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ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

SEÇÃO LOCAL SÃO PAULO

Boletim Paulista
de
Geografia
PERSPECTIVA CRÍTICA
Nº 83
DEZEMBRO DE 2005

SÃO PAULO
(BRASIL)
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA
ISSN 0006-6079

O Boletim Paulista de Geografia é editado pela Associação dos


Geógrafos Brasileiros - Seção Local São Paulo.

Os trabalhos exprimem as opiniões dos respectivos autores e não


necessariamente da AGB-SP ou dos editores do BPG.

IDEALIZAÇÃO: Alexandre Santana Odzioba, Joana Cury, José Raimundo Sousa


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Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

Boletim Paulista de Geografia / Seção São Paulo - Associação dos


Geógrafos Brasileiros. - nº 1 (1949) - São Paulo: AGB, 1949.

Irregular

Continuação de: Boletim da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ISSN 0006-6079

1. Geografia 2. Espaço Geográfico 3. História do Pensamento Geográfico.


I. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção São Paulo.

CDD 910

Impressão: Xamã Editora


BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA
NÚMERO 83 SÃO PAULO – SP DEZ. 2005

EDITORIAL ........................................................... 3

ARTIGOS
Ruy Moreira .......................................................... 5
SOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DA FORMAÇÃO ESPACIAL
BRASILEIRA: HEGEMONIAS E CONFLITOS)

Paulo Roberto Teixeira de Godoy.................................. 31


TEORIAS E CONCEITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE CRÍTICO
EM GEOGAFIA

Amélia Luisa Damiani................................................ 55


A GEOGRAFIA QUE DESEJAMOS

Arlete Moysés Rodrigues............................................ 89


PROBLEMÁTICA AMBIENTAL = AGENDA POLÍTICA
ESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

William Rosa Alves .................................................. 109


O ORDENAMENTO TERRITORIAL CAPITALISTA E A ESPACIALIDADE
BRASILEIRA ATUAL: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE DA RELAÇÃO
ENTRE FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E BLOCO HISTÓRICO

Marcos Bernardino de Carvalho.................................... 139


GEOGRAFIA: CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE (OU DA RECONCILIAÇÃO
ENTRE NATUREZA E CULTURA)
EDITORIAL

É com muito prazer que apresentamos o Boletim Paulista


de Geografia no 83 – Perspectiva Crítica. Fruto de um trabalho
coletivo, este BPG só pôde ser editado graças ao esforço de
algumas pessoas, que vêem na AGB um canal importante para
promover um debate comprometido não somente com a
Geografia, mas também com a transformação da realidade.
Entendemos que a construção do conhecimento é coletiva
e, portanto, plural. Assim, nesta publicação, tentamos realizar
mais do que uma simples exposição de artigos. Nossa principal
intenção é fomentar um debate qualitativamente diferente, ao
colocar “frente a frente” autores que tenham uma postura crítica
diante da realidade em que estamos inseridos.
Amélia Luisa Damiani, Arlete Moysés Rodrigues, Marcos
Bernardino de Carvalho, Paulo Roberto Teixeira de Godoy, Ruy
Moreyra e William Rosa Alves apresentam contribuições distintas,
que devem ser entendidas e debatidas. Mais do que a pura e
simples adoção de rótulos, o que nos interessa é a postura com a
qual estes autores tentam decifrar o mundo em que vivemos.
Nos últimos tempos temos visto a Geografia ser cada vez
mais tomada pelos discursos tecnicistas que tentam diminuir o
papel da teoria para o entendimento e transformação da
realidade. Este BPG caminha no sentido contrário, apontando
para o debate teórico como algo imprescindível não somente
para a Geografia, como para toda e qualquer ciência.
Para finalizar, é importante dizer que este BPG faz parte
de um movimento muito maior, que não começa e nem termina
aqui. Sua importância está de fato na possibilidade de que ele
seja lido, comentado, usado e principalmente debatido.
Esperamos ter contribuído de algum modo para esse debate.

