comum, como
as condições sob as quais qual dessas formas deve ser preferida às outras.
Voltando à exposição do texto ockhamiano, temos, de início, uma apresentação que
visa defender a tese de que há duas espécies básicas de formas de governo (policia). Na
formulação de Ockham, “toda policia ou é temperada e reta, ou é viciada e transgressora”.
Sua descrição começa frisando novamente a divisão entre “governantes” e “governados”, e,
ainda, promove – sem, aparentemente, tirar proveito disso nessa exposição do texto aris-
totélico – o que pode ser visto como uma aproximação entre o léxico até então empregado
e aquele próprio ao vocabulário eclesial. Assim como há duas espécies primeiras de poli-
cia, afirma, há também duas espécies primeiras de principados, prelazias, assim como de
príncipes (ou melhor, “governadores”: “principancium”), prelados e reitores. Em seguida,
propõe a descrição que associa o principado ao bem comum:

todo principado ou é preeminentemente ordenado ao bem, ou seja,


traz consigo [sc. “conferens”] o comum, a saber, do governador ou
dos governados e também dos sujeitados, ou não está ordenado
para o bem comum. Se for ordenado para o bem comum, é en-
tão um principado temperado e reto. Se não for ordenado ao bem
comum, é um principado viciado e transgressor, porque é a cor-
rupção de um principado temperado, reto e, ainda, justo. Portanto,
toda policia ou é temperada e reta, ou é viciada e transgressora.
(OCKHAM, 2011, p. 176)

Nessa descrição, a inserção da temática do bem comum não faz qualquer menção à
preeminência do bem, ignorando a discussão tal qual arquitetada no começo da Política
que, como já foi apontado, ata a preeminência do bem àquela da cidade. O “bem comum”
aparece principalmente como o critério que separa boas formas de governo de formas
corrompidas. É interessante lembrar aqui que a associação do “bem comum” ao bem pre-
eminentíssimo visado pela cidade sai da forja de Tomás de Aquino. Propondo uma apro-
ximação da análise do texto da Política com o que é discutido no texto da Ética, Tomás

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defende que o bem comum “é maior e mais divino do que o bem de um”. (TOMÁS, 1971,
loc. cit.) E tal como se vê em seu Comentário para a Ética Nicomaquéia, tal bem é chamado
de comum não só porque é de muitos e não apenas do indivíduo, mas também, e princi-
palmente, na medida em que é o mesmo para todos. (TOMÁS, 1969, p. 9, I, l. 2, n. 11-12)
A interpretação de Ockham, porém, parece não herdar da invenção de Tomás nada
além da associação entre o bem comum e a cidade. Afinal, logo após propor o bem comum
como critério de distinção entre as formas de governo e a caracterização do principado
temperado e reto como justo, Ockham passa imediatamente à apresentação das formas
retas de governo, destacando que elas se dividem em três formas principais e, ainda, que
essas formas não se misturam. A primeira e mais preeminente dentre elas, a monarquia, é
assim descrita por Ockham:

A primeira é quando o governante [sc. “principans”] é único, e é


chamada de monarquia real, na qual um único domina em razão
do bem comum e não preeminentemente em razão da própria
vontade e do que traz consigo [sc. “propter propriam voluntatem et
conferens”]. (OCKHAM, 2011, p. 176. O grifo é nosso.)

Apesar do que acabamos de ver afirmado, como, aliás, já foi apontado quando da
discussão acerca do poder paterno, Ockham insistirá logo em seguida que caracteriza a
melhor forma de monarquia que o governante possa governar antes segundo a sua própria
vontade que segundo a lei. Desta vez, porém, Ockham se dedica a explicar um pouco
melhor o alcance dessa afirmação, permitindo-nos entender de que maneira ela continua
válida mesmo quando tem-se em conta que o bem comum deve sobrepor-se à vontade:

Diz-se que governa e reina segundo sua vontade e não segundo a


lei aquele que reina em razão do bem comum de todos e não é res-
tringido por nenhuma lei humana meramente positiva ou relativa
ao costume, mas está acima de todas as leis deste modo, embora
seja restringido pelas leis naturais. E, por isso, tal rei não tem de
jurar, nem prometer, observar quaisquer leis ou costumes intro-
duzidos pelo homem, embora seja conveniente que jure observar
as leis naturais a favor da utilidade comum e que visará, em tudo
que diz respeito ao principado assumido, o bem comum e não o
privado. (Ockham, 2011, p. 176.)

A vontade do governante é, portanto, soberana principalmente quanto àquilo que é


uma instituição humana. Ou seja, sua primazia não é absoluta, uma vez que ela tem de se
submeter àquilo que é próprio da lei natural. Assim, duas coisas sobrepõem-se à vontade do
governante: a natureza e o bem comum, sobre o qual Ockham afirma que esse governante

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tem a plenitude de poder. No entanto, ao fazê-lo, Ockham também pondera que ainda que
o governante tenha a plenitude de poder com relação ao que diz respeito ao bem comum,
ele não a tem no que diz respeito ao bem privado. É por meio desse mote que Ockham pro-
põe, pela primeira vez, que esse tipo de governo seja algo diverso do principado tirânico,
seu oposto. No entanto, dessa vez, limita-se a reiterar a tese já enunciada como critério geral
da distinção entre os governos “temperados” e os governos “corrompidos”: o principado
real “é segundo o bem comum, mas o principado tirânico não é segundo o bem comum”.
Numa primeira aproximação, Ockham prefere estender-se mais na diferença entre o
principado real e o despótico, que, a partir desse momento do texto, sempre aparecerá as-
sociado ao principado tirânico, ainda que o primeiro desses dois últimos, lembre-se, seja
em si mesma uma forma justa de governo. Inicialmente, Ockham aparenta não propor
aqui nenhum elemento novo para essa descrição, uma vez que não faz mais que retomar a
exposição segundo a qual, no principado despótico, o senhor pode governar visando o seu
bem próprio. No entanto, dois passos dados nessa descrição chamam a atenção.
Um deles é uma espécie de reformulação que sugere uma interpretação mais “es-
trita” da definição tal como dada anteriormente. Se em 3.1 Dial. II, 3 (OCKHAM, 2011,
p. 173) viu-se a defesa de que o déspota poderia governar os servos principalmente em
vista do que é útil para si e não principalmente em vista do que é útil para eles, “apesar de
frequentemente, segundo Aristóteles, o que é conveniente para o servo o ser também para o
senhor”, dessa vez a vinculação do governo despótico com o bem comum aparece como
algo incontornável:

… no principado despótico, o governante tem tanto domínio que


pode empregar seus servos e quaisquer outros bens que pertençam
a seu principado não apenas segundo o bem comum, mas também
segundo o bem próprio, contanto que em nada atente contra a lei
divina ou natural; (…). (OCKHAM, 2011, p. 177. O grifo é nosso)

Assim, ainda que o déspota possa governar seus servos “principalmente em vista do
que é útil para si”, ele não poderá, porém, fazê-lo de modo a ir contra o bem comum, o qual
inclui a seus próprios servos. Consequentemente, a principal característica desse princi-
pado acaba reduzida ao fato de que o governante pode empregar os servos segundo seu
interesse, o que jamais poderá ser feito no principado real. E na mesma passagem citada,
é possível ver também o que é próprio do “segundo” passo antes mencionado. Nele vê-se
que Ockham amplia um pouco mais a ideia já trabalhada de que a justiça desse principado
obedece a um limite natural, ao afirmar que, no principado despótico, o senhor pode go-
vernar segundo seu bem próprio “contanto que em nada atente contra a lei divina ou natu-
ral”. Como característica da ação sábia e virtuosa aparece, portanto, o respeito à lei natural.
Assim caracterizado o principado despótico, Ockham mostra que a principal dife-
rença entre ele e o principado real não é senão o fato de que, além de não poder se servir

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 59


de seus súditos segundo seus interesses pessoais, o principado régio tem sob seu comando
homens que “não são servos, mas gozam da liberdade natural”:

Porque diz respeito à liberdade natural que nenhum livre possa ser
empregado segundo a vontade daquele que emprega, mas não é
contra a liberdade natural que alguém livre seja sensatamente em-
pregado para o bem comum, visto que qualquer um tenha de pre-
ferir o bem comum ao privado. (OCKHAM, 2011, p. 177)

Apesar de, aqui, a liberdade natural não parecer ser nada mais que contraponto à
servidão natural, o tema da natureza aparecerá ainda uma vez na definição do principado
régio indicando algo que pode ser visto como o limite que levará ou não à adoção dessa
policia. Sumarizando as características que devem pertencer ao monarca, Ockham propõe
uma descrição que parece apontar ainda a base daquilo que compõe o bem comum:

Segundo Aristóteles, ninguém é digno de tal reino a não ser que


sobressaia [sc. “superexcellat”] em sabedoria e virtude e em todos
os bens, tanto do corpo, quanto da alma, quanto também dos bens
exteriores, a saber, em amigos e divícias; com efeito, de outro modo
é de se temer que ele se converta em tirano. Donde também deve
ter bens próprios, ou por si ou pela concessão daqueles aos quais
está à frente, para que não se aproprie de quaisquer bens dos livres
nem os aceite de qualquer modo, a não ser que isso reclame uma
utilidade evidente ou manifesta necessidade. (OCKHAM, 2011, p.
178. O grifo é nosso.)

Também desta vez, a consideração do bem jamais aparece relacionada à considera-


ção de um bem único ou preeminente. Como bem aponta a ressalva, há que se temer que,
sem que no governante sobressaia a sabedoria, a virtude e os bens, ele passe de monarca
a tirano, ou seja, ele troque o bem comum pelo bem privado. Desse modo, “comum” e
“privado” são qualificações que dependem antes daquilo a que está voltada a vontade do
governante que a uma caracterização própria do bem ao qual qualificam. Quando o go-
vernante se usa de seus governados principalmente em vista do que é bom para si, volta-se
ao bem “privado”; quando, porém, se vale de seus súditos tendo em vista “trazer o que é
comum”, (cf. OCKHAM, 2011, p. 176) volta-se, então, ao bem “comum”. Por outro lado, vê-
se ainda o tema da natureza, relacionada ao que é intelectual e moral, voltar à tona desta
vez também como critério para a validação do principado real: aquele que não se sobressai
em sabedoria e virtude não é digno do principado real. Em outras palavras, está posta a
condição que dará base à necessidade de outros tipos de principado.

60 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Para encerrar a discussão a respeito da monarquia, Ockham escolhe ainda a via do
contraste para mostrar em que se baseia a caracterização de um principado como tem-
perado, reto e, consequentemente, justo. O principado tirânico é uma transgressão do
principado real e uma policia transgressora e viciada na medida em que o tirano “não visa
o bem dos súditos, a não ser por acidente, mas visa preeminentemente o bem próprio,
seja ele também bom para os outros ou seja para eles um mal.” (OCKHAM, 2011, p. 179)
Um principado pode ser considerado tirânico tanto quando o tirano domina seus súditos
contra a vontade deles, como quando eles se deixam dominar voluntariamente.
Ockham relata que esse último tipo de sujeição à dominação, isto é, a sujeição vo-
luntária, pode se dar quando alguém se faz tirano após conquistar a opinião popular não
como seu governante, mas como um “adulador” ou “demagogo”. Isso acontece quando o
demagogo tem êxito em instigar o povo a fazer algo que acredite ser bom para si, quando
isso, obviamente, não é o caso. Segundo Ockham, uma vez que a caracterização deste tipo
de tirania, na qual as pessoas se deixam voluntariamente governar por alguém que visa
antes o bem próprio que o bem comum seja muito semelhante àquela que é própria do
principado despótico, Aristóteles às vezes chama o principado tirânico de despótico, mas
non tamen tyrannys proprie est despotia: “mas a tirania não é propriamente uma forma de
governo despótica”. Mais uma vez, tem-se um caso em que a “confusão” de nomenclaturas
apenas pode se dar sob circunstâncias muito específicas. O principado tirânico não pode
ser adequadamente chamado de despótico, mesmo quando os governados são voluntaria-
mente a ele sujeitados, seja porque o tirano pode governar a outros de modo que aquilo
que é bem para ele é um mal para os governados, seja porque a sujeição dos governados se
dá por logro, ou seja, eles não são servos de um modo justo.
A exposição ockhamiana sobre a aristocracia e a timocracia, ainda que apresentada
bem mais sucintamente que aquela sobre a monarquia, guarda, porém, os mesmos ele-
mentos que até agora se mostraram essenciais para o debate. O bem comum e, no caso
da aristocracia, a natureza serão elementos decisivos para a defesa da constituição “tem-
perada” destas formas de governo. A exposição do contraponto destes regimes, a saber,
a oligarquia para a aristocracia e a democracia para a timocracia, aparece mais uma vez
como a oportunidade de esclarecer ainda mais precisamente a caracterização dos regimes.
Em suma, são expostas novamente as características próprias de governos que possam ser
considerados justos e temperados ao mesmo tempo em que se mostra porque os regimes
que lhes são opostos podem ser considerados depravações e injustos.
Vê-se, assim, que, muito distante de propor um trabalho que possa se ver reduzido a
não mais que um amontoado de opiniões, a exposição ockhamiana, antes que a isenção,
propõe a necessidade de se observar a elaboração de uma estrutura na qual é possível per-
ceber claramente a insistência na elucidação de quais são e de como estão encadeados os
conceitos e argumentos envolvidos numa discussão. No caso dessa exposição da Política
de Aristóteles, mais do que o levantamento de critérios para a boa distinção do governo
para o bem comum daquele direcionado para o bem particular, tem-se a denúncia das

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 61


inúmeras confusões que podem ser armadas quando aqueles que se propõem a uma dis-
cussão ignoram (deliberadamente ou não) o contexto e a base argumentativa segundo
os quais os conceitos empregados são propostos. Por outro lado, por mais que o relatado
expresse a “opinião de alguns, embora nem todos concordem em tudo”, isso não se reflete
em qualquer inconsistência para o relato. No final, a falsa isenção de Ockham bem pode-
ria ter sido formulada de um modo bem diverso: “recitarei o que entendo ser a intenção de
Aristóteles, quanto a isso, segundo a minha opinião que, em certas ocasiões, se assemelha
à opinião de alguns…”. Como se viu, a própria coerência segundo a qual são expostas as
opiniões de Aristóteles, acaba por denunciar contra o que, ou contra quem, se dá a discor-
dância de alguns…

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Universidade São Francisco, p. 7-17.
Tomás de Aquino 1969. Sententia libri Ethicorum. [=Thomae de Aquino Opera Omnia iussu
Leonis XIII edita, tomo 47-1: Prafatio – Libri I-III.] Cura et studio Fratrum prædicatorum. Ed. L.-J.
Bataillon, H. F. Dondaine, R.-A. Gauthier. Roma/Paris: Sancta Sabina/Cerf. O texto desta edição
está disponível em: http://www.corpusthomisticum.org/ctc0101.html. Acesso: 02/07/2012.
______. 1971. Sententia libri Politicorum. [=Thomae de Aquino Opera Omnia iussu Leonis XIII
edita, tomo 48.] Cura et studio Fratrum prædicatorum. Ed. L.-J. Bataillon, H. F. Dondaine, R.-A.
Gauthier. Roma/Paris: Cerf. O texto desta edição está disponível em: http://www.corpusthomisti-
cum.org/cpo.html. Acesso: 02/07/2012.

* Carlos Eduardo de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências do


CECH/UFSCar.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 63


KANT E A IMAGINAÇÃO
imaginando um outro Kant?

FERNANDO COSTA MATTOS*

Resumo: Começando por apresentar algumas diferentes leituras sobre o papel da imaginação na filosofia
kantiana, em especial aquelas de Martin Heidegger e Hannah Arendt, este artigo pretende discutir em que
medida esse papel seria desempenhado também no âmbito prático dessa filosofia, em particular na Crítica
da razão prática. Embora Kant não seja explícito a respeito disso, os postulados da razão prática pura são
então tomados como um caso especial em que isto ocorreria.
PALAVRAS-CHAVE: KANT, IMAGINAÇÃO, HEIDEGGER, POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA

Kant and Imagination: Imagining Another Kant?


Abstract: Starting with the presentation of some different interpretations of the role played by the faculty
of imagination in Kant’s philosophy, particularly those of Martin Heidegger and Hannah Arendt, this paper
aims to discuss if such a role would be displayed also in the practical field, specially in the Critique of Practi-
cal Reason. Although Kant is not explicit about it, the postulates of pure practical reason are then taken as a
special case in which this would happen.
KEYWORDS: KANT, IMAGINATION, HEIDEGGER, POSTULATES OF PRACTICAL REASON

I. A imaginação em Kant: diferentes leituras

A questão do lugar ocupado pela imaginação (Einbildungskraft) no sistema kantiano


é, como se sabe, das mais controversas entre os comentadores. Bastante conhecida – e não
menos polêmica – é a leitura de Martin Heidegger, para quem a imaginação, sendo a raiz
comum aos dois grandes troncos do conhecimento humano – entendimento e sensibilidade
–,1 constituiria, através do esquematismo, o fundamento do próprio pensar. Nos termos de
seu principal texto sobre Kant (Kant e o problema da metafísica, de 1929),

este esquematismo puro, que se funda na imaginação transcen-


dental, constitui justamente o ser originário do entendimento, a
“substância eu penso” etc. Como uma representação imaginativa
espontânea, a aparente realização do entendimento puro no pen-
samento das unidades é um ato puro fundamental da imaginação
transcendental.2

Não à toa, Heidegger se baseia sobretudo na primeira edição da Crítica da razão pura
para sustentar sua interpretação, já que em tal edição, em particular na sua versão da “De-
dução transcendental dos conceitos puros do entendimento”, a imaginação é tratada com
muito maior destaque do que o seria na segunda edição do livro. É bem verdade que o pró-
prio Heidegger procura explicar esse “recuo” de Kant mostrando que ele não teria alterado
o lugar da imaginação no sistema de nossas faculdades cognitivas: a modificação no trata-
mento se deveria antes a uma opção por deixar em segundo plano esse tão obscuro tema,
concentrando-se preferencialmente no que seria fundamental para o conhecimento objetivo
do mundo (aquilo que, nos termos heideggerianos, constituiria o conhecimento ôntico da
realidade, por oposição ao ontológico, responsável por tratar da constituição subjetiva do
Dasein humano).
Seja como for, o fato é que a interpretação heideggeriana confere à imaginação um
estatuto extremamente privilegiado. Insurgindo-se contra a maior parte das leituras até
então existentes, muito particularmente aquela dos neokantianos de Marburg – com
quem, na figura de Cassirer, Heidegger se defrontara no célebre encontro de Davos (um
dos motes para a elaboração de seu livro) –,3 tal interpretação propõe pensar a compreen-
são kantiana da subjetividade como uma “fundamentação da metafísica (Grundlegung der
Metaphysik)”, de tal modo que a imaginação, nossa faculdade de sintetizar representações
no tempo, demarcaria o horizonte de possibilidades que são constitutivas de nosso existir
finito no mundo, i.e. de nosso Da-sein.

1 Heidegger se baseia na famosa passagem da “Introdução” à Crítica da razão pura: “…there are two stems of human
cognition, which may perhaps arise from a common but to us unknown root, namely sensibility and understanding,
through the first of which objects are given to us, but through the second of which they are thought.” (KrV, A 16/ B 29)
Há um razoável consenso, entre os intérpretes de Kant, quanto a ser a imaginação essa raiz comum aos dois troncos.
Quanto a este ponto, vale consultar o artigo de Dieter Henrich “On the Unity of Subjectivity” (in: HENRICH, D. The
Unity of Reason. Cambridge: Harvard University Press, 1994).
2 HEIDEGGER, M. Kant und das Problem der Metaphysik. In: Gesammtausgabe, I.Abteilung, Band 3. Frankfurt am
Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 151.
3 No prefácio à sua primeira edição, o próprio Heidegger se refere às conferências ministradas em Davos como pre-
paratórias para o livro. Cf. HEIDEGGER, Kant und das Problem der Metaphysik, p. XVI.

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Descabendo descer aqui às minúcias da intepretação heideggeriana de Kant,4 o que
importa sublinhar por ora é a função atribuída à imaginação no interior dessa “ontologia
fundamental” que, segundo Heidegger, seria firmada por Kant na Critique of Pure Reason.
Não se trata, note-se bem, de dizer que a imaginação é a faculdade principal na elaboração
do conhecimento científico, pois esta é, de fato, uma função específica do entendimento,
em conjunção com a sensibilidade; trata-se antes de mostrar que, sendo ela a raiz comum, o
termo mediador, entre tais faculdades de conhecimento, é nela que devemos buscar a cha-
ve para compreender de modo essencial (ontologicamente) as estruturas do nosso mundo,
i.e. do mundo tal como constituído a partir da nossa perspectiva racional, humana e finita
(no interior da qual o conhecimento científico é apenas uma, dentre várias possibilidades).
Heidegger não é o único intérprete de Kant a situar a imaginação em uma posição
privilegiada, mas os demais a fazê-lo seguem uma direção exegética bastante distinta. Um
bom exemplo, que se tornou referência a partir dos anos 1970, é a leitura sugerida por
Hannah Arendt, que toma por base não tanto a primeira, mas sobretudo a terceira Crítica
kantiana (a Crítica da faculdade do juízo), e que, longe de pretender rediscutir o funda-
mento último da filosofia crítica, ou o seu lugar na história da metafísica ocidental, parece
antes buscar inspiração em alguns conceitos-chave da KU – notadamente os de sensus
communis e juízo reflexionante, nos quais a imaginação exerce uma função fundante –
para repensar a filosofia política kantiana, ou, talvez mais decididamente, pensar a política
à luz da filosofia de Kant. Tomemos, a título de exemplo, a seguinte passagem de suas
Lectures on Kant’s Political Philosophy:

O pensamento crítico só é possível onde os pontos de vista de todos


estejam abertos ao exame. Assim, o pensamento crítico, embora
uma atividade solitária, não se aparta de ‘todos os outros’. Ele con-
tinua, de fato, a ser feito isoladamente, mas, por força da imagina-
ção, ele torna os outros presentes e, assim, opera num espaço que
é potencialmente público, aberto para todos os lados; em outras
palavras, ele adota a posição do cidadão mundial kantiano. Pensar
com uma mentalidade ampliada significa treinar a própria imagi-
nação para sair fazendo visitas.5

Como se vê, a imaginação exerce aí um papel essencial. Mas é um papel inteiramente


diverso daquele que exercia na leitura de Heidegger: estabelecidas as bases do conheci-
mento teórico na Crítica da razão pura, trata-se agora – seja na terceira Crítica, seja nos
textos políticos “menores” – de explorar possíveis desdobramentos de nosso pensamento

4 Para um esclarecimento razoavelmente detalhado dessa interpretação, vale conferir um estudo recente de fôlego:
REBERNIK, P. Heidegger interprete di Kant. Finitezza e fondazione della metafisica. Pisa: Edizioni ETS, 2006.
5 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 43.

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em âmbitos cuja problemática não se deixa resolver na chave científica daquela primeira
obra. Se precisamos “sair” de nosso próprio ponto de vista (um ponto de vista que tem ca-
ráter constitutivo no juízo determinante)6 para, colocando-nos no ponto de vista do outro,
assim considerar assuntos que são do interesse da coletividade (um movimento que, para
ela, seria constitutivo do juízo reflexionante político), então é preciso que a imaginação
entre em cena com uma de suas mais, digamos, “tradicionais” funções – a de deslocar-nos
mentalmente para uma posição imaginária, distinta da que efetivamente ocupamos.
É claro que isso se articula diretamente com o modo como a imaginação atua no
juízo reflexionante estético, bastante explorado por Arendt – e por tantos outros que, por
assim dizer, seguiram o seu exemplo.7 Com efeito, a ideia de que um certo tipo de juízo
se construa em um livre jogo de entendimento e imaginação, como propõe a Crítica da
faculdade de julgar quanto a isso, é bastante inspiradora no sentido de pensar estruturas
de pensamento que, embora desprovidas de uma objetividade stricto sensu, não deixem
por isso de repousar em uma “objetividade” derivada, explicável em termos de uma inter-
subjetividade que seria mais ou menos implícita, mais ou menos negociável (em sentido
político). No limite, a leitura proposta por Arendt consiste em um desdobramento dessa
descoberta – concernente, a princípio, apenas ao juízo estético – para outros âmbitos do
pensamento, muito particularmente a política.
O caminho mais natural, portanto, para quem se decidisse a pensar o papel da
imaginação na filosofia prática de Kant, seria seguir os passos de Hannah Arendt e,
retrospectivamente,8 trazer elementos da Crítica da faculdade de julgar, ou mesmo dos
opúsculos de filosofia política (Ideia de uma história universal…, O que é o esclarecimento?,
O que significa orientar-se no pensamento etc), para o interior da própria Crítica da razão
prática, tentando mitigar a força da conhecida afirmação, feita nesta, segundo a qual a
imaginação não teria qualquer função no juízo prático.9 Há algo de simples e, ao mesmo

6 Poder-se-ia argumentar que a intersubjetividade, e mesmo a capacidade de nos colocarmos no ponto de vista do
outro, é fundamental para qualquer tipo de juízo, inclusive o determinante. Onora O’Neill, por exemplo, sugere algo
nessa direção. Mesmo admitindo essa possibilidade, contudo, seria necessário reconhecer uma diferença substancial
no grau de importância da intersubjetividade – e da imaginação – para os dois tipos de juízo (a menos que se voltasse
à chave heideggeriana, que não é o caso nem com O’Neill nem com Arendt). Cf. O’NEILL, O. Constructions of Reason.
Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge: C.U.P., 1989.
7 Seguindo Daniel T. Peres, um kantiano brasileiro que se tem dedicado ao tema da imaginação no âmbito da filosofia
prática, valeria lembrar os nomes de Cornelius Castoriadis, Alain Renaut e François Lyotard, além do recente trabalho
de Jane Kneller, que já se tornou uma referência nos estudos sobre a imaginação em Kant: KNELLER, J. Kant and the
Power of Imagination. Cambridge: C.U.P., 2007. Cf. PERES, D. “Imaginação e razão prática”. In: Analytica. Rio de janeiro,
vol.12, n.1, 2008, p.99-130.
8 Como diz o mesmo Peres, “qualquer interpretação da relação entre imaginação e razão prática em Kant, mesmo
correndo o risco da leitura retrospectiva, isto é, lançar luz sobre o conjunto da obra crítica a partir de uma perspectiva
que se apresenta apenas em 1790, se vê obrigada a partir da Crítica da faculdade de julgar. Melhor uma leitura retros-
pectiva, mas que tenha suporte textual, do que apelar para um sentido profundo não-pensado, onde a não exatidão é o
único resultado a que se pode chegar.” (Idem, p. 103) Como se pode notar, Peres alude aqui às leituras de perfil heideg-
geriano, em particular àquela de Bernard Freydberg, que mencionaremos a seguir.
9 KpV, Ak.V, 69: “… a lei moral não possui nenhuma outra faculdade de conhecimento que mediasse a aplicação
da mesma a objetos da natureza, a não ser o entendimento (não a imaginação); o qual pode atribuir a uma ideia da
razão não um esquema da sensibilidade, mas uma lei”. As citações de Kant são traduzidas diretamente do alemão, com

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tempo, promissor no argumento: tomando por base a noção de “validade exemplar”, tal
como descrita por Kant no § 76 da KU (a propósito do juízo reflexionante teleológico),
trata-se de encontrar em ações humanas exemplos reveladores de regras gerais (máximas)
efetivamente compatíveis com a lei moral.10
Embora isso não afete, naturalmente, os fundamentos mesmos do imperativo cate-
górico, que seriam estritamente racionais (e, portanto, independentes da atuação da ima-
ginação), trata-se de uma chave interessante para pensar as aplicações desse imperativo à
realidade, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista da humanidade e de sua
história (ponto de vista adotado por Kant em textos como a Ideia de uma história universal
de um ponto de vista cosmopolita e À paz perpétua). Se pensarmos na própria Fundamen-
tação da metafísica dos costumes, em particular nos exemplos extraídos da sabedoria mo-
ral popular nas primeiras seções do livro, seria possível detectar um tal procedimento – o
“juízo político”, como quer Arendt – em pleno funcionamento.
O próprio Kant não se cansará de afirmar que os exemplos não podem exercer qual-
quer função na fundamentação da moralidade, servindo tão somente para indicar (de
facto), ao filósofo que os interpreta, quais seriam as suas condições de possibilidade (de
juris). Mas aqui já não se trataria, como dissemos, de fundamentar a moral nos exemplos,
mas de tomá-los justamente como signos, por assim dizer, de regras universais sem as
quais o ser humano sequer poderia considerar-se um ser moral. E isto valeria a fortiori
para o domínio da filosofia política, em que eventos como a Revolução Francesa exercem,
nos conhecidos termos em que o próprio Kant trata do assunto, esse papel de signo na
indicação de um possível progresso moral da espécie.11
Desse ponto de vista, também os postulados da razão prática, outro ponto importan-
te da filosofia moral kantiana quando se trata de pensar a aplicação da lei moral ao mundo,
poderiam ser lidos como elementos de uma visão politicamente engajada da história –
forjada no contexto do juízo político – voltada simplesmente a reforçar as possibilidades
de ação instauradas pela lei moral enquanto imperativo categórico do direito. Deus e a
imortalidade da alma não seriam, pois, muito mais do que hipóteses auxiliares para re-
forçar a convicção no progresso das instituições humanas, cujo desenho ficaria a cargo da
imaginação enquanto faculdade ativa no estabelecimento do juízo político (satisfazendo-
se o anseio de autores como Castoriadis, que se queixavam de um certo déficit imaginativo
na filosofia política kantiana).12
Mas a verdade é que leituras assim, ao radicalizar o elemento político da filosofia
kantiana, tendem a dar pouca atenção ao tema dos postulados, sobretudo em função de

consulta à tradução de Valério Rohden para a Martins Fontes: KANT, I. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
10 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy, p. 84.
11 Um ponto de vista que é adotado por Kant em textos como, por exemplo, Ideia de uma história universal e À paz
perpétua.
12 Cf. CASTORIADIS, C. “The greek polis and the creation of democracy”. In: ______. Philosophy, Politics, Autonomy. Essays
on Political Philosophy. New York, Oxford: Oxford University Press, 1991, p.81-123. Citado por PERES, D., op. cit., p. 101.

68 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


sua proximidade semântica com a tradição metafísica. Desde a época de Kant, como se
sabe, não foram poucas as acusações de que ele teria “voltado atrás” em relação ao viés
progressista da Crítica da razão pura, reacomodando as velhas ideias metafísicas sob uma
nova roupagem (o assim chamado “conhecimento prático”) sem mudar-lhes o essencial.13
Insistir no próprio tema dos postulados, desse ponto de vista, seria contraproducente, já
que se gastaria muita tinta para tão somente explicar por que, apesar das aparências, eles
não teriam nada que ver com a tradição metafísica cristã (um vínculo que, em geral, cos-
tuma ser visto como prejudicial à perspectiva de um progresso político da humanidade).14
Mas a questão que talvez caiba fazer, nesse ponto, é justamente sobre o quanto de
ruptura haveria realmente em Kant, no que diz respeito à visão de mundo que, segundo
ele, seria mais adequada às necessidades da razão (Bedürfnisse der Vernunft) quando nos
lançamos a pensar o futuro a partir da lei moral. Gottfried Martin, por exemplo, sugere
haver uma importante continuidade, no pensamento de Kant, em relação à tradição esco-
lástica, podendo-se enxergar no quadro conceitual kantiano novas “determinações” do ser
do homem, do ser do mundo, do ser de Deus. A novidade, nesse caso, consistiria menos
no esvaziamento de sentido das velhas noções metafísicas do que na sua abordagem por
um viés rigorosamente humano, i.e. através do ponto de vista que seria constitutivo do
nosso modo de ver o mundo (desde as formas subjetivas da sensibilidade, espaço e tempo,
até as ideias da razão, passando pelas categorias do entendimento que nos habilitam a
pensar os objetos que intuímos).15
Pensar Deus ou a alma, desse ponto de vista, significa atender a uma necessidade
que temos, em função da incompletude de nosso conhecimento empírico da realidade
(atribuível talvez à nossa essencial finitude), de ir além dos limites da experiência sensível.
Mas este “ir além” não teria qualquer significação (Bedeutung) se não envolvesse aquele
poder de síntese com que a imaginação articula noções (atribuindo um predicado a um
sujeito, por exemplo). É inevitável, em outras palavras, que imaginemos Deus e a alma ao
pensá-los, e isto é algo que só podemos fazer sensificando (versinnlichen) tais noções, i.e.
atribuindo-lhes propriedades que conhecemos da realidade sensível. E, se os esforços de

13 Desenvolvi uma breve reflexão sobre esse tema do “conhecimento prático” em um artigo publicado nas atas do
X.International Kant Congress, de 2005. Cf. MATTOS, F. “Kant’s practical knowledge as a result of the connection between
speculative metaphysics and rational faith.” In: TERRA, R., RUFFING, M. et. al. Recht und Frieden in der Philosophie
Kants. Akten des X. Internationalen Kant-Kongress. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008, vol. 3, p.259-268. Trata-se
de uma reflexão desenvolvida a partir de minha dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo em
2001. Cf. MATTOS, F. Conhecimento prático e metafísica especulativa em Kant. Dissertação de Mestrado, 117 páginas. São
Paulo: Depto. de Filosofia da USP, 2001.
14 Não nos esqueçamos, contudo, dos bons trabalhos que, a seu tempo, julgaram necessário insistir nesse ponto.
Um caso exemplar é o de Lewis W. Beck, que, em seu clássico comentário à Crítica da razão prática, se esforça para
demontrar a inexistência de qualquer vínculo entre a doutrina dos postulados e a fundamentação da moralidade, que
seria estritamente racional. Beck chega a lamentar que Kant tenha tratado desses velhos temas. Cf. BECK, L.W. A
Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, p. 236. Outro importante nome a ser lembrado, no contexto europeu
continental, é o de Gérard Lebrun, que, em seu Kant et la Fin de la Métaphysique, também se esforça por mostrar que
os “velhos conceitos” – como Deus e alma – já não se referem a objeto algum, constituindo antes uma “radioscopia de
significações”. Cf. LEBRUN, G. Kant et la Fin de la Métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 263.
15 Cf. MARTIN, G. Immanuel Kant. Ontologie und Wissenschaftstheorie. Berlim: W.de Gruyter, 1969.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 69


Kant na “Dialética” da primeira Crítica são no sentido de evitar esse equívoco, que seria
nocivo para o conhecimento teórico do mundo, ele adotará uma outra postura em relação
a eles na “Dialética” da segunda Crítica, reconhecendo a importância que possuem, mes-
mo enquanto meras hipóteses (que, insistamos, nada significariam sem a sua sensificação
pela imaginação), para satisfazer uma outra espécie de necessidade (não mais teórica, mas
prática) de nossa razão.
Percebe-se desde logo – qualquer leitor acostumado à linguagem de Kant se apres-
sará em denunciá-lo – que os nossos termos destoam aqui da lição kantiana: além de,
como dito anteriormente, Kant expressamente destituir a imaginação de qualquer função
no juízo prático, ele também não parece conceder espaço para esta faculdade nas “Anti-
nomias” da primeira Crítica, muito menos na “Dialética” da segunda. Que, além disso, os
enunciados dos postulados possam ser tomados como base para “determinar” (mesmo
entre aspas!) o ser do homem ou de Deus, como quer Martin, isto é algo que parece, à
primeira vista, contrariar não apenas a letra, mas também o espírito da filosofia kantia-
na. Ainda assim, gostaríamos de insistir um pouco nessa chave, de inspiração claramente
heideggeriana, para, acompanhando o já mencionado Bernard Freydberg,16 verificar se a
doutrina dos postulados não resultaria aí mais atraente, sem ferirmos por isto o essencial
da filosofia kantiana.

II. Imaginando a imaginação na Crítica da Razão Prática

Comecemos, agora, pelas palavras do próprio Kant. Após abrir a “Dialética da razão
pura prática” com um curto – e bastante genérico – capítulo sobre a “dialética da razão
pura em geral”, Kant logo especifica a dialética da razão prática como uma dialética “na
determinação do conceito de sumo bem” e, em seguida, começa a explicar, de maneira
bastante precisa, o cerne da questão que constitui “a antinomia da razão prática”:

No sumo bem, que é prático para nós, isto é, efetivamente reali-


zável por nossa vontade, virtude e felicidade são pensadas como
necessariamente ligadas, de modo que uma não pode ser admitida
pela razão prática pura sem que a outra também lhe pertença. Ago-
ra, essa ligação (como qualquer outra) é ou analítica ou sintética.
Como esta, no entanto, não pode ser analítica (como acaba de ser
mostrado), ela tem de ser pensada sinteticamente, e, mais especifi-
camente, como conexão da causa com o efeito, já que diz respeito a
um bem prático, i.e., àquilo que é possível por meio de uma ação.17

16 FREYDBERG, B. Imagination in Kant’s ‘Critique of Practical Reason’. Indianapolis: Indiana University Press, 2005.
17 KpV, Ak.V, 113.

