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Locutor, enunciador

Alain rabatel

Université de Lyon 1-Iufm

1. Locutor e/ou enunciador?

Distinguir locutor e enunciador se choca a numerosas dificuldades. O fundador da


abordagem de enunciação utiliza o termo locutor mais do que enunciador o qual,
quando é empregado, equivale a uma atividade de locução1. Além disso, essa disjunção
não é apresentada em grandes números de trabalhos de primeiro plano, como esse de
Authier-Revuz, que utiliza o termo enunciador. Enfim, quando a distinção existe, ela
não entra em consenso com os enunciatistas, por exemplo, em Desclés VS Ducrot.
Também não faz nenhum sentido para os lingüistas estrangeiros (os problemas
enunciativos).

Se um conceito não existe de verdade sem palavra para dizê-lo, ele pode existir no
estado pré-teórico, e as incertezas de dominação, assim como no emprego
aparentemente sinônimo do locutor ou do enunciador, são, a mínima, o indício de um
problema. De fato, muitos lingüistas utilizam indiferentemente locutor ou enunciador,
para remeter ao produtor dos enunciados enquanto que outros empregam
exclusivamente um ou outro termo. Segundo o Tesouro da Língua Francesa, o locutor,
“sujeito que fala, que produz enunciados”, não se distingue do enunciador, definido
como “agente criador de um enunciado”, sob a pluma do Conselho internacional da
Língua Francesa. Essas definições não brilham por suas diferenças - sobretudo, se
juntamos as diferenças da enunciação (“ação de enunciar, fato de pronunciar ou
escrever sons ou letras”) – nem entram no detalhe do que é enunciado, escolhas de
referenciação e de responsabilização enunciativa, qualquer coisa importante para a
disjunção locutor/enunciador. Esta aparente equivalência é acrescida pelo fato que a
série de enunciação, enunciador, enunciado é ameaçada pela série fundada sobre a
etymon loquor/loqui que deu origem a termos mais antigos e mais utilizados na
linguagem ordinária do que na primeira (paralelamente aos termos técnicos,
contemporâneos da primeira série): elocução, locução, locutor, interlocutor, locuté,
délocuté, allocuté, alocutário, locutório, ilocutório, per locutório, sem contar os termos
tais como eloqüência, alocução, ventríloquo, solilóquio21, etc. a co-existência de séries

1“A partir do momento que o enunciador utiliza a língua para influenciar de certa
maneira o comportamento do alocutário, ele dispõe para esse fim de um aparelho de
função” (PLG 2 : 84 ; cf. PLG1 : 242). A dupla, enunciador (e não locutor) alocutário é
significante do entrelaço das séries lexicais e dos conceitos. As abreviações PLG e
VOC, seguidas de um número, remete ao volume dos Problemas da Lingüística geral ou
do Vocabulário das instituições européias.
2 não existe relação entre a origem do verbo latino e o lego/logos em grego (que
provem de uma origem indo européia *leg-/*log-). Mas, a cumplicidade semântica, é
substituída pela cumplicidade fonológica, coincidentemente, induziu os Romanos a
forçar as coisas: assim a imitação das palavras gregas em –logia ou em –logos deu
origem aos neologismos em –loquium ou –loquus. Cícero inventa veri-loquium para
imitar etymo-logia (“a fala autêntica”); a mesma coisa para soliloquium monólogos.
Obrigado a Christian Nicolas por esses exemplos do etimologismo popular.
pouco diferenciadas ou heterogêneas, tanto nos usos populares como entre os eruditos,
testemunha a dificuldade de pensar os fenômenos concomitantes, mas não
necessariamente solidários (Philippe 2002).

2. Ausência de disjunção explicita locutor /enunciador em Benveniste

Os empregos do termo enunciação não retomam todas as noções de enunciação,


ao menos conforme as diversas acepções que Benveniste dar ao conceito: assim,
quando Benveniste utiliza “enunciações” no plural, remetendo ao conceito de
ato de autoridade, a dimensão performática da linguagem, tal como é
desenvolvida em VOC2 (Ono 2007:50). Inversamente, alguns conceitos tratam
da teoria da enunciação, mesmo se Benveniste não utilize explicitamente o
termo: é claramente o caso para os conceitos de instância de discurso, frase e
performativo (ibid.: 57).