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ARTIGOS

SOCIEDADE E ESPAÇO NO BRASIL (AS FASES DA


FORMAÇÃO ESPACIAL BRASILEIRA: HEGEMONIAS E
CONFLITOS)

SOCIETY AND SPACE IN BRAZIL

Ruy Moreira1

Cinco são as fases da formação espacial brasileira, balizando


as formas de relação sociedade-espaço no Brasil no tempo: a dos
vetores fundacionais; a dos ciclos de assentamento; a da redivisão
territorial industrial do trabalho; a da privatização da gestão e
desintegração espacial do projeto nacional; e a da articulação das
sociabilidades e as tendências de uma formação espacial complexa.
São fases marcadas por um contraponto entre modelos comunitários,
engendrados espontaneamente, e o modelo de sociedade dominante,
num conflitamento que tensiona a formação espacial brasileira por
dentro em caráter reiterado e permanente.
Se no longo do tempo este contraponto foi mantido às
ocultas pelo modo de regulação de espaço instituído pela face
hegemônica, emerge hoje à evidenciação da consciência social,
liberado pela reestruturação por que passa a formação espacial
brasileira como resultado da entrada do modo de produção
capitalista, seu nexo estruturador, no rumo duma forma de

1
Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado)
em Geografia da Universidade Federal Fluminense.

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RUY MOREIRA

organização e regulação espacial nova. Evidenciação revelada


na surgência dos seus novos sujeitos. Quais as raízes históricas e
as formas de tendência dessa realidade nova que a formação
espacial brasileira aos poucos revela?

OS VETORES FUNDACIONAIS

A formação espacial inicial do Brasil tem origens na ação


de dois vetores da formação do território: o bandeirantismo
e a expansão do gado. Caminhando em sentidos contrários,
no século XVIII estes dois vetores vão encontrar-se no planalto
central e assim cristalizar a matriz do arranjo da formação
espacial que hoje conhecemos.
O bandeirantismo tem foco de irradiação em São Vicente
e avança rumo a quatro direções: o litoral sul, seguindo pelo
costeamento; o sudoeste, rumo ao território das missões
jesuíticas; o oeste e noroeste, rumo aos territórios das
comunidades indígenas do planalto central e da Amazônia; e o
nordeste, rumo aos territórios quilombolas rebelados contra os
centros canavieiros da zona da mata nordestina. São incursões
apresadoras e de repressão, em cujos rastros os bandeirantes
vão deixando manchas de cultivos e núcleos de futuras cidades
que pontuarão a base logística da sociedade em formação.
Todavia, a inspiração real é a descoberta de minas de
ouro e prata, intento perseguido tenaz e permanentemente, com
o destino de cumprir na Colônia a política do metalismo que
norteia todo o empreendimento colonial de Espanha e Portugal
neste momento. Daí o bandeirantismo perdurar por todo o correr
dos séculos XVI ao XVIII, culminando com a descoberta das minas
de ouro e diamantes no planalto central-mineiro, quando então
cessa. Em cada ponto para o qual se dirige, combina então o
apresamento de índios e a busca da descoberta do eldorado.
Estimulado pela demanda interna de trabalho escravo, que