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O primeiro ponto a sublinhar, nesse trecho que inicia “a antinomia da razão prática”,
é a menção ao elemento sintético que faz parte, necessariamente, dessa ligação entre vir-
tude e felicidade que, por seu turno, constitui a questão central da antinomia. Ora! Se nos
recordarmos que a imaginação, como “função cega mas indispensável da alma, sem a qual
jamais teríamos conhecimento algum”, é a faculdade responsável pela “síntese em geral”,
então isto já seria um primeiro motivo para reconhecer a sua presença aqui, muito embora
só temomenos consciência dela muito raramente.18 Mesmo em se tratando de uma pre-
sença indireta, por assim dizer, ela serviria como uma primeira e mais geral justificativa
– aqui e em quaisquer outros juízos sintéticos na Crítica da razão pura – para a tese forte
de Freydberg, para quem “a imaginação perpassa a Crítica da razão prática como um fio
condutor oculto e silencioso”.19
É evidente que ela não poderia operar na superfície, já que se trata de uma problemá-
tica que aparece apenas no nível conceitual, onde se mostra a aparente contradição entre
os âmbitos teórico (o conhecimento empírico do mundo, em que o ser humano se mostra
inclinado a seguir seus impulsos na busca da felicidade) e prático (a lei moral através qual
o ser humano se mostra capaz de agir segundo uma outra causalidade que não a natural).
Mas a solução dessa problemática, passando por uma conexão sintética a princípio im-
possível, terá de envolver a imaginação de algum modo. Retomemos então os termos de
Kant, que, após comentar a impossibilidade de uma implicação linear entre os dois pólos
– seja da virtude pela felicidade, seja desta por aquela –, sinaliza para uma aparente falta
de solução no horizonte:

Uma vez, porém, que a promoção do sumo bem, cujo conceito con-
tém tal ligação, é a priori um objeto necessário de nossa vontade,
e é inseparavelmente interconectado à lei moral, a impossibilidade
do primeiro tem de provar a falsidade da última. Se, portanto, o
sumo bem é impossível segundo regras práticas, então também a
lei moral, que nos ordena promovê-lo, tem de ser fantasiosa, dire-
cionada a fins imaginários vazios e, portanto, falsa em si mesma.20

Embora, em princípio, a não realizabilidade do sumo bem não afetasse, como vimos
insistindo, a fundamentação da moralidade,21 aqui Kant parece indicar que, se ele não for

18 Estamos parafraseando a célebre passagem de B 103: “A síntese em geral é, como veremos mais à frente, o mero
efeito da imaginação, uma função cega mas indispensável da alma, sem a qual jamais teríamos conhecimento algum,
mas da qual raramente tomamos consciência” (KrV, A 78, B 103).
19 FREYDBERG, op. cit., p. 3.
20 KpV, Ak.V, 114.
21 Este é um ponto fundamental para Beck: “nós não nos devemos deixar enganar, como eu acredito que Kant se enga-
nou, pensando que a sua possibilidade (do sumo bem) é diretamente necessária à moralidade, ou que nós temos o dever
moral de promovê-lo, como se fosse um dever distinto do nosso dever tal como determinado pela mera forma (e não
pelo conteúdo ou objeto) da lei moral”. BECK, L., op. cit., p. 245.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 71


realizável, esta última se revelaria quimérica, pondo a perder o projeto crítico como um todo
(se levamos a sério as tantas afirmações de Kant, inclusive aqui, a respeito de um primado
da prática na filosofia). E o mais curioso, nesse ponto, é a expressão escolhida por Kant para
caracterizar o que seria da lei moral em sendo esse o caso (em sendo não factível o sumo
bem): ela estaria direcionada a “fins imaginários vazios” (leere eingebildete Zwecke). O fato
de Kant caracterizar os fins morais como “imaginários”, ou mesmo “imaginados” (que seria
talvez a tradução mais precisa), não implica que os fins morais não possam ser imaginados:
o que eles não podem é ser vazios, tal como seriam se o sumo bem não fosse realizável no
mundo. Se eles forem imaginados (como têm de ser, se são sintéticos) e plenos de sentido –
que é o que caberá mostrar na “superação crítica da antinomia” –, então eles representarão
o trabalho conjunto de nossas faculdades mentais na organização intelectual-imaginativa
do mundo, que é talvez, no fim das contas, o objeto mais geral da filosofia crítica kantiana.
Não à toa, é de um paralelo com a antinomia da razão especulativa que Kant parte para,
agora, elaborar a “superação crítica da antinomia da razão prática”, indicando a necessidade
de recorrer novamente à distinção entre fenômeno e coisa em si:

Na antinomia da razão pura especulativa há uma contradição


semelhante entre necessidade natural e liberdade na causalidade
dos eventos no mundo. Ela foi superada provando-se que não há
qualquer contradição real quando os eventos, e mesmo o mundo
em que ocorrem, são considerados (que, aliás, é como devem sê-
lo) somente como fenômenos; pois um mesmo ser que age tem,
como fenômeno (mesmo para seu próprio sentido interno), uma
causalidade no mundo sensível que é sempre conforme ao me-
canismo da natureza, mas pode também, no que diz respeito ao
mesmo evento, na medida em que a pessoa que age se considera
ao mesmo tempo como noumenon (como pura inteligência, em
sua existência não determinável segundo o tempo), conter um
fundamento de determinação daquela causalidade segundo leis
da natureza que é, ele próprio, livre de todas as leis da natureza.22

A explicação é similar à que Kant havia dado na terceira seção da Fundamentação


da metafísica dos costumes: assim como, lá, o “círculo vicioso” se deixava solucionar desse
modo, aqui é a aparente contradição da antinomia que desaparece quando nos damos conta
de que, em não se tomando o mundo sensível como a realidade em sentido absoluto (já que
é tão somente a realidade fenomênica), podemos considerar-nos não apenas como seres
sensíveis, determinados pela causalidade da natureza, mas também, enquanto noumena,
como seres inteligíveis capazes de agir segundo uma causalidade que é “livre de todas as

22 KpV, Ak.V, 114.

72 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


leis da natureza”. E o que deve chamar-nos particularmente a atenção, no presente contexto,
é esse movimento do “pensar” pelo qual nos situamos ora no ponto de vista do fenômeno,
ora no da coisa em si: fazendo lembrar aquele movimento da imaginação, tão caro a Han-
nah Arendt, pelo qual nos situamos no ponto de vista do outro, isto nos leva a indagar se
também aqui o papel da imaginação, mesmo implícito, não seria da maior importância.
É justamente isso o que sugere Bernard Freydberg, lembrando sempre que a razão
não poderia ser capaz, sem o auxílio da imaginação, de efetuar as sínteses ou criar as
imagens que são necessárias para que efetivamente nos consideremos quer do ponto de
vista sensível (em que só nos conhecemos como fenômenos graças às sínteses operadas
pela imaginação na sensibilidade), quer do ponto de vista inteligível (em que só podemos
pensar-nos como coisas em si quando, por analogia com o mundo sensível, imaginamos
um mundo inteligível até onde seja exigido pela lei moral para a realização de seus fins).
É assim que, desde esse primeiro “ponto de apoio” no não-sensível – que é, em última
instância, o próprio conceito de liberdade operando ativamente em nossa mente –, come-
çamos a formar (bilden, einbilden) um desenho do mundo inteligível que, embora “ima-
ginário” ou “imaginado” (eingebildet), deixa de ser vazio na medida em que, segundo os
conhecidos termos do segundo prefácio à Crítica da razão pura, de 1787 (quando Kant,
tendo já escrito a Fundamentação, tinha em mira a Crítica da razão prática) , o preenche-
mos com “dados práticos”, i.e. com sínteses da imaginação que são não apenas autorizadas,
mas exigidas pela nossa moralidade quando se trata de pensar a aplicação do imperativo
categórico ao mundo.
É por isso que a liberdade, mesmo sem receber uma seção com esse título no livro
(como a imortalidade da alma e a existência de Deus), constitui o primeiro postulado da
razão prática: é ela, enquanto a chave que permite abrir esse outro ponto de vista, quem
fornece a solução para a antinomia da razão prática, tornando compatíveis a necessidade
natural, que é própria ao mundo sensível (fenomênico), e a factibilidade, em princípio, do
sumo bem comandado pela lei moral (vista agora como fundante de nosso eu inteligível).
E é justamente essa compatibilidade, tornada possível pela liberdade, que abrirá as portas
para os dois outros postulados (que correspondem àquilo que não está a nosso alcance no
mundo, mas que é necessário para conservar nossa esperança na realização da lei moral),
conforme os termos que fecham a “superação crítica da antinomia da razão prática”:

Uma vez, porém, que a possibilidade de tal ligação do incondicio-


nado à sua condição pertence inteiramente à relação supra-sensível
das coisas e não pode ser dada de modo algum segundo as leis do
mundo sensível, e apesar de as consequências práticas dessa ideia,
as ações que visam à efetivação do sumo bem, pertencerem ao
mundo sensível, buscaremos apresentar os fundamentos daquela
possibilidade, primeiramente no que diz respeito àquilo que está
imediatamente em nosso poder, e então, em segundo lugar, naquilo

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 73


que não está em nosso poder, mas que a razão nos oferece como com-
plemento para a nossa incapacidade relativamente à possibilidade do
sumo bem (necessário segundo princípios práticos).23

Os termos aqui empregados por Kant parecem reforçar o vínculo, apontado por
Heidegger no contexto teórico e explorado por Freydberg no contexto prático, entre, de
um lado, o modo como a razão pensa (imagina) o supra-sensível e, de outro, a finitude
enquanto seu elemento constitutivo, já que constitutivo do Dasein humano. Trata-se, com
efeito, de um “complemento para a nossa incapacidade” quanto a realizar o sumo bem no
mundo, uma meta que nós mesmos nos colocamos desde o ponto de vista inteligível (atra-
vés da lei moral). Assim como o nosso entendimento, no contexto teórico, imprimia ao
mundo natural a necessidade e a universalidade que, em nossa finitude básica (demarcada
pela sensibilidade), não éramos capazes de assegurar (vide o modo como Hume formu-
lara o problema da causalidade), a razão tratará agora de assegurar ao mundo (em geral)
um curso moral que, enquanto seres sensíveis finitos, não somos capazes de assegurar: as
ideias de alma e Deus, que apareciam como hipóteses reguladoras no contexto teórico,
recebem um acréscimo predicativo (a alma é imortal e Deus é o autor moral do mundo)24
e se convertem em postulados cuja “dignidade”, na medida em que neles acreditemos, não
é nem um centímetro menor que aquela do saber teórico.25
Essa é, aliás, uma possível razão para Kant introduzir uma seção sobre o primado da
prática entre a “superação crítica da antinomia” e as seções que tratarão especificamente
dos postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus: é preciso reforçar a hie-
rarquia existente, quando temos em vista a nossa existência em geral (e não apenas a sua
dimensão cognitiva), entre a razão prática, que nos dá um sentido e um rumo para viver, e
a razão teórica, cuja atividade não poderia ser considerada um fim em si mesmo, mas tem
antes de subordinar-se àquela. Ao deixar isso claro, Kant prepara o terreno para estabe-
lecer, como postulados, as tais conexões sintéticas que, a partir da liberdade, reforçarão o
vínculo entre virtude e felicidade nos termos de um progresso infinito da espécie humana:

Esse progresso infinito só é possível, no entanto, sob a pressupo-


sição de uma duração infinita da existência e da personalidade do
mesmo ser racional (que é chamada de imortalidade da alma).
Logo, o sumo bem só é possível, do ponto de vista prático, sob
a pressuposição da imortalidade da alma; esta, portanto, sendo

23 KpV, Ak.V, 119 (grifo meu).


24 Cf. MATTOS, F. “Kant’s practical knowledge as a result of the connection between speculative metaphysics and rational
faith”, p. 263 e ss.
25 Quanto a isso, veja-se, por exemplo, o texto O que significa orientar-se no pensamento?, Ak.VIII, p. 140: “Nós cha-
mamos de ‘postulado da razão’, ao contrário, a fé racional que, do ponto de vista prático, apóia-se sobre a necessidade de
usar a razão na vida moral. Não como se isto fosse um ato do entendimento capaz de satisfazer às exigências lógicas da
certeza, mas porque esse assentimento não tem menos dignidade do que qualquer saber”.

74 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


inseparavelmente ligada à lei moral, é um postulado da razão pura
prática (pelo qual entendo uma proposição teórica, não demons-
trável enquanto tal, que é inexoravelmente inerente a uma lei práti-
ca incondicionada a priori).26

Contra aqueles que propõem interpretar a imortalidade da alma como uma conti-
nuidade indefinida da espécie humana, essa passagem mostra tratar-se de uma suposição
relativa ao “mesmo ser racional” (dasselbe vernünftige Wesen) e, na sequência, indica que
o seu vínculo com a lei moral é “inseparável” (unzertrennlich). É evidente que tal supo-
sição não pode constituir conhecimento no sentido estrito do termo (este é um ganho,
por assim dizer, de que a filosofia crítica nunca voltou atrás), mas a sua natureza é de
uma proposição teórica (portanto sintética) e, nesta medida, envolve a participação da
imaginação. E o que confere legitimidade a ela – outro ponto que a passagem citada deixa
claro – é esse vínculo com a lei moral, que a torna o resultado não de uma arbitrariedade
subjetiva individual (como seria o caso em produtos da imaginação leere eingebildete),
mas de “uma lei prática indondicionada”, a mesma lei que

tem de conduzir também, tão desinteressadamente como antes (a


partir de uma simples razão imparcial), à possibilidade do segundo
elemento do sumo bem, a saber, a felicidade adequada àquela mo-
ralidade, ou seja, a suposição da existência de uma causa adequada
a esse efeito; em outras palavras, [ela tem de conduzir] a postular a
existência de Deus como necessariamente pertencente à possibili-
dade do sumo bem (que, como objeto de nossa vontade, está neces-
sariamente ligado è legislação moral da razão pura).27

A existência de Deus vem completar, assim, o conjunto de três postulados que, cor-
respondentes às ideias com que a razão especulativa buscara solucionar as suas próprias
aparentes contradições (os paralogismos, as antinomias e o ideal de completude), permi-
tem firmar uma “visão moral do mundo” (para usar os pejorativos termos de Hegel sem
qualquer conotação pejorativa!) em que a liberdade passa a ser vista como convergente,
num futuro hipotético (daí a sua realização constituir uma tarefa infinita), com a realidade
empírica, uma realidade em que o ser racional não podia, em princípio, reconhecer-se
plenamente, visto não ser, no fim das contas, mais do que o conjunto de possibilidades
estabelecido pela estrita conjunção de sensibilidade e entendimento.28 Não se trata, natu-

26 KpV, Ak.V, 122.


27 KpV, Ak.V, 124.
28 Ao comentar os postulados em seu conjunto, na seção intitulada “Of the postulates of Pure Practical Reason in general”,
Kant assim os sintetiza: “These postulates are those of immortality, freedom positively considered (as the causality of a being so
far as he belongs to the intelligible world), and the existence of God. The first results from the practically necessary condition of
a duration adequate to the complete fulfillment of the moral law; the second from the necessary supposition of independence of

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 75


ralmente, de acreditar num Deus carregado de predicados, tal como as diferentes religiões
o pintam: trata-se de conceber tão somente um “autor moral do mundo” que, além de
conferir completude hipotética à nossa percepção do mundo (que, enquanto percepção, é
limitada pela sensibilidade, i.e. pela nossa finitude), possa também indicar um rumo mo-
ral para o mundo, i.e. direcioná-lo para uma realização progressiva (embora interminável)
dessa lei moral que, segundo a nossa própria “autocompreensão” (dissecada por Kant em
sua analítica do Dasein humano, como diria Heidegger), é constitutiva de nosso ser (um
factum da razão, nos termos da própria Crítica da razão prática).
Que essa autocompreensão não implique uma ampliação de nosso conhecimento do
mundo é o que Kant não se cansa de frisar. Mas ele também insiste no elemento sintético,
de unificação (Vereinigung), que está presente nesse movimento pelo qual nossa mente
(via imaginação), tendo sempre na lei moral o seu fio condutor, amplia nosso “conheci-
mento” “do ponto de vista prático”:

Mas o nosso conhecimento é efetivamente ampliado, desse modo,


pela razão prática pura? E aquilo que era transcendente para a ra-
zão especulativa é imanente na prática? Certamente sim, mas ape-
nas do ponto de vista prático (in praktischer Absicht). Pois, de fato,
não conhecemos desse modo, quanto ao que sejam em si mesmos,
nem a natureza de nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o ser
supremo, mas apenas unificamos (vereinigt) os seus conceitos no
conceito prático do sumo bem como objeto de nossa vontade; e o
fizemos inteiramente a priori pela da razão pura, ainda que apenas
através da lei moral e em relação ao objeto que ela ordena.29

Como dito anteriormente, a grande questão suscitada por esse “truque” de Kant, com
que ele “revalida”, por assim dizer, os conceitos clássicos da metafísica (Deus, liberdade
e alma como bases dos três ramos da metaphysica specialis), diz respeito ao quanto ele
comprometeria a integridade de sua filosofia enquanto crítica. Ora! Se a primeira parte
da metafísica – a ontologia – se ocupa das nossas faculdades mentais, isto significa que
ela é, antes de tudo, uma ontologia do ser humano: é o sentido em que Heidegger a consi-
dera uma (re-)fundação da metafísica como analítica da finitude humana. E é justamente
nisto que estaria a sua radicalidade crítica: solapando as bases do que costumava ser uma
ontologia do mundo, ela se cinge ao ponto de vista humano (“demasiado humano”, diria
Nietzsche) para investigar os horizontes de possibilidade oferecidos a nós enquanto se-

the sensible world, and of the faculty of determining one’s will according to the law of an intelligible world, that is, of freedom;
the third from the necessary condition of the existence of the summum bonum in such an intelligible world, by the supposition
of the supreme independent good, that is, the existence of God.” (KpV, Ak.V, 132)
29 KpV, Ak.V, 133.

76 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


res finitos, inscritos numa temporalidade que, em nós, manifesta-se no poder de nossa
imaginação (devendo-se enfatizar, quanto a isso, o kraft de Einbildungskraft).
Desse ponto de vista, as possibilidades descortinadas pelo conhecimento científico
para a nossa interpretação do mundo são apenas uma parte do conjunto total de possibi-
lidades descobertas por Kant em nossa subjetividade: a parte que corresponde à conjun-
ção do entendimento com a sensibilidade em sínteses que articulam dados sensíveis com
conceitos intelectuais. O valor desse saber (Wissen) está, para Kant, em ser ele, enquanto
modalidade de assentimento, tanto subjetiva como objetivamente suficiente (zureichend),
ao passo que a fé racional (vernünftiges Glauben), tipo de assentimento que se prenderá
aos postulados da razão prática, seria suficiente apenas subjetivamente. Ora! Se, insistindo
na leitura heideggeriana, nos lembrarmos que o material empregado pela imaginação é
sempre sensível, tudo o que ela faz, ao ligar predicados às ideias da razão, é deixar de lado
o fio condutor do entendimento (que, ligado aos objetos, levaria a um primado da teoria)
e adotar o fio da razão prática, que impõe um certo modo de combinar esse material
adequado àquela nossa autocompreensão como seres essencialmente morais (tudo isso
no interior de uma mesma ontologia da subjetividade humana). E esse outro “modo de
combinar”, insistamos, nada tem de arbitrário (a insuficiência subjetiva, própria à opinião
(Opinion), é que indicaria a arbitrariedade), mas é antes

uma necessidade (Bedürfnis) de um ponto de vista absolutamente


necessário (notwendig), e justifica sua pressuposição não apenas
como hipótese permitida, mas como um postulado do ponto de
vista prático; e, admitindo-se que a lei moral pura enquanto co-
mando (não enquanto regra da prudência) obriga inexoravelmente
a qualquer um, o homem justo (Rechtschaffene) pode perfeitamen-
te dizer: ‘eu quero que exista um Deus, que minha existência neste
mundo seja, mesmo fora da conexão natural, uma existência em
um mundo inteligível puro, e que, enfim, mesmo minha duração
seja infinita – eu insisto nisso e não deixo que me privem dessa
fé. Pois este é o único caso em que meu interesse, pelo fato de não
me ser permitido relaxá-lo, determina inevitavelmente o meu juízo
sem dar atenção a sofismas, por menos que eu estivesse em condi-
ções de responder-lhes ou opor-lhes outras mais plausíveis.’30

Não seria exagerado dizer, a esta altura (segundo a interpretação que vimos sugerin-
do), que é assim que funciona, segundo Kant, a imaginação do homem justo. Embora o
entendimento, cuja função é aplicar conceitos aos dados sensíveis, jamais pudesse auto-
rizar semelhantes afirmações, a sua imaginação, guiada pela lei moral – e pelo interesse

30 KpV, Ak.V, 143.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 77


que esta lei desperta em nós –, estabelece conexões para além do sensível (ou do sensível
enquanto conceptualizado pelo entendimento, i.e. do conhecimento empírico) que lhe
permitem conservar a esperança de que esse interesse moral, e o agir conforme a ele, não
sejam em vão. Isto não diz nada sobre o mundo, como Kant não se cansa de afirmar, mas
diz muito sobre nós mesmos, seres finitos que se percebem existindo nesse mundo, que
são nesse mundo (in-der-Welt-sind) sem compreendê-lo muito bem. E assim se poderia,
talvez, entender melhor a tão citada frase de Kant, ao final dessa mesma Crítica da razão
prática, segundo a qual “duas coisas enchem a mente de admiração e veneração sempre
novas e crescentes, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão se ocupa delas: o
céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.31

***

A interpretação aqui sugerida não é, por certo, das mais ortodoxas. Ao insistir na im-
portância da imaginação, corremos sempre o risco de imaginar demais. O próprio Freydberg,
cujas teses foram bastante inspiradoras para nossa reflexão, parece ir longe demais ao falar
em um “primado da imaginação” na filosofia kantiana.32 Um pouco mais comedidos, por
assim dizer, procuramos insistir sempre no fato de que, ao ir além do sensível, a imaginação
(e com ela o pensamento, a mente) opera sob o comando da lei moral, portanto sob um pri-
mado da razão prática – ponto em que Kant é particularmente incisivo. De qualquer forma,
procuramos mostrar que, constitutiva do nosso pensar desde o âmbito teórico, a imaginação
também tem de possuir uma função reconhecida no âmbito prático, em particular no que
diz respeito aos postulados da razão prática: imortalidade da alma, liberdade e existência de
Deus. Com isso, a filosofia moral kantiana adquire, de fato, uma coloração menos cinzenta
(como propõe Freydberg),33 mas não chega a desviar-se de seu núcleo racionalista e univer-
salista, nem de sua inscrição em uma ontologia da finitude que, se bem compreendida, pode
oferecer muito mais possibilidades ao ser humano do que uma mera teoria do conhecimen-
to (Cassirer) ou uma filosofia moral centrada somente na política (Hannah Arendt).

Referências bibliográficas

ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

31 KpV, Ak.V, 161.


32 Cf. FREYDBERG, op. cit., p. 105: “Mas, como a imaginação conduz todas as sínteses e, portanto, toda a atividade
racional, o primado da prática é, no fim das contas,… o primado da imaginação”.
33 Id., p. 22: “… a exposição da imaginação no coração da filosofia prática de Kant pode servir para fazer com que essa
filosofia – muitas vezes caracterizada como sem alegria e, ao menos parcialmente, inadequada à nossa natureza – apa-
reça numa luz mais amistosa”.

78 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


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* Fernando Costa Mattos é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Federal do


ABC.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 79


Kant, Fichte e
a Revolução
Francesa
JOÃO GERALDO MARTINS DA CUNHA*

Resumo: À luz do debate entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein, este artigo pretende medir as diferenças
entre os juízos políticos de Kant e Fichte quanto ao direito de Revolução. Além disso, também pretende
mostrar que, muito embora muitos fatores tenham contribuído para que o “reino dos fins” chegasse à Terra,
as análises tanto especulativas quanto políticas de Fichte podem ser lidas como uma importante defesa da
liberdade e libertação do homem. Isso para concluir que o direito de revolução em Fichte pode significar
uma defesa dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: KANT, FICHTE, REVOLUÇÃO, LIBERDADE, DIREITOS HUMANOS

Kant, Fichte and the French Revolution


Abstract: Considering the contest between Rosa Luxemburg and E. Bernstein, this paper aims at appreciating
the differences between the political judgments of Kant and Fichte on the right of revolution. Furthermore, it
also aims to show that, although many factors have contributed for the “kingdom of ends” coming to Earth,
Fichte´s speculative analysis as well as the political ones can be read as an important defense of freedom and
liberation of man. It concludes that the right of revolution in Fichte can mean a defense of human rights.
KEYWORDS: KANT, FICHTE, REVOLUTION, FREEDOM, HUMAN RIGHTS

1. Socialismo moral

Quando Rosa Luxemburgo chegou a Berlim, E. Bernstein – então uma liderança


importante no SPD (Sozialistische Partei Deutschland) – havia publicado alguns artigos
defendendo que o socialismo poderia ser alcançado mediante uma série de reformas gra-
duais dentro do próprio capitalismo. Entre setembro de 1898 e abril de 1899, Rosa Lu-
xemburgo responde às teses de Bernstein em escritos que depois seriam editados sob o
título: Reforma ou Revolução.1 Seu argumento básico, nestes textos, consistia em mostrar
que o “revisionismo” de Bernstein significava um abandono dos princípios do socialismo
científico, pois, com suas teses, ele deixava de pensar a contradição (Widerspruch) básica
entre capital e trabalho ao sugerir, ao invés disso, uma “acomodação” (Anpassung) do ca-
pitalismo às exigências socialistas. Para Bernstein, a economia capitalista, apoiada em um
sistema de crédito, meios de comunicação e organizações patronais, não caminhava em
direção a uma anarquia; análise que o levou a rejeitar a “teoria do colapso” (Zusammen-
bruchstheorie) do capitalismo. Rosa Luxemburgo problematizou a análise de Bernstein
na medida em que esta ia de encontro à tese fundamental do socialismo científico – que
“pregava” a necessidade da descoberta de “pontos de partida para a realização do socialis-
mo nas relações econômicas da sociedade capitalista”. Nesta medida, sua crítica defendia
que a teoria da acomodação de Bernstein pretendia fundar o socialismo no “conheci-
mento puro” (reine Erkenntnis) e, que por isso mesmo, não passava da retomada de uma
“fundação do socialismo mediante um conceito moral de justiça” (die Begründung des
Sozialismus durch moralische Gerechtigkeitsbegriffe), em vez de fundá-lo na luta contra o
modo de produção.
Mas, se estas teorias (morais) do socialismo foram “verdadeiras” em seu tempo, se-
gundo Rosa Luxemburgo, sua retomada seria um retorno aos “chinelos gastos da burgue-
sia”. Assim, naquele momento, impunha fortemente o seguinte dilema: ou o “revisionis-
mo” de Bernstein era correto e, então, a transformação socialista da sociedade era uma
utopia; ou o socialismo não era uma utopia e, então, a teoria da acomodação estava errada.
Rosa Luxemburgo declarava, na época, em tom dramático: “That is the question”.
Enquanto isso, do outro lado do Reno, Jean Jaurès defendia a sua tese latina (secun-
dária), De primis socialismi germanici lineamentis apud Lutherum, Kant, Fichte e Hegel
(1891). Nela, destacava a existência de uma linha de continuidade no pensamento alemão
de Lutero a Marx e Lassalle, cujo traço característico seria uma certa idéia de liberdade,
“não como uma abstrata faculdade de poder escolher entre contrários, como uma hipo-
tética independência de cada cidadão tomado individualmente, mas como a verdadeira
base da igualdade dos homens e de sua comunicação”.2 Assim, segundo ele, enquanto os
franceses têm o hábito de pensar “cada vontade abstrata e isolada da ordem dos fatos”,
os alemães (desde Lutero!) vinculam a “vontade individual à ordem universal das coisas
divinas e humanas”.3 Como os alemães sobrepõem a liberdade civil e a lei civil, “confun-
dem a liberdade moral com o dever”, laboram com uma concepção de liberdade que “em
economia política se tornará o socialismo”.4 Por conseguinte, ainda segundo Jean Jaurès, a
Reforma e seus desdobramentos vão impregnar o gênio alemão de tal modo que, enquan-

1 Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke, vol.1, Dietz Verlag, Berlin, 1982, p. 369-445. As citações foram retiradas da
versão eletrônica www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1899/sozrefrev/index.htm, autorizada pelo editor.
2 Jean Jaurès, Les orgines du socialisme allemand, trad. Adrien Veber, Paris, Les Écrivans Réunis, 1927, p. 13-4.
3 Idem, p. 22.
4 Por isso, já em Lutero, encontramos a idéia de que a “fecundação do dinheiro é uma coisa contra a natureza”, idem, p. 27.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 81


to os franceses opõem a razão e a fé, a liberdade individual e a força coletiva, os alemães
vão conjugar “a religião cristã com a razão” e afirmar “que a liberdade de cada um só pode
ser estabelecida e garantida graças ao poder e direito do Estado”.5
É segundo este traçado geral que J. Jaurès apresenta as teses de Kant e Fichte sobre a
autoridade política. Assim, enquanto Bossuet, segundo J. Jaurès, ainda definia “o rei como
Deus ele mesmo sobre a terra”, Kant e Fichte se alinhavam a uma concepção moderna do
poder segundo a qual, “várias vontades fracas fazem uma vontade forte” (quiçá socialista!).6
Desta maneira, o pacto social seria constituído por um contrato que “existe na razão, mas
não no tempo”. Pelo fato de que todos os poderes existentes se apóiam sobre a base dissi-
mulada do contrato, Kant teria deduzido que a rebelião contra estes poderes é sempre um
crime, “pois material e moralmente a potência dirigente retira sua origem de alguma forma
do povo”.7 Em todo caso, a rebelião seria um suicídio uma vez que o poder político não
reside na justaposição de vontades individuais, mas numa “vontade íntima e racional”. Se
Kant de alguma forma “conciliou o individualismo e o socialismo”, segundo J. Jaurès, por
conta deste modo “alemão” de pensar a liberdade e a vontade, Fichte teria conciliado “a
anarquia e o socialismo”, na medida mesma em que não separou a economia da política.8
Mutatis mutandis, cerca de cem anos antes das publicações de Bernstein, Rosa Lu-
xemburgo e Jean Jaurès, o debate filosófico e político motivado pela Revolução Francesa
opunha dois importantes filósofos alemães: Kant e Fichte. Embora suas filosofias práticas
de fato estejam em certa linha de continuidade – como afirma, em termos gerais, a tese
de Jaurès –, elas se afastam significativamente em 1793 no que diz respeito à reforma ou
à revolução da sociedade em vista da possível realização do conceito de “reino dos fins”.
Entendo que as diferenças entre Kant e Fichte no plano jus-filosófico do direito de revo-
lução não impede que ambos estejam, de certo modo, a uma mesma distância do debate
posterior entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein. Assim, entre a virada do século XIX e a
virada do século XX, tem lugar a reforma na idéia de revolução. Tanto o “revisionismo”
de Bernstein, quanto a “teoria do colapso” do capitalismo, defendida por Rosa Luxem-
burgo, supõem que o “reino dos fins” – como formação social e política justa – está num
futuro, mais próximo ou mais distante, da história humana; ao passo que as posições de
Kant e Fichte afirmam, respectivamente, ou que a rebelião é um crime, ou que o direito
de revolução é um direito inalienável do homem. De qualquer maneira, é sempre um po-
sicionamento político em nome de uma idéia reguladora da história – no sentido preciso
que Kant atribui a esse termo.9

5 Idem, p. 35.
6 Idem, p. 42.
7 Idem, p. 46.
8 Idem, p. 51 e 53.
9 Neste sentido é sintomática a leitura de L. Goldmann, segundo a qual (diante da questão, há algum meio para o
homem empírico atingir o incondicionado, o soberano bem?), “Em seus principais representantes, Fichte, Schelling e
Hegel, do mesmo modo que em ‘seu herdeiro materialista’, Marx, o idealismo alemão foi uma tentativa de responder

82 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


É bem verdade que a avaliação da relação entre o pensamento alemão e a Revolução
Francesa, pelo menos para certa tradição (de Rosa Luxemburgo e Jean Jaurès e mesmo de
Jacques Droz) gira em torno da clássica afirmação de Marx e Engels, segundo a qual os
burgueses alemães, presos aos seus mesquinhos interesses locais, ficaram entre seu provin-
cianismo econômico e sua presunção cosmopolita.10 No juízo de Droz, que apenas ratifica
a afirmação geral de Rosa Luxemburgo acerca do “socialismo moral”, a Revolução aparecia
como um fato metafísico e, quando os alemães encararam os princípios da liberdade e
igualdade, fizeram-no no plano ético e não no da política efetiva.11 Mais ainda, escritos
como as Beiträge de Fichte, as Cartas estéticas de Schiller (entre outros), “demonstram a
impotência da intelectualidade alemã em apreender o conteúdo da Revolução Francesa
e plasmá-lo na vida, limitando-a tão-somente à esfera do pensamento”.12 E para expres-
sar a nostalgia de uma geração que foi incapaz de formar uma pátria terrestre, Droz cita
Hölderlin: “Alemães, convertei-os em gregos e obtereis uma pátria alemã”. Neste cenário,
até que ponto o juízo político de Fichte não contribuiu para a transformação do “socialis-
mo moral” em “socialismo científico”? Em que medida suas análises, tanto especulativas
quanto políticas, permitiram que o “reino dos fins” chegasse à Terra? Eis as questões de
fundo deste trabalho. Mais especificamente, gostaria apenas de tentar mostrar que o juízo
moral desempenha um papel importante nos posicionamentos políticos de Kant e Fichte
frente aos eventos revolucionários.

2. O juízo político de Kant

No primeiro e no segundo apêndices ao opúsculo sobre a paz perpétua, Kant se per-


gunta exatamente sobre a discrepância e a harmonia, respectivamente, entre a moral e
a política. Em consonância com a filosofia da história de outros escritos, também em À
Paz perpétua, Kant articula liberdade e finalidade. A natureza, em “cujo curso mecânico
transparece com evidência uma finalidade”,13 serve de garantia da paz. No entanto, a tese
fundamental da Idéia em 1784 de que o problema político, “a administração universal do
direito”, só poderia ser resolvido por último – por conta do egoísmo próprio ao homem
– será significativamente deslocada. De fato, uma constituição republicana, “única perfei-
tamente adequada ao direito”, é também a mais difícil a ser realizada, a tal ponto que se

positivamente a essa questão”, Origem da dialética, a comunidade humana e o universo em Kant, Trad. Haroldo Santiago,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.251.
10 Marx & Engels, Die Deutsche Ideologie, – I. Feuerbach, in: Werke, vol. 3, Berlim, Dietz Verlag, 1958, p. 177.
11 J. Droz, L’Allemagne et La Révolution Francaise, p. 9, apud, Ricardo R. Terra, Passagens, estudos sobre a filosofia de
Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p. 102.
12 J. Droz, La formación de la unidad alemana, 1789-1871, trad. Miguel L. Remedios, Barcelona, Ed. Vincens-vives,
1973, p. 28.
13 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, BA p. 47. As obras de Kant serão citadas a partir da edição Werke in Zehn
Bänden, Weischedel, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983. As citações de Fichte serão feitas a partir da
edição Fichtes Werke, Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1971.

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afirma que esse estado de anjos (Staat von Engels) não poderia ser realizado pelos homens
com suas tendências egoístas (sebstsüchtigen Neigungen). O que é bastante razoável, na
medida em que o que é mais próximo ao direito é também mais próximo da moral, pois
o direito está fundado na moral. Por esta razão, em 1784, Kant dizia, então, que se tratava
do último problema que o homem poderia resolver. Agora, onze anos mais tarde (1795/6),
Kant separa o problema político da organização do Estado do problema ético de reali-
zação de uma comunidade moral, o reino dos fins. Com esta separação, o problema do
estabelecimento do Estado pode ser resolvido mesmo “por um povo de demônios”, pois
“não se trata do aperfeiçoamento moral do homem”.14 Trata-se, antes, da separação entre a
constituição legal, “unidade distributiva da vontade de todos”, que, por si mesma, não leva
à paz perpétua, e a comunidade moral, “unidade coletiva das vontades unidas”.15
Mas isso não significa que a doutrina política não deva estar submetida aos parâme-
tros morais, pois, enquanto os fins perseguidos na primeira são condicionados, o dever
moral se põe de modo absoluto. É esta idéia que está na base da dicotomia entre o político
moral (moralischen Politiker), que assume os princípios da prudência política de modo
que possam coexistir com a moral, e o moralista político (politischen Moralisten), que forja
uma moral útil às suas conveniências. Definindo a política em termos de prudência, Kant
não exclui a possibilidade de pensá-la sob a insígnia moral, pois “O Deus-máximo da mo-
ral (Grenzgott der Moral) não recua perante Júpiter, o Deus-máximo do poder (Grenzgott
der Gewalt)”.16 Isso significa que a prudência depende do destino, depende de um conhe-
cimento da série das causas antecedentes, segundo o mecanismo natural, mecanismo tão
amplo que a razão não está em condições de determinar com certeza o resultado feliz ou
não das ações; enquanto aquilo que é determinado moralmente o é de modo absoluto,
incondicional. Caso não houvesse a lei moral, uma legislação pela liberdade, mas apenas
o mecanismo da natureza, então realmente a sabedoria prática (praktische Weisheit) seria
restrita à prudência política e, o conceito do direito, “um pensamento sem conteúdo”.17
Como a liberdade enquanto autonomia e razão prática está aqui pressuposta, seguem-se
as acusações de Kant aos moralistas políticos. Dessa forma, para o moralista político, o
problema do direito é um problema técnico (Kunstaufgabe/ problema technicum), enquan-
to que para o político moral é um problema moral (sittliche Aufgabe/ problema morale).18

14 Ibid., B62/A61ss. Segundo Philonenko, teria sido a proximidade com o pensamento reacionário de Rehberg – que
afirma, contra Rousseau, a necessidade de uma autoridade estatal que possa corrigir a fraqueza humana – o motivo pelo
qual Kant teria separado os temas em 1795/6. Philonenko, Théorie et Praxis dans la pensée morale et politique de Kant et
Fichte em 1793, Paris, Vrin, 1976, p. 27-30. O que pode ser justificado, pois em duas ocasiões Kant, em À Paz Perpétua,
faz questão de argumentar, mantendo a tese de que a revolução é sempre ilegítima (crime), contra a possibilidade de
restauração, B78/A73 e B103/A97.
15 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B73/A68.
16 Ibid., B73/A68.
17 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B76/A70-1.
18 Comentando a distinção de Kant, E. Kouvélakis, Philosophie et révolution, p. 37, afirma: “O ato de fundação da
política faz apelo a um elemento que a abole e procura, simultaneamente, um sentido totalizante”. E conclui: “Mas é pre-
cisamente sobre este ponto que a indeterminação efetiva do critério proposto aparece mais claramente. A categoria que
permitiu fundar na razão a via das reformas pelo alto, aquela do ‘político moral’, é, com efeito, a que servirá igualmente

84 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Muito embora o conteúdo do direito (a ser executado pela política) seja moral, como
quer o Fichte em 1793, e a política não possa ser pensada em termos meramente técnicos –
como queria Rehberg, seguindo Burke –, o direito de revolução não pode ser justificado.19
Kant transpõe uma das formulações do imperativo categórico para o plano do direito
público. Desta forma, define o que chama de “fórmula transcendental do direito público”,
indicando como exatamente a moral deve servir de parâmetro em política.20 A fórmula é
fundada na publicidade: “São injustas todas as ações que se referem ao direito de outros
homens, cujas máximas não se harmonizam com a publicidade”.21 Com este princípio,
ético e jurídico, podemos responder à questão que Fichte se propõe enfrentar nas Beiträge:
é legítimo o direito de revolução? Resposta de Kant: a máxima que anima os revoltosos
contraria o princípio da publicidade e, portanto, é ilegítima. Além disso, é preciso afir-
mar que o poder constituído – mesmo pela força – é um “poder supremo irresistível”
(die unwiderstehliche Obergewalt). Assim, embora Kant se recuse assimilar a política e a
prudência – o que faria, no limite, da política uma questão técnica –, não deixa de evocar
um princípio moral para a política. Eis como devemos entender a distinção, presente no
Apêndice de À paz Perpétua, entre o moralista político e o político moral.