Reciprocamente, retomam explicitamente o conceito de enunciação os 4 ou, segundo


Ono, 5 glosas que se seguem (ibid.: 50-57) que apreendem a enunciação enquanto:

i) Fonação, “realização vocal da língua”, proferição. É o sentido que Benveniste utiliza


em 1954, na “Tendência recente em lingüística geral” (PLG 1, 3-17), quando ele fala de
“enunciação inregistráveis” enquanto realizações fônicas da linguagem articulada.

ii) Conversão da língua em discurso (“Semiologia da língua”, 1969, PLG 2, 43-66). A


atualização da língua em discurso se estabelece sobre o conceito central da frase, sobre
o plano sintático e semântico, no quadro de oposição de Benvenistiniana do2semiótico
(língua) versus semântica (discurso em situação).

iii) Ato único, individual pelo qual o eu/aqui/agora se afirma como instância de
discurso (Benveniste, “A natureza dos pronomes”, 1956, in PLG 1 75-87; “da
subjetividade” (1958, in PLG 1, 258-266); “As relações do tempo no verbo
francês”(1959, PLG 1, 225-236).

iv) Dimensão dialógica, maneira de influenciar o alocutário ou o ouvinte: esta idéia é


apresentada nas “Relações de tempo nos verbos em francês” (1959, PLG 1, 225-236), e
mais ainda no “Aparelho formal da enunciação” (1970, PLG 2, 79-88) se apoiando nas
observações de Malinovski.

2
3 Homo homini lupus não é uma variante da frase com o verbo (Homo homini lupus
est), mas retoma o modo de “enunciação distinta” (PLG 1966 : 166) : a frase com
predicado nominal nem cúpula é “uma afirmação nominal, completa em si”, que “
coloca o enunciado fora de qualquer localização temporal ou modal e fora da
subjetividade do locutor” (ibid. : 159-160).
4 O locutor encontrará em Homo narrans um grande número de exemplos (e análises de
marcas muito variadas) nas quais a referenciação dos objetos do discurso indica um
PDV. Por razões de lugar, nos limitamos ao exemplo (1) para distinguir a realidade dos
dois sujeitos modais distintos, realidade que é confirmada apenas por duas marcas, mas
é óbvio que mais freqüentemente é um conjunto de várias marcas convergentes que
constrói o PDV.
v) Atualização da frase na realidade do discurso (1970). Segundo Ono, esta concepção,
próxima de 2), difere nitidamente da importância dada a questão da referência, pela qual
Benveniste restabelece com preocupações antigas, expressas desde 1950 em seu artigo
“A frase nominal”(PLG 1, 151-167).

Essas acepções tratam ao mesmo tempo do locutor como produtor do enunciado e o


enunciador como instância de responsabilização. Essas duas instâncias se encontram em
todos os lugares misturadas, salvo talvez na primeira acepção. No mais, a
responsabilização dos enunciados e sua dimensão argumentativo-pragmática
aparecendo, injustamente, dependendo da enunciação pessoal, desde então Benveniste
limita a expressão da subjetividade (e de seus efeitos) a uma única enunciação pessoal
(Rabatel 2005a : 117, Ono 2007 : 41-3, 45-6). O conceito de enunciador não é
explicitado através de sua articulação com os planos de enunciação não comunicáveis,
suscetível de favorecer a observação do desligamento locutor/ enunciador. A prova, os
conceitos de predicação (afirmativa, interrogativa, imperativa) e da sintagmação são
pouco mencionadas no último artigo de Benveniste consagrado ao aparelho formal da
enunciação de 1970. Ora, esses dois conceitos são centrais para a captura da
subjetividade da língua, independemente do plano de enunciação pessoal, pois a
“sintagmação das palavras” (PLG 2: 229) que produz a “significação da ação” (PLG 2:
64, 226) remete a um para dizer que possui uma força (Ono 2007: 127, 131-2), qualquer
que seja o plano de enunciação.

Certamente, na VOC 2 (1969), especificamente em relação a Ius, de Diké, Benveniste


evoca de maneira implícita uma outra concepção de enunciação em torno da frase
nominal3, provérbios, enunciações rituais, enunciados impessoais. Mas, esta abertura é
frágil (ver Ono 2007: 76, 99-100 e 104), como confirma sua interpretação fática
(evocado primeiramente por Malinovski), que Benveniste considera como limite do
diálogo “verdadeiro”, como os Hain-tenys madagascarense, esses enunciado rituais que
Benveniste situa fora das trocas intensas (PLG 2:85).