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

aumenta na Colônia com o sucesso e a expansão da economia


açucareira dos engenhos, o apresamento e venda de índios como
escravos é o que motiva os bandeirantes em todos os seus
movimentos de incursão pelo hinterland, não respeitando o
marco legal do Tratado de Tordesilhas, pelo qual o domínio colonial
português pouco vai além da faixa estreita do litoral do Atlântico
(MONTEIRO, 1995; MOOG, 1966), acumulando com o tempo uma
experiência de guerra, a quem recorre a classe plantacionista da
zona da mata em diferentes momentos.
Neste propósito, as incursões bandeirantes avançam rumo
ao litoral sul, onde suas tropas vão disputar hegemonias de
território e de apresamento indígena com as tropas espanholas,
que aí também agem, em nome da pertença dessas terras à
Espanha segundo o Tratado de Tordesilhas. Indo para além do
limite da região de Laguna, no litoral de Santa Catarina, o
movimento bandeirante alarga os domínios da Colônia
portuguesa, ao tempo que garante a mercadoria escrava que o
motiva. É mais rico de possibilidades, todavia, o apresamento
nas missões jesuíticas, que reúnem numerosa população de índios
guaranis, aldeados, desde 1610, em terras do atual Paraguai,
Argentina e Rio Grande do Sul. Uma seqüência de conflitos
atravessa a história das relações de bandeirantes e a região
missioneira, que leva, por fim, à dissolução e dispersão das
comunidades no século XVIII, em 1768, quando são extintas. Mas
também são grandes atrativos as aldeias espalhadas pela imensidão
dos sertões do Centro-Oeste e da Amazônia, focos preferidos da
ação de apresamento para muitas tropas de bandeirantes por
seu menor poder de resistência e coincidir com a possibilidade
de descoberta de metais preciosos, unindo apresamento e
descoberta num só movimento (HOLANDA, 1976 e 1986). Fogem
a este escopo, porém, as incursões dos bandeirantes à região do
Nordeste açucareiro (PUNTONI, 2002). Seguidamente derrotados
em campos de batalha pelos negros escravos organizados nos
quilombos, de que Palmares ficou como grande símbolo, a elite

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RUY MOREIRA

açucareira dos engenhos da Zona da Mata convoca os serviços


do capitão-de-guerra Domingos Jorge Velho, esgarçando-se uma
série de confrontos que culmina com a morte de Zumbi em 1695
e a derrota dos palmarinos, encerrando um período de revoltas
de escravos no Nordeste que dura desde 1597.
Os quilombos e as missões jesuíticas são contrapontos ao
modelo de sociedade que Portugal institui na Colônia, as missões
jesuíticas desde seus começos de implantação e os quilombos
quando o modelo já é uma forma de sociedade consolidada.
São, ambas, modelos comunitários de sociedade que se
contrapõem ao modelo escravista que se implanta na América
Portuguesa (CARNEIRO, 1966; e LUGON, 1968). Dado essa estrutura
e organização por isso mesmo resistem longamente às investidas
de sua extinção, Palmares durando 98 anos (1597-1695) e as
missões 158 anos (1610-1768), só desaparecendo no correr da
segunda fase da formação espacial brasileira, quase ao mesmo
tempo e pelas mesmas mãos. Mas esta é uma fase pontilhada
também de inúmeras rebeliões indígenas, algumas com estruturas
de organização que lembram as missões e os quilombos, como a
Confederação dos Tamoios, entre 1554 e 1567, no litoral do Estado
do Rio de Janeiro (QUINTILIANO, s/d) e a revolta de Ajuricaba,
entre 1723 e 1727, na Amazônia (BRUNO, 1961).
As trilhas do gado seguem em sentido contrário ao vetor
bandeirante. Seu ponto de origem é a região açucareira da Zona
da Mata, com ponto de referência em Pernambuco, de onde, na
forma de ondas, a pecuária bovina avança rumo aos limites
ocidentais do sertão nordestino no Piauí e Ceará, na direção
oeste, e aos limites do planalto central, através da calha do rio
São Francisco, na direção sul. Tal como no caminho dos
bandeirantes, uma diversidade de pontos de parada vai dando
origem a manchas de cultivos e de vilas de onde irão brotando
os centros de referência da ocupação e formação do território.
Neste mister, o movimento bandeirante e o movimento de
expansão do gado forçam o deslocamento das fronteiras formais do

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

Tratado de Tordesilhas, empurrando os limites legais crescentemente


para os confins do hinterland, forjando o domínio que o Tratado
de Madrid, de l730, irá consagrar como o novo recorte de fronteira
das colônias de Portugal e Espanha, praticamente riscando o desenho
do território brasileiro de hoje (PEREGALLI, 1997).