***

Analisando a crítica de Kant à doutrina tradicional da prudência (de Aristóteles e


Cícero por intermédio de Wolff, Tomásio e Gracian), P. Aubenque apresenta o seguinte
comentário:

Para lutar contra o que chama de um “mal-entendido repleto de


inconvenientes”, Kant não fará outra coisa senão esvaziar a filosofia
prática tradicional: a arte política, a economia política, a economia
doméstica, a arte das relações com o outro, a dietética (tanto da
alma quanto do corpo) e, por fim, “a teoria geral da felicidade”, tudo
que contém, em suma, apenas regras de habilidade é atribuído à fi-
losofia teórica. Um campo virgem se abre, então, à filosofia prática:

para justificar tanto a ditadura da virtude de Robespierre quanto sua ‘retificação’ thermidoriana. (…) Os adversários
reacionários das Luzes não são certamente os únicos ‘moralistas políticos’; o próprio dos preceitos morais é precisamen-
te poder servir para a justificação de não importa qual política, a menos que se refira a uma legitimidade absolutista”.
Argumento que pode ser estendido ao juízo político de Fichte.
19 M. Gueroult, Études sur Fichte, p. 199: “O que Kant recusa ao povo, ser juiz e parte ao mesmo tempo, Fichte recusa
ao soberano”.
20 A referência a Fichte não é absolutamente certa, pois em 1795, J. B. Ehrard, médico e discípulo de Kant, publicou Über
das Recht des Volks zu einer Revolution, na qual distingue a revolução da rebelião, defendendo a primeira e recusando a
segunda. Inspirado em Kant, Ehrard sustenta o direito de revolução a partir da distinção entre: “poder legal” (rechtlich) e
“poder legítimo” (rechtmäβig). Cf. Raulet, Aufklärung. Les Lumières allemandes, Paris, Flamarion, 1995, p. 376-380.
21 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B98/A92.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 85


o dos princípios a priori que tornam possível, fora de todo cálculo
de heteronomia, uma autodeterminação da vontade.22

Desta forma, a ruptura entre a prudência e a habilidade de um lado e a moralidade


de outro, nesta crítica à doutrina tradicional da prudência, “contém in nuce a totalidade de
sua filosofia prática”. Embora Kant tenha tentado aproximar os dois domínios, afirmando
que, se o fim da política é dado pela moral, isto não exclui a lição, “de prudência”, de que
não se deve realizar este fim “precipitadamente e com violência”; este esforço, no entanto,
teria sido em vão: “Infelizmente, já era, sem dúvida, tarde demais em 1795 para que Kant
pudesse tirar partido desse acréscimo à sua doutrina”. E seria tarde porque Kant teria
dificuldade em articular “a pragmática à política, sem com isso alterar o conceito desta
última”.23 Não cabe, nos limites deste trabalho, medir a verdade desta posição, mas de fato
ela indica uma direção precisa: a delimitação da razão prática como “autodeterminação”
da vontade – por exclusão de uma doutrina da prudência.24 Direção a ser herdada por
Fichte quando tenta pensar o sentido da Revolução Francesa. O efeito desta “moralização
da política” em Fichte pode ser visto a partir de um exemplo muito significativo que Au-
benque retira de Aristóteles. Embora seu argumento vise diretamente Kant, por herança,
pode ser estendido ao projeto de Fichte:

O exemplo de Aristóteles teria podido lhe mostrar que a lei, tal


como a régua de chumbo de Lesbos, que se adapta às sinuosidades
da pedra, (E.N., V, 14, 1137b 29) tende a integrar em seus enuncia-
dos a possibilidade de sua própria exceção, razão pela qual ela não
se preocupa com sua própria retidão, mas com sua utilidade para
os homens.25

Em nota explicativa, Aubenque ainda acrescenta que Aristóteles teria mostrado a


necessidade da equidade para “corrigir” a rigidez da justiça, pois, “do que é indetermina-
do, a regra também é indeterminada”. Contra esta indeterminação do juízo, Kant e Fichte
se alinham para pensar uma determinação completa da liberdade pela forma da razão. O
curioso, no entanto, é a distância que os separa quanto ao direito de revolução.

22 P. Aubenque, “A prudência em Kant”. In: A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Edi-
torial, 2003, p. 322.
23 Ibid., p. 338.
24 Uma análise contrária ao juízo de Aubenque é a que faz Ricardo R. Terra, “Determinação e Reflexão em À Paz
Perpétua”, in: Passagens, estudos sobre a filosofia de Kant, p. 85-99. Ele procura mostrar que uma análise da filosofia
política de Kant a partir da dicotomia entre juízos determinantes e reflexionantes evita a conclusão de Aubenque e,
ao mesmo tempo, permite a incorporação da prudência nos esquemas conceituais do primeiro. Assim, como o juízo
político é tanto reflexionante quanto determinante, podemos considerar as instituições “buscando sua máxima” e, então,
determiná-las pela universalidade da lei (p. 98). De qualquer forma, as instituições são avaliadas “em função do sentido
da história”; por conseguinte, no que concerne ao meu argumento, a política – no plano geral de sua consideração, e não
de ações particulares – é focada pelo viés da história, como discurso sobre o sentido moral necessário da humanidade.
25 P. Aubenque, “A prudência em Kant”, p. 339.

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3. O juízo de Fichte

Sob a questão “Um povo tem, em geral, o direito de mudar sua constituição políti-
ca?”, (Cap. 1 das Beiträge) Fichte apresenta o tema da “aplicação” da lei moral aos eventos
políticos; para tanto, introduz a relação de imanência entre dois conceitos chaves em sua
argumentação: a destinação (Bestimmung) do homem e a própria liberdade. Na medida
em que esses conceitos estão numa relação recíproca – algo que não podemos demons-
trar aqui –, Fichte pretende extrair o caráter inalienável do direito de mudar a consti-
tuição (Staatsveränderungen), i.e., pretende legitimar o direito de revolução. Garantido
esse direito, o juízo sobre a Revolução Francesa pode então ser “retificado”. Para dizer
numa palavra, certo desnível entre a liberdade como “origem” e fundamento de nossa vida
(consciência), nosso “eu”, e, de outro lado, a liberdade como liberdade total que plasma a
realidade, a qual só pode ser pensada como destinação, faz com que o primeiro sentido de
liberdade fundamente o direito de mudar as Constituições (como estruturações estatais)
em nome da consumação da liberdade na segunda acepção, a “finalidade” subjacente ao
sentido mesmo do “mundo”. Por isso, se ao final das contas, Fichte diverge inteiramente de
Kant quanto ao direito de revolução, isso não impede que ambos concebam a liberdade –
que torna o homem fim em si – como o fundamento do juízo político e, por isso mesmo,
ele, o direito de revolução, deve ser vinculado ao sentido da história (Weltgeschichte) e não
à história empírica (Historie) de Rehberg.26
Da premissa de que todas as sociedades civis (bürgerlische Gesellschaft), conforme
ensina Rousseau, se fundam, “no tempo”, sobre um contrato,27 E. Rehberg sustenta, contra
Rousseau, o seguinte. Como todas as constituições, como contratos originários, se fundam
sobre o direito do mais forte, a desigualdade de direitos é parte estrutural das próprias so-
ciedades humanas. Segundo Rehberg, é exatamente isso que os intérpretes revolucionários
de Rousseau notadamente teriam ignorado ao exigir uma igualdade na “Declaração dos
direitos do homem”. A “sabedoria histórica” de Rehberg reduz, para Fichte, o futuro ao
passado e o possível ao real; para Kant, de outro lado, toma equivocadamente o contrato
social como fato e não como Idéia. Se Fichte, de um lado, mantém-se kantiano porquanto
pretende pensar o contrato a partir da lei moral e da liberdade; de outro lado, pelos deslo-
camentos que opera na equação kantiana entre liberdade e lei moral, pretende extrair um
juízo político bastante inusitado aos olhos de Kant: o direito de revolução.
O interessante no contratualismo de Fichte é que ele modifica significativamente a
noção de “estado de natureza”: seu sentido é a própria lei moral como lei natural do ho-
mem.28 Da premissa de que a lei moral deve ser o ponto de apoio transcendental do juízo
político (como ensina Kant nos Apêndices À Paz Perpétua), Fichte pretende inferir que ela

26 A. Philonenko, Théorie et Praxis, p. 98.


27 Fichte, Beiträge, SW, vol. 6, p. 80.
28 Mais abaixo vou retirar conseqüências importantes desta noção modificada de “estado de natureza”.

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é também a única fonte para a obrigatoriedade das leis positivas. Assim, é porque impomos
a nós mesmos (como sujeito transcendental, bem entendido) uma lei positiva qualquer
(estabelecemos um contrato), que ela é obrigatória para nós (como sujeitos empíricos):
“é nossa vontade, é nossa resolução”. Caberá mostrar mais tarde que estas duas figuras do
“eu” são coincidentes, que o sujeito racional em mim é condição mesma do meu “eu” como
instância subjetiva e pessoal. O jogo da “determinação recíproca” da Doutrina-da-ciência
é a chave para essa espinhosa questão na filosofia de Fichte. O roteiro de sua solução passa
pelo reconhecimento recíproco das consciências, mas, nas Beiträge de 1793, Fichte não
apresenta o modo pelo qual a reciprocidade intersubjetiva estrutura a consciência.
De todo modo, dizer que não há um direito de revolução, no fundo, é declarar a
imutabilidade das constituições políticas. Como a lei moral é o fundamento de legitima-
ção destas constituições, para saber se há um direito de revolução, devemos saber se a
“imutabilidade” está ou não de acordo com ela, ou, mais exatamente: “A imutabilidade de
uma constituição política (Staatsverfassung) não é contrária a destinação (Bestimmung)
que a lei moral designa ao homem?” A vinculação kantiana entre liberdade e finalidade
direciona a resposta de Fichte.
A “submissão da sensibilidade”29 é o primeiro ato de libertação de nosso eu; o segun-
do é a “cultura da sensibilidade”.30 Este duplo movimento, cuja condição de possibilidade é
a lei moral, permite ao “eu” tomar-se em sua dimensão própria, i.e., livre. Por conseguinte,
assume-se que toda conduta puramente passiva é contrária à cultura, uma vez pressuposta
uma vontade autoponente como o verdadeiro conteúdo da liberdade. A cultura se produz
(geschieht) como auto-atividade (Selbsttätigkeit) e tende à auto-atividade como seu fim
(und zweck auf Selbsttätigkeit ab). Nenhum plano da cultura pode ser estabelecido que
não seja dirigido para a liberdade e não dependa do uso da liberdade.31 De onde podemos
concluir que a imutabilidade de uma Constituição, de uma ordem contratual positiva,
é contrária ao fundamento que a alimenta; inversamente, toda mudança na direção da
libertação do homem decorre da própria lei moral. Como, por outro lado, esta mesma lei
é único ponto de apoio possível para o juízo (político), a partida parece decidida em favor
dos revolucionários. Em suma, a Revolução Francesa é legítima porque toda revolução
funda-se num direito, sob a condição de ser uma “mudança em direção à liberdade”, i.e.,
ser conforme ao Imperativo moral, ponto de apoio transcendental para a Destinação do
homem como liberdade.
Neste sentido, há uma influência decisiva de Kant no que diz respeito ao plano ge-
ral das Beiträge. Assim como Kant (no escrito sobre teoria e prática) define o direito em
função da moral, também aqui, Fichte supõe um dever incondicional na base da vida

29 O genitivo deve ser entendido em sentido “objetivo”, i.e., trata-se de submeter a sensibilidade e não de ser, obvia-
mente, submetido por ela.
30 Fichte, op. cit., p. 87-8.
31 Fichte, Beiträge, SW, vol. 6, p 89.

88 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


espiritual e, por conseguinte, do contrato político.32 Desta forma, a retificação do juízo
público sobre a Revolução Francesa depende do deslocamento da consciência empírica
para a consciência moral, i.e., o juízo público sobre o direito de revolução não deve pres-
supor o cidadão (que é parte de um contrato civil), mas o homem. O escopo da história
do homem é a determinação completa da vida espiritual pela lei moral: eis a interpretação
própria de Fichte do vínculo crítico entre liberdade e finalidade.
Porém, parece haver um ponto de vista sob o qual a razão talvez não esteja ao lado
da revolução, ou pelo menos ao lado dos revolucionários franceses: aquele ponto de vis-
ta da “prudência” (nos termos de Kant) ou da “sabedoria” (nos termos de Fichte). Afinal,
que a destinação do homem (Bestimmung) seja a liberdade, que a lei moral seja o fato
(Faktum) mesmo da liberdade, que a liberdade seja a liberdade do “eu” (acréscimo sobre
o qual Kant já não teria tanta certeza), não implica, pelo menos, não necessariamente, o
juízo em favor do direito de revolução. Pois não foi exatamente este “amorfismo” políti-
co subjacente à idéia de liberdade como escopo, como finalidade abstrata da existência,
o responsável pela Revolução ter desaguado no terreno pantanoso do Terror? Como dirá
Hegel alguns anos mais tarde, lendo Kant pelas palavras de Fichte, querer a universali-
dade da lei é não querer nada e a negação de qualquer determinação no plano político
configurou o Terror.33 A equação entre a Destinação do homem e a liberdade, identifica-
das a partir da lei moral, pode muito bem mostrar por que o juízo deve apoiar-se na lei
moral (único ponto de apoio transcendental que pode regular o funcionamento do juízo
político, se quisermos pensar um sentido racional para o domínio político), mas ainda
não explica como ele deve apoiar-se.
Para justificar o direito de revolução, portanto, Fichte argumenta que o contrato posi-
tivo só tem valor relativo e negativo: relativo a um princípio que lhe é transcendente, a lei
moral; e negativo porque sua força obrigatória é meio para a obrigação mais fundamental
da própria Destinação humana, a liberdade como escopo. Comprimida entre a liberdade
transcendental e a liberdade cosmológica (o Faktum da lei e o escopo da Destinação hu-
mana), a liberdade política (direitos e deveres civis) é tão transitória quanto mais próxima
destes pólos ela estiver. Assim, caso a liberdade como escopo fosse atingida, a lei universal
da razão reuniria todos os homens numa perfeita harmonia de sentimentos e interesses e
nenhuma outra lei (positiva) recairia sobre seus atos.34 O que não significa, bem entendido,
que Fichte faça aqui a defesa de um anarquismo avant la lettre porque a liberdade cosmo-
lógica “não se realizará jamais…, não passa de um doce sonho”. E mesmo quando Fichte
neutralizar o conceito incômodo de uma exterioridade efetiva ao “eu”, dizimando ao má-

32 Philonenko sustenta que outros kantianos, mais ortodoxos que Fichte, como T. Schmalz e G. Hufeland, vão na
mesma direção de fundar o direito na lei moral, Théorie et práxis, p. 115.
33 Hegel, Phänomenologie des Geistes, Berlim/Frankfurt, Verlag Ullsteim, 1973, p.327-334, “Die absolute Freiheit und
der Schreken”.
34 Ibid., p 102.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 89


ximo o maior empecilho aos desígnios da Destinação humana como liberdade (na W-L de
1794), a finitude de nossa razão ainda manterá o “Reino dos fins” como Idéia reguladora.
Conclui-se mais do que se precisava contra Rehberg; não apenas a Revolução Francesa
é legítima, como “nenhuma constituição política é imutável”: sendo uma má constituição,
deve ser mudada necessariamente; sendo uma boa constituição, que não vai contra o esco-
po de toda constituição política, ela se muda a si mesma – “Uma lâmpada que se consome
a si mesma, na medida em que esclarece”. A Destinação (Bestimmung) do homem como
liberdade se apresenta como o horizonte no interior do qual as figurações políticas devem
ser focadas, de tal forma que a lei moral, expressão mesma da liberdade (aquilo em nome
do que o contrato político se estabelece), seria a curadora para a contratação em geral. Mu-
dar um contrato que não é a expressão mais adequada da liberdade por outro mais próximo
disto é reafirmar e repor o princípio mesmo do contrato a ser rompido. O que significa que,
à visão da história como passado que de fato legitimaria certa ordem (Rehberg), antepõe-se
outra para a qual o “direito não advém do tribunal da história” (Fichte).
No entanto, ao mesmo tempo, a estratégia de Fichte também consiste em desvincular
lei moral e liberdade, fazendo dessa última a esfera mais ampla da consciência, no interior
da qual se configura tanto aquela da lei moral quanto aquela dos contratos em geral e do
contrato político em particular.
O juízo político sobre a Revolução Francesa pode até estar fundado, como indicará
Rosa Luxemburgo um século mais tarde, no “conceito moral de justiça” (e, nessa medida,
ser taxado de “idealista”), mas não podemos esquecer que, pelo menos no caso de Fichte,
isso significou uma defesa (e não só contra Rehberg!), por assim dizer, transcendental, dos
direitos humanos.

* João Geraldo Martins da Cunha é Professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade


Federal de Lavras.

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Poder, política e verdade
em Michel Foucault
NOTAS SOBRE AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO DISCURSO

ANDRÉ CONSTANTINO YAZBEK*

o que nos faz gostar do poder,


desejar essa coisa mesma
que nos domina e explora?
(Michel Foucault)

Resumo: A partir de uma breve caracterização da filosofia de Michel Foucault, este artigo pretende retraças
as exigências políticas da correlação, postulada por seu pensamento, entre a manifestação da verdade e o
exercício do poder.
PALAVRAS-CHAVE: MICHEL FOUCAULT, PODER, VERDADE, AÇÃO INTELECTUAL

Power, politics and truth in Michel Foucault: notes on the practical implications of speech
Abstract: From a brief characterization of the Michel Foucault’ philosophy, this paper aims to retrace the
political demands of the correlation, postulated by his thought, between the manifestation of the truth and
the exercise of the power.
KEYWORDS: MICHEL FOUCAULT, POWER, TRUTH, INTELLECTUAL ACTION

C
om o intuito de evitar certas facilidades no trato com o pensamento de Michel
Foucault, certas leituras apressadas que pretendem aprisioná-lo no registro cô-
modo de um irracionalista – um pensador cuja tarefa consistiria, ingenuamen-
te, em um mero ataque à “imemorial” separação entre o verdadeiro e o falso –,
gostaria de iniciar minha exposição explorando um trecho da aula inaugural pronunciada
pelo filósofo no Collège de France em 1970, posteriormente publicada sob o título de A
ordem do discurso:

Certamente, se nos situarmos no nível de uma proposição, no inte-


rior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é
nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta.
Mas se nos situarmos em outra escala, se levantarmos a questão
de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discur-
sos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos de nossa
história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação
que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um siste-
ma de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrange-
dor) que vemos desenhar-se.1

Esta citação demarca suficientemente bem o registro no qual Foucault opera suas
análises discursivas. Para o filósofo, não se tratava de abordar os enunciados do ponto de
vista de sua validade proposicional: no nível da proposição – é o que se lê acima –, a sepa-
ração entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional,
nem violenta. Sendo assim, é em “outra escala” que devemos situar o trabalho realizado
por Michel Foucault: tomando o discurso a partir de suas condições de enunciação e cir-
culação, tratava-se de explicitar os efeitos de exigência e coerção exercidos pela norma do
verdadeiro nos domínios aos quais ela é aplicável.2 Por verdade, Foucault compreende “um
conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o
funcionamento dos enunciados”.3 Enunciados que terão como seu correlato indispensável
práticas sociais e institucionais diversas.
Pelos motivos expostos acima, a tarefa a que Foucault se propõe demanda uma
“nova” démarche – ou método – no trato com a análise discursiva, um procedimento que
suspenda a questão acerca dos critérios de validade dos enunciados proposicionais para
explicitar o discurso em seus efeitos práticos de exclusão e partilha, por vezes, exclusão e
inclusão para fixar identidades. Em consequência, o objeto das investigações foucaultia-
nas não é exatamente a ciência, mas sim o saber: o discurso (independentemente de seu
grau de cientificidade e/ou validade) compreendido em sua materialidade mesma como
prática regrada e cotidiana de ordenamento de nossa experiência.4
Um saber como o da medicina, por exemplo, constitui, na medida de seu desenvol-
vimento histórico, uma reorganização da experiência do homem não doente e por isso
mesmo também uma definição do homem modelo. Seu discurso de “verdade objetiva” sus-
cita práticas de efeito normativo que “não apenas a autoriza a distribuir conselhos de vida
equilibrada, mas também a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade
em que se vive”.5 Aqui se joga, a um só tempo, tanto a arqueologia como a possibilidade de
uma genealogia.

1 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, p. 14.


2 “Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em
todo caso”. Cf. FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 53.
3 FOUCAULT, Michel. “Verdade e poder”. In: MACHADO, Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 15.
4 Para Foucault, o saber constitui certo nível particular de discursos que se situam entre a “opinião” e o “conhecimen-
to científico”; discursos “cujo corpo visível não é o discurso teórico ou científico, nem tampouco a literatura, mas uma
prática cotidiana e regrada”. É nesta medida – enquanto “prática cotidiana e regrada“ –, que se pode afirmar que o saber
é o campo de um ordenamento discursivo da experiência. C.f. FOUCAULT apud ERIBON, Didier. Michel Foucault,
1926-1984. Paris: Flammarion, 1989, p. 183.
5 FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. Paris: Quadrige/PUF, 2003, p. 35. Igualmente ingênua seria a percep-
ção de que se trataria, aqui, de desqualificar a medicina per si, como se fosse o caso de simplesmente “abandoná-la”: “De

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Portanto – e seguindo-se a expressão utilizada em A ordem do discurso –, para Fou-
cault era preciso fazer emergir esta vontade de verdade (ou de saber) que se dissimula no
discurso verdadeiro, mostrar que suas operações coincidem com o desejo e o poder:

Não há nada de espantoso nisto, visto que o discurso – como a psi-


canálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta
(ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo;
visto que – isso a história não cessa de nos ensinar – o discurso não
é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domi-
nação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder de que queremos
nos apoderar”.6

Nosso ordenamento discursivo não é um campo neutro e ausente de práticas de exer-


cício do poder. Ora, se o discurso é aquilo pelo qual se luta, o poder do qual queremos
nos apoderar, isso se deve não “apenas” ao fato de tratar-se de um embate pela ocupação
do lugar de titularidade da enunciação, mas também porque é sobre um ordenamento
político-discursivo de manifestação do verdadeiro que se apoiam e se reforçam suportes
institucionais de exclusão. Assim, segundo Foucault, “não nos encontramos no verdadeiro
senão obedecendo às regras de uma ‘política’ discursiva que devemos reativar em cada
um de nossos discursos”.7 Reativar significa: é necessário a reatualização das regras fixadas
pelo jogo de identidades, regras que tornam a colocar em marcha, em cada uma de nossas
enunciações, a mesma política de verdade.
Neste sentido, os controles discursivos e as regras de regularidades que os compõe
não deixam de ser princípios de coerção; enquanto tais “não são inócuos, mas, em seus
efeitos sociais, veiculam determinado exercício de poder.”8 Portanto, o discurso não é o
elemento neutro no qual a política se desarma e se pacifica, mas um âmbito capaz de
engendrar determinado exercício de poder normativo cuja peculiaridade – dirá o Fou-
cault de Vigiar e punir – consiste no fato de que ele incide sobre o corpo dos indivíduos a
partir de técnicas de vigilância constante e gestão de condutas que visam a torná-lo dócil
e útil: um poder de tipo disciplinar.9 Mas já aqui estamos no perímetro da genealogia, e
não mais no de uma arqueologia. Ocorre que a fronteira entre ambas é móvel: de uma

uma vez por todas, este livro não é escrito por uma medicina contra uma outra, ou contra a medicina, por uma ausência
de medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo que tenta extrair da espessura do discurso [médico]
as condições de sua história”. C.f., Idem ibidem, p. XVIII.
6 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 10 (Grifo nosso).
7 Idem ibidem, p. 35.
8 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 13.
9 Para dar uma definição concisa do poder disciplinar – conceito que terá tratamento sistemático em Vigiar e punir,
obra de 1975 –, digamos que se trata de uma modalidade de poder nascida entre fins do século XVIII e início do século
XIX, e que será descrita por Foucault em termos de uma “tecnologia política do corpo” que consiste em: 1. uma “arte de
distribuição dos espaços” nos quais estão os indivíduos; 2. na regulação de seus gestos; 3 na vigilância constante sobre
eles. Cf. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975, p. 31.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 93


a outra, e naquilo que o Foucault de A ordem do discurso chamará de empreendimento
crítico, “a diferença não é tanto de objeto ou de domínio, mas sim de ponto de ataque, de
perspectiva”.10 Ou ainda:

A formação regular do discurso pode integrar, sob certas condi-


ções e até certo ponto, os procedimentos do controle (é o que se
passa, por exemplo, quando uma disciplina [no sentido de campo
do saber] toma forma e estatuto de discurso científico); e, inversa-
mente, as figuras do controle podem tomar corpo no interior de
uma formação discursiva (assim, a crítica literária como discurso
constitutivo do autor): de sorte que toda tarefa crítica, pondo em
questão as instâncias do controle, deve analisar ao mesmo tempo as
regularidades discursivas através das quais elas se formam; e toda
descrição genealógica deve levar em conta os limites que interfe-
rem nas formações reais.11

Entre a crítica arqueológica e a descrição genealógica, um nexo fundamental: não


há poder sem regime de verdade; não há verdade sem regime de poder. “A ‘verdade’ está
circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder
que ela induz e que a reproduzem. ‘Regimes’ de verdade”.12 Assim, é preciso reconhecer
algo mais na apropriação e no uso social do discurso dito verdadeiro, é preciso reconhecer
o âmbito de um “combate pela verdade”:

Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da ver-


dade” – entendendo-se, ainda uma vez, que por verdade não que-
ro dizer o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer
aceitar, mas o conjunto de regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e atribui-se ao verdadeiro efeitos específicos
de poder; entendo-se também que não se trata de um combate em
favor da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel
econômico-político que ela desempenha.13

No curso que Foucault dará no Collège de France no ano letivo de 1975-1976, inti-
tulado Em defesa da sociedade, encontramos um complemento adequado para a devi-
da compreensão desta menção a um “combate em torno do estatuto da verdade”. Nesta
ocasião, Foucault apresentará seu programa genealógico como um esforço destinado a

10 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 66-67.


11 Idem ibidem, p. 66.
12 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 15.
13 FOUCAULT, Michel. “Intervista a Michel Foucault”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001, p. 159.

94 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


“desassujeitar” os saberes, isto é, a torná-los capazes de levar adiante uma oposição efetiva
contra a “ordem do saber”. Tratar-se-á, portanto, da genealogia entendida como uma anti-
ciência: uma insurreição dos saberes locais, desqualificados e não legitimados, “contra a
instância teórica e unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome
de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída
por alguns”.14 De uma parte, portanto, é preciso considerar que nem todas as regiões do
discurso estão igualmente dispostas e abertas a qualquer conjunto de objetos ou sujeitos.15
De outra, no entanto, se é possível opor à ordem do saber discursos marginais, dispersos,
desqualificados é porque, afinal de contas, a todo poder corresponde um contra-poder.

***

Não seria demasiado reconhecer em A ordem do discurso – tomando-a de modo


lateral, nos limites do tema aqui em foco – um momento de intersecção entre a conhecida
arqueologia (dedicada ao modo de inserção discursiva dos diversos sujeitos na condição
de objetos para um saber ordenador) e a genealogia nascente nos anos 1970 (atenta à ma-
neira como estes mesmos sujeitos, informados pelo saber ordenador, tornam-se o lugar de
exercício de um poder caracterizado por divisões normativas).16 Em todo caso, sabemos
que ainda será necessário ao Foucault de A ordem do discurso uma maior clareza da tarefa
genealógica, futuros reparos metodológicos, bem como de sua articulação com a arqueo-
logia. Ainda assim, talvez se pudesse ao menos considerar certa antecipação de pesquisa
futuras em alguns dos momentos da aula inaugural de Foucault:

(…) suponho que em toda a sociedade a produção do discurso


é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redis-
tribuída por certo número de procedimentos que têm por fun-
ção conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. Em uma
sociedade como a nossa conhecemos, é certo, procedimentos de
exclusão. O mais evidente, o mais familiar é a interdição. Sabe-se
bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar

14 FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: cours au Collège de France (1975-1976). Collection “Hautes Études”.
Paris: Gallimard/Seuil, 1997, p. 10.
15 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 37. Neste caso, Foucault está se referindo a um conjunto de procedi-
mentos que consiste em “impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que
todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam”. C.f. Idem ibidem, p. 37-38.
16 Em A ordem do discurso, o tema da genealogia refere-se ao contexto específico de investigação de “como se formaram,
através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção [discursivos] séries de discursos; qual foi a norma específica de
cada uma e quais foram suas condições de aparecimento, de crescimento e de variação”. Cf. Idem ibidem, p. 60-61.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 95


de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não
pode falar de qualquer coisa.17

Dos princípios de interdição listados por Foucault em A ordem do discurso – tabu do


objeto, ritual da circunstancia, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito –, um deles será
considerado como um princípio central, posto que os reúne a todos e os coloca em mar-
cha: a oposição do verdadeiro e do falso.18 Eis o que Foucault chama de vontade de verdade.
Não obstante sua importância, a vontade de verdade é o procedimento de interdição do
qual “menos se fala”, o que significa dizer que ele é o que melhor se dissimula; e ele o faz
porque reúne práticas que efetivamente estão na base das relações de exclusão levadas a
cabo através da normatividade discursiva. Portanto, é preciso “escavar sob os próprios
pés” para explicitá-lo:

Só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecun-
didade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em
contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria
destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa
história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-
la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assu-
me a tarefa [por exemplo] de justificar a interdição e definir a lou-
cura; todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora
nos servir de sinais, ativos sem dúvida, para o trabalho de todo dia.19

A vontade de verdade, sua explicitação, é a tentativa foucaultiana de fazer emergir o


cruzamento das formas modernas do saber com o nexo de articulação que dissimula seus
efeitos de poder; um poder exercido por práticas que alimentam e são alimentadas pela
ordem discursiva vigente. Se o poder é uma instância ligada ao discurso do saber, é porque
a produção de exclusões determinadas (ainda que dispersas em uma rede de relações) dei-
ta raízes na dimensão institucional do discurso verdadeiro como elemento legitimador de
práticas de assujeitamento. E se as figuras de Nietzsche, Artaud e Bataille aparecem neste
momento em A ordem do discurso – como “sinais ativos” aos quais é preciso seguir para
o “trabalho do dia a dia” –, é porque a experiência literária e trágica destes personagens
formaram a contraparte, o contra-discurso face à “experiência positiva” da loucura na
modernidade, ou seja, sua captura como doença mental. O que significa que tais discursos
funcionaram como resistência ao aprisionamento da loucura pela razão, justamente: um
contra-poder. Em História da loucura, por exemplo, Foucault identificará nas experiências
transgressoras de Nietzsche, Artaud e Bataille, entre outros, o “reaparecimento da loucura

17 Idem ibidem, p. 9.
18 Idem ibidem, p. 13.
19 Idem ibidem, p. 20-21.

96 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


no domínio da linguagem, de uma linguagem na qual lhe era permitido falar na primeira
pessoa e enunciar /…/ alguma coisa que tivesse uma relação essencial com a verdade”.20
Aqui, é preciso também fazer atenção às datas. A ordem do discurso foi pronun-
ciada em 1970. Como sabemos, é neste momento que Foucault se dirige de fato para as
tarefas políticas (“É aqui que se inventa o Foucault que todo mundo conhece, aquele das
manifestações e dos manifestos, das ‘lutas’ e da ‘crítica’”).21 No ano de 1971, por sua vez,
Foucault será um dos fundadores do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), agru-
pamento cujo objetivo era o de dar forma a um tipo de luta contra o poder que pudesse
denunciá-lo “lá onde ele se exerce sob outro nome – aquele da justiça, da técnica, do
saber, da objetividade”.22 Anos depois, e como momento tributário da experiência de Fou-
cault junto ao GIP, a publicação de Vigiar e punir em 1975, a primeira obra propriamente
genealógica de Foucault.
É também neste contexto que se deve considerar a aula inaugural de Foucault no
Collège de France: nela, já está presente não apenas o prenúncio de investigações futuras
– como já fizemos notar –, mas também a projeção da “tarefa do dia a dia”, compreendida
como a luta para tornar visíveis os mecanismos discursivos dissimuladores do poder. E
o que são os “sinais ativos” de Nietzsche, Artaud e Bataille, senão o exemplo de uma ex-
periência de luta contra o poder no sentido de trazer à luz aquilo que pretende se impor
como um dado natural, o discurso verdadeiro sobre a loucura? Não era preciso “contornar
a vontade de verdade” para recolocá-la em questão contra a própria verdade? Afinal, o
pensamento de Nietzsche não foi aquele cuja tarefa era a de “diagnosticar [o presente] e
não mais a de buscar dizer uma verdade que seja válida para todos os tempos”?23

20 FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Collection Tel. Paris: Gallimard, 2007, pp. 535-536.
21 ERIBON, Michel Foucault, op. cit., p. 222. Não à toa, Eribon menciona a “multidão” que teria sido atraída para a
aula inaugural de Foucault dizendo que, para a crônica da época, ela se assemelhava a “delegações enviadas por maio de
1968”. C.f. Idem ibidem, p. 225.
22 FOUCAULT, Michel. “Préface à Enquête dans vingt prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard,
2001, pp. 1063-1064. Em artigo dedicado às posições intelectuais de Sartre e Foucault, Renato Janine Ribeiro resume de
modo adequado o ineditismo da ação política proposta pelo GIP: “O GIP foi algo inédito, pelo menos na França (a Anis-
tia Internacional tinha, no mundo afora, uma atuação que recobria alguns de seus aspectos e ultrapassava outros, mas
sem a doutrinação francesa). Não defendia os presos políticos em particular, mas – sobretudo – os de direito comum.
Ora, os intelectuais, franceses ao menos, podiam se interessar pelos presos, mas só para conferir sentido e destinação a
sua luta; pois foi justamente o que Foucault se proibiu.” Cf. RIBEIRO, Renato Janine. “O intelectual e seu outro: Foucault
e Sartre”. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/
Departamento de Sociologia, v. 7, ns. 1-2, out. 1995, p. 169-170.
23 FOUCAULT, Michel. “Qui êstes-vous,professeur Foucault?”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 634. O leitor
atento já deve ter notado, aqui como em ouros lugares, o acento nietzschiano das considerações de Foucault, a começar
pelo uso do termo genealogia, bem como vontade de verdade: “Que sentido teria nosso ser inteiro, senão o de que, em
nós, aquela vontade de verdade teria tomado consciência de si mesma como problema? Neste tomar consciência de si
da vontade de verdade vai, de agora em diante – disso não há dúvida nenhuma –, a moral ao fundo”. Cf. NIETZSCHE, F.
“Para a genealogia da moral”. In: Obras incompletas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 331. Mas
trata-se apenas de um acento: seriam necessárias diversas mediações para compreendermos a apropriação de Nietzsche
feita por Foucault, algo do qual não podemos nos ocupar nesta exposição. Ao leitor interessado, cf. o belo artigo de
Oswaldo Giacóia a esse respeito: GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Filosofia da Cultura e Escrita da Historia: notas sobre
as relações entre os projetos de uma Genealogia da Cultura em Foucault e Nietzsche”. In: O Que nos Faz Pensar, Rio de
Janeiro, v. 03, 1990, p. 24-50.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 97


Como veremos a seguir, para Foucault a questão da intervenção política era a de fa-
zer crescer nossa intolerância às diversas manifestações do poder veiculadas pelo discurso
verdadeiro – ou o saber –, torná-la uma intolerância ativa: “Tornemo-nos intolerantes a
propósito das prisões, da justiça, do sistema hospitalar, da prática psiquiátrica, do serviço
militar, etc, [instituições assentadas em práticas normativas de saber/poder]”.24 Não é isto
um contra-poder? Ou uma contra vontade de saber?

***

Dados os elementos apresentados até o momento, e tomando a prática política (em


sentido foucaultiano) como esta atividade de intolerância ativa ao poder, seria o caso de
nos perguntarmos acerca do papel reservado ao intelectual na arena da intervenção social.
Vejamos estas palavras significativas pronunciadas por Foucault:

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os


conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com
que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia jus-
ta; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade.
O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas
têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional da
produção da verdade. Não se trata de libertar a verdade de todo
o sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a
própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade
das formas de hegemonia (sociais, econômicas, sociais) no interior
das quais ele funciona no momento.25

Constituir uma nova política da verdade – eis o centro de uma atividade intelectual
não mais conformada às formas tradicionais de intervenção política. Esta tarefa – cujo ob-
jetivo seria o de desvincular o poder da verdade das formas hegemônicas atuais –, requer
um tipo intelectual que não é mais o portador da verdade de seu tempo, posto que isto sig-
nificaria repor em circulação a mesma “política de saber” que a ele caberia denunciar. Não

24 FOUCAULT, Michel. “Sur les prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1044. Como exemplo ilustrativo, que
se tome as palavras do Foucault de Vigiar e punir, relativa aos mecanismos do poder disciplinar em sua generalidade: “A
psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de reti-
ficar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de
uma instância disciplinar à outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder/saber
próprio de toda disciplina”. FOUCAULT, Surveiller et punir, op. cit., p. 186. Sendo assim, “Devemos ainda nos admirar se
a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, e que todos eles se pareçam com as prisões?”. C.f.
Idem ibidem, p. 187.
25 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14.

98 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


se trata tampouco de “propor uma ideologia justa” ou libertar a verdade do jogo do poder,
sob pena de desconsiderar o vinculo existente entre exercício do poder e a manifestação
da verdade. Trata-se, ao contrário, da formação de um tipo de intelectual cuja atividade
consistiria em denunciar as formas de exercício de poder e assujeitamento implicadas no
trabalho da racionalidade dominante. Em lugar do intelectual universal, o intelectual espe-
cífico, aquele que assinala seu engajamento em combates pontuais, locais, e não no campo
do princípio de uma universalidade abstrata da qual ele seria portador:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco à


frente ou um pouco ao lado” para dizer a muda verdade de todos;
é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é,
ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da
“verdade”, da “consciência”, do “discurso”. É por isso que a teoria
não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma
prática. Mas local, regional /…/, não totalizadora. Luta contra o
poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível
e mais insidioso.26

A teoria como prática nos remete a um ponto importante da tarefa intelectual: não se
trata tanto de possuir o saber do poder, mais sim de denunciar o poder do saber. Se a teoria
é já uma prática – “local, regional” –, é porque as formas vinculantes do poder não são
aquelas de uma unidade homogênea e facilmente identificável; se a intervenção política é
pontual, isso ocorre não por deficiência da ação, mas pela exigência (ela própria genealó-
gica) de que é preciso ferir o poder em seu exercício regrado e cotidiano, em seu registro
capilar: lutas concernentes ao aparato judiciário, à medicina, à psiquiatria, à sexualidade.
“Se faço as análise que faço”, dirá Foucault nos anos 1970, “não é porque há uma polêmica
que eu gostaria de arbitrar, mas porque fui ligado a certos combates: medicina, psiquiatria,
penalidade”.27 Trata-se, para este intelectual, de promover o desmascaramento da realida-
de política das relações entre e verdade e poder.
Uma tal caracterização do trabalho intelectual, por sua vez, responde à analítica do
poder desenvolvida por Foucault: todo saber é político, e já a arqueologia, ao não nos reme-
ter a um sujeito fundador28, deve desdobrar-se no reconhecimento (genealógico) de que
são as relações de poder que constituem os sujeitos como objetos do discurso verdadeiro,
conformando-os aos esquadros do saber/poder. Em outros termos: a analítica foucaultiana
do poder nos remete justamente às relações históricas da “forma sujeito” em sua articu-
lação com as regras que instituem domínios de sujeição e objetivação dos indivíduos por

26 FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1176.
27 FOUCAULT, Michel. “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 29.
28 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 46-49.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 99


meio dos mecanismos de poder veiculados pelo discurso verdadeiro (“o indivíduo é um
produto do poder”, dirá Foucault).29 E se o intelectual deve se pronunciar a partir do lugar
de fala que ocupa, é porque sua tarefa é aquela de luta e resistência contra um poder que
pretende destinar a cada qual sua identidade e localidade fixas: afinal, nas identidades
que ocupamos, e que nos são dadas como universais, necessárias e obrigatórias, “qual é a
parte que é singular, contingente e devida a constrangimentos arbitrários?”30 Neste ponto,
mesmo o discurso filosófico se vê implicado: “Há sempre algo de irrisório no discurso
filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua
verdade, e como encontrá-la”.31
Feitas todas as contas, para Michel Foucault “a questão política não é o erro, a ilusão,
a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade”.32 Poder, política e verdade –
com efeito, é disto que se trata.