Em resumo, com a enunciação pessoal, Benveniste dar um conteúdo lingüístico a


subjetividade, mas esse último é limitado em razão da subestimação da subjetividade
dos planos de enunciação do tipo histórico ou teórico, particularmente dos contextos de
apagamento enunciativo, quando a subjetividade avança mascarada, desde a construção
do dictum, pela ausência dos julgamentos explícitos no dictum e/ou na ausência de
modos explícitos (Rabatel 2008b, 2009a, Ono 2007: 138, 140-154).

3. Enunciador (= sujeito modal)

O locutor não é apenas a instância de origem do discurso, é, sobretudo, aquele que se


responsabiliza pelos conteúdos proposicionais que enriquece seu discurso, ou que
imputa pontos de vista de outras fontes, que são de um ponto de vista (PDV) que não foi
proferido (Rabatel, 2009). É a razão pela qual o conceito de enunciador ganha ao se
tornar uma glosa pelo sujeito modal, ou seja, o centro de perspectiva a partir da qual a
referenciação é visada. Esses casos estão longe de ser estabelecidos pelo domínio
narrativo4, como mostra o seguinte exemplo. Consideraremos que todo enunciador,
mesmo aquele que não fala (e, sobretudo, se ele não fala) é um verdadeiro sujeito
modal, onde encontramos o traço do ponto de vista através da forma cujos referentes
são construídos no discurso.
(1) A guerrilha estava pronta de verdade para liberar os reféns. (Antenne 2, 10-1-
2008)

Este enunciado possui um único locutor/enunciador, a jornalista Sophie Le Saint,


enquanto que a guerrilha corresponde ao objeto do discurso em relação ao qual ela dá
uma informação, relativa ao acordo da guerrilha para liberar os reféns. Em (1), o
discurso do primeiro locutor/enunciador, a jornalista, pela fonte do enunciado, integra o
PDV do segundo enunciador (ou o centro de perspectiva ou sujeito modal), a guerrilha.
Por que? Porque a guerrilha é o sujeito do verbo, ela é um agente, já que ela realmente
prova a presença e o valor da verdade do advérbio. A jornalista conta esta informação se
distanciando, através do condicional epistêmico freqüentemente usado pela imprensa,
sem ser o enunciador do modalizador da certeza. Este operador epistêmico faz sentido
apenas em relação ao sujeito modal que é a guerrilha, seria um contra-senso total
colocá-lo apenas em relação a L1/E1. Com efeito, esse PDV é uma contradição, de um
ponto de vista sempre epistêmico, com a distanciação expressa pelo condicional
jornalístico. Se os dois termos se referisse ao mesmo sujeito modal, haveria uma
contradição, impossível de existir, pois uma mesma instância não pode dizer A e não A.
A única maneira de regular a contradição implica considerar que não tem contradição
em relação ao único enunciador, mas conflito de PDV entre dois PDV e duas fontes
enunciativas diferentes (a jornalista e a guerrilha).

Certamente, é possível ter em vista uma outra explicação, segundo a qual o condicional
não exprime uma distanciação epistêmica, mas uma alteridade enunciativa. Podemos
também imaginar que esta atitude corresponde ao PDV de um bom conhecedor da
guerrilha apto a decodificar os sinais emitidos pela guerrilha: esta hipótese não muda o
plano5, ela confirma que o PDV é atribuído a uma instância distinta de L1/E1. Mas,
mesmo nesse caso, supor que 12/e2 desconfia do engajamento deste outro sujeito modal
que é a guerrilha, nos encontramos diante da responsabilização de 12/e2 que vem se
apoiando na quase responsabilização imputada pela guerrilha (e2’), no contexto
fundamentalmente dialógico, que aí é essencial.