OS CICLOS DE ASSENTAMENTO

O desenho combinado das trilhas bandeirante e pastoril


traça os grandes riscos de linha da tela em cujos interstícios o
pincel discreto da história se incumbirá de desenhar em grandes
manchas de tinta as paisagens com que a sociedade brasileira
inscreverá o seu espaço. As grandes paisagens, que a discrição
da história paciente e incansavelmente desde então vai
desenhando, são os frutos de nossa evolução em seis grandes
ciclos de espaço-tempo: pau-brasil, cana-de-açúcar, mineração,
gado, borracha e café (NORMANO, 1975 [1938]; DIEGUES, 1960).
Ponto essencial desse processo, esse plano geral de linhas
e cores das paisagens é o plano-guia de ocupação efetiva, o
roteiro dos assentamentos que os ciclos vão aqui e ali plantando
no espaço. As trilhas dos bandeirantes e do gado, ora dos rios e
ora dos interflúvios – para o gado também as grandes superfícies
planas do planalto, onde avança como uma mancha de óleo –,
orientam a pontuação dos assentamentos da população e das
atividades econômicas, no correr dos ciclos. Os vales dos rios
merecem o privilégio.
Primeiro momento dos ciclos da ocupação do território,
o ciclo do pau-brasil inicia a história da formação espacial
brasileira. Vigora no correr dos séculos XVI e XVII e tem por
domínio de abrangência a estreita faixa da franja costeira da
mata atlântica, do Rio Grande do Norte ao norte do Rio de
Janeiro. A extração do pau-brasil, cuja madeira, de seiva
vermelha, será enviada à Europa para a produção de corante,

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RUY MOREIRA

dá origem às primeiras áreas de ocupação da Colônia. Instaladas


como feitorias, essas áreas fundam a toponímia e antecipam a
depredação do meio ambiente como política colonial, deixando
atrás de si terra arrasada como herança para a história das
relações da sociedade com o seu espaço no Brasil.
Entretanto, é com o ciclo da cana-de-açúcar que começa
efetivamente o processo da ocupação e formação espacial da
Colônia. Sua área de localização privilegiada é a zona da mata
nordestina, onde se instala em 1532, com o tempo se multiplicando
por novas áreas da mata atlântica, particularmente no norte do
Estado do Rio de Janeiro e em São Vicente, o pólo de irradiação
do bandeirantismo, em São Paulo. O ciclo da cana institui a
sociedade agrária como modelo de sociedade no Brasil,
diferentemente da política de ocupação espanhola, que, por
encontrar de imediato as minas de ouro e prata que
representavam a ambição colonial das metrópoles, institui como
modelo uma sociedade mineradora e urbana nas terras da
espanoamérica. O caráter agrário e mercantil substanciará o
conteúdo social da formação espacial brasileira desde o começo,
num contraste com a essência mineiro-urbana da formação
espacial da América hispânica.
No século XVIII, finalmente encontrado o ouro e os
diamantes que desde o início o projeto colonial intentara, a
formação espacial colonial experimenta uma ligeira mas
substantiva mudança. Inicia-se o ciclo da mineração, que transfere
o centro de gravidade da ocupação do litoral para o interior,
instalando-o nas áreas ricas de mineração que se multiplicam
pelos planaltos central e mineiro, e troca o caráter agrário pelo
mineiro-urbano da formação colonial, encerrando a fase do
bandeirantismo e de expansão do gado. Esse deslocamento de
conteúdo e localização do centro de gravidade dura apenas até
o final do século, quando se encerra o ciclo, restando a cultura
de uma vida urbana que doravante terá efeitos profundos e de
alta importância nas relações da Colônia.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