Bibliografia

ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. Paris: Flammarion, 1989.


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______. “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris:
Quarto Gallimard, 2001.

29 FOUCAULT, “Préface”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 135.
30 FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Dits et écrits II. 1976-1988, op; cit., p. 1393.
31 FOUCAULT, Michel. L’usage des plaisirs. In: Histoire de la Sexualité, v. 2. Bibliothèque des Histoires. Paris: Galli-
mard, 1984, p. 15.
32 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14 (Grifo nosso).

100 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


______. “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Galli-
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______. Naissance de la clinique. Paris: Quadrige/PUF, 2003.
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GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Filosofia da Cultura e Escrita da Historia: notas sobre as relações
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NIETZSCHE, F. “Para a genealogia da moral”. In: Obras incompletas. Coleção Os pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1974.
RIBEIRO, Renato Janine. “O intelectual e seu outro: Foucault e Sartre”. In: Tempo Social: revista
de sociologia da USP. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departa-
mento de Sociologia, v. 7, ns. 1-2, out. 1995.

* André Constantino Yazbek é professor de Filosofia Contemporânea da Universidade Federal de Lavras.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 101


SEM NOME NÃO SEI DE TI
CARLOS ROSA*

(o atrito entre rochas nas profundidades produz o Tsunami)

, e o Tsunami sabe de desastres, não sou de atentar nos malabarismos da mídia, a na-
tureza tem seu fluxo, homens não passam de pó na orla, a morte é do jogo, mas é
a articulação camuflada e invisível nos sinistros que me interessa e me leva a fruir
; os pássaros, estes são eternos

(melhor desligar a TV e sair à caça de alguma bala perdida)

, assim também o sobrenadar litígios linguísticos, marcar caminhos no deserto, tanto faz o
número de atalhos, quantos mais, melhor, é da regra multiplicidades, delírios e diferenças,
e a morte estará sempre atrelada ao gozo, derradeiro orgasmo gerador das inquietudes que
nos levam a Marte

(depois, que mostrem os dentes todos os vulcões)

, inferno e céu são produtos da insanidade incandescente, agonizam lentamente diante de


bonecas infláveis e Santo Daime, nem Deus nem o Diabo sabe da vida, muito menos o ho-
mem além do que chama de ciência, o herói contemporâneo seria musculoso e reforçaria
o peitoral e o deltoide exercitando-se com a cruz, Cristo neobarroco

(o acaso e o caótico a roer infinitudes)

, banalizada a morte, narcísea a humanidade, estes são tempos de consumo, um morrer


maquiado com registros geográficos na pele, um casal de sabiás e a primavera florida são
minhas metamorfoses naturais, 1995 foi o ano em que uma metamorfose bacilar e outra
no DNA levaram a árvore que criou Mille Plateaux e Anti-Oedipus

(os simulacros não falam da mecânica visceral)

, existem os periféricos, na maioria desempregados e jovens que inventam “hokundaimes”,


figuras imaginárias de um mundo em guerra virtual, os exóticos como na série Narcissism
de Jennifer Allen , as interferências naturais de Alex Hartley ou as esculturas neobarrocas
de Tonny Cragg

(alguém pensará que estou a vomitar referências por me achar)

, apenas folheio Frieze, fotografia como estilo de vida, um entre tantos instrumentos de
distração e manipulação conceitual, poderia fazê-lo com as revistas Caras e Cult, a por-
nografia de Zéfiro, sem possibilidade de consumo a periferia sonoriza ou lota as igrejas
evangélicas

(as mulheres e os homens desfilam em todos os ópios da vida)

, a jovem africana em teste para modelo veste a pouca roupa com sua pele, quase nua,
inversão do olhar, fotografias permitem devaneios circenses, as coxas carnosas e um olhar
divorciado do corpo, de fundo a pele de um tigre em extinção, poderia ser a dela, eu nas
duas cadeiras vazias, natureza morta não fosse o vento e o pássaro a ciscar distrações

(não havendo indícios de morte violenta, enterrem o corpo sem mais)

, são do homem burocracias e tecnocracias insalubres, atestar o óbito é ter a certeza abso-
luta do fim da carne, se arte é vida, a morte mais uma vez fica à mercê e órfã, caldo amorfo
do caos, mas não estou aqui para armar palavras no vento, sou mais de rastros nas invisi-
bilidades, das osmoses e rasuras nos desertos, como o urubu sobrevoo as carniças e o abs-
trato dos restos, vapor fruto da putrefação e desejoso de fogo, caçador de impertinências

(o virtuoso na arte está em Bachelard e no lixo acumulado nas cooperativas)

, identificar o escroto como escroto, o lixo como lixo, é obra do estruturalismo, Não fosse
o cheiro, o lixo seria uma obra de arte, Maria Gabriela Llansol, o olhar das recicladoras
no entorno souberam da sensibilidade de Paulo Bruscky, identificar o imponderável nos
terços e nas rezas é como procurar a luz no silêncio e o ruído na escuridão

(montei uma teia de aranha nos olhos e deixei-os vagar nas desoras das bibliotecas)

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 103


, devemos captar os sons, atentar para o grafite, palavras sem mistérios sonoros e cromá-
ticos não contemplam a plenitude, não haverá amor sem a estranheza a carregar o senti-
mento de raiva, é questão de matar ou avantajar-se na direção do abismo, a inquietude está
na morte desde a origem

(morrer é viajar na escuridão e na mudez, ser raiz)

, no não lugar encontram-se as oportunidades aquosas, a alquimia dos sais, o olhar deve
ter o viés da cegueira para acentuar a forma, o cheiro e a sonoridade do que invisível e
inacabado, sem a fala de aprisionados no céu da boca, que o fluxo vaporiza através do
arcabouço ósseo, como um rio

(e vem de longe o pensar fruídos e osmóticos)

, morrer é esse lançar-se e diluir-se nas águas, não é de profundidades aquosas o corpo,
nem a alma de alturas, o dodecafônico dos reflexos vocais foram registrados nas pedras
ou em livros, é do cupim criar estranhezas em linearidades e imagens, o tempo tem essa
função no pensamento humano

(nas ruas, o diálogo das fuligens adormecem borboletas)

, há fissuras e canais na terra e no ar, está mais fácil alcançar Roma que o amor, as pulgas e
os carrapatos sabem mais de nosso sangue que a ciência, a vulva esconde a essência que a
orquídea apresenta sem temor ao inseto, é preciso avançar no emaranhado e abrir portas
para sentir a cor, o sabor e o aroma do fruto procriador

(de borboletas, sei apenas do agitar delicado de suas asas)

, os destroços sabem da realidade de suicidas que se lançam no vazio e acolhidos pelo as-
falto já não oxigenam a matriz, a casa da justiça sabe fazer lero-leros de palavras, São João
da Cruz poetizou nas paredes da prisão, a perversidade reconhece as dobras da inocência
e das letras

(já não sei da água, do ar e do fogo)

, se sei de algo é que mais não sei, o derradeiro sabe da ilusão de sua existência, em folha
me encolho na dormência da noite, se verbo há deve ser delírio de vento, depois só o so-
nho sabe de falésias, falácias e cios…

* Carlos Rosa é poeta e contista. E-mail: <meiotom@uol.com.br>.

104 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


La casada infiel A casada infiel
A Lydia Cabrera y a su negrita

Y que yo me la llevé al rio E eu que a levei ao rio


creyendo que era mozuela, achando que ainda era moça,
pero tenía marido. mas ela tinha marido.
Fue la noche de Santiago Foi na noite de São Tiago
y casi por compromiso. e foi quase um compromisso.
Se apagaron los faroles Os lampiões se apagaram
y se encendieron los grillos. e acenderam-se os grilos.
En las últimas esquinas Nas últimas esquinas
toqué sus pechos dormidos, toquei seus seios dormidos,
y se me abrieron de pronto e se abriram na hora
como ramos de jacintos. como ramos de jacintos.
El almidón de su enagua A goma de sua anágua
me sonaba en el oído, me soava nos ouvidos,
como una pieza de seda como uma peça de seda
rasgada por diez cuchillos. rasgada por dez facas.
Sin luz de plata en sus copas Sem luz de prata nas copas
los árboles han crecido, as árvores cresceram,
y un horizonte de perros e um horizonte de cães
ladra muy lejos del río. ladra léguas do rio.
Pasadas las zarzamoras, Passadas as amoreiras,
los juncos y los espinos, os juncos e os espinheiros,
bajo su mata de pelo debaixo de sua vasta juba
hice un hoyo sobre el limo. fiz um ninho sobre o limo.
Yo me quité la corbata. Eu me livrei da gravata.
Ella se quitó el vestido. Ela se livrou do vestido.
Yo el cinturón con revólver. Eu o cinturão com revólver.
Ella sus cuatro corpiños. Ela seus quatro corpetes.
Ni nardos ni caracolas Nem nardos nem caracóis
tienen un cutis tan fino, têm uma pele tão fina,
ni los cristales con luna nem a lua nos cristais
relumbran con ese brillo. brilha com esse brilho.
Sus muslos se me escapaban Suas coxas me escapavam
como peces sorprendidos, como peixes surpreendidos,
la mitad llenos de lumbre, metade cheios de lume,
la mitad llenos de frío. metade cheios de frio.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 105


Aquella noche corrí Aquela noite percorri
el mejor de los caminos, o melhor dos caminhos,
montado en potra de nácar montado em potra de nácar
sin bridas y sin estribos. sem rédeas e sem estribos.
No quiero decir, por hombre, Não quero dizer, por honra,
las cosas que ella me dijo. as coisas que ela me disse.
La luz del entendimiento A luz do entendimento
me hace ser muy comedido. me faz ser bem comedido.
Sucia de besos y arena, Suja de beijos e areia,
yo me la llevé del río. levei-a embora do rio.
Con el aire se batían Com o vento se batiam
las espadas de los lírios. as espadas dos lírios.
Me porté como quien soy. Portei-me como quem sou.
Como un gitano legítimo. Como um legítimo cigano.
La regalé un costurero Dei-lhe uma cesta de costura
grande de raso pajizo, grande de liso palhiço,
y no quise enamorarme e não quis cair de amores
porque teniendo marido porque ela tendo marido
me dijo que era mozuela me disse que ainda era moça
cuando la llevaba al río. quando eu a levava ao rio.

Federico Garcia Lorca Traduzido por Guilherme Mansur

* Guilherme Mansur é poeta, tradutor e artista gráfico. E-mail: <guimamba@gmail.com>.

106 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


REALISMO MILAGROSO
Espinosa, Deleuze, e Luz Silenciosa de Carlos Reygadas1

NIELS NIESSEN*
(Tradução de Hugo Castilho dos Reis e Josette Monzani. Revisão filosófica de Luiz Henrique1 Monzani)2

A tela não é um suporte, não como a tela da pintura; não há nada


que suportar, nesse sentido. Ela retém a projeção, leve como luz.
Stanley Cavell, The World Viewed3

O cristal é expressão. Expressão move-se do espelho à semente.


Gilles Deleuze, Cinema 2: Imagem-tempo4

Um certo espírito5

Apenas ao representar o miraculoso pode a imagem cinematográfica conquistar a


verdadeira imanência; isto é, tornar-se uma representação, com seu milagre imanente. Tal
foi meu primeiro pensamento – e talvez exageradamente idealista – após ter assistido o
filme Luz Silenciosa (Stellet Licht, 2007),6 de Carlos Reygadas, um desses raros filmes que
podem ser vistos muitas vezes, mas sentido uma única vez. A ideia de milagre imanente
eu trago de Alessia Ricciardi que, no artigo de 2007 “Immanent Miracles: from De Sica to
Hardt and Negri”, desenvolveu o conceito a partir de sua leitura do filme Milagre em Milão
(Miracolo a Milano, 1951)7 de Vittorio de Sica. No final deste filme – um dos muitos tidos
como um marco do fim do neorrealismo italiano – Totó, o escolhido, guia os pobres da
periferia de Milão para a terra prometida – onde “bom dia, realmente quer dizer bom dia”
– por meio da concessão de seus poderes mágicos às vassouras dos varredores de rua da
cidade. Ricciardi escreve,

1 Artigo originalmente publicado na revista Discourse, 33.1, Inverno de 2011, Wayne State University Press, Detroit,
Michigan, p. 27-54. Republicado aqui com autorização do autor.
2 Hugo Reis é mestre pelo programa de Imagem e Som (UFSCar), pesquisador do cinema de Carlos Reygadas; Josette
Monzani é profa. dos Mestrados em Imagem e Som e Estudos de Literatura da UFSCar. Luiz Henrique Monzani é dou-
torando em filosofia pela UFSCar e bolsista CAPES.
3 Cavell, Stanley. The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, edição ampliada, Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1979, 24.
4 Deleuze, Gilles. Cinema 2: The Time-Image, trad. Hugh Tomlinson e Robert Galeta, London: Continuum, 2005, 72.
No Brasil: DELEUZE, G. A imagem -tempo. Trad: Eloísa de Araujo Ribeiro. Revisão filosófica: Renato Janine Ribeiro.
São Paulo: Brasiliense, 1990.
5 Nota do autor: Gostaria de agradecer a Cesare Casarino e Adair Rounthwaite pelos comentários sobre versões
anteriores deste ensaio.
6 Co-produção do México, França, Países Baixos e Alemanha.
7 Produção italiana.
Em última análise […] podemos dizer que Milagre em Milão re-
presenta alegoricamente, no vôo final dos pobres, a capacidade
paradoxal do filme neorrealista de converter pessimismo em um
ato de fé imanente, dado que um milagre só pode emergir de uma
perspectiva contingente e imanente. Talvez essa seja a razão pela
qual muitos críticos veem Milagre em Milão como o último filme
neorrealista, como um tipo de apoteose da forma que tornou ex-
plícita as reivindicações do neorrealismo, não para com o realismo,
mas para com a fé e a crença no mundo.8

Nesse ensaio, irei empregar o conceito paradoxal de milagre imanente para discutir
as aspirações mágicas do cinema para redimir a realidade. Irei analisar as implicações
do desejo do cinema de realizar o impossível e de revelar o mundo. O que é uma ima-
gem que busca tornar-se una com seu objeto de representação? Como alguém reconhece
este milagre pelo qual o cinema aspira a se tornar o mundo? E o milagroso, como sugere
Ricciardi, implica necessariamente numa fuga da imanência e do realismo? São questões
como essas que irei abordar ao longo de minha discussão sobre o filme Stellet Licht, o qual
lerei seguindo a Ética, de Bento Espinosa (publicado postumamente em 1677). Entretanto,
não irei tratar o filme de Reygadas como uma expressão direta da teoria da imanência
de Espinosa, porque rotular Luz Silenciosa como um texto “espinosista”, excluiria outras
interpretações mais místicas do filme. Tão pouco irei usar o elaborado tratado de Espi-
nosa sobre as emoções como uma ferramenta analítica para dissecar o dilema moral do
protagonista de Stellet Licht, um fazendeiro menonita – porque o problema de Johan é por
demais clássico para isso: ele se apaixonou por outra mulher que não sua esposa, mãe de
seus filhos. Mesmo assim, o filme de Reygadas compartilha um certo espírito com a filoso-
fia de Espinosa. Não só seria um erro conceber Espinosa como um pensador secular, dado
que ele se ofendeu ao ser chamado de ateísta,9 como ainda muitos de seus amigos e de-
fensores eram menonitas.10 Portanto, sugiro que a milagrosa imagem-tempo que é o filme
de Reygadas mostre-se relevante para a compreensão do terceiro tipo de conhecimento ou

8 Ricciardi, Alessia. Immanent Miracles: from De Sica to Hardt and Negri. Modern Language Notes 122, n. 5 (2007):
1138–65, citação em 1157.
9 Ver, por exemplo, Balibar, Étienne. Spinoza and Politics, trad. Peter Snowdon , London: Verso, 1998, 6.
10 Como Gilles Deleuze aponta em seu Spinoza: Practical Philosophy, trad. Robert Hurley, San Francisco: City Light
Books, 1988, o Treatise on the Emendation of the Intellect (1632-77) de Espinosa, se inicia de maneira menonita, seguindo
um itinerário espiritual. Além disso, durante sua vida, Espinosa fez amizade com vários menonitas, que também foram
responsáveis pela publicação de alguns de seus livros após sua morte. No entanto, ao invés de ver as influências do
panteísmo menonita na filosofia de Espinosa, Deleuze explica esse contato pelo fato de Espinosa ter sido atraído pela
tolerância do círculo menonita. No Brasil, ambos os livros encontram-se publicados. Cf: DELEUZE, G. Espinosa. Filoso-
fia prática. Trad. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. Rev. téc: Eduardo D. Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta, 2002;
e, SPINOSA, B. Tratado da correção do intelecto. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis
(Filosofia). Homepage do grupo: <http://br.egroups.com/group/acropolis/>. Ainda pode ser consultada: ESPINOSA, B.
Tratado da reforma da inteligência. Trad. e notas: Lívio Teixeira. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.

108 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


intuição em Espinosa, especialmente em função da temporalidade que este conhecimento,
este desenho do milagre imanente, envolve.
O conceito de imagem-tempo é obviamente retirado dos dois livros Cinema de Deleu-
ze, ambos interessados em imagens do tempo. Enquanto imagem-movimento, subtítulo de
Cinema I (1983), refere-se a uma representação indireta do tempo, na qual o tempo é subju-
gado ao movimento, imagem-tempo, subtítulo de Cinema II (1985), apresenta uma imagem
direta, imediata do tempo. Embora Deleuze deixe claro, desde o início de seu projeto, que
“não se trata de uma história do cinema”, mas de “uma taxonomia, uma tentativa de classi-
ficação das imagens e dos signos”,11 existe ali, definitivamente, um fio histórico que percorre
os dois volumes.12 Apesar de seus esforços para não apresentar a passagem da imagem-
movimento para a imagem-tempo como um progresso, Deleuze também não esconde seu
entusiasmo para com os filmes que conseguem realizar a promessa do cinema, uma ima-
gem do tempo, mais diretamente. O tipo de imagem-tempo no qual o tempo puro se torna
mais palpável é, sem dúvida, a imagem-cristal: “Este é o tempo, aquele que nós vemos no
cristal […] Nós vemos no cristal a perpétua fundação do tempo, o tempo não cronológico,
Cronos e não Cronos. Essa é a poderosa Vida não-orgânica que controla o mundo.”13
O tempo não-cronológico ou a eternidade - sendo também a temporalidade da intui-
ção em Espinosa, a imagem do cristal e a imagem-cristal ajudarão a elucidar algumas das
mais controversas, porque sem dúvida mais místicas, passagens da parte 5 da Ética. Além
disso, os termos em que Deleuze, que pensa o cinema como expressão da subjetividade,
discute a imagem-cristal diretamente ressoam algumas das passagens mais cruciais do seu
Expressionism in Philosophy: Spinoza (Spinoza et le problème de l’expression, 1968). Essa
ressonância torna ainda mais notável o fato de que o nome de Espinosa seja mencionado
apenas duas vezes (em notas de rodapé) em todo o projeto Cinema.14
Pode Luz Silenciosa ser classificado como uma imagem-cristal? Eu diria que sim,
embora este vislumbre do “tempo puro” opere de forma muito diferente daquele de O Ano
Passado em Marienbad, de Alain Resnais (L’Année dernière à Marienbad, 1961),15 por exem-
plo. Por ser citado de forma recorrente em Cinema 2, incluindo o capítulo sobre o cristal,
o filme de Resnais torna-se o arquétipo da imagem-tempo. Mas, Stellet Licht não é apenas

11 Deleuze, Gilles. Cinema 1: The Movement Image, trad. Hugh Tomlinson e Barbara Habberjam, London: Continuum,
2005, xix. No Brasil: Imagem-Movimento. Trad: Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.
12 Deleuze apresenta essa transição de um cinema do movimento para um cinema do tempo como um processo que se
dá de modo distinto em diferentes momentos e em diferentes lugares. Um fator constante é que esta transição é marcada
por “uma crise da imagem-ação”, sendo essa imagem-ação indicativa de um tipo de cinema que se tornou dominante no
período que se estende até a Segunda Guerra Mundial. Deleuze escreve em Cinema 1, “Foi antes de tudo na Itália que se
deu a grande crise da imagem-ação. A data foi algo em torno de 1948, na Itália; 1958, na França; 1968, na Alemanha” (215).
13 Deleuze, Cinema 2, 79, ênfase no original.
14 A ausência de Espinosa é implicitamente compensada pelo fato de que os livros Cinema são em grande parte es-
truturados em torno da epistemologia de Henri Bergson, formulada em Matéria e Memória (Matière et mémoire, 1869).
A teorização de Bergson sobre a relação entre o sujeito do conhecimento, da memória e do mundo – uma teorização
segundo a qual o sujeito, entendido como o locus da experiência, seria uma imagem que, simultaneamente, é especial e
totalmente imanente à imagem que é o mundo – é amplamente compatível com a teoria da imanência de Espinosa.
15 Produção França/Itália.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 109


um exemplo nesta dança entre cinema e filosofia; é um exemplo privilegiado. Além da
proximidade espiritual entre seu realismo milagroso e o sistema de Espinosa, isto também
se dá por outras duas razões. Primeiro, Stellet Licht, como irei argumentar, opera em dois
registros simultaneamente, um realista e diacrônico, e outro milagroso e sincrônico. Ao
fazer isso, ele não só produz uma imagem cristalina, mas também mostra a passagem do
movimento para o tempo e da representação para a expressão. Em segundo lugar, o filme
de Reygadas cita fortemente e, ao mesmo tempo vai além, de maneira significativa – em
termos de produzir uma imagem-tempo milagrosa – do que A Palavra (Ordet, 1955),16 de
Carl Dreyer. Dreyer é um dos poucos diretores que Deleuze discute tanto em relação à
imagem-movimento quanto em relação à imagem-tempo. Em Cinema I, Deleuze descreve
Dreyer como um diretor da imagem-tempo avant la lettre:17

Ao suprimir a perspectiva “atmosférica”, Dreyer produz o triunfo


de uma perspectiva propriamente temporal ou até mesmo espiri-
tual. Achatando a terceira dimensão, ele coloca o espaço bidimen-
sional em relação imediata com o afeto, com uma quarta e quinta
dimensão, Tempo e Espírito.18

As maneiras pelas quais Stellet Licht cita Ordet , que numa entrevista Reygadas chama
de “um milagre do cinema”,19 são numerosas, incluindo elementos narrativos, mise-en-scè-
ne, diálogo, nomes dos personagens, ritmo e atmosfera. Stellet Licht certamente também é,
parafraseando Deleuze, “o triunfo de uma perspectiva propriamente temporal ou até mes-
mo espiritual” – como foram os filmes anteriores de Reygadas, Japón (2002)20 e Batalha no
Céu (Batalla en el cielo, 2005).21 Igualmente importantes, porém, são as diferenças entre os
dois filmes. Ao contrário de Ordet, Luz Silenciosa é em cores, cuja importância não pode
ser subestimada; Reygadas engendra “perspectivas atmosféricas” de paisagens pictóricas

16 Produção dinamarquesa.
17 Essa chegada anacrônica é parte do que compõe a imagem-tempo. Porque mesmo que a “alma do cinema” (Cinema
1, 210) tenha passado do movimento para o tempo no curso do século XX, simultaneamente, a imagem-tempo direta
sempre esteve lá. Deleuze escreve em Cinema 2, “A imagem-tempo direta é o fantasma que sempre assombrou o cinema,
mas coube ao cinema moderno dar corpo a este fantasma” (40).
18 Deleuze, Cinema 1, 110-11. Esta passagem é tomada de um trecho de Cinema 1, no qual Deleuze discute Dreyer em
relação à imagem-afeto, o tipo de imagem-movimento que Deleuze associa ao close-up. Para Deleuze, a epítome da
imagem-afeto é o filme de Dreyer, A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928).
19 Na mesma entrevista, Reygadas também fala sobre suas outras influências: “Eu gosto muito de Roberto Rossellini,
dadas as condições em que ele teve que filmar, com tudo o que havia lá… Para mim, Dreyer também é grande. Ordet
(1954) é um dos filmes mais emocionantes que eu já vi na minha vida, um milagre do cinema. Bresson também é um
mestre, especialmente na forma como ele trabalha com não-atores e como usa o som. A Man Escaped (1956) é um
favorito. Tarkovsky foi o que realmente abriu meus olhos. Quando vi seus filmes, percebi que a emoção poderia sair
diretamente do som e da imagem e não necessariamente a partir da contação de histórias” (citado em Tiago de Luca,
“Carnal Spirituality: the films of Carlos Reygadas”, Senses of Cinema 55 [2010], www.sensesofcinema.com/2010/feature-
articles/carnal-spirituality-the-films-of-carlos-Reygadas-2 / # 2 [acesso em 18 de Dezembro 2010]).
20 México et al.
21 França et al.

110 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


cinematográficas por todo o filme; e, mais importante, enquanto o milagre de Ordet apa-
rece como um momento isolado, Stellet Licht é inteiramente feito de matéria milagrosa.

Luz silenciosa

Do início ao fim do filme de Reygadas, o tempo está fora dos eixos. Stellet Licht é
emoldurado por duas longas e lentas tomadas panorâmicas “aceleradas” do nascer e do
pôr do sol, acompanhadas por sons da natureza: grilos, pássaros, uma vaca (figura 1).
Através da ilusão de tempo real que esses longos planos criam, dificilmente se percebe que
imagem/som, que tem um tempo normal, não está em sincronia. Entre estes dois planos
se passa um “dia” cinematográfico com mais de duas horas de duração, ao longo do qual as
estações mudam enquanto o tempo em si é levado a uma imobilidade.

Figura 1 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

A história se passa em uma comunidade menonita ao norte do México, e a maior


parte do diálogo é em Plautdietsch, originalmente uma variedade baixo-prussiana do
baixo-alemão oriental, com influências holandesas e frisianas. (Os espectadores com co-
nhecimento de alemão, holandês ou dinamarquês serão capazes de compreender pedaços,
embora essa não fosse a intenção de Reygadas).22 A maior parte do filme acompanha Johan
(Cornelio Wall), um fazendeiro de meia-idade casado com Esther (Miriam Toews), com
quem tem sete filhos. Porém, Johan agora ama Marianne (Maria Pankratz), sua “mulher

22 Numa entrevista com Reygadas publicada no jornal holandês de Volkskrant (Amsterdam) ele expõe sua intenção
com a relação entre o Plautdietsch falado e as legendas, que nem sempre traduzem literalmente as palavras dos persona-
gens: “Ninguém no cinema entende aquela linguagem, oferecendo a Reygadas a possibilidade de manipular as legendas
de acordo com sua própria visão. ‘Dessa forma eu poderia manter o texto universal e neutro o tanto quanto possível’”
(ver Bor Beekman, “Acteurs Schaden de Film”, Cinema.nl, www.cinema.nl/artikelen/3205063/acteurs-schaden-de-film
[acesso em 1 Novembro 2009], tradução nossa). Em outras palavras, neste filme, os subtítulos não são simplesmente uma
tradução do diálogo sobre a banda sonora, mas pertencem ao original e, nesse sentido, são parte integrante da imagem.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 111


natural”, tal como seu pai (Peter Wall) a chama durante uma discussão sobre o dilema mo-
ral em que o filho se encontra. Johan não sabe se o seu amor por Marianne é obra de Deus
ou do Diabo, mas, como ele confessa ao pai: “Se isso é obra do diabo, eu sinto pena de mim
mesmo. Verdadeiramente! Mas agora eu preciso saber quem é a mulher que devo amar”.
“Eu não posso lhe dizer o que fazer”, seu pai responde, “mas eu sei que se você não agir
rapidamente, você vai perder as duas”. Esther sabe sobre o amor de Johan por Marianne,
porque ele foi honesto com ela, e sofre em silêncio.
O ritmo do filme é lento, penosamente lento às vezes, filmado e produzido no que
poderia ser chamado de estilo neorealista clássico: atores não-profissionais, filmagens em
locação (na pequena cidade de Cuauhtémoc, Chihuahua), planos extremamente longos,
pouco diálogo etc.23 Simultaneamente, porém, sob sua superfície minimalista, a história
abriga uma tensão quase Lyncheana, que se torna mais palpável na sequência próxima ao
fim, na qual Johan e Esther estão passando por uma tempestade na estrada. “Se lembra
de quando nós amávamos viajar assim?” Esther interrompe seu silêncio. “Nós não pa-
rávamos de cantar. Estávamos sempre felizes […] Não importava como estava, estar ao
seu lado já era o puro sentimento de estar viva. Eu fazia parte do mundo. Agora eu estou
separada dele. […] Como eu queria que fosse tudo um sonho ruim”. Ela chama Marianne
de “prostituta”, mas também sente pena dela. “Pobre Marianne”, diz ela. A cena contém
várias sugestões para um iminente acidente de carro, mas, ao invés disso, Ester passa mal
e Johan pára o veículo. Tendo desaparecido na chuva, Esther desaba. “Estou com frio,
Johan”, diz ela para si mesma, enquanto seu vestido fica encharcado, antes que caia junto
a uma árvore. Quando Johan vai à procura dela, ele a encontra inconsciente e, provavel-
mente, já morta. “Meu nome é Johan. Esta é minha esposa. Seu nome é Esther”, diz ele
fora do quadro, num espanhol mal falado, a dois motoristas de caminhão. “O inimigo é
implacável”, seu pai lhe diz enquanto se encontra ao lado do caixão de Esther. “Não é o
Diabo ou qualquer outra pessoa. Sou eu”, Johan responde, e em seguida se ajoelha, não
para rezar, mas para chorar.
Stellet Licht parece se desdobrar como uma representação minimalista de um homem
que vê todas as suas verdades despedaçadas e que toma consciência que sua culpa não é
pré-determinada por forças transcendentais mas, em lugar disso, é completamente ima-
nente ao seu próprio desejo. Em aparente contraste com o rígido sistema de crenças da
comunidade que representa, o filme cria uma expectativa em sua audiência de um texto
cinematográfico que simplesmente mostra e que é desprovido de qualquer profundidade
simbólica ou espetacular. Esta é precisamente a razão pela qual seu desfecho milagroso
funciona; quer dizer, produz um afeto no espectador, e, em retrospectiva revela a imagem

23 Demorou três anos para Reygadas estabelecer relações com a comunidade menonita do norte do México, retratada
no filme, e que é também a comunidade à qual Cornelio Wall, que interpreta o papel de Johan, pertence. No Canadá,
em outra comunidade menonita, Reygadas encontrou Miriam Toews, que interpreta Ester. Maria Pankratz (Marianne),
que é de origem alemã-casaquistã, ele só descobriu depois de ter alugado um apartamento em Amsterdam e procurado
comunidades de agricultores holandeses e alemães (ver Beekman, “Acteurs Schaden de Film”).

112 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


do filme, ambas, a matéria cinematográfica e seu produto, imersa no poder divino extraído
da tela preta com a qual o filme inicia. Somente através dos grilos na trilha sonora a tela
preta revelou-se ser a noite. No final do filme, quando esta negritude retorna, não só a
crença de Johan, mas também a crença do espectador no mundo foi despedaçada, dado
que ele já não mais sabe a que está assistindo ou a que esteve assistindo. Stellet Licht não se
limita meramente a representar um milagre; isto é, a mostrar seus efeitos. Ao invés disso,
torna-se o próprio milagre.
O leitor que ainda não assistiu ao filme de Reygadas (ou a Ordet, de Dreyer) deve es-
tar avisado que os parágrafos seguintes irão “prejudicar” a experiência da primeira fruição
de Stellet Licht, porque, como eu já disse, seu milagre só funciona uma vez.
“Eu daria tudo para voltar no tempo… voltar para as coisas como elas costumavam
ser”, Johan diz a Marianne do lado de fora de sua casa, na qual o corpo de Esther foi coloca-
do. “Essa é a única coisa na vida que não podemos fazer, Johan”, é a resposta dela. Enquanto
abraça Johan, Marianne olha para o sol e estica o braço. O plano seguinte, que coloca o es-
pectador em posição da subjetiva dela, mostra a sua mão cobrindo o sol, não para proteger
os seus olhos, mas para tocar a luz (figura 2). Imediatamente depois disso ela vai ver Esther.
Sozinha no quarto branco imaculado, Marianne permanece imóvel em frente ao caixão,
depois anda em torno dele, acaricia o tecido do mesmo e finalmente ajoelha-se na altura do
rosto de Esther (figura 3). Ela se levanta novamente, curva-se sobre o corpo de Ester e beija
seus lábios. Quando Marianne se afasta, vê-se apenas o rosto de Esther, agora filmado de
cima. Uma lágrima escorre por seu rosto, sua bochecha. O plano continua e o espectador
começa a pensar que essa lágrima não é de Marianne e que um movimento muito leve
pode ser percebido no rosto de Esther. Em seguida, os lábios de Ester se separam e ela abre
os olhos. “Pobre Johan”, ela fala para a câmera. “Johan vai ficar bem [literalmente, “em paz”,
in frieden] agora”, responde Marianne. “Obrigado, Marianne”, responde Ester.

Figura 2 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 113


Figura 3 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

O quarto, sua brancura, o milagre e a maneira como ele é filmado, são todas citações
diretas a Ordet. No filme de Dreyer, o milagre se dá quando Johannes ressuscita Inger, sua
cunhada, falecida durante o parto. Johannes, 27 anos, um antigo estudante de teologia,
acredita que ele é o “Cristo vivo”. Porque ele é. No entanto, quando no início do filme ele
afirma em uma de suas profecias que ele voltou “para dar testemunho de [seu] Pai que está
nos Céus – e para operar milagres”, nem a sua família, o pastor da aldeia, nem o especta-
dor acredita nele. Todos acham que ele enlouqueceu depois de estudar Søren Kierkegaard,
uma crença que faz com que Inger, por sua vez, afirme ao marido que “Johannes talvez
esteja mais perto de Deus do que o restante de nós”.
Ordet se passa numa comunidade rural protestante na Jutlândia Ocidental (Dina-
marca), que se encontra internamente dividida em torno da questão sobre o que constitui
o Protestantismo correto. Esta divisão se manifesta na rivalidade entre duas famílias. A
família Borgen, a qual Johannes e Inger pertencem, e na qual a família de Johan e Esther
em Stellet Licht é livremente baseada, é de Luteranos tradicionais. Já os Petersens estão no
centro de uma seita fundamentalista. Quando Peter Petersen se opõe ao casamento entre
sua filha Anne e Anders Borgen, o pai deste último, Morten, acusa Peter de administrar
um grupo de “coveiros”, enquanto associa sua própria cristandade à “vida”. No entanto,
é a morte que irá reunir novamente os dois clãs, quando Morten e Peter fazem as pazes
em frente ao caixão de Inger. Em seguida, Johannes retorna, depois de ter desaparecido
no campo por vários dias. “Você encontrou seu juízo novamente”, exclama o pai quando
percebe que a loucura deixou os olhos de seu filho. “Nenhum de vocês teve a ideia de
pedir a Deus para trazer Inger de volta a vocês de novo”, Johannes responde friamente. Ele
ainda é o salvador. Tudo o que teria sido necessário para ele salvar a vida de Inger é que
uma pessoa, apenas uma, expressasse a sua fé nele. “Inger”, diz ele, “você deve apodrecer,
porque os tempos estão podres. Coloquem a tampa”.

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Antes de retornar aos milagres que, em último caso, Johannes e Marianne realizaram,
precisamos examinar os milagres que eles mesmos são. Johannes não é apenas o Messias,
o novo Cristo; ele também é sua própria testemunha, o “homem enviado por Deus”, que
João 1:6 descreve. Ele é tanto a palavra (ordet) quanto o verbo feito carne. Ele foi enviado
“para dar testemunho da Luz”, a luz dos homens que é a vida, mas ele é também o portador
desta luz.24 Marianne, por outro lado, pode ser vista como um anjo, um ser mais do que
humano e menos que divino, que opera em nome de Deus e que anuncia, em silêncio, o
acontecimento, o novo dia. Ou, como Luce Irigaray descreve a figura do anjo,

Entre Deus, como ato perfeitamente imóvel; o homem, rodeado e


encarcerado pelo mundo de seu trabalho; e a mulher, cuja tarefa
seria cuidar da natureza e da procriação, os anjos circulariam como
mediadores do que ainda não aconteceu, do que ainda está para
acontecer, do que está no horizonte.25

Mas, se o anjo é a promessa em si mesma, como fica o caso de Marianne? Então o


milagre não surge como uma surpresa; daí a ausência total de deslumbramento na reação
das filhas de Ester quando encontram sua mãe acordada de “um sono do qual não se
acorda”, como a morte lhes havia sido explicada anteriormente. Elas não reagem como se
a ressurreição da mãe fosse um acontecimento normal, porque ele é. Comparativamente,
em Ordet é a criança que primeiro expressa sua crença em Johannes, simplesmente porque
ela não tem razão alguma para não acreditar que seu tio não é Quem ele diz ser. Para real-
mente crer, é melhor não saber. Maior é o maravilhamento criado no espectador, que por
mediação da presença das meninas em ambos os filmes, e sua normalização do milagroso,
afirma-se em seu ou sua descrença, e pelo fato de que as imagens posteriores dos milagres
não podem ser explicadas simplesmente, por exemplo, atribuindo-se o evento à imagina-
ção de um dos personagens. Esther e Inger realmente abriram seus olhos. Não apenas foi
transformado o status ontológico das relações diegéticas dos filmes com a realidade, mas
também a perspectiva do espectador sobre eles – uma transformação que é real e que não
pode ser desfeita.
É importante notar que o milagre de Stellet Licht, diferente daquele em Ordet, é um
assunto só de mulheres. Anjos, como enfatiza Irigaray, apesar de seu papel mediador num
sistema religioso patriarcal, não são seres destituídos de gênero. Marianne ainda é a “mu-
lher natural” de Johan, e o beijo com que ela desperta Esther não é meramente uma trans-
missão simbólica do espírito divino, é altamente sensual e até mesmo erótico. Em outras
palavras, Marianne continua a ser uma mulher, e o milagre que ela realiza é corporificado

24 John 1.1–14. Citações da Bíblia do Rei James, 1769.


25 Irigaray, Luce. An Ethics of Sexual Difference, trad. Carolyn Burke e Gillian C. Gill, Ithaca, NY: Cornell University
Press, 1993, 15, ênfase no original.