Resumidamente, analisando “a guerrilha” como sujeito modal, não consideramos o


termo guerrilha como remetendo unicamente a um objeto do discurso em que fala o
locutor/enunciador, mesmo que também seja isso. É mais um centro de perspectiva
interna do enunciado, a partir do qual l1/E1 visa um certo número de fatos (discursivos),
pela semelhança dos fenômenos de empatia. Trata-se de apreender as coisas se
colocando como sujeito modal, como se as ações fossem deliberadamente para ele. Dito
de outra maneira, L1/E1 faz eco, com sua própria voz, no PDV de um segundo
enunciado, antes6 de dar seu próprio PDV de primeiro enunciador sobre o PDV do
segundo enunciador. Mesmo se e2 não diz literalmente nada, apenas um PDV lhe é
imputado, com todas as incertezas ligadas ao ato de linguagem, declaração, promessa,
pouco importa: estamos além do ato de linguagem atualizada na fala, no discurso, se
trata aqui de reapresentar um PDV “abstrato”, que tem uma2 existência no discurso de
L1/E1, independentemente de sua atualização discursiva. Isso significa que L1/E1
considera que e2 possui um efeito declarativo, de uma forma ou de outra, que ela estava
de verdade decidida a liberar os reféns, de outra maneira este ato de linguagem poderia
ser considerado do ponto de vista da guerrilha como uma promessa.

Nesse sentido o PDV é uma problemática mais complexa que a da voz e do discurso
segundo.
**

Não há para o locutor ou enunciador tal preeminência ou anterioridade. Eles intervêm


em diferentes níveis de produção dos enunciados e dos PDV e remete a aspectos
diferentes, mas fortemente intricados no uso da fala.

 O locutor é a primeira instância que produz materialmente os enunciados. É por


isso que o conceito de locutor pode ser aproximado do conceito de vozes. Ela é
proferida (ou escrita) por um locutor (ou escritor), dotada de uma materialidade,
subordinada pela experiência sensorial.

 O enunciador é a instância que se posiciona em relação aos objetos do discurso


aos quais ele se refere, e ao fazer é que eles se tomam a responsabilidade para si.
O conceito de enunciador corresponde a uma posição (enunciativa) que adota o
locutor, em seu discurso, visando os fatos, os conceitos, sob tal ou tal PDV por
sua responsabilidade ou de outrem7. Assim, o enunciador é definido como
instância aos PDV8. A disjunção locutor/enunciador dar conta das possibilidades
que o locutor se dá, enquanto enunciador, parar fazer um contorno em torno dos
objetos do discurso, visando os fatos, as palavras e os discursos, os conceitos, as
situações, os acontecimentos, os fenômenos de tal ou tal PDV, no presente,
passado ou futuro, em relação a si ou aos PDV de outrem.

Podemos pensar que é uma pena utilizar o mesmo termo de enunciador, para remeter
aos fenômenos diferentes (E1 em sincretismo com 3L1, e2 em sincretismo com 12, ou
e2 sem 12), mas parece, por essa reflexão, que é interessante que seja precisamente o
mesmo, tendo em conta que

- não paramos de falar a partir dos PDV de outros, que reconstruímos conforme a nossa
necessidade, sob forma de fala, julgamentos incorporados nas percepções,
comportamentos, maneira de agir;

- não paramos de nos posicionar em relação a esses PDV, se responsabilizando por eles,
se distanciando ou ficando neutro (ter na conta de);

- nós construímos como indivíduos apenas através da dinâmica interacional coletiva, de


maneira que o primeiro enunciador/locutor é verdadeiramente em relação ao segundo
enunciado, para parafrasear Sartre, “um enunciador, faz de todos os enunciadores” sem

5 o que confirmaria a incrementação de um segundo, conforme,ou de uma formula menos


gramaticalizada do tipo se escutamos a guerrilha.a fonte validante é seja a guerrilha seja um
observador/conhecedor que desconfia de suas informações, o que explica o remanejamento do
condicional pelo indicativo;
(1a) segundo a guerrilha/ se escutamos a guerrilha, ela está verdadeiramente pronta para liberar os reféns/
segundo a guerrilha. A liberação dos reféns é verdade
(1b) segundo X/ conforme X, a guerrilha está verdadeiramente pronta para liberar os reféns.
Podemos, certamente, perguntar por que privilegiar a hipótese segundo a qual e2 corresponde a guerrilha,
e não ao tal conhecedor: a resposta considera que a “guerrilha” é o elemento que se sobressai no contexto.
6 isso pode ser também pela ordem de aparecimento do discurso: mas é em todo caso sempre “antes” de
um ponto de vista cognitivo.
muitas vezes ter dito que “todos eles valem e que vale qualquer pessoa” tendo em conta
o papel do principal, este primeiro enunciador em sincretismo com o locutor e o sujeito
falante, ao qual, em última instância, pedimos sempre uma explicação...

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