O encerramento precoce do ciclo da mineração – dura


menos de um século – devolve o centro de referência da vida de
volta aos núcleos açucareiros do litoral, ao tempo que inicia nas
antigas áreas mineiras o ciclo do gado. O ciclo do gado é a
culminância das ondas de deslocamento de rebanhos provenientes
de duas áreas extremas da Colônia: o sertão do Nordeste e os
campos do Sul, atraídos para o planalto central-mineiro pela
demanda de alimentos criada pelo ciclo da mineração. É dos
centros açucareiros que sai inicialmente o rebanho nordestino
que, subindo o vale do São Francisco, chega e se espalha pelas
áreas de vegetação de cerrado, em busca dos mercados formados
pelos núcleos urbanos da mineração. Aí, se encontra com o
rebanho sulino vindo da região do pampa, atraído pela mesma
demanda. Estes deslocamentos, um vindo do Nordeste e outro
do Sul, colmatam e povoam no seu caminho a enorme diversidade
de sertões que forma o então hinterland, desde o pampa, ao
cerrado e à caatinga, de modo que, centrado no planalto central-
mineiro, o ciclo do gado terá por real abrangência toda a
imensidão do sertão brasileiro formado pelas áreas de vegetação
campestre do pampa, do planalto central e do planalto nordestino,
numa faixa quase contínua e alongada do hinterland no sentido da
latitude. E com isso sedimenta e consolida como espaço o território
da Colônia estabelecido pelo Tratado de Madrid de 1730.
O final do século XVIII é fase também do ciclo da
borracha, que vai ocorrer na região de florestas do vale
do Amazonas. Até este final de século, e em paralelo aos
ciclos do pau-brasil, da cana e dos metais preciosos, vige
no Norte o ciclo das drogas do sertão. A instituição de
aldeamentos indígenas, pelo trabalho de aculturação dos
jesuítas, instaura a atividade do extrativismo como modo
de vida dominante ao longo de todo o vale. Este ciclo se
esgota nos finais do século XVIII, quando é substituído pelo
da extração da borracha, o novo ciclo reorganizando a
economia regional como um todo. O ciclo da borracha cria

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RUY MOREIRA

um novo modo de vida, atraindo imigrantes do sertão


nordestino, assolados pelas secas do final do século, alterando
as relações existentes e formatando a relação de exploração
da floresta em função do novo empreendimento.
O café, o último dos ciclos, domina o século XIX e as
primeiras décadas do século XX, com epicentro no planalto de
São Paulo. Instaurado inicialmente nas matas dos maciços
interiores da cidade do Rio de Janeiro, daí se expande para se
instalar nas áreas florestadas da serra do Mar e do vale do Paraíba,
nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, para,
por fim, chegar ao planalto paulista, quando então atinge seu
clímax. O ciclo do café sustenta e faz inúmeras transições, da
colônia para a independência, da escravidão para o capitalismo
e da monarquia para a república, assim antecipando o momento
instaurador da grande transformação que ocorrerá na formação
espacial brasileira com o advento da industrialização e
urbanização do agora país.
Essa seqüência de ciclos implanta pois o formato de ocupação
e assentamento econômico e demográfico da formação espacial
brasileira. E cria o padrão do arranjo espacial que irá vigorar até
meados do século XX, em que a lavoura ocupa as áreas de floresta
e a pecuária as de vegetação aberta, num arranjo diferenciado
em três grandes faixas de sentido latitudinal, dispostas no sentido
do litoral para o norte amazônico: a de lavouras e ocupações urbanas
da região de mata atlântica, disposta ao longo e em paralelo ao
litoral; a de pecuária das áreas dos sertões, dispostas em faixa
latitudinal quase contínua da caatinga nordestina ao pampa
riograndense, com a imensidão do sertão dos cerrados no meio; e
a do extrativismo vegetal da Amazônia, fechando o mapa no sentido
do extremo oeste-norte. A ocupação demográfica reproduz essa
ocupação sócio-econômica em três grandes faixas, também variando
do atlântico ao vale do Amazonas, com maior densidade na faixa
atlântica e intensidade sucessivamente menor até minguar e mostrar-
se rala na faixa extrativista do extremo norte.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