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por sua existência corpórea e, talvez, coincida completamente com ela. No entanto, seria
redutor fazer uma leitura da ontologia desta narrativa como sendo estritamente imanen-
te. Johan pode ter perdido sua fé, mas o filme deixa em aberto a possibilidade de uma
presença transcendente, embora não necessariamente personificada, intervindo na exis-
tência terrena. Primeiro, há uma forte sugestão da inspiração divina quando Marianne
está estendendo a mão em direção ao sol. Em segundo lugar, antes mesmo do contato
corporal, no momento da ressurreição de Ester, parece já existir uma ligação entre as
duas mulheres. “Pobre Esther”, diz Marianne logo após ela e Johan fazerem amor; uma
expressão que, como vimos, será repetida por Esther em relação a Marianne e Johan. As-
sim, ainda que permaneça explicitamente ambíguo se o filme em todos os pontos oferece
uma mera representação de pessoas religiosas, ou se tem em sua diegese a marca de um
Deus transcendente e/ou panteísta, esta, de todos os modos, é uma história moral (mas
não moralizante) centrada nos temas religiosos do perdão, da culpa, e, em último caso,
do auto-sacrifício, primeiro por Esther e depois por Marianne, que, voltando no tempo,
desiste de seu “homem perfeito”, como ela havia chamado Johan anteriormente.
Esta questão a respeito do status ontológico do próprio filme provavelmente teria
sido resolvida, como é em Ordet, se houvesse sido incluído na narrativa o reencontro de
Johan com sua esposa ressuscitada. Embora ele chegue a entrar na sala, a câmera omite
esse reencontro apresentando-o apenas através do olhar de Johan, de um ponto de vista
que mostra Esther de perfil, ouvindo sua filha. Após este plano, e seguindo uma borboleta
atraída pela luz do sol, o filme corta para uma imagem externa da janela do quarto, com
marcas do reflexo do sol, através da qual o inseto, neste momento, escapa por uma peque-
na abertura. O que é certo, sem dúvida, é que o espectador testemunhou um milagre, seja
lá qual for a sua natureza ou origem. Johan foi perdoado por sua infidelidade e indetermi-
nação, e por meio da intervenção de Marianne, que neste momento já desapareceu, foi-lhe
concedido o impossível, uma volta no tempo e uma nova chance com sua esposa.

Uma vantagem sobre a verdade

O que é, na verdade, um “milagre”? Um milagre é algo mais do que o impossível e


menos que o possível. Um milagre não é simplesmente o impossível tornando-se possível;
é o evento que permanece como impossível, ainda que sua ocorrência tenha demonstrado
o contrário. E, a rigor, um milagre não ocorre, ou seja, não se dá no tempo presente. Um
milagre não sabe o que é presença, dado que ele modifica a própria noção do que signi-
fica estar presente. Um milagre pode ou não acontecer ou já ter acontecido. É um evento
que não pode ser imaginado antes de sua ocorrência, nem ser crível depois – apesar da
exclamação “não posso acreditar nisso” significar exatamente o oposto do que ela afirma.
Mas se o milagre aconteceu, ele sempre existiu. “Milagres não acontecem mais”, como diz
o pastor a Johannes em Ordet.

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No capítulo 6, “Dos milagres”, de seu Tratado Teológico-Político (1670), Espinosa, que
também não acreditava em milagres, escreve:

Os milagres, enquanto entendidos como uma obra que repugna


(nega) a ordem da natureza, estão, pois, tão distantes de nos mostrar
a existência de Deus que, pelo contrário, nos fariam duvidar dela.26

“Deus ou [sive]27 Natureza”, para Espinosa, é causa imanente, isto é, simultaneamen-


te, causa sui e causa generis, causa de si mesmo e causa de tudo. É a causa que é imanente
a seus efeitos e, como tal, precede seus efeitos apenas logicamente, não diacronicamente.
A essência de Deus, ao contrário de tudo o mais (incluindo os humanos), envolve sua
existência. Ainda que Espinosa mantenha o nome e o gênero de Deus intacto, ele refuta a
noção de Deus como um ser personificado, intervencionista. Se Deus intervier no curso
da natureza para realizar milagres, significa que ele falha, no entanto o Deus de Espinosa
é perfeito por definição. Deus é a Natureza e, como tal, simplesmente é. A crença das pes-
soas em milagres, argumenta Espinosa, baseia-se na imaginação de Deus como um poder
distinto daquele da Natureza, a qual elas entendem ser sua criação. Em vez de se esforçar
para entender Deus e entender o “fenômeno incomum” do qual eles não compreendem as
causas naturais, preferem permanecer na ignorância “em parte por devoção, em parte pelo
desejo de opor-se a àqueles que cultivam as ciências naturais”.28
Deus não se revela – ou seja, se expressa – através de milagres ou sinais. E quando
ele parece fazê-lo, isto diz muito sobre as projeções antropomórficas do observador so-
bre Deus, mas nada diz sobre o próprio Deus. Por exemplo, em Stellet Licht, logo depois
de Johan e Marianne terem tido relações sexuais, Johan, agora deitado sozinho na cama
e olhando para o teto, vê uma folha caindo. A folha tem formato de coração e, como
tal, contrasta com a outra forma simbólica incluída na perspectiva do ponto-de-vista
de Johan: a cruz formada pelas vigas no teto. “O que é isso aí no chão?” Johan pergunta
quando Marianne retorna ao quarto. “Uma folha”, diz ela. “Uma folha de cedro?” “Sim,
cedro vermelho”. Tal como a borboleta na sequência da ressurreição, o filme deixa em
aberto se a folha e as vigas simplesmente surgem para levar à Johan – e também ao es-
pectador, por extensão – a possibilidade de observar uma constelação simbólica furtiva
ou se elas são realmente revelações divinas. Mas se estas observações são entendidas
como sinais que necessitam ser interpretados, de acordo com Espinosa isso só ocorre
depois dos intérpretes (Johan; espectador) terem modelado esses sinais afirmados pelo

26 Spinoza, Benedict de. A Theologico-Political Treatise, in The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R. H. M. Elwes
(New York: Dover, 1951), 86–87. Em francês: SPINOZA, B. Oeuvres 2: Traité théologico-politique. Trad: Charles Appuhn.
Paris: Garnier-Flammarion, 1965. Em português: ESPINOSA, B. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins, 2003.
27 Este “ou” é traduzido como “ou, em outras palavras”.
28 Spinoza. Theologico-Political Treatise, 81.

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autor sob suas próprias concepções demasiado-humanas de liberdade, amor e sacrifício.
Como explica Gilles Deleuze, acerca da posição de Espinosa,

A revelação não é uma expressão, mas um cultivo do indizível, um


conhecimento confuso e relativo por meio do qual emprestamos a
Deus determinações análogas às nossas próprias (Entendimento,
Vontade), apenas para resgatar a superioridade de Deus através de
sua eminência em todos os gêneros (O supereminente, etc.).29

Na leitura que Deleuze faz de Espinosa, Deus é expressividade, o que explicita (lite-
ralmente desdobra-se) a si mesmo e que está implicado em cada coisa. Deus se expressa
através de sua infinidade de “atributos”, que podem ser pensados como perspectivas sobre
a substância que é simultaneamente parte integrante da substância e da qual apenas sua
extensão e pensamento estão disponíveis para o intelecto humano. Deus expressa a si
mesmo, e é somente através de suas expressões que a mente pode obter o conhecimento
adequado; isto é, o conhecimento das causas pelas quais os modos são afetados. Os modos
são definidos como “as afecções de uma substância, ou [sive], aquilo que existe em outra
coisa, por meio da qual é também concebido”.30 Esta “outra coisa” é a substância. Espinosa
distingue entre modos de extensão e de pensamento; isto é, corpos e ideias. Crucial é que
os corpos e as ideias estão em relação de paralelismo, isto é, a ideia de uma coisa existe
totalmente separada da existência desta coisa. Um ser humano é também um modo, um
corpo-mente. É um corpo na medida em que é considerado sob o atributo da extensão; é
uma mente na medida em que é considerado sob o atributo do pensamento.31
Como seres humanos se relacionam com a substância divina da qual eles provém?
Espinosa distingue entre três tipos de conhecimento modal: a imaginação, a razão e a in-
tuição. Enquanto a imaginação pertence ao mesmo tempo às afecções (corporais) e à per-
cepção de signos, as quais produzem apenas conhecimento inadequado, passivo; os dois
últimos pertencem ao conhecimento adequado e à atividade da mente, no sentido de que
eles aumentam o poder de atuação da mente, seu poder de ser afetada. Por “adequação”,

29 DELEUZE. Expressionism in Philosophy: Spinoza, trad. Martin Joughin (New York: Zone Books, 1992), 181–82.
30 Spinoza, Benedict de. Ethics, trad. G. H. R. Parkinson (Oxford: Oxford University Press, 2000), I.D5. (Refiro-me a
passagens da Ética, na parte do texto em que eles aparecem, “P” se referindo a proposição, “S” para escólio, “D” para de-
monstração, “A” para um axioma, “Def ” para definição, “C” para corolário, e “L” para lema.) Todos os modos individuais
são compostos; isto é, são por sua vez constituídos de modos menores que “comunicam seus movimentos um ao outro
por alguma proporção fixa” (Ethics, II.P13.L3.CA2.Def). Ver, Espinoza, B. Etica. Trad: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007.
31 Na medida em que os atributos são paralelos um ao outro, corpo e mente são, também, mas isso não significa que
eles estão desconectados, já “que o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo existente em ato.
Ademais, como não existe nada de que não se siga algum efeito, se, além do corpo, existisse ainda outro objeto da mente,
deveria necessariamente existir em nossa mente a ideia desse efeito. Ora, não existe nenhuma ideia desse efeito. Logo, o
objeto de nossa mente é o corpo existente e nenhuma outra coisa” (Ethics, II.P13). Uma maneira de pensar essa relação
de conectividade paralela se assemelha à conexão entre duas pistas condutoras entre as quais corre a corrente alternada
que as liga e as separa, sendo Deus esta corrente, a quintessência monista das coisas, em si.

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Espinosa entende o grau em que uma ideia expressa a sua própria causa. A primeira for-
ma de conhecimento adequado é a razão, que procede pela interpretação de signos e pela
criação de conceitos, voltadas para o desenvolvimento de noções comuns, ou daquilo que
é universal para vários modos de existência. A segunda forma de conhecimento adequa-
do é a intuição, que é dirigida ao conhecimento dos modos individuais. Espinosa escreve:
“Este [terceiro] tipo de conhecimento procede de uma ideia adequada da essência formal
de alguns dos atributos de Deus para um conhecimento adequado da essência das coisas”.32
É no terceiro tipo de conhecimento que estou mais interessado, não só porque essa postura
epistemológica em direção ao Todo imanente pode potencialmente nos ajudar a entender
as imagens-tempo cristal criadas no cinema, mas também porque a questão sobre suas
possibilidades constitui o eixo da filosofia de Espinosa.
Dado que tudo está ligado a tudo no sistema de Espinosa, compreender adequada-
mente a essência das coisas singulares implica, aparentemente, saber a causa da essência de
uma coisa, e consequentemente a causa dessa causa, ad infinitum. Mas Espinosa, ao contrá-
rio de Descartes, evita a armadilha da regressão infinita. Para Espinosa, conhecer a essência
de uma coisa singular significa conhecer o seu lugar e seu movimento na concatenação da
Natureza e, portanto, em certo sentido, conhecer essa concatenação, que é causa imanente,
em si. Dito de outro modo, conhecer intuitivamente significa compreender a Natureza
através da essência de uma coisa singular, que serve como uma lente através da qual o
modo “percebe” a Natureza. Essa não é uma lente, no sentido de uma lente de aumento
colocada entre esse modo e a Natureza, o que implicaria numa forma de percepção como
contemplação, que se aplica mais ao segundo tipo de conhecimento, mas uma lente no
sentido de uma bola de cristal dentro da qual o modo, a identidade que agora se dissolve,
é envolto por uma necessidade do mundo, “considerado sob uma espécie de eternidade”.33
Se a essência de um modo particular pode ser conhecida, é apenas através de lam-
pejos de eternidade. Eu escrevo “se” porque a rigor permanece ambíguo na Ética se in-
tuição – que, mais do que o “mais alto” tipo de conhecimento, é o excesso simultâneo e
a condição de possibilidade dos outros tipos de conhecimento – pode ser alcançada de
todo. Esta ambiguidade resulta da própria natureza desse tipo de conhecimento. Intuição
simultaneamente ultrapassa a linguagem e forma sua condição de possibilidade, os con-
ceitos e as estruturas linguísticas pertencentes à razão. Espinosa só reconhece esse dilema
de forma implícita, através de seu estilo de escrita. Ao passo que, como Deleuze aponta, a
maior parte da Ética é escrita sob a perspectiva narrativa do segundo tipo de conhecimen-
to (até a proposição V.21),34 o restante da quinta seção é escrito a partir da perspectiva da
intuição. Ou, para ser mais preciso, está escrito como se a partir da perspectiva da intui-
ção. A abordagem de Espinosa nessas passagens pode ser concebida como uma forma de

32 Ethics, II.P40.S2.
33 Ibid., V.P36.
34 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 296.

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discurso indireto livre, no sentido de que ele tenta tornar sua voz narrativa imanente ao
seu assunto, sendo este último o amor divino, “o amor com que Deus ama a si mesmo; não
na medida em que ele é infinito, mas na medida em que ele pode ser explicado através da
essência da mente humana, considerada sob uma espécie de eternidade”.35 O compartilhar
este amor, Espinosa chama beatitude.36
Como se. O problema não é se a intuição é possível, mas que ela precisa ser possível.
Todo o sistema de Espinosa se sustenta nessa possibilidade, uma possibilidade – e é esse
o problema – que não é passível de prova por definição. Ainda que sob a perspectiva da
substância não haja problemas, Deus sendo a perfeição em si, a partir de uma perspectiva
modal os problemas existem para serem resolvidos por meio de teoremas e demonstra-
ções, que é o que Espinosa faz. Sabendo que o conhecimento intuitivo precisa ser possível,
ele escreve como se ele fosse possível antes dele tornar-se possível, se é que ele será. Espi-
nosa avança sobre a verdade, mesmo antes de ter estabelecido a existência desta última,
não porque ele considera que vale a pena correr o risco, mas porque ele tornou essa es-
tratégia a única opção, ao proclamar a verdade como um modelo de si mesma e do que
não é.37 Como consequência, é apenas sob uma perspectiva modal que o terceiro tipo de
conhecimento surge por fim. De seu próprio ponto de vista, que é o de Deus, a intuição
é o ponto zero que torna possível aos modos contar e mover-se do um para o dois, em
primeiro lugar.
É também neste sentido que interpreto a seguinte passagem crucial do Expressionism
in Philosophy, de Deleuze:

Seria absurdo não reconhecer o seguinte: que as coisas que não


existem por sua própria natureza estão determinadas em sua exis-
tência (e na produção de seus efeitos) por algo que, este sim, existe
necessariamente e produz seus efeitos por si. É sempre Deus que
determina que uma causa qualquer produza seu efeito; assim, Deus
nunca é, propriamente falando, uma causa “distante” ou “remota”.
Não partimos, portanto, da ideia de Deus, mas a alcançamos muito
rapidamente, no início da regressão; pois, sem ela, sequer enten-
deríamos a possibilidade de uma série, sua eficiência e atualidade.
Pouco importa, então, se procedemos através de uma ficção. A intro-
dução de uma ficção pode na verdade nos ajudar a alcançar a ideia
de Deus o mais rapidamente possível, sem cair nas armadilhas de
uma regressão infinita.38

35 Ethics, V.P36.
36 Ibid., V.P36.S.
37 “Tal como a luz manifesta a si e a escuridãou, assim é a verdade para si e para a falsidade” (Ethics, II.P43.S).
38 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 137, ênfase no original.

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Se essa ficção necessária de fato resulta em faíscas cristalinas de “amor com o qual
Deus ama a si mesmo”,39 o advento deste último só pode ser concebido como um “milagre
imanente”. Em vez do sujeito escapar à imanência, como Ricciardi interpreta o fim de Mi-
lagre em Milão, eu diria que o milagre imanente é a sua ou o seu devir-imanente. Assim,
no final do filme de De Sica, ao invés de Totó e seus companheiros levantarem vôo do
mundo, eles tornam-se o mundo.
A imanência desse milagre reside em que o instante de sua ocorrência é uma con-
firmação do mundo ao invés de uma transformação. Nele, não é o mundo que sofre uma
mudança inexplicável, miraculosa. É a relação epistemológica do modo para com o mun-
do que é transformada. Em outras palavras, o milagre imanente refere-se a uma mudança
radical da perspectiva do modo sobre o mundo, que surge de dentro dessa perspectiva,
mas que não pode ser explicada ou expressa por ela. Nessa mudança, a possibilidade de
tal permanece incerta por definição, o modo percebe a Natureza como se através da pró-
pria Natureza. Essa mudança epistemológica, que é uma das beatitudes, é tão instantânea
quanto efêmera. Mas ao mesmo tempo é eterna, porque, no instante de sua ocorrência,
que é atemporal em si, pode ser definida como um movimento da razão se autodesafian-
do, razão que também é desafiada em sua lembrança desse instante.
Portanto, do ponto de vista modal o milagre imanente é realmente um milagre, en-
quanto que do ponto de vista da substância, ele sempre se explica pelas inexoráveis leis
e regras da Natureza, sendo a última, para Espinosa, um sistema sem vestígios. Como
conceito, milagre imanente junta estas duas perspectivas que conceitualmente excluem-
se mutuamente, mas que, no terceiro tipo de conhecimento efemeramente se tocam ou
parecem se tocar.
Antes de retornar ao milagre imanente que é Stellet Licht, é preciso examinar a teoria
de Espinosa sobre o tempo, a qual fica bastante implícita na Ética. Espinosa distingue duas
temporalidades: duração e eternidade, a primeira corresponde aos modos e a última à
substância. Em relação à existência humana, enquanto a sua extensão corpórea tem uma
duração limitada e mensurável, a alma ou a essência do corpo só pode ser expressa sob
uma espécie de eternidade.40 “Nós sentimos e experienciamos que somos eternos”, explica
Espinosa. “A mente sente essas coisas que ela concebe em equivalencia com aquelas que
ela tem na memória. Para os olhos da mente, pelos quais ela vê e observa as coisas, são
demonstrações”.41
Os sentidos da mente. É aqui que a ficção necessária de Espinosa se manifesta. De
repente a imaginação vem em auxílio da razão, ainda assim, não como sua negação dia-
lética, mas como sua valorização. Apenas em um intuitivo curto-circuito podem os olhos
da mente, que realmente são bolas de cristal, ver as demonstrações que eles mesmos são.

39 Ethics, V.P36.
40 Ibid., V.P23.S
41 Ibid.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 121


Intuição é conhecimento da causa imanente, que é a condição de possibilidade da própria
existência. Mais do que levar o entendimento humano de volta às paixões corporais, a
intuição toca a mente, assim como a imaginação consiste numa impressão corporal. Por
um lado, a intuição é um limite, a saber, da razão (duplo genitiva). É o ponto final do pro-
cesso da razão, sem constituir-se o seu fim. É o ponto onde o conatus, o desejo humano de
persistir em ser em combinação com uma consciência desse desejo,42 dá voltas em torno
de si e volta, em diferença e diferenciação.
Por outro lado, a intuição é um processo dentro e fora de si que “se abre” no ponto in-
finitesimal do tempo diacrônico, em que o conatus não é o que ele é; ou seja, no momento
em que ele está em repouso. Nesse momento de descanso, o próprio tempo imobiliza-se.
Esse processo, que é a concatenação da própria natureza, permanece perpendicular ao do
conatus, tanto espacial quanto temporalmente, sendo espaço e tempo indistinguíveis neste
ponto, que é o Todo não-diferenciado, que sempre existiu. É aqui, ou neste momento, que
o conatus toca a eternidade, que é a essência infinita de Deus.
Enquanto circunscrevemos esse conhecimento eterno, é importante lembrar o fato
óbvio de que a Ética é um texto e que, como tal, não pode expressar esse toque de eter-
nidade sem se contradizer. É como se a Ética então, nos pontos em que ela se torna mais
expressiva, se voltasse contra os seus próprios limites discursivos. O limite da razão é
também o limite da linguagem e o conhecimento da causa imanente é também o conheci-
mento da condição de possibilidade da linguagem. E, do modo como o texto de Espinosa
performa sua própria virada linguística, embora implicitamente: “a mente sente”. Enquan-
to na maior parte da Ética Espinosa utiliza principalmente exemplos e comparações, nas
páginas finais ele utiliza o recurso a metáforas. Na intuição, binários como “finito” e “infi-
nito”, “movimento” e “descanso” – que são os fundamentos silenciosos das concatenações
das definições, proposições e manifestações de Espinosa – se rompem.
A “virada linguística” de Espinosa se torna mais visível quando, tendo em mente esse
entendimento metafórico da intuição, volta-se às poucas sentenças da parte 2, em que
Espinosa escreve sobre a intuição a partir da perspectiva da razão. Ele faz isso por meio
de um exemplo. Tendo comerciantes ilustrados a capacidade de, dados três números, en-
contrar rapidamente um “quarto número que deverá ser para o terceiro como o segundo é
para o primeiro”, tanto pela irrefletida experiência (imaginação) quanto pelo conhecimen-
to matemático (razão), Espinosa escreve,

Mas, no caso de números muito simples, não há necessidade destas


[i.e., da experiência ou da matemática]. Por exemplo, dado que os
números são 1, 2 e 3, todos vão ver que o quarto número propor-
cional é 6; e vemos isso muito mais claramente porque podemos

42 Ibid., III.P9.S.

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inferir o quarto número a partir da própria relação que intuímos
ter o primeiro para com o segundo.43

Embora esse exemplo continue a ser pouco expressivo sobre a intuição, ele, no en-
tanto, ilustra a relação da intuição com a razão. De uma perspectiva modal, a razão é o
fundamento indispensável para o conhecimento intuitivo. Tal como o comerciante que
imediatamente disse “6” precisou, obviamente, ter uma ideia da proporcionalidade. Caso
contrário, ele também poderia ter escolhido “4” (sequência linear), ou “5” (sequência de
números primos), ou qualquer número – porque para cada sequência finita, digamos yi,
de comprimento n, existe uma função f(x) tal que yx = f(x) para todo x ≤ n, com x e n intei-
ros positivos. A intuição é a sua própria razão, neste exemplo, o conhecimento da propor-
cionalidade. É a razão incorporada que se retirou de si mesma, através da sua utilização.
Através desta incorporação, a razão torna-se invisível, o que explica a segunda divisão na
qual esse tipo de conhecimento vem à mente.
Do ponto de vista modal, esse instante de intuição só pode ser expresso como um
instante anacrônico, um “flash” instantâneo em que o tempo não faz sentido como resul-
tado do não-reconhecimento diacrônico do sincrônico, da eternidade. É a temporalidade
dos déjà vus e das visões, de fantasmas e de profetas, de milagres, fenômenos nos quais o
próprio tempo parece estar fora de lugar. É também a temporalidade da imagem-cristal,
o que me leva de volta para Stellet Licht, porque um aspecto do filme de Reygadas que até
agora apenas apontei é sua intrincada representação e desenvolvimento do tempo.
Imediatamente após o nascer do sol que dá início ao filme, corta-se para um relógio
de parede que indica 6:27 a.m.. No pêndulo que balança, o espectador vê o reflexo da famí-
lia de Johan e Ester reunida em torno da mesa do café. Eles estão orando, olhos fechados,
contra o pano de fundo do monótono tique-taque do relógio. Terminado o café, Johan
permanece sentado sozinho à mesa. Ele então se levanta, pára o relógio e novamente se
senta à mesa, onde desata a chorar. A cena da cozinha demora quase 10 minutos e define o
ritmo do restante da narrativa. No final do filme, pouco antes de Johan ir ver Ester, o mes-
mo relógio é alterado de novo pelo pai de Johan: 7:41 p.m.. Apesar desse parar e avançar
do relógio de parede ser outra citação significativa a Ordet44, o que implica para a nossa
leitura do filme essa representação da narrativa de Stellet Licht, fora do tempo diacrônico?
Um pouco mais de treze horas de tempo diegético são mostradas como se passadas no
intervalo entre o nascer e o pôr do sol, mas durante esse dia choveu, nevou e ficou quente o
suficiente para ir nadar ao ar livre. O ritmo lento do filme é enganador, porque na verdade
o tempo voa em Stellet Licht. Seu milagre não só ocorre no instante infinitesimal em que
Esther abre os olhos – uma revelação que, em retrospecto, “lava” ou “encharca” as imagens

43 Ibid., II.P40.S2.
44 Em Ordet, o relógio de parede na fazenda do Borgen é interrompido logo após a morte de Inger, e reiniciado pouco
depois de sua ressurreição.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 123


do filme – mas suas próprias imagens são feitas de matéria milagrosa. Como tal, Stellet
Licht parece ser um excelente exemplo da expressão cinematográfica.

Tempos Cristais

O que é um cinema de expressão? Para responder a esta pergunta é preciso primeiro


olhar o que separa a expressão da representação. Deleuze, em sua discussão sobre os atri-
butos em Espinosa, explica essa distinção através das metáforas do espelho e da semente,
respectivamente. Enquanto o espelho reflete, ou reflete sobre a imagem; a semente, Deleu-
ze escreve: “‘expressa’ a árvore como um todo.”45 Todos os atos de expressão movimentam-
se através da representação. Expressões refletem e multiplicam a essência da coisa. Mas,
Deleuze escreve: “O que é expresso é ao mesmo tempo envolvido em sua expressão, como
uma árvore em sua semente.”46
Espelho e semente, representação e expressão, correspondem a dois tipos de rea-
lismo: o realismo representacional e o realismo expressivo, sendo sempre o primeiro de
alguma forma incluído no segundo. Ambos são categorias narrativas, mas enquanto o
realismo representacional é caracterizado pela distância objetiva que se pretende manter
entre o sujeito e o objeto da narração, no realismo expressivo essa distância está sendo
superada pela tentativa incessante de tornar a perspectiva narrativa imanente ao seu tema.
Em termos simples, o realismo representacional fala sobre realidade, enquanto o realismo
expressivo fala, como se, por meio da realidade.
Este processo de ‘imanentização’ da perspectiva narrativa também poderia ser cha-
mado de discurso indireto livre. Linguisticamente, o discurso indireto livre é uma forma
de citação sem aspas que borra as fronteiras entre o discurso subjetivo e objetivo. Quan-
do realizado de forma consistente, como em A educação sentimental (1869) de Gustave
Flaubert, tem o efeito duplo de, por um lado, tornar o ato de narrar do autor imanente à
narrativa, e, por outro lado, mediar a narração por um ou mais desejos dos personagens.47
O discurso indireto livre, portanto, funciona como um discurso do desejo, não no sentido
de que penetra no mais profundo da psicologia dos personagens, mas na medida em que
revela o desejo dessas personagens como sendo o produto de grandes processos sociais e
literários de subjetivação.
Este escrutínio do desejo é um processo inerentemente auto-reflexivo em que o pró-
prio ato de escrever é trazido à superfície do texto. Como V. N. Volosinov coloca, discurso
indireto livre (ou discurso quase direto, como ele chama) é um dispositivo narrativo que
permite ao artista expressar a “impressão viva de vozes escutadas como se estivesse num

45 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 80.


46 Ibid.
47 Por exemplo, em The Waves (1931), de Virginia Woolf, o ponto de vista narrativo está dividido em sete vozes (da qual
uma permanece em silêncio) que são lidas como totalmente imanentes à narração.

124 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


sonho.” “É a própria forma da fantasia.”48 Na prosa de Flaubert, Volosinov argumenta,
é dado a este dispositivo uma natureza especialmente complexa, dado que isso vem a
refletir o conturbado relacionamento do escritor com suas próprias criações.49 Quando
realizado de forma consistente, o discurso indireto livre provoca o efeito de que nenhuma
de suas expressões podem ser totalmente atribuídas a qualquer ponto de vista subjetivo
do protagonista ou do narrador ausente-presente. Assim, sempre que Frédéric, o “herói”
de A educação sentimental, evoca o “amor”, o leitor simultaneamente ouve o escritor, ele
mesmo ficcionalizado, ridicularizando Frédéric pelos clichés que ele fala e por aquele que
seu personagem impotente encarna.
Discurso indireto livre pode ser encontrado também em outras práticas narrativas
além da literatura, como a filosofia e o cinema. Em seu ensaio “O Cinema de Poesia” (1965),
Pier Paolo Pasolini discute o que ele chama de “subjetiva indireta livre”, que ele descreve
como um “‘monólogo interior’ de imagens.”50 De acordo com Pasolini, uma subjetiva indire-
ta livre nunca vai corresponder perfeitamente ao discurso indireto livre literário, pela razão
de que um cineasta, ao contrário de um romancista, nunca pode desaparecer totalmente em
personagens seus. No entanto, o cineasta pode se aproximar desse monólogo interior atra-
vés do uso de meios formais: “Sua atividade não pode ser linguística, deve, ao contrário, ser
estilística”.51 Essa abordagem estilística, afirma Pasolini, chega a seu clímax no filme Deserto
Vermelho (Deserto Rosso, 1964), de Michelangelo Antonioni, dado que neste filme, o plano
de ponto de vista indireto livre coincide com o filme inteiro. Pasolini escreve,

Em Deserto Vermelho, Antonioni já não aplica, na contaminação


desajeitada comum a seus filmes anteriores, a sua própria visão
formalista do mundo a um conteúdo genericamente empenhado
(problema da neurose da alienação): mas olha o mundo identifi-
cando-se com a sua protagonista neurótica, revivendo os aconteci-
mentos através do olhar dela […].52

Concordo apenas parcialmente com Pasolini, pois me pergunto se não se pode


também apontar formas cinematográficas de discurso indireto livre que não dependem

48 Volosinov, Valentin Nikolaevich. Marxism and the Philosophy of Language, trad. Ladislav Matejka and I. R. Titunik
(Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973), 148. Ver: Bakhtin, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da lingua-
gem. Trad: Michel Lahud e Yara F. Vieira, com colaboração de: Lúcia Wisnik e Carlos Henrique D. C. Cruz. São Paulo:
Hucitec, 1986.
49 V. N. Volosinov escreve: “O discurso quase-direto, com sua capacidade de transmitir simultaneamente a identificação
com e a independência, a distância de suas próprias criações, foi um meio extremamente adequado para Flaubert encar-
nar essa relação de amor e ódio que ele mantinha com seus personagens” (Marxism and the Philosophy of Language, 152).
50 Pasolini, Pier Paolo. “The ‘Cinema of Poetry’” in Heretical Empiricism, trad. Ben Lawton, Louise K. Barnett, ed.
Louise K. Barnett (Washington DC: New Academia, 2005), 167–86, citação em 176 (publicado originalmente em 1972).
Cf, Pasolini, P.P. Empirismo hereje. Trad: Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.
51 Ibid., 178.
52 Ibid., 179.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 125


exclusivamente de meios estilísticos, mas que são simultaneamente inerentes à narração
e, como tal, são também linguísticas. Embora possa ser verdade que o delírio de Giuliana,
mais do que o dos protagonistas anteriores de Antonioni, está mais próximo da experiên-
cia pessoal do diretor, já em O Eclipse (Eclipse, 1962), o diretor tinha tornado a sua pers-
pectiva narrativa imanente às imagens. Neste filme, sempre o desejo de Vittoria ou de um
dos outros protagonistas é o mediador da descrição do ambiente materialista pelo qual ele
é constituído. Em outras palavras, espaço e personagem são mutuamente determinantes.
Como resultado, não existe nenhuma imagem – ou enunciado cinematográfico – neste fil-
me, que pode ser inteiramente atribuído a um ponto de vista diegético ou extradiegético.
Também em Stellet Licht, muitas das sequências são explicitamente mediadas por
uma ou várias das perspectivas dos personagens. Exemplo crucial é um já discutido em
relação à sequência da ressurreição, em que a normalização deste evento – primeiro de
Marianne e, em seguida, a das crianças – integra-se à representação do milagre em si. O
segundo exemplo pungente se dá na cena em que Johan, depois de ter feito amor com
Marianne, sai de casa para procurar seus filhos. Momentaneamente temendo o pior, o
espectador se vê aliviado quando os encontra na van de um norte-americano, totalmente
absorvidos pela performance de Jacques Brel cantando “Les bombons” (versão “parcial”
de 1967), na tela minúscula de um aparelho de televisão portátil. Os filhos de Johan es-
tão rindo alto desse homem esquisito cuja língua eles não entendem. Enquanto Johan e
Marianne estão do lado de fora da van, ela discretamente pega na mão dele. Em seguida,
Johan se junta a seus filhos. Depois que o proprietário da van fecha a porta e Marianne vai
embora, a TV se torna o filme. Neste caso, o exemplo é tanto visual, dado que por um mi-
nuto e meio a tela será totalmente preenchida pela imagem da televisão, quanto auditivo,
dado que o único som que o espectador agora escuta é a música de Brel (figura 4):

[…] Et tous les samedis soir que j’peux


Germaine, j’écoute pousser mes cheveux
Je fais glou glou je fais miam miam
J’défile criant: paix au Vietnam
Parce qu’enfin enfin j’ai des opinions
Je viens rechercher mes bonbons […]53

53 “… E todas as noites de sábado que eu posso / Germaine, eu escuto o meu cabelo crescer / eu faço glub, glub, eu
faço miam miam / eu marcho gritando: Paz no Vietnã / Porque, afinal, depois de tudo eu tenho minhas opiniões / eu
venho buscar meus bombons…” Em contraste com esta versão de 1967, a versão original de 1964 de Les Bonbons era uma
canção de amor bastante tradicional: “J’vous ai apporte des bombons / parc’que les fleurs c’est perissable…” [“Eu te trouxe
bombons / porque as flores são perecíveis”].

126 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Figura 4 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

Provavelmente, Johan, como seus filhos, não entende as palavras. Mas, imerso na
gravação preto-e-branca granulada da expressiva performance de Brel, em total oposição
ao seu amargo problema, está a repentina felicidade de Johan, a simples felicidade a que
ele está prestes a renunciar por amor. No cerne dessa felicidade, está aberta a visão de
mundo de seus filhos, para os quais “bom dia” realmente significa “bom dia” e uma canção
engraçada, uma canção engraçada. O espectador não irá chegar mais perto do que isso da
alma de Johan, de sua mente vacilante.
O que quero ilustrar com esses exemplos é que o discurso indireto livre, no cinema,
assim como em outras práticas, deve ser concebido como uma postura em relação à rea-
lidade ao invés de um estilo de representação. O discurso indireto livre é um esforço em
direção à mútua determinação do ponto de vista narrativo e do enredo-espaço, em direção
a um ponto onde os dois se tornam imanentes um ao outro. Esse espaço é simultaneamen-
te o ambiente ficcional no qual os personagens habitam, viajam ou passeiam, e o espaço
textual em que a narrativa se desenrola. No cinema, este espaço textual é a combinação do
quadro e da trilha sonora, o lugar do som-imagem cinematográficos em si. Num cinema
de expressão, estas duas dimensões do enredo-espaço estão interligadas na medida em
que se fundem ou parecem fundir-se. Se o cinema fosse o mundo, o “testemunho” desse
instante em que se dá essa fusão seria o que Espinosa chama de intuição.
No nível fenomenológico da diegese, a imanência é alcançada através da mútua de-
terminação dos personagens (ou modos, em geral) e do espaço representado; no nível
ontológico da imagem como imagem, isto é alcançado através da mútua determinação do
espaço diegético e do espaço tela-banda sonora. A primeira dimensão de ‘imanentização’
tem lugar ao nível do espelho e se reflete sobre a essência dos personagens como modos. A
segunda dimensão tem lugar ao nível da semente e expressa a Natureza cinematográfica,
isto é, sua produção de imagens em movimento. Em analogia com a discussão de Espino-
sa sobre as essências, a primeira consiste no desejo dos personagens, e a última na mera
existência do som-imagem, no fato de que o som-imagem do cinema é, antes de ser outra

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 127


coisa. É somente através da imanência representacional que a imanência cinematográfica
– ou seja, um som-imagem livre de representação – é alcançada, e que o cinema se torna
realidade, ou, pelo menos, para parafrasear André Bazin, uma assíntota dela.54 Represen-
tação é um meio para um fim, sendo este fim a expressão da realidade.
Ninguém expressou melhor do que Walter Benjamin a relação entre meios e fins
cinematográficos. No ensaio “A Obra de Arte”, Benjamin afirma que o filme, por sua ca-
pacidade de “permear profundamente a realidade com equipamentos mecânicos”, oferece
“um aspecto da realidade que é livre de todos os equipamentos”.55 A esperança de Benja-
mim era que o filme iria ajudar a humanidade a superar dialeticamente o choque da mo-
dernidade que a tecnologia do filme provocou, incluindo a montagem. Foi também essa
esperança que o levou, na versão original daquele ensaio, a comparar a promessa do meio
de uma “visão da realidade sem mediação” para “a flor Azul na terra da tecnologia”.56 Esta
visão não deve ser pensada em termos de mimese, precisamente porque na experiência de
uma sociedade capitalista ela é inerentemente mediada. Ao invés disso, a fim de redimir
a realidade a uma paralisação efêmera – e trazer a dialética, que é o próprio movimento
do capital – o filme precisa dissecar e fragmentar “o tecido da realidade”.57 Como Miriam
Hansen argumenta,

Se as capacidades miméticas do cinema foram postas para tal uso,


ele não apenas cumpre uma função crítica, mas também uma função
redentora, registrando sedimentos da experiência que já não são, ou
ainda não são reclamados pela racionalidade econômica e social,
tornando-os legíveis como emblemas de um “futuro esquecido”.58

Estamos muito perto aqui do realismo expressivo da imagem-cristal. Embora o


cinema-filosofia de Deleuze seja menos pressuposto na tecnologia do meio do que em
Benjamin e, embora seus caminhos para a redenção levem esses filósofos por territórios
muito diferentes, suas utopias cinematográficas são idênticas: “um aspecto da realidade
que é livre de todos os equipamentos”, “um pouco de tempo em estado puro”.59 Mais ainda
se tivermos em mente o que representações e conceitos são para Deleuze e Espinosa:

54 BAZIN, André. “Umberto D: A Great Work” (1952), em What Is Cinema? vol. 2, ed. e trad. Hugh Gray (Berkeley:
University of California Press, 2005), 61-82, citação em 82. Cf: Bazin, A. O cinema. Trad: Eloísa A. Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
55 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (1936), em Illuminations: Essays and Re-
flections, trad. Harry Zohn, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken Books, 1969), 217-52, citação em 234. Cf: Benjamin,
W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Cf: Benjamin, W. A obra de arte na época de sua reproduti-
bilidade técnica in BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Trad: Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1985.
56 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility [First Version]” (1935), trad. Mi-
chael Jennings, Grey Room 39 (2010): 11-37, citação em 28.
57 Ibid., 29.
58 HANSEN, Miriam. “Benjamin, Cinema and Experience: ‘The Blue Flower in the Land of Technology’”. New German
Critique 40 (1987): 179-224, citação em 209.
59 DELEUZE, Cinema 2, 79.