É nesse longo período dos ciclos que se implanta o modelo


de sociedade brasileira como uma sociedade concentradora e
excludente, levantando uma seqüência de movimentos
insurrecionais, voltados para o propósito de experimentar um
modelo comunitário de sociedade, em contraposição ao modelo
escravista, latifundiário e monocultor dominante: o modelo dos
quilombos, localizado em vários lugares, com núcleo maior nas
áreas montanhosas do agreste alagoano-pernambucano, entre
1597 e 1695 (CARNEIRO, 1966; e REIS e GOMES, 1996), no período
do ciclo da cana; o modelo dos cabanos, entre 1835 e 1840,
localizado na Amazônia (ROCQUE, 1984; e DI PAOLO, 1985), no
período de transição do ciclo das drogas para o ciclo da borracha;
e o modelo de Canudos, entre 1893 e 1897, localizado no sertão
norte da Bahia, na transição da monarquia para a república
(CUNHA, 1995 [1901]; e MONIZ, 1978), além do modelo do
Contestado, entre 1912 e 1916, localizado no oeste de Santa
Catarina (GALLO, 1999; e DERENGOSKI, 2000), em pleno período
do ciclo cafeeiro. Todos reprimidos e dissolvidos pelo sistema
dominante, à semelhança da experiência comunitária das missões
jesuíticas, na fase do ciclo do bandeirantismo.
De um modo geral, são experiências de constituição de um
outro modelo de sociedade que vicejam na fímbria da instituição
do modelo hegemônico da formação espacial brasileira e por isso
mesmo se multiplicam, principalmente, na transição do regime
escravista para o capitalista, que domina o transcorrer do século
XIX. A estrutura binomial latifúndio-minifúndio, existente desde o
tempo colonial, e que se institui como base organizativa do período
da transição, período que se estende dos anos 1850 aos anos 1950,
por cem anos, e assemelhar-se-ía a uma fase de acumulação primitiva
no Brasil, parece vir no sentido de neutralizá-las e arrefecê-las.

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RUY MOREIRA

A DIVISÃO TERRITORIAL INDUSTRIAL DO TRABALHO

O século XX encontra a matriz da formação espacial


brasileira fundamentalmente completada e consolidada em seu
processo de constituição territorial e cartográfica. E será essa
matriz a base de que o Estado nacional, doravante o regulador
do desenvolvimento, partirá para esgotar e ultrapassar a fase
dos ciclos, no rumo da industrialização. Caracteriza-a a
diferenciação de áreas, seja por sua arrumação em faixas e seja
pela arrumação nas diferentes regiões originadas ciclo a ciclo. A
diferenciação regional, em particular, terá fundamental
importância para o desenvolvimento da indústria, dado o caráter
de uma divisão territorial de trabalho em que ela é transformada
pelo Estado, com o fim de dela extrair as divisas de exportação
necessárias ao desenvolvimento industrial.
Distinguem-se a fase pré e a fase industrial da formação
espacial brasileira agora em construção. A década de 1950 é o
marco temporal de passagem.
A industrialização tem seu fomento na passagem do modelo
de economia “para fora” para o de uma economia “para dentro”
(TAVARES, 1972). Até os anos 50 a indústria utiliza em seu crescimento
a economia de produção regional para fora, legada dos ciclos
coloniais, crescendo com o consumo de suas divisas, que usa para
financiar a formação do capital inicial das indústrias, na forma da
importação de matérias-primas e equipamentos. Após os anos 50,
encontra-se já desenvolvida e centrando a formação espacial
brasileira, no âmbito de uma organização espacial por ela
inteiramente produzida e transformada, e obediente à sua lógica
intrínseca de mercado. Oliveira designa transformação de “uma
economia regional nacionalmente organizada”, a da formação
espacial herdada do período dos ciclos de espaço-tempo, para
uma “economia nacional, regionalmente organizada”, nome da
formação espacial do presente, a essa passagem referenciada
no antes e depois dos anos 50 (OLIVEIRA, 1984, 1987 e 1988).