128 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


ferramentas. Representações são as ferramentas necessárias para produzir uma imagem
expressiva de uma parte (um aspecto) do mundo que está livre de ferramentas – mui-
to como os conceitos no sistema de Espinosa, em última análise, são orientados para a
produção de uma imagem cristal expressiva, não-conceitual, da essência de uma coisa
singular. “O cristal é expressão”, Deleuze escreve em Cinema 2. “Expressão se move do
espelho à semente”.60 Proponho ler esta passagem através do uso anterior que Deleuze faz
dessas mesmas metáforas em seus escritos sobre Espinosa. Na base da imagem cristal está
a imagem do circuito infinito de reflexão constituído por dois espelhos frente a frente,
um circuito em que o “princípio de indiscernibilidade” entre o que é real e o que é virtual
“atinge o seu pico”.61 Mas a imagem em movimento, como a mente, não é um espelho
em si mesma, e no momento que essa imagem-mente tentasse se tornar parte integrante
desse circuito de espelhamento, ela iria interrompe-lo. Daí a necessidade de um terceiro
espelho, e um quarto, e um quinto… É a mesma armadilha de regressão infinita que en-
contramos em relação à intuição em Espinosa. Mas a mente – e para Deleuze o cinema
é uma teoria da mente – também sente que o cristal deve ser possível. Por conseguinte, a
fim de chegar ao cristal e tornar-se expressiva, a imagem cinematográfica deve saltar em
direção ao cristal desde o início e postular-se como semente, tal como uma imagem na
qual o real e o virtual se aderem:

A semente é, por um lado, a imagem virtual que irá cristalizar um


ambiente que é no presente [actuellement] amorfo; mas, por outro
lado, este último deverá ter uma estrutura que é virtualmente cris-
talizável, em relação à qual a semente agora desempenha o papel de
imagem real.62

O ponto de indivisibilidade entre esses dois lados é o que reside na essência da ima-
gem-cristal, na e da qual captamos, como num flash, a promessa de um cinema imanente:
para ver “o próprio tempo, um pouco de tempo em estado puro, a própria distinção entre
duas imagens que continuam a se reconstituírem”.63 É um vislumbre daquilo que, simulta-
neamente, causa a si mesmo e tudo mais, causa imanente.
Do espelho à semente: é esta passagem que Stellet Licht nos faz sentir. Ao envolver seus
espectadores, o filme os faz perceber que eles foram envolvidos desde o início. Depois de
aparentemente começar com uma representação de mundo em que as fronteiras entre o real
e o irreal são claras, Stellet Licht, pouco a pouco, explicita-se como uma expressão do espí-
rito divino. Mas no momento em que o espectador percebe – e para a maioria das pessoas
esse momento será o da ressurreição de Esther – que presente e passado, real e virtual, não

60 Ibid., 72.
61 Ibid., 68.
62 Ibid., 72.
63 Ibid., 79.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 129


são mais discerníveis, ele ou ela imediatamente percebe que eles nunca o foram, e que o mi-
lagre do filme já estava imbricado na escuridão da qual o filme se desdobrou. É assim que o
milagre imanente opera, postulando-se, silenciosamente, no início, como se fosse possível.

Luz silenciosa

Precisamos, portanto, voltar ao corpo celeste que aparece no início do filme, e que é
representado como o fornecedor de energia da ressurreição de Esther: o sol. Mas o sol não
é Deus, e se for, Deus está ali, como luz, a “matéria” da qual o cinema é feito. Em repetidas
ocasiões ao longo de Stellet Licht, a imagem é banhada pela luz solar, quando a luz é refra-
tada pela lente em pontos coloridos, translúcidos. Verde, laranja, azul, rosa. Eles são a luz
silenciosa do título do filme. Como confetes, eles são polvilhados sobre a imagem, sobre
a paisagem, sobre os animais, e sobre Johan e Marianne se beijando no campo (figura 5).
Mais do que revelar a presença do equipamento do cineasta, esses pontos testemunham
sua recusa em proteger a imagem da abundância de luz. Os pontos em que eles ocorrem
constituem momentos de sobre-representação, não num sentido espetacular ou simbóli-
co, mas como a representação excedendo a si mesma e, assim, tornando-se expressiva. Ao
superexpor-se ao mundo, a imagem se expõe como imagem. Há simplesmente muita luz, e
o único lugar para onde essa luz pode ir é a “superfície” da imagem, onde ela se move com
a câmera, e adere à realidade diegética, criando assim uma membrana entre o espectador
e a imagem real do filme. A imagem do filme então se faz sentir e de alguma forma se
modifica de dentro para fora, voltando-se para as coisas intangíveis, “leve como a luz”, da
qual ela é feita.64

Figura 5 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

64 CAVELL, World Viewed, 24.

130 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Essa luz colorida não é menos milagrosa do que o instante imperceptível em que Es-
ther abre os olhos. É o filme como um todo que se apresenta como um milagre, no sentido
de que escondido na superfície do seu realismo dogmático o filme desafia a realidade. Do
nascer do sol fora de sincronia às paisagens ensolaradas, da performance granulada de
Brel à ressurreição de Esther e do inverno anacrônico ao céu estrelado em que o filme se
esvai – todos são apresentados como compartilhando um mesmo status ontológico; isto
é, o conjunto milagroso que eles constituem, e que, ao mesmo tempo, só podem apontar
para o não-imaginável dentro da imagem, o não-pensado dentro do pensamento.
Para concluir, Stellet Licht é um filme inegavelmente religioso. Não só representa uma
comunidade altamente religiosa, relações sociais incorporadas a um sistema rigoroso de
crenças, mas sua própria narrativa romântica também é marcada por uma visão misti-
ficadora do amor, do perdão, do desejo e da crença, seja em Deus, a Natureza, ou uma
combinação dos dois. Embora parte dessa visão possa ser interpretada como resultante
da vontade do cineasta (seja intencional ou não) de efetuar uma representação imanente,
“indireta livre” das crenças e práticas menonitas, como em Ordet de Dreyer, é impossível
dizer onde termina sua representação de uma comunidade religiosa e onde começa sua
expressão de uma substância divina. Mas precisamente neste ponto invisível de indiscerni-
bilidade, o filme se torna produtivo para examinar a luta por uma imagem-cristal imanen-
te, tanto em filosofia quanto no cinema. Enquanto a primeira produz conceitos a partir de
conceitos, o último produz imagens a partir de imagens. No entanto, e em analogia com o
terceiro tipo de conhecimento de Espinosa, o conhecimento sem-conceito da essência de
uma coisa particular, o cinema, a fim de tornar-se plenamente expressivo de seu próprio
movimento, tem que, de alguma forma, libertar-se das imagens que produz. Ele tem que
produzir uma imagem que simplesmente é, sem, ou pelo menos antes de, tornar-se outra
coisa. Tal imagem livre do equipamento seria nada menos que um milagre.

* Niels Niessen obteve seu PhD em Literatura Comparada na Universidade de Minnesota (USA). Seu traba-
lho apareceu em publicações como Cinema Journal, Screen e Discourse. Atualmente trabalha no manus-
crito de seu primeiro livro, A Cinema of Life: The New Realism of the French-Walloon “Cinéma du Nord.”

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 131


Direito à comunicação
ATUALIDADE DO DEBATE HISTÓRICO COMO BANDEIRA
DE LUTA PELA DEMOCRATIZAÇÃO

CHALINI TORQUATO GONÇALVES DE BARROS*

Resumo: O presente estudo se propõe a entender a base de sustentação argumentativa que orienta o discur-
so da sociedade civil na defesa pela democratização da comunicação. O levantamento analítico se desen-
volve a partir das discussões acerca do direito à comunicação da década de 1970 quando se anunciava uma
Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. As ações da sociedade civil, desde então, passam
a ser pautadas pelo princípio dos direitos à comunicação ligada à visão essencialista dos direitos humanos,
como parte inseparável dos direitos civis e sociais, defendendo participação de todos pela transformação da
sociedade. Mesmo enfrentando a fragilidade de não estar claramente formalizado na legislação brasileira, o
direito à comunicação, enquanto proposta emancipadora, ainda se repercute na atualidade e se materializa
na militância das entidades de organização civil que emergem como atores sócio-políticos nessa nova con-
figuração do espaço público de discussões.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO À COMUNICAÇÃO, DEMOCRATIZAÇÃO, MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Right to communicate: actuality of a historical debate as an argument in defense of democratization


Abstract: The present study aims to understand the argumentative support basis that guides the civil soci-
ety speech in the democratization of communication defense. The analytical approach developed from the
discussions about the right to communicate the 1970s when it announced a New World Order of Informa-
tion and Communication. The actions of civil society has since come to be guided by the principle of the
right to communicate linked to essentialist view of human rights as an inseparable part of civil rights and
social participation of all advocating for the transformation of society. Even facing the fragility of not clearly
formalized in Brazilian law, the communicate right, while emancipating proposal, still resonates today and
is embodied in the militancy of the civil organization of entities that emerge as socio-political actors in this
new configuration of public space discussions.
KEYWORDS: RIGHT TO COMMUNICATE, DEMOCRATIZATION, SOCIAL MOBILIZATION.
Introdução

Transformações recentes que interferem no


setor de comunicações, sejam elas de ordem tecno-
lógica, com as novas plataformas de comunicação
questionando as barreiras entre as mídias, ou eco-
nômica, no que diz respeito ao modelo de negócio
que passa a se estabelecer e às novas determinações
concorrenciais, trazem consigo a urgente necessi-
dade de reformular as políticas que orientam o se-
tor. Historicamente, quando se está em jogo ques-
tões regulamentares das comunicações, um embate
é travado entre forças conservadoras (instâncias
governamentais), liberais (operadores, empresários
e partidos de direita) e progressistas (organizações
da sociedade civil, partidos de esquerda) que se articulam e se reposicionam de tempos
em tempos para o estabelecimento de um modo de regulação setorial. Em trabalhos an-
teriormente desenvolvidos pudemos constatar a interferência que atores de forte poder
político e econômico são capazes de exercer quando se questionam as regras de regimento
de seu negócio, estruturadas para manutenção do modelo que lhes é conveniente, como é
o caso da defasagem regulamentar em que permanece a radiodifusão brasileira, regida sob
um código normativo da década de 1960.1
Ao longo dos anos, no entanto, as forças progressistas têm ganhado destaque na rei-
vindicação questões que contribuam para o desenvolvimento de uma política nacional
que priorize o direito humano à comunicação. As discussões da década de 1970 acerca de
uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC), a despeito de
seu rechaço inicial, vêm ainda ganhando repercussão e defensores que, em seus ambientes
acadêmicos ou governamentais, sustentam a luta pela democratização da comunicação. É
imprescindível observar, neste contexto, a importância da participação dos movimentos da
sociedade civil, como o Coletivo Intervozes, o Fórum Nacional pela Democratização da Co-
municação (FNDC), Cris Brasil, Federação dos Jornalistas (FENAJ) entre outras entidades
e associações, dos debates e fóruns destinados a discutir as reformulações políticas do setor.
Entretanto, apesar ter alcançado repercussão em diversos aspectos, a discussão sobre
direito à comunicação permaneceu truncada desde o boicote da Inglaterra e dos EUA à
discussão acerca da Nova Ordem Mundial da Comunicação e da Informação (NOMIC)
na década de 1980 de modo que até hoje a maturação do debate é custosa e o direito à co-
municação nunca se concretizou positivamente. Não há acordo ou tratado que trate espe-
cificamente sobre este direito em seu sentido mais amplo e, no caso do Brasil, a expressão

1 Tema desenvolvido em profundidade em Barros (2009).

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 133


“direito à comunicação” não aparece em nenhum documento normativo. Isso representa
um grande entrave ao debate da comunicação na contemporaneidade na medida em que
não dá sustentabilidade formal à defesa desse direito em seu caráter humanitário e contri-
bui para que ele seja permanentemente violado.
Dessa maneira, o presente artigo se propõe a entender a base de sustentação argumen-
tativa que orienta o discurso da sociedade civil na defesa pela democratização da comuni-
cação, uma vez que o direito à comunicação não é um conceito positivamente consolidado.

1. Direito humano à comunicação: debate histórico e definições

O direito à informação foi reconhecido como fundamental na Declaração Univer-


sal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU) em 1948. O documento assegurava, em seu artigo 19, a ideia de que “toda
pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de,
sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por
quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. (ONU, 1948) Em 1969, Jean D’Arcy
levantava o questionamento sobre a insuficiência deste artigo observando que um novo
direito, mais amplo que o de liberdade de expressão, deveria ser reconhecido, o de comu-
nicação. (BRITTOS; COLLAR, 2008, GOMES, 2007) Ele propunha que o texto ali contido
não fosse substituído, mas emendado, de modo que a comunicação fosse compreendida
como um direito humano fundamental. Argumentava Jean D’Arcy:

Agora parece possível um novo avanço: o reconhecimento do direi-


to do homem a se comunicar, derivado de nossas últimas vitórias
sobre o tempo e o espaço e de nossa maior consciência do fenô-
meno da comunicação… Agora está claro para nós que este direi-
to engloba todas essas liberdades, e ainda lhes acrescenta, para os
indivíduos e a sociedades, os conceitos de acesso, de participação,
de fluxos de informação em ambos os sentidos, todos os quais são
vitais ao desenvolvimento harmonioso do homem e da humanida-
de. (UNESCO, 1980, p. 149)

O desdobramento dessas discussões, entre os anos sessenta e setenta, repercutiu no


lançamento, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), de uma comissão presidida pelo jurista irlandês Sean MacBride que proble-
matizou o papel da comunicação para o fortalecimento da democracia, resultando num
documento intitulado “Um mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa
época”. O relatório MacBride, como passaria a ser conhecido, consiste numa crítica ao
fluxo unidirecional da informação resultado da transnacionalização e da concentração

134 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


da indústria de comunicação e é considerado um dos mais completos relatos acerca da
importância da comunicação na contemporaneidade. (RAMOS, 2005) Trata-se do pri-
meiro documento da ONU a entender a necessidade de conferir à comunicação o status
de direito humano, incorporando-a a discussão da NOMIC e em suas metas: mais justiça,
mais igualdade, mais reciprocidade na troca de informação, menos dependência das redes
de comunicação, mais autoconfiança e identidade cultural. (UNESCO, 1980)
No entanto, o relatório e suas recomendações foram recebidos com críticas severas
que ocasionaram a saída de duas potências representativas da UNESCO, Inglaterra e EUA,
como protesto. (BRITTOS; COLLAR, 2008) Por conta da representatividade que tinham,
a deserção desses dois países, aliada ao cerco imposto pelos governos Reagan e Thatcher,
prejudicou profundamente o encaminhamento do debate causando seu esvaziamento nos
anos que se seguiram.

Para o pensamento neoliberal que então começava seu período


de hegemonia, era absurdo se pensar a comunicação na ótica de
políticas nacionais. Mais absurdo ainda era pensar a comunicação
como um direito mais amplo do que o consagrado, mas restritivo,
direito à informação, do qual beneficiava-se fundamentalmente
a imprensa, enquanto instituição, e seus proprietários privados,
como agentes privilegiados de projeção de poder sobre as socieda-
de. (RAMOS, 2005, p. 246)

Definições mais esclarecidas a respeito do direito à comunicação são trazidas pelo


relatório MacBride, desenvolvidas de maneira a ampliar a ideia de liberdade de expressão
e de direito à informação que eram frequentemente abordados em acordos e convenções
internacionais. A preocupação com um sistema internacional de comunicação não apenas
livre, mas também equilibrado e capaz de garantir a diversidade e difusão de produção de
informação e conhecimento, fazia emergir o conceito do direito de comunicar, a partir do
qual a interatividade passaria a ser um fator essencial. A definição do direito à comunica-
ção tem, portanto, como uma de suas características fundamentais a ideia de extrapolar
os limites da comunicação unidirecional e possibilitar o intercâmbio de mão dupla. De tal
modo, o direito à comunicação permitiria aos cidadãos “não apenas receber estaticamente
informações selecionadas por terceiros, mas, sobretudo, interagir, participar e decidir com
liberdade sobre as informações que desejam acessar e as opiniões que desejam emitir”.
(WIMMER, 2008, p. 14) Trata-se essencialmente do direito inalienável de receber e com-
partilhar informações e conhecimento. De acordo com o relatório MacBride:

Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos di-


reitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como
o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 135


comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação
seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou
coletivos – mantém um diálogo democrático e equilibrado. Essa
idéia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de
muitas das idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos
direitos humanos. (UNESCO, 1980, p. 300)

O relatório define ainda:

Todo mundo tem o direito de comunicar. Os elementos que inte-


gram esse direito fundamental do homem são os seguintes, sem
que sejam de modo algum limitativos: a) o direito de reunião, de
discussão, de participação e outros direitos de associação; b) o di-
reito de fazer perguntas, de ser informado, de informar e outros
direitos de informação; c) o direito à cultura, o direito de escolher,
o direito à proteção da vida privada e outros direitos relativos ao
desenvolvimento do indivíduo. (UNESCO, 1980, p. 288)

Apesar de concordar que se trata de um conceito “guarda-chuva”, Desmond Fischer


(1984), alerta para o perigo de sobrecarregá-lo com expectativas e considerações excessi-
vas incluindo o hiato da informação entre países em diferentes níveis de desenvolvimento,
acesso, participação nos processos de comunicação, responsabilização da mídia, etc.

O direito de comunicar não é uma panaceia para os males do mun-


do. Não irá resolver os problemas de desenvolvimento, o problema
de um fluxo de comunicações mais equilibrado, uma distribuição
mais justa dos recursos de comunicações – nacional ou internacio-
nalmente. Não irá assegurar a paz mundial, o progresso da educa-
ção, ou endireitar as insuficiências do Terceiro Mundo. Aqueles que
procurar usar o conceito do direito de comunicar ou como justifi-
cação para promover o “imperialismo cultural” ou para combatê-lo
ou para fins econômicos e políticos, estão prostituindo-o para fins
os quais, ainda que dignos, não deveriam estar ligados ao direito
humano fundamental de comunicar. (FISCHER, 1984, p. 48)

O autor não oferece, contudo, uma definição própria, mas orienta que para tentar
alcançá-la é preciso englobar as necessidades da comunicação, seus problemas e possi-
bilidades, mas evitando excessiva generalização, ou seja, ela não deve ser distendida para
incluir uma gama de liberdades – como de expressão, de opinião, de informação, de im-
prensa, do profissional jornalista, etc. – pois elas não possuiriam a mesma importância

136 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


básica. É partindo de tal raciocínio que Fischer (1984) passa a defender a hierarquização
dos conceitos subjacentes ao do direito de comunicar, propondo os quatro níveis: 1) direi-
to universal de comunicar (um direito humano abrangente, válido em todas as sociedades
e encarado como uma meta final); 2) direitos específicos de comunicação (instrumentos
de aplicação prática do direito geral); 3) responsabilidade de comunicação (aqueles que
exercitam o direito de comunicação têm de prestar contas à sociedade por suas ações, à luz
do bem comum; 4) questões de comunicação (problemas e possibilidades de comunicação
em contínua supervisão e aprimoramento).

1.2 Direito à comunicação e liberdade de expressão

A ideia de liberdade de expressão refere-se essencialmente a ausência de regulações


que tragam qualquer tipo de restrição à produção de informações promovendo sua li-
vre circulação. No entanto, a chamada doutrina do free flow of information, defendida
pela delegação dos EUA na Conferência das Nações Unidas em Genebra (1948), consiste
numa necessidade constante de desregulamentação dos mecanismos protecionistas a fim
de permitir uma melhor circulação de informação e distribuição de conteúdo nos diversos
mercados nacionais. (BARROS, 2008)
Na medida em que a liberdade de expressão se sustenta na ausência de leis, ela pouco
contribui para evitar a concentração de mercado por grandes corporações. Neste sentido,
um deslocamento fundamental do eixo analítico é oferecido pelo conceito de direito à co-
municação passando a entender a sociedade como uma estrutura complexa configurada
fortemente sob relações de poder, e diante da qual a democratização da comunicação só
pode ser garantida pela presença de políticas regulatórias.

O direito à comunicação se distingue dos tradicionais direitos e


liberdades individuais a ele associados – e.g. direito à informação,
liberdade de expressão – por possuir uma forte dimensão coletiva e
por se caracterizar também como um verdadeiro direito social, cujo
reconhecimento implica no dever do Estado de criar os pressupos-
tos materiais para seu efetivo exercício e na faculdade do cidadão
de exigir as prestações constitutivas desse direito. (WIMMER,
2008, p. 147, grifo do autor)

Ao contrário, portanto do que é sustentado pelo discurso liberal, que entende qual-
quer tipo de intervenção do Estado como censória, a normatização regulamentar é funda-
mental justamente para o estabelecimento de diretrizes capazes de garantir a integridade
de uma atividade essencialmente pública, dada a sua importância para a cidadania e cul-
tura nacionais.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 137


Assim, acusando a liberdade de expressão de ser uma defesa de liberdades indivi-
dualistas, o discurso do direito à comunicação traria uma proposta definida como co-
letiva, propondo-se não a suprimi-la, mas a ampliá-la. Ao contrário, portanto do que
é sustentado pelo discurso liberal, que entende qualquer tipo de intervenção do Esta-
do como censória, a normatização regulamentar é defendida pelo discurso progressista
como fundamental justamente para imprimir medidas que fossem capazes de promover
uma maior pluralidade de discursos, radicalizando a liberdade de expressão para todos,
pensando-se numa abertura de oportunidade mais equitativa para os diversos grupos.2
Quando debate a relação entre direito à comunicação e liberdade de expressão, Bertrand
(1999, p.65) afirma que:

A liberdade de palavra e de imprensa não pode permanecer numa


ausência de proibição, que beneficia somente uma ínfima minoria.
Ela deve transformar-se em direito de comunicar, para todos. De
que serve, com efeito, a liberdade de se exprimir se não é possível
fazer-se ouvir? […] Sendo a comunicação uma necessidade essen-
cial do ser humano, o “direito à comunicação” impõe-se: o direito
reconhecido aos indivíduos, aos grupos e às nações de trocar qual-
quer mensagem por qualquer meio de expressão. E consequente-
mente, a obrigação para a coletividade de fornecer os meios desta
troca. (BERTRAND, 1999, p. 68)

Philip Lee (1995), por sua vez, identifica a proposta do empoderamento e inclusão do
cidadão como aspectos centrais do direito à comunicação:

The right to communicate is an ideal that seeks to empower people to


participate actively in the search for solutions to problems of develop-
ment as perceived and defined by them. It means making available to
the people the necessary facilities that will enable them to engage in
dialogue on an equal footing. (LEE, 1995, p. 6)

2 “Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais
concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado.
Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém
um diálogo democrático e equilibrado. Essa ideia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das
ideias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos”. (UNESCO, 1980, p. 300)

138 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


2. Jusfundamentalidade do direito à comunicação e
Constituição de 1988

Ao discorrer sobre a jusfundamentalidade do direito à comunicação, Miriam Wim-


mer (2008) argumenta que os direitos fundamentais não se restringem àqueles expli-
citados na constituição formal de cada Estado, mas também resultam de uma “inter-
pretação constitucional sistemática” das regras nela instituídas, bem como no direito
internacional, especialmente quando o tema põe em questão a promoção da dignidade
humana – princípio que caracteriza os direitos fundamentais. De tal modo, não se pode
desconsiderar juridicamente a existência de direitos fundamentais além daqueles já po-
sitivados. Se ao direito da comunicação deve ser associado o status de fundamental, isso
se deve, antes de tudo, à importância que representa para a consolidação democrática no
Estado contemporâneo.
É também por este motivo que atividades de interesse coletivo, não devem ser rele-
gados às leis da livre iniciativa, e devem estar sob constante vigilância do Estado, como é
o caso da radiodifusão. Dessa maneira, mesmo sendo exercida pela iniciativa privada, a
comunicação deve ser observada em seu caráter de serviço público, no que diz respeito ao
interesse coletivo, um bem comum que não deve se submeter a regras de exclusão típicas
do mercado. Assim, mesmo que no ordenamento jurídico brasileiro não haja um disposi-
tivo legal que reconheça expressamente o direito à comunicação, ele prevê, por outro lado,
a função social de empresas que exerçam serviços de relevância pública, como é o caso da
comunicação. (BRITTOS; COLLAR, 2008)
O que se observa, portanto, é que, na ausência de uma formalização desse direi-
to, resta aos seus defensores a interpretação de textos legais existentes que tangenciam
o tema. Embora seja considerada um marco para a transição democrática no Brasil, a
Constituição de 1988, em seu art. 220 versa sobre a proibição de restrições à liberdade
de pensamento, expressão e informação, repetindo o mesmo equívoco reducionista dos
acordos internacionais desde a Declaração dos Direitos Humanos, ao não reconhecer ex-
pressamente do direito à comunicação. Ao invés disso, optou-se por tratar dos diversos
direitos associados à comunicação de maneira assistemática e fragmentada, alguns espa-
lhados pelo art. 5o, quando menciona direitos e garantias fundamentais, e outros definidos
no capítulo destinado à comunicação social. (WIMMER, 2008)
Portanto, embora a Lei Magna reúna alguns dispositivos que prevêem direitos as-
sociados à comunicação – vedação a censura, liberdade de pensamento, proteção da
infância e da juventude, garantia do pluralismo das fontes de informação, Conselho de
Comunicação Social, etc.- ela ainda se encontra pendente de regulamentação que os faça
valer efetivamente. A imprecisão das normas constitucionais se soma à ausência de com-
plementação legislativa e contribui para reproduzir o velho modelo de comunicação que
se instaura no país ao longo de décadas, (BOLAÑO, 2007) fragilizando a sustentação de
qualquer projeto emancipador. As poucas conquistas acumuladas pela frente progressista

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 139


à época da elaboração da Constituinte, seguem até hoje sendo postergadas em função
da força política de empresários da comunicação (JAMBEIRO, 2001). Historicamente a
discussão sobre uma legislação da comunicação mais democrática no Brasil se firma como
um tema bastante conflituoso e desafiador. No entanto, na deficiência do Estado surge a
sociedade civil, assumindo para si as rédeas das determinações sociais.

Historicamente, os movimentos pela democratização das comunica-


ções no Brasil e sua luta pela institucionalização de procedimentos de
inclusão da sociedade civil na elaboração de políticas públicas para o
setor esbarram em resistências sistêmicas e renitentes lideradas por
forças políticas e mercantis. […] No que se refere ao setor das Co-
municações, as forças conservadoras alicerçadas no poder público
do Ministério das Comunicações têm acumulado vitórias em função
de seus interesses específicos, inclusive, muitas vezes contrariando
forças liberais. A atuação progressista no setor, materializada por
entidades civis, como FNDC e Intervozes, vem desde a Constituinte
contando tímidas conquistas nos embates com os interesses das alas
liberal e conservadora. (HAJE et. al., 2008, p. 16)

3. O papel da sociedade civil e a luta pelo direito à comunicação


no Brasil

Os novos atores sócio-políticos que compõem a chamada sociedade civil organizada


procuram contrabalançar a dificuldade da participação social na estrutura burocrática da
democracia representativa, que acaba afastando o cidadão comum da ação civil direta. A
tecnocracia do modelo liberal democrático estabelece sua operacionalidade num Estado
de direito centralizado que deixa a cargo de parlamentares a tomada de decisões políti-
cas diretamente relacionadas ao interesse público. Com a crise do paradigma do Estado,
acarretada especialmente, a partir da disseminação de uma cultura neoliberal antiestado,
fica evidente a ideia de que a máquina burocrática é dispendiosa e ineficiente e sugere
que a sociedade civil deve substituí-la. No entanto, resgatando uma perspectiva grams-
ciana, pode-se afirmar que, longe de representar uma instância antagônica ao Estado, a
sociedade civil o compõe,3 caracterizando-se, essencialmente, como “um projeto político
abrangente e igualmente sofisticado, com o qual se pode transformar a realidade”. (NO-
GUEIRA, 2003, p. 219, grifo do autor)
Junto ao Estado emerge, portanto, a sociedade civil como uma nova configuração de
atores sócio-políticos surgindo na esfera pública. Se no âmbito internacional a discussão

3 Dentro de uma compreensão de “Estado Ampliado”.

140 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


acerca do direito à comunicação ressurge atualmente, como na Cúpula Mundial da So-
ciedade da Informação (em Genebra, 2003 e na Tunísia, em 2005), isso se deve, parti-
cularmente, à campanha Communication Rights in the Information Society (Cris), uma
articulação de organizações da sociedade civil e movimentos sociais ao redor do mundo
dedicados primordialmente à efetivação do direito humano à comunicação.4 Esta defesa
deve se dar, basicamente, por quatro pilares: a liberdade de expressão na esfera pública, o
uso do conhecimento e do domínio público, o pleno exercício das liberdades civis (pri-
vacidade, associação) e o acesso equitativo às tecnologias de informação e comunicação
(TIC’s). (BRITTOS; COLLAR, 2008)
No Brasil, o advento de debates como sobre a Lei de Audiovisual, a regulamentação
da TV a Cabo, a TV Digital, a TV pública, a defesa pela realização de uma Conferência
Nacional de Comunicação, entre outras, tem sido marcado pela participação informal ou
institucionalizada de entidades civis e militantes pela defesa de um modelo mais democrá-
tico de comunicação no Brasil.

A reflexão acerca da criação de instrumentos que reforcem o sen-


tido “público” das políticas para a área da comunicação ganhou
novamente a pauta da sociedade com as propostas de Lei do Au-
diovisual, do Conselho Federal de Jornalismo e do Sistema Brasi-
leiro de Televisão Digital. Com o debate pautado sobre a cultura,
a informação e a difusão destes como elementos estratégicos, as
discussões reacenderam a divergência entre, de um lado, os mo-
vimentos sociais e as entidades de classe e comprometidas com
o direito à comunicação e, de outro lado, o empresariado de co-
municação. Enquanto os representantes do empresariado usam
seus veículos para defender seu modelo de mercado desregulado
e concentrador, os movimentos sociais pedem espaços de debate
mais abertos e participativos. Essas pressões produziram resulta-
do, mesmo que limitado, em algumas destas pautas. (INTERVO-
ZES, 2005, p. 60)

Nacionalmente merece destaque o Fórum Nacional pela Democratização da


Comunicação,5 criado em 1991, composto pela Federação Nacional dos Jornalistas, Federa-
ção Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão, Central Úni-
ca dos Trabalhadores, Conselho Federal de Psicologia, Associação Nacional das Entidades
de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões e Associação Brasileira de Radiodifusão

4 <www.crisbrasil.org.br>.
5 <www.fndc.org.br>.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 141


Comunitária. Outra entidade de notória atuação política é o Coletivo Intervozes,6 criado em
2002 e ligado à campanha Cris Brasil, que trabalha mais vinculado à retomada da bandeira
de luta do direito à comunicação e, por conta disso, tem divulgado relatórios, como o “Direi-
to à comunicação no Brasil”, em 2005, e publicações como “Contribuições para a Construção
de Indicadores do Direito à Comunicação”, voltados especificamente ao tema.
Essa construção de indicadores faz parte de uma proposta compartilhada pelo Inter-
vozes em parceria com a Unesco, UnB e UFRJ,7 visando a construção de “Indicadores do
Direito à Comunicação no Brasil”, que servirão como elemento central para “acompanhar
o grau de desenvolvimento da democracia do país, garantindo um diagnóstico, monito-
ramento e avaliação do funcionamento do setor e das políticas públicas e assim podendo
servir de referência segura para ações da Sociedade Civil e do Estado”.8
Além disso, o debate sobre a formulação de políticas de comunicação tem contado,
nos últimos anos, com a participação de organizações de defesa dos direitos humanos
como a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” de iniciativa da Co-
missão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados durante a
Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em 2002. Já em 2005 houve o Encontro Na-
cional de Direitos Humanos cujo tema foi justamente “Direito Humano à Comunicação:
um mundo, muitas vozes” em alusão ao relatório MacBride que completava 25 anos.

Conclusão

O discurso do direito à comunicação na atualidade não somente endossa as questões


fomentadas na década de 1970, repercutindo a ideia de um direito inalienável e insepará-
vel dos direitos civis e sociais, mas estende o leque de discussão e adota a reivindicação de
que todos devem ter a possibilidade de participar da transformação da sociedade. A luta
dos movimentos sociais em escala internacional reforça o anseio de formalizar o direito à
comunicação em ordenamentos jurídicos internacionais que garantam a concretização de
diretrizes regulamentares mais democráticas, para que, posteriormente, sejam incorpora-
das às políticas nacionais de comunicação.
O tema carrega, acima de tudo, portanto, um ideal de comunicação democrática, e
de emancipação social que deve permanecer mesmo que ainda não haja uma formalização
expressa do direito à comunicação. Longe de se reduzir à retórica esse debate carrega com
ele todo um histórico de mobilização civil que, mesmo vagarosamente, vem se firmando
força de pressão na esfera pública de discussões. Suas contribuições são capazes de fazer

6 <www.intervozes.org.br>.
7 Proposta firmada em 2009 com o Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (LaPCom)
e o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(NETCCON).
8 <http://sites.google.com/site/direitoacomunicacaoindicadores/>.

142 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


penetrar nos ambientes parlamentares, a agenda de questões pertinentes às esferas privadas
e que de outro modo, não chegariam à esfera institucional. A construção de políticas de-
mocráticas que garantam o direito à comunicação deve, necessariamente, ser participativa
para que o imperativo da igualdade e da justiça social tenha possibilidade de se concretizar.

Referências

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lação normativa no Brasil. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea).
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2009.
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BOLAÑO, C. R. S. Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? São Paulo: Paulus, 2007.
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SARAVIA et. al. (orgs.) Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa. Rio de
Janeiro: FGV, 2008.
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SATHLER, L. Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. São Paulo: UMESP, 2005.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 143


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xico: Fondo de Cultura Econômica, 1980.
WIMMER, Miriam. O direito à comunicação na Constituição de 1988: o que existe e o que falta
concretizar. ECO-PÓS- v. 11, n. 1, janeiro-julho 2008, p. 146-165.

* Chalini Torquato Gonçalves de Barros é doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas – Pós-


Com/UFBA. E-mail: <chalinibarros@gmail.com>.

144 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Las diversas repercusiones en los
espectadores argentinos en relación
a diversos dispositivos
A PROPÓSITO DE LA IMAGEN DEL ROSTRO DEL CHE GUEVARA1

LIC. JIMENA CECILIA TROMBETTA*

Resumen: El presente trabajo se ocupa de analizar las diferentes prácticas espectatoriales (cine- video) y su
relación con la utilización del dispositivo fotográfico. Para dicho análisis aplicado a estudiar la representa-
ción del rostro del Che muerto, se utilizan las teorías de Comoli, Bellour, Agamben, Deleuze y Barthes, las
cuales trabajan sobre los conceptos de espectador, cine, video, fotografía y dispositivo. El corpus fílmico a
trabajar se compondrá de ocho films que representaron la imagen mencionada desde diferentes posiciones
subjetivas e históricas.
PALABRAS CLAVES: CHE GUEVARA, DISPOSITIVO, ESPECTADOR

Introducción1

Plateamos la problemática de establecer comparaciones en los distintos niveles de


afección producidos frente a las prácticas espectatoriales. La intención es encontrar un
instrumento que analice las repercusiones de los films que representaron a Ernesto Che
Guevara (como germen primero La hora de los hornos (Grupo Cine Liberación, 1968),

1 Teníamos la intención de trabajar con un corpus mayor de registro sobre datos duros que dieran cuenta de la reper-
cusión en los estrenos comerciales, sin embargo dentro del registro en las revistas Deisica no se encuentran registros de
los films hasta 1998. En los números que trabajan desde dicho año en adelante sólo registramos tres films con estreno
comercial de los cuales solo dos tienen un número de espectadores específico. Los films registrados son Ernesto Che Gue-
vara, el diario de Bolivia del suizo Richard Dindo que fue estrenado el 14 de mayo de 1998 quedando en el puesto 200 en
la lista del ranking de films comercializados pero sin datos con respecto a la cantidad de espectadores; Che… Ernesto de
Miguel Pereira que fue estrenado el primero de octubre de 1998 quedando en el puesto 207 también sin datos que refieran
a la cantidad de espectadores. Otro registro de Deisica, quizás el más completo, se puede observar con Che, un hombre
nuevo de Tristan Bauer que figura como una de las películas nacionales más taquilleras del año con 31.215 espectadores
distribuidos en 1593 funciones dadas en trece semanas (a 20 espectadores por función) que fue comercializada por Dis-
tribution Company Arg. S.A. entre la semana 41 y la 52. De los años 1995, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2006, 2007
(averiguar sobre 1997) no hay registros de estrenos comerciales con dicha temática, solo se registró un tele film en el año
2005 de Alberto Nhasliah Chemen llamado Negro Che. Queda por fuera la década del ’80 ya que la revista no existía.
Che: ¿Muerte de la utopía?2 (Fernando Birri, 1997-1999), Che. Hasta la victoria siempre
(Juan Carlos Desanzo, 1997),3 Che la eterna mirada (Edgardo Cabeza, 1997-2008),4 El che
un hombre de este mundo, (Marcelo Schapces, 1999),5 El día que mataron al Che, (Pacho
O’Donell, 2007) (Editado por Clarín y exhibido por tv) Los últimos días del Che, (Matías
Gueilburt, se estrenó 7/10/07 en The History Chanel) y Che un hombre nuevo,6 (Tristan
Bauer, 2010)), teniendo en cuenta las formas de difusión (cine comercial, cine clandestino,
televisión, videos, internet).
Una primera separación evidente es el conocimiento o desconocimiento del espec-
tador sobre la figura mítica, mientras que los espectadores de televisión, cine comercial,
videos e internet varían–quienes poseen un saber previo sobre la figura y quienes no- en la
clandestinidad se tiende a tener como espectador modelo a quien tiene conocimiento pro-
pio sobre la imagen del Che Guevara. También se tendrá en cuenta la complejidad desde
la utilización que realicen sobre las fotografías, ya que las mismas serían reconocidas o no
por un público más especializado, por ejemplo los dos famosos casos: la foto tomada por
Korda y la tomada por Alborta, siendo esta última la que iremos a analizar.
Para hacer el análisis espectatorial emplearemos la teoría de Comolli en Ver y poder,
la teoría de Raymond Bellour, la teoría de Barthes sobre la expectación fotográfica y los
textos de Agamben y de Deleuze que analizan el concepto de dispositivo, ya que tendrá
diferentes significaciones frente al espectador específico que quiera dirigirse.

El dispositivo histórico dentro del cinematográfico que


capturó al dispositivo fotográfico

(…) llamaré literalmente dispositivo cualquier cosa que tenga de


algún modo la capacidad de capturar, orientar, determinar, inter-
ceptar, modelar, controlar y asegurar los gestos, las conductas, las

2 El 6 de abril de 1997 en el suplemento radar de Página 12 sale publicado el proyecto de Fernando Birri, con sus
entrevistas en calle Florida. Hace mención como la misma se plantea como un ensayo polémico, en el que discute con
algunos intelectuales volcados hacia la crítica del guerrillero.
3 El film de Desanzo fue estrenado en el Cine Tita Merello, el 9 de octubre, para ser primero en taquilla habiendo
vendido 32 mil entradas en veintidós cines. La repercusión en críticas según los afiches publicados en los diarios fue
buena, sin embargo la película fue criticada por varios críticos aunque enarbolada por la opinión del público según un
articulo del Página 12. La contradictoria difusión hizo que de todas maneras se entrevistara al actor, al director y hasta
se entrevistó al compositor de la música Frank Fernández.
4 Sale el4 de octubre de 2008 un artículo que comenta por el propio director el perfil del film que sería vendido como
DVD por el Página 12 al día siguiente.
5 Se estrena el 11 de noviembre de 1999, y declara en una entrevista al página 12, haber realizado un film donde el Che
es quitado del pedestal.
6 El film fue estrenado en 2010 en salas de cine, aunque el proyecto comenzó en 1997, y luego fue difundido en dvd.
La repercusión de dicho documental fue la mayor registrada entre los films nacionales, en tanto espectadores, y en tanto
difusión, son múltiples los registros críticos positivos y el seguimiento de la creación de la película con entrevistas a Bauer.

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opiniones y los discursos de los seres vivientes. (…) Resumiendo,
tenemos así dos grandes clases, los seres vivientes o las sustancias y
los dispositivos. Y, entre los dos, como un tercero, los sujetos. Lla-
mo sujeto a lo que resulta de la relación o, por así decir, del cuerpo
a cuerpo entre los vivientes y los aparatos. (AGAMBEN, 2011)

Partiendo de esta cita el dispositivo ubica un realizador que varía de acuerdo a que
contexto lo sujetó, es decir las instancias políticas por las que era atravesado. Así vemos
tres momentos históricos diferentes: el primero responde a la época de La hora de los
Hornos, con la actividad clandestina del grupo Cine Liberación, el segundo al período
neoliberal -donde tras el treinta aniversario de la muerte del Che Guevara hubo alrededor
de ocho proyectos nacionales7 de la mano de Luis Puenzo (nunca realizado), Aníbal Di
Salvo8, Juan Carlos Desanzo, Tristan Bauer (2010), Fernando Birri (1999), Miguel Pereira
(1998), Edgardo Cabezas (2005) y Marcelo Shapces (1999) de los cuales sólo se concretaron

7 Los films registrados en el año 1997, tuvieron una gran repercusión en los diarios La Nación, Clarín y Página 12 donde
fueron fuertemente criticados desde diferentes puntos de vista. La época pedía que se construyera una revisión histórica
sobre el héroe guerrillero, para generar una contrapartida frente a la despolitización propagada desde el menemismo. Así
Aníbal Di salvo, Juan Carlos Desanzo (ya director de su film Eva Perón) Fernando Birri, (quien propagó estas palabras
mencionadas), realzaron los films: El Che, Hasta la victoria, siempre y Che, ¿Muerte de la utopía?, respectivamente.
8 El Che de Aníbal Di Salvo se dio a conocer en septiembre de 1995 como un proyecto de Fernando Siro (quien luego
renunciaría a su rol de director para volcarse a la política) con guión de Agustín Pérez Pardella, autor que había escrito
el musical, Eva Perón, la mujer del siglo en 1985. En la breve información que dio el diario La Nación mencionaba las
locaciones en las cuales se iba a filmar (Argentina, Bolivia y Brasil) y los actores que iban a participar sin mencionar
quien interpretaría al Che (Miguel Ángel Solá, Angela Molina, Darío Grandinetti, Imanol Arias, Alfredo Alcón, Osvaldo
Laport, Cecilia Roth, Federico Luppi, entre otros). Ya en el año 1996 se vuelve a informar que el film que iba a ser filmado
por Siro, pasó a ser material de Di Salvo, y que los actores serían Miguel Ruiz Díaz (Che), Emilia Mazer (Tania), Federico
Oliveira (Regis Debray), Norman Brisky (Terán). Estos vaivenes en el proyecto, que contó con 2.200.000 de dólares (de
los cuales el INCAA contribuyó con 700.000 pesos), daban cuenta que el film apuntaba a ser una superproducción y
tenía la meta de lograr una amplia taquilla que no ha sido registrada, probablemente por las malas críticas acontecidas
posteriormente que criticaban las escenas de emboscadas y tiroteos. (Escenas que habían sido previstas por el film y
mencionadas por los diarios durante el período de rodaje. Al punto de tomarle a Di Salvo, una declaración en la que con-
fiesa que Pombo le había sugerido hacer un Rambo con ideología socialista) Entonces, en este caso hay dos puntos de
vista incluso por los mismos diarios, el primero es la impronta de difundir el rodaje, su estadía en salta, su presupuesto,
su superproducción y en una segunda instancia marcar críticas que menosprecian el resultado del film, desde este punto
de vista el film termina con una alta propaganda (positiva y negativa) que no llega a tener la repercusión que se esperaba.

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dos ese mismo año, que en todos los casos tenían la urgencia de combatir el vaciamiento
de la imagen tomada por las distintas facciones políticas, pero sobre todo anulada por el
costado mercantil de la misma- y el tercero corresponde al resurgimiento de las imágenes
míticas, a la nueva participación política de la sociedad, acontecida a partir del año 2001
y sobre todo al aniversario cuarenta de la muerte del Che. Tanto como en el segundo pe-
ríodo, en este también se observan ciertos desfasajes, aunque no responden a un retraso
en el estreno o en la realización, sino más bien a un adelanto a la fecha de muerte como el
film de Walter Salles que comienza a ser producido en el 2001 y es estrenado en el 2004 a
cuarenta y cinco años de la revolución cubana.
Desde la óptica de Agamben, el dispositivo cinematográfico fue un propagador de
mitos y del dispositivo histórico que de diferentes maneras exigía una revisión en los con-
textos marcados. Sin embargo, las subjetividades de los realizadores de una época de-
terminada no era referencia a una forma de relato específica, tanto así que narraron de
modos diversos la manera de dirigir la mirada del espectador a las dos fotografías icónicas
del Che Guevara, la de Korda y la de Alborta. En este punto como sostiene Deleuze los
dispositivos no son universales.

El universal, en efecto, no explica nada, sino que lo que hay que ex-
plicar es el universal mismo. Todas las líneas son líneas de variación
que no tienen ni siquiera coordenadas constantes. Lo uno, el todo,
lo verdadero, el objeto, el sujeto no son universales, sino que son
procesos singulares de unificación, de totalización, de verificación,
de objetivación, de subjetivación, procesos inmanentes a un deter-
minado dispositivo. Y cada dispositivo es también una multiplici-
dad en la que operan esos procesos en marcha, distintos de aquellos
procesos que operan en otro dispositivo. (DELEUZE, 1989)

Así cada film utiliza de forma disímil los recursos cinematográficos y a su vez in-
cluyen de diversas maneras el dispositivo fotográfico.

La apropiación de una fotografía en el cine y cómo se


direcciona la mirada

El lugar del espectador de cine se define, primero, por la doble


obligación de la inmovilidad del cuerpo, bloqueado en una bu-
taca (que no está necesariamente en el centro de la séptima fila,
lugar focal presumible de toda buena sala…) y de la contención
del campo visual. En ese sentido, lo que llamamos “mirada” en el
cine, difiere radicalmente de la “mirada” de la experiencia visual

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no cinematográfica. La elaboración de este estadio superior de la
visión que sería la mirada, comienza en el cine por una renuncia.
Pierdo uno de mis dos ojos, lo oculto, me vuelvo tuerto. La cámara
tiene un solo ojo (el objetivo) y yo deslizo mi aparato de visión al
mismo tiempo que mi deseo de ver en la estrecha hendidura de este
único ojo (también ojo maquínico). Renuncio al mismo tiempo a
las ilusiones aseguradoras de la estereoscopía, a las cualidades, al
domino autorizado de la visión binocular. (COMOLLI, 2009: 391)

En esta cita Comolli refiere en algún punto a que esa disposición material del cuerpo
trasciende al espectador que se encuentra sujetado, atado su ojo al de la cámara. Este tema
pasa a ser de gran importancia ya que implica una doble actividad política por parte del que
define la concatenación de las imágenes, por que cada plano del Che muerto y su subsiguien-
te imagen requiere una definición política, tanto en ficción como en documentales. Y esa de-
finición política también será expuesta en el tratamiento particular de la foto del Che muerto.
Bellour plantea que la utilización del congelado en la imagen marca una inmovilidad
que juega con lo único real: la muerte. Sin embargo, agrega, que ese detener el tiempo la
retorna a una vida indeterminada o duradera de acuerdo al relato. En este sentido, vere-
mos como en muchos films, el rostro del Che muerto es utilizado de este modo: fijando esa
fotografía para hacerla vivir como imagen, cambiando su plasticidad con las panorámicas
impresas en las mismas o los cambios de ángulos sobre el material fotográfico utilizado.
Otra cuestión importante que se debe evaluar es como retorna a esa vida la imagen a partir
del siguiente fotograma, es decir, qué enigma se plantea en ese pasaje entre una instantánea
y la otra. Y éstas podrán ser una nueva foto, un nuevo ángulo, testimonios de personajes
de la historia o incluso unas sucesivas sobreimpresiones que incluyan discursos del Che en
vida. Desde este aspecto podemos observar como se produce así entre foto, cine, video una
multiplicidad de superposiciones, de configuraciones poco previsibles. (BELLOUR, 2009: 14)

La de Aborta y la captura

Analizar La hora de los hornos, simplemente es repetir las palabras de Mariano Met-
sman, quien sostuvo como el film alcanzó una difusión clandestina o semi-clandestina
en Argentina y en los festivales internacionales en los que fue exhibida. En ese período,
señala como eran ocupados los últimos cuatro minutos con la imagen del Che-muerto/
Che-Cristo, buscando como “film-acto” “un acto político alrededor de su circulación clan-
destina”. (Metsman, 1996:18) Metsman en su artículo destaca como la provocación política
de exponer al Che muerto como elemento de reacción, no era así percibida por los espec-
tadores cubanos, quienes veían en esa imagen un final de derrota.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 149


En Che ¿La muerte de la utopía? de Fernando Birri la narración de la muerte comienza
con la reivindicación de la vida. Con la voz de Galeano preguntándose cómo puede el Che
tener la peligrosa costumbre de renacer, junto a recortes de diarios que anuncian el parade-
ro de sus restos. En esa conjunción de recortes, dónde además se ve la foto de Alborta, simil
al Cristo de Mantegna, dice “quizás porque hubo algo extraordinario en este hombre. Él de-
cía lo que pensaba y hacía lo que decía”. La presentación del film continúa con el ingreso de
la cámara en la lavandería del hospital en Vallegrande, allí un plano detalle sobre las piletas
con vasos de Coca- Cola con flores silvestres muertas, para abrirse y recorrer los grafitis.
La misma escena transcurre sobreimpresa en la concatenación de fotografías, que se van
resignificando con esos mismos grafitis. Por ejemplo: la imagen más pregnante es el rostro
del Che muerto, que vive con la otra imagen superpuesta de la pared de la lavandería; y en
el movimiento de ésta se puede leer: Che: no pudieron cerrarte los ojos por eso eres eterno.
Ese rostro suma aún más la afección del espectador al imprimirse sobre la fotografía un
leve acercamiento hacia los ojos del Che.

(…) el instante de la fotografía, por desgarrador que sea, y cercano


a la pose, como lo sentía Barthes, es siempre, por la fuerza de las
cosas, “un instante decisivo” arrancado a la realidad. Solo se lo puede
llamar pregnante en relación con la inversión del tiempo y la inscrip-
ción de la muerte, en cuyo índice se transforma, y que es el trauma, el
sujeto secreto que dobla a su sujeto aparente. (BELLOUR, 2009: 121)

Sin utilizar específicamente las fotografías en Hasta la victoria siempre de Juan Carlos
Desanzo, se narra y se ritualiza la escena de captura. En la misma se representa un vía
crucis, que comienza a justificar esa mirada religiosa en los testimonios de los pobladores
entrevistados en diferentes documentales. Además, este aspecto religioso llega a su máxi-
ma expresión una vez que el Che es representado muerto, donde los planos en la camilla y
su traslado en el helicóptero con el rostro mirando al cielo, incluye por analogía la foto de
Alborta, a ese perfil sobrenatural al que fue vinculado. En este aspecto el tiempo del plano
en movimiento responde a un tiempo detenido que busca la contemplación de ese ascenso
a la memoria del espectador. Ese plano cumple la función de recurrir a cada subjetividad
que irá a descubrir el punctum del que habla Barthes, ese plus que cada hombre le imprime
a una fotografía de modo subjetivo.
Otro modo narrativo de la captura y de la muerte se observa en Che un hombre
nuevo de Tristan Bauer. Aquí la escena de captura se representa a través de seis fotografías
(entre las cuales se encuentra la que le sacó Rodríguez al Che con las manos atadas) que se
acercan lentamente forjando un cierre del plano. En este caso, el tiempo de las fotografías
exige esa contemplación y la subjetividad del espectador que renueva su atención con
el sonido de la cámara fotográfica en cada cambio de instantánea. Posteriormente a esa
escena se sucede una donde ingresa el sonido del helicóptero para luego ver su llegada a

150 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Vallegrande. Este cuadro es acompañado por el ingreso a la lavandería donde se verá el
video con quienes recorren el cuerpo, pero está vez no será en blanco y negro sino que
Bauer elige pasarlo en color.
En Che, la eterna mirada de Edgardo Cabeza, la afección en el espectador, se produce
en la filmación de las imágenes de su muerte que son acompañadas por el discurso de
Susana Osinaga (la enfermera que estuvo a cargo de lavarlo, cambiarlo y seguir las órdenes
del médico que realizó la autopsia). Aquí la detención temporal se produce desde el dis-
curso de Susana, desde su subjetividad, pero las fotografías se suceden con mayor veloci-
dad que en el film de Birri, donde las mismas son detenidas desde el propio relato. Aquí se
muestra una multiplicidad de fotos entre las cuales también se destacan aquellas donde el
Che es rodeado de pobladores para afirmar el discurso de la enfermera. La imagen del Che
muerto también es expuesta para darle otro significado. Patricio Contreras narra con voz
en off, que las piletas están como hace treinta años, que “solo falta la imagen que sacudió
al mundo, la última y eterna mirada” para realizar un montaje e incorporar la imagen de
la foto del cuerpo entero que saco Alborta subido a la pileta. La foto que puede ser vista
como algo morboso se transforma desde el discurso de Contreras como un estandarte
político, un cuerpo muerto que vive, que descansa en el discurso final que dice Osinaga
“Parecía Cristo”. Así, el Che queda como una imagen sagrada entre lo ritual y lo mítico
dónde el relato es mítico y la descripción del rezo a la imagen, la acción es el rito.

La potencia del acto sagrado –escribe Benveniste– reside en la


conjunción del mito que cuenta la historia y del rito que la re-
produce y la pone en escena. El juego rompe esta unidad: como
ludus, o juego de acción, deja caer el mito y conserva el ritual;
como jocus, o juego de palabras, elimina el rito y deja sobrevivir el
mito. “Si lo sagrado se puede definir a través de la unidad consus-
tancial del mito y el rito, podremos decir que se tiene juego cuan-
do solamente una mitad de la operación sagrada es consumada,
traduciendo solamente el mito en palabras y el rito en acciones.
(AGAMBEN, 2011)

Otra manera de filmar la fotografía que se distancia de la idea del santo, es mediante
la mostración de los diarios de la época. Así, en Che un hombre de este mundo, el hecho
es narrado de esa manera, sin embargo las mismas son seguidas por un discurso del Che
que declara la desconfianza en el imperialismo, un discurso que lo hace vivir, junto a la
declaración de su hermano Roberto Guevara que asegura que el Che ésta vivo y que las
fotografías son falsas.
Por último hay que mencionar dos documentales expuestos en la televisión y vendi-
dos en los diarios, El día que mataron al Che de Pacho O’Donell y Los últimos días del Che
guionado y conducido por Jorge Lanatta. El día que mataron al Che ubica al espectador

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haciéndolo ingresar a la lavandería junto a Pacho O’ Donell que da vueltas alrededor de
las piletas en el mismo sentido que lo hacían los pobladores de Vallegrande en 1967. Así se
suman las imágenes de archivo desde fundidos encadenados que aparecen y desaparecen
en el mismo recorrido que hace el periodista del film. El mismo se ubica en un tiempo
virtual, va del pasado al presente y viceversa. Con el testimonio de Liga Morón, una vecina
de La Higuera, se narra la foto de Alborta, mientras su imagen es reiterada desde diversos
ángulos, desde el color y desde el blanco y negro, desde distintos planos, e incorporando el
video realizado por Chousiño. Los escritos en la lavandería también son filmados indivi-
dualmente pero como registro histórico. Posteriormente a esa escena, ya arribando hacia
el final se puede observar como a través de dibujos que complementan las fotografías se
reconstruye la escena de captura, sostenida por el discurso de Gary Prado, quien le dio la
orden de muerte al Che, a Mario Terán.
En cambio, en Los últimos días del Che, cuando Jorge Lanata ingresa al museo de la
guerrilla en Bolivia, se muestran las fotografías que hay, posteriormente al comentario del
periodista que da cuenta de la foto del Che muerto dentro del museo. Se filma las mismas
de un modo distanciado, donde el foco está puesto sobre las expresiones del periodista, y
sobre su recorrido, pero no sobre las fotografías. En este punto estas fotos no funcionan
como elemento a contemplar, sino como registro histórico. Por ejemplo, en el caso de la
foto “El cadáver del Che y sus camaradas” (título de la misma que solo se puede percibir
deteniendo y acercando el plano donde es filmada). Más adentrado el documental, Lanata
ingresa a la lavandería y a diferencia del documental de Pacho O’ Donell y del tratamiento
de las imágenes en el documental de Birri, no se adjuntan a la lavandería las fotos del Che
muerto. Porque la misma será expuesta bajo el discurso de Susana Osinaga donde mien-
tras ella narra el episodio de la gente recorriendo el cuerpo, y ella misma preparando el
cadáver, se ven las imágenes que recorrieron el mundo.

A modo de conclusión

El breve análisis que hemos elaborado, viendo como el dispositivo cinematográfico se


apropia del fotográfico, nos da la pauta de como las mismas ingresan en una interrelación
entre la subjetividad del espectador que se encuentra sujetado a la butaca y el manejo de la
mirada que imprimen los realizadores sobre las mismas. A su vez pudimos observar como
en la práctica espectatorial del video esa subjetividad del espectador sigue presente pero se
encuentra liberada en tanto que puede detener la fotografía para reflexionar sobre la mis-
ma. Esa misma detención que se provocaba en las exhibiciones de La hora de los hornos.

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Bibliografía

AGAMBEN, G. “¿Qué es un dispositivo?”, Sociológica, Año 26, n. 73, 2011, p. 249-264, mayo-
agosto.
BARTHES, R. La cámara lúcida. Nota sobre la fotografía. Buenos Aires: Paidós, 2004.
BELLOUR, R. Entre-Imágenes. Foto. Cine. Video. Buenos Aires: Colihue, 2009.
COMOLLI, J. Ver y Poder. La inocencia perdida: cine, televisión, ficción, documental. Buenos
Aires: Aurelia Rivera: Nueva Librería, 2009.
DELEUZE, G. “¿Qué es un dispositivo?”, Michel Foucault, filósofo. Gedisa, Barcelona, 1989,
p. 155-163.
METZMAN, M., “La hora de los hornos, el Che y Perón. Vida y muerte de una imagen”. Film 21,
Agosto Septiembre, 1996, p. 16-22.
DEISICA, Revista del Sindicato de la Industria Cinematográfica Argentina, marzo, 1999.

Filmografía

CHE. HASTA LA VICTORIA SIEMPRE. Juan Carlos Desanzo, 1997.


CHE LA ETERNA MIRADA. Edgardo Cabeza, 1997-2008.
CHE: ¿MUERTE DE LA UTOPÍA? Fernando Birri, 1997-1999.
CHE UN HOMBRE NUEVO. Tristan Bauer, 2010.
EL CHE UN HOMBRE DE ESTE MUNDO. Marcelo Schapces, 1999.
EL DÍA QUE MATARON AL CHE. Pacho O’Donell, 2007.
LA HORA DE LOS HORNOS. Grupo Cine Liberación, 1968.
LOS ÚLTIMOS DÍAS DEL CHE. Matías Gueilburt, 2007.

* Lic. Jimena Cecilia Trombetta es doctoranda-becaria tipo I, CONICET, México. E-mail: <jimenaceci-
lia83@gmail.com>.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 153


ESTRUTURAS
(IN)VISÍVEIS
o conteúdo e a forma em Zelig, de Woody Allen

ANDRÉ RUI GRAÇA*

Resumo: Este texto pretende reflectir sobre as tensões inerentes ao conteúdo e forma fílmicas, e ao modo
como o mock-documentary nos demonstra isso. Através de uma análise fílmica meticulosa do exemplo de
Zelig, é nosso objectivo pensar acerca da ténue linha que separa os conceitos de documental e ficção e de
questões que se prendem com o cómico e a subversão da fórmula do cinema documental.
PALAVRAS-CHAVE: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, TEORIA DO CINEMA

Abstract: This text intends to meditate on the tensions inherent to the content and form in film, and on the
way the mock-documentary practice exposes that. Through a meticulous film analysis, and using the ex-
ample of Zelig, it is our goal to think about the thin line that divides the concepts of documental and fiction
and about questions regarding the comic and the subversion of the formula of documental cinema.
KEYWORDS: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, FILM THEORY

S
ituado naquele que Maurice Yacowar (YOCOWAR, 2006, p. 78-80) e Sam B.
Girgus (GIRGUS, 1993, p. 5-6) consideram ser o ponto de maturidade do perío-
do paródico de Woody Allen – de Annie hall (1977) em diante, e especialmente
durante a década de 1980 –, Zelig (1983) é frequentemente incluído não só no
contexto particular da filmografia de Allen, como também no corpus da então recente e
ainda hoje escassa prática do mock-documentary1 (pseudo-documentary, entre outros ter-
mos, é um sinónimo frequente). Com efeito, de acordo com Yacowar, os anos oitenta tes-

1 Pese embora que seria possível avançar com uma tradução do termo (algo como ‘documentário farsesco’, ‘pseudo
documentário’ ou ‘falso documentário’) , penso que, à falta da existência deste em grande parte da literatura corrente so-
bre o tópico, é melhor opção manter o anglicismo. Por outro lado, nenhuma das alternativas normalmente apresentadas
me parece traduzir capazmente a intenção da expressão original.
temunharam o surgimento de “uma visão mais profunda e pessoal”2 (YOCOWAR, 2006,
p. 79) no estilo de Allen: “agora, o parodista fala directamente”. (YOCOWAR, 2006, p. 79)
Um comediante já estabelecido (Allen começou a vender anedotas e guiões aos mé-
dia desde o início dos anos 50, e Zelig é a sua décima terceira longa-metragem), por esta
altura o escritor/realizador já havia demonstrado e consolidado um dos principais traços
de estilo do seu cinema: a sua própria imagem, enquanto referência. Interligando cons-
cientemente a sua persona (e todos os aspectos psicológicos que lhe são adjacentes) e a
personagem à qual dá corpo, o público tende a naturalmente estabelecer um continuum
entre as duas. (HÖSLE, 2007, p. 3)
Normalmente considerado como um paradigma da corrente do mock-documentary
(sendo várias vezes evocado enquanto estudo de caso quando este tópico é abordado), Ze-
lig é, porém, um claro exemplo de como por vezes a comédia se revela um meio apropria-
do para trazer à superfície problemáticas sérias, relacionadas com questões fundamentais
(tais como problemas políticos e sociais da sociedade contemporânea, ou reflexões sobre a
cultura), gerando assim, conscientemente, uma forma de riso particularmente estimulan-
te do ponto de vista intelectual. Como Vittorio Hösle propôs no seu ensaio seminal sobre

2 Tendo em conta que a maioria das fontes consultadas se encontram escritas em língua inglesa e não existem ainda
disponíveis em edição portuguesa, a tradução das citações é da minha responsabilidade.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 155


a origem do cómico no cinema de Allen: “Zelig foca-se em problemas da filosofia clássica
tais como a identidade […] Nenhum outro realizador vivo tem conseguido abordar as
grandes questões filosóficas de forma tão aberta como Allen”. (HÖSLE, 2007, p. 5) Adi-
cionalmente, este autor defende ainda que: “[as comédias de Woody Allen] possuem uma
posição peculiar na história da arte”. (HÖSLE, 2007, p. 6) Efectivamente, até certo ponto,
a forma como Zelig abertamente parodia, usa e subverte os códigos e convenções do estilo
documentário parecem ser pertinentes no quadro da década de 1980.
Embora não obliterando completamente o conteúdo altamente conceptual que o
lado técnico (e tecnológico) de Zelig representa, trabalhos de académicos como Hösle,
Del Jacobs, Roscoe e Hight, Columbani e Sam B. Girgus (para mencionar apenas alguns,
os principais) parecem mais direccionados para a interpretação filosófica e psicológica do
estranho caso da “doença única” de Leonard Zelig, o camaleão, da forma este é tratado
por via da psicanálise3 e até que ponto esta doença consiste numa metáfora para sintomas
mais abrangentes e exteriores ao filme. A título de exemplo, acerca desta última hipótese,
Girgus sublinha que “o desejo de Zelig em ser amado resume a ideia do sonho americano”;
(GIRGUS, 1993, p. 72) Mary G. Nichols explora o modo como a Dra. Eudora Fletcher
(Mia Farrow) desconstrói tecnicamente o caso psicológico de Zelig e como, irónicamente,
é o amor que Fletcher oferece ao camaleão que é a causa da sua cura. Noutro quadrante
de interesse, Robert Sham e Ella Shohat debruçam-se sobre as referências e estereótipos
culturais/raciais presentes no filme.
Por seu turno, Del Jacobs e Roscoe e Hight produzem uma tentativa de localização de
Zelig na tradição do mock-documentary, prestando especial atenção à sua natureza auto-
reflexiva e ao modo como os elementos fictícios (no sentido do fantástico, e logo impossí-
vel) internos da trama são articulados com a estrutura do documentário. Assim, podere-
mos concluir que, até certo ponto, a análise do conteúdo tem vindo a ser privilegiada em
detrimento do forma. Porém, neste caso, poderemos argumentar que a forma - a materia-
lidade, o aspecto visual, a estrutura e o dispositivo retórico – são de tal forma centrais que
são dotados per se de conteúdo intrínseco, e que esse conteúdo merece a nossa atenção. É
neste âmbito que propomos uma reflexão em torno da complexa relação que este mock-
documentary paródico estabelece com o espectador, onde reside o riso, e de que forma é
possível ler-se nas entrelinhas intertextuais. Nesse seguimento, faremos uma tentativa de
descrever e desconstruir a tensão implícita entre conteúdo e forma, manifestada em Zelig.
Por ronda da década de 1980, os quatro modos que Bill Nichols identifica na edição
de 1991 de Representing reality já estavam desenvolvidos e sedimentados, o que indicia que
por essa data já havia um historial substancial de discursos concernentes aos fundamentos
ontológicos da imagem documental. Com efeito, como Patrícia Aufderheide aponta, o pú-
blico veio a aceitar progressivamente a dicotomia entre ficção e documentário, com base

3 Convém neste ponto relembrar que Sigmund Freud, a neurose e a psique humana são lugares-comuns nos filmes
de Allen.

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na premissa cultural de que este último formato tem sérias “pretensões à representação da
verdade real”. (AUFDERHEIDE, 2007, p. 1-3) Tal premissa deve-se em parte ao facto do
documentário ter sido associado ao naturalismo e ao realismo desde um estádio inicial,
bem como ao argumento de que a câmara não mente. (ROSCOE & HIGHT, 2001, p. 11)
Como podemos encontrar nas palavras de Bill Nichols: “a ligação entre documentário e
o mundo histórico é mais importante das características da sua tradição” e que “uma das
expectativas geradas em torno do documentário é que as imagens e sons carreguem em si
uma relação de referencial para com o mundo histórico”. (NICHOLS, 1991, p. xviii)
Desta forma, a produção contínua de filmes que reitera esta perspectiva ajuda a mol-
dar as expectativas do público, uma vez que estas são baseadas em experiências anteriores;
os espectadores esperam não ser enganados e trapaceados, mesmo estando cientes das di-
ferentes possibilidades de captação da realidade e da hipótese desta ser manipulada tecno-
logicamente. Pese embora que se trata de uma “definição flexível”, (AUFDERHEIDE, 2007,
p. 3-5) em derradeira análise, o termo “documentário” normalmente indica que se irá as-
sistir a um filme baseado na vida real. Mais ainda, “documentário” quer também dizer que
esse filme irá pautar-se por certos códigos e regras, indispensáveis à sua legitimação. Por
conseguinte, de forma a manter a sua credibilidade retórica, o cinema documental teve
de adquirir um método rigoroso; um dispositivo específico, determinado por convenções
estéticas e técnicas que permitissem veicular e suportar a concepção teórica supramencio-
nada. A propósito desta questão, Hösle defende que “a rigidez contradiz uma das maiores
solicitações da vida, a elasticidade”, (HÖSLE, 2007, p. 20) abrindo desta forma o caminho
para o sistema de paródia. Em sintonia com esta opinião, Henri Bergson considera que “o
riso é sanção da sociedade para com aqueles que tentam impor algo de mecânico ao fluxo
da vida”. (BERGSON apud HÖSLE, 2007, p. 19)
Efectivamente, o mock-documentary consiste num mecanismo altamente disruptivo.
Expõe abertamente, mina e joga com as convenções das quais está auto-consciente. En-
quanto que os “documentários oferecem prazer visual e atraem ao mesmo tempo que a
sua estrutura permanece invisível”, (NICHOLS, 1991, p. v) um dos principais objectivos do
mock-documentary é a apropriação dessa estrutura com a finalidade da expor. Se tivermos
em conta que “o documentário poderá falar de tudo no mundo histórico menos de si
próprio”, (NICHOLS, 1991, p. 17) então o mock-documentary funciona de acordo com uma
lógica inversa. É ao auto-reflexivo; é um filme sobre cinema, no qual a identificação de ca-
racterísticas cinematográficas de uma determinada prática é central. Como Jacobs metafo-
ricamente coloca a questão: “o pseudo-documentary é parasítico por natureza, assumindo
as propriedades de outros estilos fílmicos de forma a alimentar a sua própria forma”. (JA-
COBS, 2000, p. 2) O mesmo autor vai mais longe e afirma que o mock-documentary incor-
pora o “o modo ficcional utilizado em Hollywood, completamente ausente de realidade”.
(JACOBS, 2000, p. 7) Acerca deste ponto, Nichols admite (muito embora normalmente
este não se comprometa com a discussão em torno do mock-documentary): “não há nada
que distinga o documentário da ficção de forma absoluta ou infalível”; acrescentando que,

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 157


“a natureza histórica e a função dos diferentes modos de produção podem ser simulados
dentro de um enquadramento de narrativa de ficção”. (NICHOLS, 1991, p. 24) Por fim, é
importante mencionar que um dos aspecto mais fulcrais do mock-documentary é:”[esses
filmes] não tentam enganar a plateia, levando-as a pensar que realmente retratam pessoas
ou eventos factuais”. (BORDWELL & THOMPSON, 2010, p. 352) Contudo, esta mascara-
da intencional apenas resulta na medida em que se baseia na assunção de que a audiência
será capaz de decifrar as mensagens contraditórias a dada altura, reconhecendo assim as
verdadeiras intenções do filme e deixando de parte a via que induz em erro.
Zelig é precisamente o caso onde todos estes elementos se conjugam e são postos em
prática. Logo no início, aquando do surgimento do primeiro intertítulo, o filme define-se
a si próprio como “documentário” e, tal como os documentários reais, agradece as cola-
borações e a quem o tornou possível. Após isto, vemos primeiramente dois planos gerais,
monocromáticos (nos quais podemos reconhecer a presença de automóveis antigos, o
mais conspícuo dos elementos do segundo plano), seguidos de um corte abrupto para um
plano médio, a cores, da intelectual americana, Susan Sontag. Até agora, tudo parece sufi-
cientemente coerente: de acordo com os códigos visuais do documentário, somos compe-
lidos a associar as imagens a preto e branco com um passado longínquo, e a cor ao tempo
presente (para mais, a tecnologia da película colorida ainda não estava satisfatoriamente
desenvolvida nos anos 1920, que é o período histórico no qual o caso fictício de Zelig é
inserido). Podemos observar a imagem de Sontag na tela – ela surge identificada como
sendo ela própria –, sendo que esta se comporta em sintonia com aquilo que poderíamos
esperar dela. Quando os anos 20 são mencionados no decorrer da entrevista, temos a
confirmação entre da ligação entre planos.
De seguida, regressamos à parada e aos festejos. Enquanto ouvimos a voz sobreposta
de Irving Howe à imagem (Howe será apresentado pouco tempo depois, num formato
semelhante a Sontag, bem como Saul Bellow, que vem completar esta sequência introdu-
tória de entrevistas), temos a oportunidade de reconhecer a figura de Woody Allen dentro
de um dos automóveis. De facto, ao reconhecer-se Allen neste contexto (não sabemos
ainda que ele está a actuar como Zelig, o que significa que a única hipótese que resta é
identificar aquele homem como sendo Allen), emerge um sentimento de estranheza, uma
vez que Allen pertence ao presente e não à década de 1920. Assim, a ideia linear e estável
associada àquilo que nos disseram que estávamos a assistir fica comprometida. Esta é
igualmente a primeira pista dentro do filme que nos parece indicar aquilo que realmente
está a acontecer.
No momento imediatamente posterior, música jazz de cerca de 1920 começa a soar,
é-nos dado a ver um retrato dessa era através de imagens de arquivo (vemos diversos as-
pectos da vida quotidiana da altura) e a voz do narrador irrompe pela imagem – a omnis-
ciente e desincorporada “voz de Deus”, vastamente utilizada em documentários expositi-

158 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


vos. (NICHOLS, 1991, p. 37) Finalmente, um intertítulo anuncia que iremos assistir a um
cinejornal4 e o problema de Zelig é-nos finalmente apresentado.
Ainda acerca desta sequência inicial, se a pensarmos à luz dos termos da retórica
aristotélica, verificamos uma forte coesão argumentativa. O ethos está presente nas en-
trevistas, dadas por figuras intelectuais reais acima de todas as suspeitas – por extensão,
os testemunhos fictícios, se apresentados com características idênticas, beneficiariam de
credibilidade semelhante. As detalhadas contextualizações – tantos orais como visuais – e
descrições dos anos 20 podem ser encaradas como uma forma de logos, sendo que, final-
mente, o pathos pode ser encontrado tanto no fascínio com que os entrevistados falam
de Zelig, como no texto pomposo dito pelo narrador. Por conseguinte, o discurso parece
estar perfeitamente escudado, quase de uma forma monolítica, o que aumenta exponen-
cialmente o impacto da sua exposição à paródia. Como veremos, a identificação de como
a forma está a ser utilizada e a incongruência lógica são, possivelmente, os meios mais
eficientes de detectar e desvelar este dispositivo de engodo.
Após o momento inicial ainda agora analisado, devido ao facto de Allen ter apre-
sentado uma vasta gama de elementos parodiados, o público deverá estar perfeitamente
consciente que tudo neste filme é fabricado, concordando por conseguinte em lê-lo como
um texto de ficção, até porque a história de Leonard Zelig é altamente improvável. Como
foi anteriormente mencionado, a estrutura do documentário pode, com efeito, acomodar
ficção. Neste caso, Allen não só “quebra as barreiras, normalmente invioláveis, que sepa-
ram as duas ordens de discurso [ficção e documentário], substituindo a barreira por uma
membrana permeável”, (STAM & SHOHAT, 2006, p. 199) como chega ao ponto de inserir
“uma absurdez no seio de uma fórmula sagrada”. (HÖSLE, 2007, p. 20)
Todavia, este filme confronta o espectador com um paradoxo inicial que urge ser
resolvido: “o que é que estou realmente a ver?”. As expectativas preconcebidas acerca de
um género ou um estilo (com o documentário), poderemos afirmar, permite, por um lado,
uma ligação facilitada ao filme, mas, por outro, facilita igualmente que caiamos em arma-
dilhas deste género. Por isso, a identificação dos elementos de “gramática visual” de uma
determinada prática cinematográfica é fundamental, dado que nos permite entender a
forma como essa mesma prática é construída. Trata-se de uma questão de literacia visual.
Quando vemos Zelig, convém ter em conta o seu contexto. Até certo ponto, deve ter
sido confuso para um espectador, em 1983, pensar que se iria deslocar à sala de cinema
mais próxima para assistir a um documentário sério, uma vez que um documentário não
seria (e nunca foi) um filme típico da linha estética de Woody Allen. Adicionalmente, já o
realizador americano havia utilizado este género de esquema anteriormente, se bem que
a uma escala menor, em Take the money and run (1968). (COLOMBANI, 2010, p. 31) Isto
leva-nos a concluir que estar consciente do estilo e intenções recorrentes do realizador

4 O cinejornal será utilizado várias vezes ao longo do filme, evocando a célebre parodia a “March of Time” feita em
Citizen kane.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 159


ajuda a, numa etapa posterior, entender que, afinal, Zelig não é algo assim tão estranho no
panorama filmográfico de Allen.
Porém, teoricamente, as convenções sabotadas são utilizadas de forma correcta, fa-
zendo com que o filme pareça aquilo que não é. Até certo ponto, até o caso de Zelig é
válido. Embora em todos os aspectos estranhas e incongruentes, as características protei-
formes de Zelig possuem os atributos necessário para que serem alvo de atenções: ele é
único, e tanto a sua história como o seu lugar na sociedade merecem ser examinados. (JA-
COBS, 2000, p. 21) Assim, gera-se uma tensão entre o valor que atribuímos a como vemos
(vemos através da forma) e o que vemos (vemos o conteúdo fotográfico). Por exemplo,
quando avistamos Allen no carro pela primeira vez em Zelig, sentimo-nos compelidos a
aceitar como reais as imagens que vemos devido às premissas inerentes à forma - sendo
que é suposta esta ser a forma documental. No entanto, damos também conta de uma
grande contradição, que nos é expressa através do conteúdo – Woody Allen está ali, e isso
é logicamente impossível. De certo modo, o mesmo tipo de confusão surge com a forma
engenhosa como imagens de arquivo e imagens capturas por Allen são entrelaçadas e
“artificialmente envelhecidas e riscadas para dar um aspecto visual granuloso e tremelu-
zente”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 101)
Seguindo esta linha de pensamento, poderemos assumir que, em primeiro lugar, o
espectador necessita se aperceber de que certos códigos e convenções estão a ser utilizados
com outra finalidade que não a tradicional, e logo que as expectativas estão a ser postas

160 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


em causa por uma série de contradições. Tal implica que o mock-documentary apenas
pode ser entendido e assimilado por alguém que esteja minimamente familiarizado com
as convenções parodiadas. Desta forma, o mock-documentary é um produto auto-cons-
ciente em relação à história e estética do cinema, capaz de espelhar essa propriedade no
espectador: também ele, de forma auto-consciente, tem de se confrontar com sua literacia
cinematográfica de modo a conseguir passar o teste que o mock-documentary lhe coloca.
Consequentemente, ao resolver este puzzle inicial, o espectador sente alívio; resolvida a
confusão, o espectador está apto a sintonizar-se plenamente com a verdadeira intenção e
mensagem do realizador. Portanto, o riso – que é um objectivo primordial no cinema de
Allen e na paródia em geral – é um de cumplicidade, pois o espectador ri-se “juntamente
com o comediante de alguém ou algo, mas não de si mesmo”. (HÖSLE, 2007, p. 16) Em
última análise, nós não nos rimos de todo de Zelig (conteúdo), mas antes da forma elabo-
rada como o filme nos apresenta esta personagem.
Estando resolvido com sucesso este dilema, causado por um distúrbio na percepção
da forma e pela denúncia do conteúdo, a atenção vai, progressivamente, virando-se para a
trama e o seu desenvolvimento narrativo. Antes de prosseguir é importante relembrar que os
primeiros minutos do filme são cruciais para a supramencionada questão, o que significa que
Allen nos sobrecarrega com quantas referencias consegue, fazendo com que a nossa atenção
se centre nelas. Desse momento em diante – após o reconhecimento – e até ao final do filme,
um desvio é verificável: a exploração da forma diminui naturalmente (também porque o
espectador se libertou entretanto da ansiedade do dilema) e o conteúdo é privilegiado.
Mesmo tendo em consideração que os aspectos formais de Zelig são estilisticamente
inovadores, o filme desenrola-se dentro do esquema tradicional de narrativa em três actos
(JACBOS, 2000, p. 44) e, como veremos, tem um desfecho tipicamente hollywoodesco.
Efectivamente, o que acontece no seguimento do primeiro acto é descrito por Girgus
como sendo “uma aparentemente incessável sucessão de eventos e situações”. (GIRGUS,
1993, p. 72) Nas palavras de Borwell e Thompson a propósito de Zelig: “[a trama] pode
criar padrões de acção repetitiva por via de ciclos de eventos: o padrão ‘aqui vamos nós de
novo’ que nos é tão familiar”. (BORWELL & THOMPSON, 2010, p. 91)
Durante este processo repetitivo – no qual as sequências se ligam umas com as outras
embora sejam diferentes ao nível do conteúdo – somos, porém, convidados a olhar de novo
para algumas nuances da forma quando Allen conjuga um pano de fundo histórico com a
narrativa particular de Leonard Zelig. Esta combinação acontece de duas formas distintas.
Primeiro, ao inserir Zelig em momentos históricos chave, Allen está de certo modo
a reescrever a própria história ao reciclar esses momentos filmados. (YOCOWAR, 2006,
p. 83) Por seu turno, a retórica e a forma do documentário “validam” uma mentira tão
descarada. Com efeito, o conteúdo começa a tornar-se paulatinamente mais incongruente,
nomeadamente quando vemos o nosso anti-herói ao lado do Papa, ou numa multidão,
durante um dos mais famosos discursos de Hitler. Assim, chegamos à conclusão de que
apenas a imagem documental (e, claro, a sua manipulação, pois a manipulação é o que é

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 161


possível fazer-se com o material pré-existente) é capaz de produzir este resultado. Seria
praticamente impossível contar a história de Zelig da forma como é contada, e incluindo
todas as aventuras e desventuras desta personagem, num outro formato. O documentário
prova ser ideal para veicular o conteúdo cómico e a essência de Zelig (ele necessita de
ir àqueles locais e estar no meio daquelas pessoas), mesmo que a narrativa siga uma via
tradicional, normalmente utilizada no cinema de ficção.
Em segundo lugar, a profusa utilização de material de arquivo significa que toda
esta série de documentários compactados para caber neste mock-documentary representa
diferentes filmes, e por conseguinte diferentes estilos e pontos de vista. Como Osvaldo
Manuel Silvestre nos lembra, há uma constante mudança de material fílmico e de sujeito
enunciador, em Zelig. (SILVESTRE, 2010, p. 4) Devido à utilização de tantos excertos, o
filme de Allen consegue ser tão híbrido que seria difícil enquadrá-lo dentro de um dos
modos de documentário propostos por Nichols, caso fosse um documentário de facto.
Consequentemente, ao se dar conta dessas mudanças constantes de material, é gerada
hipermediacía, o que nos leva a atentar de novo na questão da forma. Por último, o que a
nossa cultura visual nos diz é que estamos perante um exercício de colagem, feito para pa-
recer real e congruente, mas que ao mesmo tempo é entendido como artificial, de acordo
com as premissas do mock-documentary, anteriormente acordadas.
Tendo em conta toda a problemática acima exposta, poderemos argumentar que,
apesar da narrativa ser privilegiada, existe uma contenda contínua entre a importância
da forma e do conteúdo, o que por sua vez nos dificulta a escolha entre se nos deveremos
focar nos aspectos formais ou deixar acomodar no conteúdo. Note-se que, a uma certa
altura, o elemento de surpresa da forma começa a esvanecer, enquanto que o conteúdo nos
contínua a envolver, tanto quanto qualquer outra narrativa de ficção.
No final do filme, depois de várias peripécias e aventuras, Zelig e Eudora Fletcher
decidem casar-se, fazendo com que o filme culmine no “final formulaico da ficção – um
grande plano do casal, que se detém num longo beijo, acompanhado por música român-
tica, em direcção a um clímax”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 204) Devido à sua natureza
patológica, este momento proporciona a possibilidade de uma total imersão no conteúdo,
como se a felicidade que o casal manifesta fosse o objecto e a função do nosso próprio
desejo. As personagens saem de campo, a música continua a tocar, e dá-se um corte
para o ecrã negro. À medida que o texto vai aparecendo, somos informados da morte de
Zelig. Eis então que, parafraseando Osvaldo Silvestre, somos mais uma vez relembrados
que se trata de um documentário e não apenas de uma história de amor. (SILVESTRE,
2010, p. 5) Confrontados com este último elemento, chegamos à conclusão, através do
conteúdo veiculado pela forma, que a história que há momentos testemunhámos e que
de nós esteve tão perto, aconteceu há várias décadas. “Zelig já morreu, aquela felicidade
em celulóide foi um instante longínquo”. (SILVESTRE, 2010, p. 5)
Deste modo, neste último exemplo podemos sentir o choque provocado pela ten-
são entre conteúdo e forma, pois estes representam diferentes níveis de percepção, ora

162 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


harmoniosamente interligados, ora em competição pela nossa atenção. Por outras pala-
vras, o espectador estabelece uma relação dual com este filme por causa da existência de
dois estratos de conteúdo: o conteúdo da narrativa e aquilo que é visto na película, e o
conteúdo da forma. Durante a maior parte do tempo, o conteúdo depende da forma para
se transportar. Todavia, a colisão ocorre quando o conteúdo da forma – que é em grande
parte a essência do filme – é evidenciada. Somos solicitados para imergir na narrativa ao
mesmo tempo que somos deslocados do estrato da forma, de modo a conseguir ter uma
experiência do filme diferente daquela oferecida pela trama. Em derradeira análise, de
maneira a obter uma plena compreensão deste filme, temos de lidar com esta tensão e
oscilar entre estes dois pólos de possível percepção: o caso de Zelig, e a subversiva paródia
do estilo do mock-documentary.
Para concluir, resta-nos mencionar a vocação arqueológica de Zelig. Este filme não
só nos traz peças da história do mundo, como também a possibilidade de, de forma cons-
ciente, reconhecer diversos elementos formais do documentário e da ficção. Quase um
compêndio, ao nível formal, Zelig mostra-nos a originalidade e inovação da sua aborda-
gem ao demonstrar, fundir e trazer para o seu tempo “diversos ramos de documentário
e diversos ramos de ficção”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 203) Note-se ainda que Zelig
estreou pouco depois de Sans soleil, (Chris Marker, 1983) um documentário grandemente
suportado pela selecção e utilização de imagens de arquivo. Para mais, cerca de cinco anos
depois, em 1988, Jean-Luc Godard aderirá também a este tipo de empresa técnica e co-
meçará a produzir a sua enciclopédica Histoire(s) du cinema (lançada dez anos depois, em
1998). Mesmo que o trabalho e as carreiras destes três realizadores sejam deveras distintas,
partilham no entanto, nesta época, o factor comum da reflexão acerca da herança visual.
Em suma, todas as considerações sobre as tensões entre conteúdo e forma elaboradas
ao longo deste texto apenas foram possíveis e motivadas devido à inegável riqueza inter-
textual das características subversivamente únicas de Zelig.

Bibliografia

ALLEN, Woody. Three Films of Woody Allen. London: Faber and Faber, 1990.
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010.
AUFDERHEIDE, Patricia. Documentary Film: A Very Short Introduction to, Oxford: Oxford
University Press, 2007.
BOLTER, David; Richard Grusin. Remediation: Understanding New Media, Cambridge (MA)
and London: The MIT Press, 2000.
BORDWELL, David e Kristin Thompson. Film Art: An Introduction. New York: McGraw-Hill, 2010.
COLOMBANI, Florence. Woody Allen. Paris: Cahiers du Cinema, 2010.
CHRISTLEY, Jaime. Chris Marker. Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/2002/gre-
at-directors/marker/>. Acesso em: 10 Janeiro 2012.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 163


GIRGUS, Sam B. The Films of Woody Allen. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
HÖSLE, Vittorio. Woody Allen: An Essay on the Nature of the Comical. Notre Dame: University
of Notre Dame Press, 2007.
LAX, Eric. Conversations With Woody Allen: his films, the movies, and moviemaking. New York:
Alfred A. Knopf, 2007.
JACOBS, Del. Revisioning Film Traditions: The Pseudo-Documentary and the NeoWestern.
Lampeter: The Edwin Mellen Press, 2000.
NICHOLS, Bill. Representing Reality. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press,
1991.
NICHOLS, Mary P. Reconstructing Woody: Art, Love, and Life in the Films of Woody Allen.
Oxford: Rowan and Littlefield, 2000.
ROSCOE, Jane e Craig Hight. Faking it: Mock-documentary and the Subversion of Factuality.
Manchester: Manchester University Press, 2001.
SILET, Charles L.P. (ed.). The films of Woody Allen, critical essays. Oxford: Scarecrow Press, 2006.
SILVESTRE, Osvaldo Manuel. Notas de Apoio às Aulas de Análise de Filmes 2010/2011 (II).
Coimbra: Edição do autor, 2010, p. 1-5.
STAM, Robert e Ella Shohat. “Zelig and Contemporary Theory: Meditation on the Chameleon Text”.
In: Charles L. P. Silet (ed.), The films of Woody Allen, critical essays. Oxford: Scarecrow Press,
2006.
YACOWAR, Maurice. “Beyond Parody”. In: Charles L. P. Silet (ed.), The films of Woody Allen,
critical essays. Oxford: Scarecrow Press, 2006.

* André Rui Graça é licenciado em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e con-
clui actualmente o mestrado em estudos fílmicos na University College London (Reino Unido). Nesse
âmbito, tem desenvolvido investigação em torno da dicotomia entre cinemas nacionais e a indústria de
Hollywood. Adicionalmente, o seu interesse académico incide sobre cinema documental, ontologia da
imagem e música no cinema. Email: < andreruig@gmail.com >.

164 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Sosa

Como Eva, aun insisto en comer del fruto.


A la ramera de la profecía
me voy pareciendo más cada día.
En mí, la Magdalena guarda aun luto.

A mí, viene aun por consejo Dalila.


Como Débora, en mi mano victoria
venderá el Dios. Será mía la gloria.
Conmigo, mordaz, Jezabel vacila.

Extender el placer es hedonismo,


y esto que hago ahora aquí no es lo mismo.
Me fastidia el estigma. Aún Betsabé

de su inmundicia purificada fue.


Yo así, como cualquier otra selecta,
prosigo aun la oportunidad abyecta.

O poema é sobre uma mulher muito livre: nomeando sete personagens da Bíblia, ela
exemplifica o seu agir. A minha inspiração foram personagens de mulheres transgressoras
que trabalhei na minha tese de graduação. A minha formação é em Literatura Espanhola
e o nome do trabalho e “Esposas en La Furia de Silvina Ocampo”.

Erik Diesel*
Luna Yamanik

La luna es una flor resplandeciente.


De gardenia, magnolia fabulosa.
Reina la noche. Un faro. Poderosa.
Del firmamento un risco fluorescente.

Diosa Ix Chel, sí, la llaman nuestros padres.


Es del caminero fuerte guía y el
alma inspirada sus secretos fía.
Fue musa del pintor en tantas tardes.

Mago que rotuló tu silueta;


es su concepción eficaz saeta:
osada, tierna, sí, templada, amada.

Grato, como su hija, Quiché esmeralda,


néctar. Tu madre Juzeth, tu padre Erik,
tú, imperio e impetuosa, Luna Yamanik.

A minha amiga Juzeth teve uma situação muito triste há cerca de um ano atrás quando a
pequena Luna nasceu e esteve em desengano no hospital. Faz cerca de dois anos que Juzeth
perdeu o seu pai. Ele desencarnou muito jovem. Finalmente, no México, a linguagem Maia
tem variações das que Ix Chel e Yamanik são feitas.

Erik Diesel

166 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Colegio Antonio José Sucre

Colegio Antonio José Sucre afrenta


triste moño blanco imprudente a puertas:
de, por Yireli, mis angustias ciertas;
que, por Gina, llevó su casa imprenta.

Vano argüir muerte de una criatura,


reconocer que no hay razón que valga,
y qué incesante es la pena que embarga.
Infame agonía que le captura.

Flores blancas, mismo velas de cera,


engalanan la comunión primera.
Blanco atuendo de Ayrton en su fiesta.

Y blanca la Divinidad que, enhiesta,


tartamuda, inconsecuente, y muy a medias,
explicará cuantas nuestras tragedias.

“Colegio Antonio José Sucre” foi o meu primeiro soneto e é sobre a dor que a morte de
uma criança tatua no coração, e além disso, na razão. Três das quatro personagens do
poema têm sido parte do núcleo da minha vida. O poema é um tributo a eles.

Erik Diesel

* Erik Diesel é poeta mexicano e pesquisador na área de Letras. E-mail: <erikdiezel@gmail.com>.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 167


OS MALDITOS DA
VIDA HUMANA
la Rochefoucauld e seu antimoralismo

MAGDALENA MENDONÇA*

Resumo: O propósito maior deste artigo é o de sinalizar o quanto perigoso é considerar o pensar de la
Rochefaucauld como similar a um de uma pensamento moralista. Trata-se de destacar o quanto o autor das
célebres Máximas e Reflexões, em pleno século XVII recusou veementemente o caráter coercitivo da moral,
endossada pelo pensar cristão e humanista, bem como dos adeptos do determinismo no que se refere à con-
duta humana que tão fortemente desprezavam a temática e relevância das paixões. Trata-se, sobretudo, de
pontuar o quanto o pensamento Rochefauldiano é atual e atemporal, pois, ainda pode nos mostrar os mitos
e pressupostos presentes nas crenças da Psicologia Comportamental ou do Behaviorismo e suas técnicas.
PALAVRAS-CHAVES: ANTIHUMANISMO, MORALISMO, DETERMINISMO

Abstract: The major purpose of this article is to signalize how dangerous it is to consider the Rochefaucauld
thinking as similar to the thinking of a moralist. It intends to emphasize to which extent the author of the
celebrated MAXIMS AND REFLECTIONS, in the midst of the Seventeenth Century vehemently refuted
the repressive character of morals , endorsed by the humanist and Christian thinking, as well as the fol-
lowers of determinism in regards to the human conduct , those who so strongly despised the propositions
and relevance of strongest feelings, such as passion. It intends, mainly, to punctuate the extent to which the
Rochefaucauld thinking is current and timeless, since still can show us the miths and assumptions present
in the beliefs of the Behaviorist Psychology or Behaviorism and their techniques
KEYWORDS: ANTI-HUMANISM, MORALISM, DETERMINISM

S
ão poucos os especialistas da psicomportamental que não se valeram da “grande
ferramenta” de modelagem do comportamento infantil, o célebre timeout. Consi-
derada de grande valia tal procedimento técnico consiste em controlar os arroubos
de um dito ato anti-social, que devidamente censurado é acompanhado de uma
retirada do “sujeito” de um grupo quando este vai de encontro ao imperativo do coleti-
vo. A regra maior prescreve que se deve conscientizar o sujeito pela privação do prazer da
companhia do grupo à cada apresentação de um ato inconveniente ou rebelde e isso, ao lon-
go de um tempo, tem como efeito a extinção do comportamento indesejável que, em poucas
palavras, pode ser dito mecanismo de socialização. Ainda hoje não são poucos os técnicos
que não deixam de recomendar tal procedimento em creches, escolas primárias, etc…
Deixando a querela do ser (visto como um em-si) civilizado, que mais parece ades-
trado, pode-se pensar no que há de humanismo cristão por trás de tal crença. Não é nada
fácil remar contra tal correnteza, que o digam aqueles pensadores do século XVII, como
Pascal, Montaigne, Hume que se debatiam com o ideal imaginário de uma vida pautada
sob os referenciais do bem e do mal e que por isso não eram afeitos ao moralismo, mas
nem por isto deixaram de se encantar pela temática da moral. Importa, aqui lembrar, La
Rochefaucauld, pois inegavelmente foi ele – que antes daquele outro apelidado, devido
à sua poesia corrosiva contra os ‘bons costumes’, de ‘boca do inferno’, e, ainda antes de
Nietzsche –, quem se incumbiu de apresentar a plausibilidade de se pensar em um modo
de vida humana mais pautada pelas paixões do que pela razão.
Convém, aos desavisados, advertir: tais autores de obras esconjuradas e malditas não
conheceram senão o disfarce para lograr não cair nas armadilhas de seus inimigos ardi-
losos. Eis a razão de uma das maiores obras de la Rochefoucauld, Máximas foi feita na
Holanda sem a sua devida autoria.
De fato, em nada deve agradar as falas de um vozeirão que ecoa na contramão do
ideário da boa convivência, que ´confere às ações o funcionamento passional que desvela
com clareza a inquietude de um impulso que nada pode deter, mesmo na maior aparência
de mansidão. E aqui não cabe enquadrar uma forma outra de pensar o agir humano, não
mais a partir dos cânones do bem/mal, virtude e vício. Parece ser justamente tal lógica que
o filósofo do século XVII quer questionar com a força das suas máximas arrebatadoras.
Dando-se ao prazer dos ares de um sobrevôo seguido de argúcia e sutileza em bom termo,
La Rochefoucauld, contra a mediocridade de um comportamento dito normal, humano
e social, refuta a tradição aristotélica e seus sonhos de uma vida harmônica socialmente,
quando fala em nome das paixões violentas e adverte com ironia singular: “Há no coração
humano uma germinação perpétua de paixões” (máxima 10), e, “As paixões têm uma in-
justiça e um interesse próprio que tornam perigoso segui-las e necessário delas desconfiar,
ainda que muito razoáveis pareçam” (máxima 9).
Com a força das paixões é que ele esbraveja contra o teísmo e determinismo incrus-
tado no humanismo cristão, ao dizer: “Por mais vantagens que conceda a natureza, não é
ela somente, mas a fortuna e ela, que fazem o herói” (máxima 53). E dá mostras suficientes
do seu pensar singular sobre a razão quando reconhece: “Não temos força o bastante para
seguir toda a nossa razão” (máxima 42). E com fôlego não deixa de zombar do mito do es-
sencialismo, dos adoradores do imutável e da sua fixidez imponderada, quando anuncia:
“A felicidade está no gosto, não nas coisas, é por ter o que amamos (desejo, busca, ânsia de
apropriação) que somos felizes, não por ter o que os outros acham amável” (máxima 48). E
já na antecipação de Freud, pensa alto: “É difícil definir o amor: o que dele se pode dizer é

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 169


que, na alma, é paixão de reinar, nos espíritos, simpatia, no corpo somente vontade oculta
e delicada de possuir o que se ama, depois de muito mistério” (máxima 68).
A única pergunta que não quer calar é: Qual a razão de se valer do estratagema
de maldizer tal pensar, assim como tantos outros que com bravura zelam pelo huma-
no, demasiado humano? Talvez o altruísmo, o amor-próprio, o egocentrismo contido na
prodigalidade não sejam cúmplices de tamanha racionalidade passional que não carrega
consigo qualquer vestígio de pureza casta, castrada! Tal missão pode ser resumida em um
afã: não ser moralista para ter possibilidade de um falar do humano sem tanta pieguice e
sem o maldizer. Ah, quanto mal faz aquela quando maltrata as paixões calmas e violentas.
E se perguntarmos o que é o amor, de certo cairemos de súbito na lucidez rochefau-
cauldiana que a tantos incomodou, sempre atual! E quem vai a ele maldizer nos tempos
de agora? A psicomportamental e suas normatizações da vida humana? Talvez ainda ela
vigore para uns poucos, quiçá…

Referências bibliográficas

BRAGA, Antônio. C. La Rochefaucauld e la Bruyére: filósofos moralistas do séculoXVII. São


Paulo: Ed Escala, 2012.
ROCHEFOUCAULD, La. Máximas e Reflexões. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e Prazer na Idade Moderna. Campinas, SP: Editora da Uni-
camp, 1995.

* Magdalena Mendonça é doutora em filosofia pela UNICAMP, SP, autora de O problema do Eu no ceticis-
mo de David Hume. São Cristóvão, SE: Editora UFS; Aracaju, SE: Fundação Oviedo Teixeira, 2003.

170 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Poemas
JUAN TORO CASTILLO*

diz-me mais ou menos assim:


em duas horas te encontro
no meio da trama em sonho
eu te acordo:
de um susto
de um grito
ou te empurro de um barranco
da escada
te jogo de um avião
te enfio a faca
ou uma bala
uma paulada
te asfixio
te persigo
no fim…
te acordo.

Calo-me nos edifícios da cidade


e canto nos rincões das aranhas
mais confortável e mais familiar
um pouco de vento não faz mal.
Das pedras de concreto renegadas
destaca-se a verdade das lacunas
loucuras que agora são minhas
vividas no chão empoeirado
trincheiras onde nunca serei escutado.

A luz nasce da negação


da criação vem a transformação.

Amarra com um nó as veredas da estação


monta em trens alargados por miradas
que um dia passaram sem dar palavra
para depois, gesto oportuno
conceder nos fundos uma dança
mera menção para defuntos.

Firme turquesa feita de simpleza


mares e mares de tu
infinita estrela
firme rosa do melhor aroma
brisas e brisas de tu
musa inspiradora
firme flor campestre brincalhona
ventos e ventos de tu
boca de amora.

* Juan Toro Castillo é poeta, roteirista e diretor de curtas. E-mail: <lennmarx@hotmail.com>.

172 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Poética y procesos de creación
video-cinematográfica brasileña
en la contemporaneidad
ANGÉLICA MARISOL MORA VÁZQUEZ*

Duelo y melancolía: una mirada al interior de Os famosos e os


duendes da morte (2009) de Esmir Filho

Es probable que alguna vez hayamos perdido (entiéndase perder como dejar de exis-
tir) a un ser querido o algún objeto de gran valor, y las reacciones que tenemos al respecto
son distintas, algunas más dolorosas, otras no tanto. Todo depende del sujeto/objeto de
valor perdido. El proceso que sigue a esa pérdida se llama duelo, el cual se define como “la
reacción frente a la pérdida de una persona amada, un objeto o un ideal, como la patria,
la libertad, etc.”1 Muchas veces la melancolía se desata después de un duelo. Sigmun Freud
llama melancolía a lo que ahora suele describirse como estados de depresión.
Estos tópicos, el duelo y la melancolía, son los ejes sobre los que gira el filme brasi-
leño Os famosos e os duendes da morte (Los famosos y los duendes de la muerte, 2009), la
ópera prima de Esmir Filho que en 101 minutos narra a través de una bella composición
audiovisual la historia de un chico que escribe en un blog, donde usa el sobrenombre “Mr.
Tambourine Man”. Es fanático de Bob Dylan, al punto de planear un viaje casi imposible,
como modo de escape, desde su suburbio rural hasta la ciudad brasileña en la que pronto
tocará el cantante.
El tema de la muerte, por el tamaño de la comunidad, es común y ocasionalmente
constante, de tal manera que se comparte un sentimiento de melancolía desatado por el
duelo que se respira en el ambiente, principalmente al cruzar un puente que comunica a
una parte de la comunidad con otra, pues éste se ha usado como trampolín suicida. Mr.
Tambourine tiene un mejor amigo llamado Diego, quien recientemente perdió a su her-
mana después de haber planeado un suicidio con su novio, el cual no murió.

1 Sigmund, Freud, Obras completas. Buenos Aires, Amorrorto editores, 1978, vol. XIV, p. 241.
Después de una perdida, se confía en que pasado cierto tiempo se superará. La me-
lancolía se caracteriza por el desinterés hacia el mundo exterior, la pérdida de la capacidad
de amar, regularmente se exterioriza en autorreproches, autodenigraciones y ocasional-
mente en castigo. Así vemos a Mr. Tambourine negándose a llevarle flores a su padre al
panteón. O a una mujer (otro personaje) que decide suicidarse al negarse la existencia
después de la muerte de su esposo.
Freud afirma que el duelo consiste en comprender que el objeto amado ya no existe,
por lo que ahora se tiene que inhibir toda libido enlazada a ese objeto. En este proceso es
comprensible toda renuencia, ya que la existencia del objeto perdido sigue presente en la
psique. Cada uno de los recuerdos y las expectativas anudabas al objeto son clausurados,
sobreinvestidos. Vemos a Mr. Tambourine refugiado en el ciberespacio, sitio donde tam-
bién sufre otro duelo por la muerte de la hermana de su mejor amigo, chica por la que
sentía atracción. El protagonista obtiene experiencias vicarias observando videos del ser
deseado en la red, de un primer amor que no pudo ser.
En el mundo virtual no existe la muerte, todo es un viaje mental, una ensoñación,
en ese mundo online todo es más seguro y también más libre, es el medio que utiliza Mr.
Tambourine para despegarse de la soledad y la melancolía de su habitación. Esta película
se mueve entre la realidad, el sueño y un universo virtual que sobrevisten la melancolía
de los habitantes del Brasil alejado del turismo donde se desarrolla la trama. Una pequeña
población colonizada por alemanes, perfecta para que los adolescentes protagónicos pa-
seen su angustia y sus deseos entre realidades alternas.
No siempre el sujeto/objeto de valor está realmente muerto, pero quizá se perdió
como objeto de amor (por ejemplo, el caso de una novia abandonada o un ideal). En
ocasiones no atinamos a discernir con precisión lo que se perdió, aquí entra el papel de
la melancolía, la cual es “la pérdida del objeto sustraída de la conciencia; a diferencia del
duelo, en el que no hay nada inconsciente que atañe a la pérdida”.2
En Os famosos e os duendes da morte los personajes coinciden en que realmente lo
que han perdido no son seres queridos u objetos de gran valor, sino el ideal de la libertad,
por lo menos así lo dan a entender los adolescentes protagonistas. Tienen grandes ansias
por llenar el vacio que sienten en su vida, es decir, encontrar la libertad, abandonar su
comunidad y volar, volar lejos hasta sentirse libres.
Pero la melancolía implica más que el duelo: una rebaja en su sentimiento yoico, un
enorme empobrecimiento del yo. En el duelo el mundo se hace pobre y vacío; en la melan-
colía eso le ocurre al yo mismo. Un claro ejemplo sucede cuando una vecina, madre de un
compañero de clase de Mr. Tambourine, se suicida, y hasta con los sentimientos del propio
Mr. Tambourine. Los personajes se sienten vacios por sus pérdidas, una por su esposo, el
otro por su libertad y el resto por diversas razones. Su melancolía en realidad son querellas
de estar con alguien que ya no existe o de hacer algo que desean.

2 Ibíd, p. 243.

174 REVISTA OLHAR – ANO 15 – NO 28 – JAN-JUN/2013


Como resultado del empobrecimiento del yo, el amor por el objeto se invierte y se
convierte en odio, se insulta, denigra, se le hace sufrir, provocando una satisfacción sádica.
Algunas veces esos sentimientos negativos experimentan una vuelta hacia la propia perso-
na, inclinándose al suicidio. Diego culpa a su hermana por “haber arruinado a su familia”
con su suicidio, pues obviamente cambió su vida, su madre es distraída y siempre está tris-
te. Él intenta seguir viviendo pues a final de cuentas tan solo es un adolescente pero rehúsa
hablar sobre el incidente, es un tema que le incomoda y podría decirse que hasta le molesta.
Cada personaje vive de manera distinta su duelo: Mr. Tambourine se desahoga pu-
blicando en su blog, escribe un texto llamado Infancia donde narra las vivencias que tuvo
con su padre y su madre; la maestra enfrenta la muerte de su hija dando clases; otra vecina
decide suicidarse. Lo que sí es seguro, es que el puente es el paso entre la vida y la muerte,
el odio y el amor, todos los sentimientos investidos recaen en dicho lugar, pues como se
ha mencionado, funge como trampolín suicida. Atravesar el puente es conseguir libertad
e integrarse a ese mundo virtual en el que el chico vive, un mundo onírico donde no existe
el sufrimiento provocado por las pérdidas.
El chico que no murió, en cierto momento funge como la solución o sanación de la
melancolía, como la muerte o la libertad, pues después de superada la muerte regresa a su
pueblo. También influye en el futuro de Mr. Tambourine, quien tiene dos caminos al cruzar
el puente: alejarse o lanzarse por la orilla, y de una u otra forma alcanzar la libertad ansia-
da. Hablan sobre el Taquari, de quien dicen, estaba loco por caminar por las plantaciones a
media noche, pero no era así, él sólo encontró una salida a ese sentimiento de melancolía.
Este filme conecta íntimamente al espectador con sus miedos, nostalgias, deseos, fan-
tasías, vergüenzas, penas, transmite una experiencia completamente sensorial e intimista.

CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS 175


Cabe mencionar que la música, la composición de la imagen, los encuadres, la ilumina-
ción, en general todos los recursos técnicos/visuales acentúan las emociones/sentimientos
de los personajes.
Este filme es rico en temáticas para analizar, pues plantea tópicos como la adoles-
cencia actual (rock, drogas y cibercultura), pero proyectados en un nivel onírico donde la
nostalgia, lo cotidiano, el deseo, la oscuridad, lo mágico y la muerte se entrelazan. Es una
película que revive experiencias y consigue involucrar al espectador en la historia contada.

Ficha técnica

Os famosos e os duendes da norte; Brasil/Francia; 2009; Director: Esmir Filho; Produc-


tores: Sara Silveira y Maria Ionescu; Guión: Esmir Filho, Ismael Caneppele, basada en la
novela de Caneppele; Fotografía: Mauro Pinheiro Jr.; Montaje: Caroline Leone; Música:
Nelo Johann; Vestuario: Andrea Simonetti; Reparto: Henrique Larre, Ismael Caneppele,
Tuane Eggers, Samuel Reginatto, Áurea Baptista; Duración: 101 min.

Bibliografía

Sigmund, Freud. Obras completas. Buenos Aires: Amorrorto editores, 1978, vol. XIV.

* Angélica Marisol Mora Vázquez é jornalista e pesquisadora de cinema na UNAM, México.

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OLHAR é uma publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem por objetivo sistematizar, no formato
revista, a difusão de conhecimentos, pesquisas, debates e idéias nas áreas das Ciências
Humanas e das Artes, gerando assim um canal de intercâmbio acadêmico e cultural.
O texto submetido à OLHAR deve ser inédito, sendo vedada sua apresentação si-
multânea em outra publicação. Após seu envio, o material será analisado por membros
do Conselho Consultivo do periódico e sua aceitação dependerá do julgamento realizado
pelos pareceristas. Podem ser enviados em fluxo contínuo artigos científicos, capítulos e
resumos de dissertações e teses, entrevistas, resenhas literárias e cinematográficas, além de
produções artísticas tais como fotos, ilustrações, charges, poemas, contos etc.

CALL FOR PAPERS


The Olhar magazine, a multidisciplinary publication in the fields of arts, literature
and humanities at the Center for Education and Human Sciences UFSCar, SP, Brazil, is
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Articles, interviews or unpublished translations may contain from 7 to 25 pages (ex-
ceptions are considered), reviews of books and films should contain about 5 pages.
The originals – in Portuguese, Spanish, English or French – should be sent to the
following address: josettemonzani@gmail.com.
The texts need to be accompanied by an abstract containing 30 to 80 words, three
keywords, abstract and key words, plus information about the authors’ professional work
and other relevant biographical data (educational background, major works and publica-
tions, etc.).
As the magazine is illustrated, iconographic material is welcome.
The relevance to the publication will be evaluated by the Advisory Board of the jour-
nal, according to its editorial guidelines.
Editors: Josette Monzani and Julio César De Rose.
More information: revistaolharufscar.wordpress.com

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elementos: título do trabalho, nome do autor, seu vínculo insti- com algarismos arábicos), devem constar no final da página (ro-
tucional, sua titulação, e-mail do autor, resumo de no máximo 10 dapé), em Fonte Times New Roman, corpo 10, alinhamento jus-
linhas, 3 palavras-chave, abstract e keywords, o corpo do texto e, tificado, mantendo-se espaço simples dentro da nota e entre as
quando for o caso, elementos ilustrativos. O eventual apoio finan- notas.
ceiro de alguma instituição deve ser mencionado em nota de fim – As citações bibliográficas devem ser indicadas no corpo do texto,
de página, inserida com asterisco (e não número) logo depois do entre parênteses, com os seguintes dados, separados por vírgu-
título do trabalho. Salvar como: SOBRENOME-NOME do autor. la: sobrenome do autor em letra maiúscula, data da publicação,
– Cada trabalho será apreciado por dois pareceristas (anônimos). abreviatura de página, número da(s) página(s) – Ex.: (PASOLINI,
Em caso de discordância desses pareceres, o texto será submetido 1975, p. 323-324).
a um terceiro parecerista (também anônimo). Serão publicados – Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens etc.) devem ser
apenas os textos que receberem duas avaliações favoráveis. Os inseridos no texto, logo após serem citados, contendo a devida
pareceres serão encaminhados aos autores pelos editores ou pelo explicação em sua parte inferior (legenda), se necessário.
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nal do texto, obedecendo às normas da ABNT em uso. Não nu-
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dows (Word), em fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço o tradutor, logo depois do título da obra. Ver os exemplos, a seguir.
entre linhas de 1,5, alinhamento justificado, parágrafo assinalado
pelo recuo da primeira linha (Tab), com páginas numeradas. LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS:
– A extensão mínima é de 15.000 caracteres e a máxima de 25.000 MANTOVANI, B. et al. Cidade de Deus: o roteiro do filme. Rio de
caracteres, sem espaços (incluindo notas e referências bibliográfi- Janeiro: Objetiva, 2003.
cas). Casos excepcionais serão avaliados pelo Conselho Editorial. PASOLINI, P.P. Abjurei a trilogia da vida. In: Últimos escritos. Tra-
– Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens, etc.) podem ser dução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Centelha, 1977, p. 24-29.
acrescentados e não serão computados na extensão máxima do
texto. Os elementos ilustrativos podem ocupar duas páginas, no PERIÓDICOS:
máximo. A obtenção dos direitos de imagem e de reprodução está AMELIO, G. Birth and death of a nation. Cineaste, New York, v.
a cargo do autor de cada texto e deve ser encaminhada no prazo XXVIII, no 1, winter 2002, p. 19-20.
de uma semana após a aprovação do texto para publicação. MENA, F. Sob o sol do Recife. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 dez.
– O título do trabalho deve ser centralizado, em negrito, apenas 2009. Ilustrada, Caderno E, p. 1.
com a primeira inicial em letra maiúscula; o subtítulo (se houver)
deve seguir a mesma recomendação. SITES:
– Na linha abaixo do título, deve constar o nome do autor, à direita, VISCONTI, L. Rocco, un seguito di La terra trema. Disponível em:
sem negrito. Junto ao nome do autor, deve constar, entre parên- XXXXXXX. Acesso em: 8 dez. 2007.
teses, a instituição com a qual tem vínculo, e também o tipo de
vínculo, separado por vírgula (no caso de vínculo discente, deverá OBRAS AUDIOVISUAIS (POR ORDEM ALFABÉTICA)
haver indicação se é em curso de mestrado, doutorado ou pós- BAILE PERFUMADO. Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Brasil, 1997, filme
doutorado). Em nota de rodapé, o autor deve incluir seu endereço 35 mm.
eletrônico para eventuais contatos dos leitores. MANGUE NEGRO. Rodrigo Aragão. Brasil, 2008, video.
– No transcorrer do texto, deve-se empregar o itálico para termos
estrangeiros e títulos de filmes, livros e periódicos. Os títulos de NÃO SERÃO ANALISADOS TEXTOS FORA DO PADRÃO DA
obras audiovisuais e bibliográficas devem ser escritos apenas com REVISTA.
a primeira inicial em letra maiúscula. Exemplo sobre filme: “Em
Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963), a discussão Envio de originais: josettemonzani@gmail.com
em torno…”. Ressalva: a menção ao diretor/autor e ao ano deve Revista online: revistaolharufscar.wordpress.com
ocorrer apenas na primeira vez em que a obra é citada.
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mes New Roman, corpo 12), entre aspas duplas. Com mais de três lhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de res-
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