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

A lei do desenvolvimento desigual e combinado passa


então a reger a nova formação, progressivamente desigualando
e invertendo a forma das relações espaciais até então existente.
O campo passa o comando para a cidade, as regiões passam o
comando para o Sudeste e as indústrias regionais passam o
comando para a concentração em São Paulo, assim se reorientando
a regulação e o ordenamento espacial no interior da formação.
Essa metamorfose, acontecida na formação espacial brasileira
já dentro de sua fase industrial, segue, todavia, dois distintos
momentos. Primeiramente, a industrialização arranca e ultrapassa
nessa arrancada a economia regional herdada da matriz dos ciclos,
a seguir dissolvendo-a, ao atingir o seu auge, para reorganizar o
espaço numa nova divisão de trabalho de tipo avançado. Isto
significa dois distintos momentos de divisão territorial do trabalho
industrial: aquele da conversão pura e simples que responderá
por sua arrancada e aquele seguinte da redivisão que irá
caracterizar a organização espacial do seu auge. A primeira divisão
territorial do trabalho faz a dissolução da fase da formação espacial
onde o campo comanda ainda a cidade, as indústrias são ainda de
bens de consumo e por isso encontram-se instaladas em praticamente
todas regiões (coladas em suas respectivas economias agrárias), e a
concentração industrial em São Paulo não é um traço distintivo
ainda. A segunda divisão territorial do trabalho é a da consolidação
do arranjo do campo comandado pela cidade e da indústria e do
espaço nacional comandado por São Paulo (MOREIRA, 2004).
Uma ampla base de infraestrutura para tanto deve ser
instalada, que traga os meios de transporte, de comunicação e de
transmissão de energia, organizados numa vasta rede de circulação,
visando a que tudo convirja para a instauração do comando da cidade
sobre o campo e da indústria paulista sobre o espaço nacional total.
No geral, a rede que a urbano-industrialização promove é
a mesma das trilhas do bandeirantismo e da expansão do gado,
porém orientada agora para outra direção de relações e
propósito, com impacto em geral negativo para os núcleos iniciais

15
RUY MOREIRA

de assentamento e suas localizações. Ali por onde passa o eixo


modernizante da urbano-industrialização, os velhos núcleos de
assentamento são encarados como de efeito inercial, não raro a
industrialização dissolvendo-os, desalojando seus habitantes ou
mesmo extinguindo seus espaços.
De modo que esse é um período dominado por grandes conflitos,
não mais do tipo dos confrontamentos de modelos comunitário-
latifundiário do passado, mas aqueles advindos dos reordenamentos,
tendo lugar conflitos de ordem rural, urbana e regional.
Nos conflitos rurais opõem-se grandes proprietários e
camponeses ao redor da questão da reforma agrária. A forte
concentração da propriedade rural herdada do período colonial,
e que atravessa sem mudança as transformações fundamentais
do século XIX – a independência, a abolição da escravatura e a
república – agora é questionada por um campesinato que começa
a ser expulso do campo por conta das mudanças com que a
agropecuária responde às demandas urbanas e da industrialização,
reagindo o campesinato com a pressão pela partilha e
redistribuição mais equânime da propriedade rural, que equilibre
as relações no campo e modernize socialmente as relações
agrárias. O apoio dos segmentos sociais da cidade que vêem um
rebatimento positivo da reivindicação dos camponeses no seu
modo de vida urbano – caso dos trabalhadores, com sua pauta
de emprego, salários e moradia – e no alargamento do mercado
– caso dos industriais, preocupados com os limites do mercado
interno para seus produtos –, nacionaliza o movimento do
campesinato por reforma agrária e faz dele uma bandeira de
confrontos das mais fortes.
Nos conflitos urbanos opõem-se capital e trabalho, com
pano de fundo no mundo da indústria, numa pauta de
reivindicações do operariado em que predomina o pleito
igualmente de mudança estrutural: reforma urbana, que
redistribua a terra e garanta o direito à moradia na cidade;
redistribuição da renda, que reduza a desigualdade da riqueza;

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

e estabilidade no emprego e ampliação da seguridade social,


que estabeleça um modo de vida mais apropriado. Demandas
que o patronato industrial ambiguamente vê como pressão
contra o capital e ao mesmo tempo favorável, na medida que
fortaleça o mercado sem o qual o desenvolvimento da
economia fica obstaculizado. São pontos que se somam à
grande reivindicação da reforma agrária. Todos pleitos que
remetem a uma radical reformulação dos privilégios da formação
espacial passada e antepostos à formação do presente,
considerado o interesse da urbanização e da indústria.
Nos conflitos inter-regionais, por fim, pontuam as
dissonâncias entre as velhas oligarquias rurais regionais e as novas
nascidas da urbano-industrialização, acentuada pela passagem
da velha para a nova divisão inter-regional do trabalho,
ressaltando em particular o contraste que então se estabelece
entre Sudeste e Nordeste.
Todos esses conflitos expressam a passagem de uma formação
para outra e a necessidade de sedimentar-se a regulação correspondente.
A forte concentração da economia industrial no pólo paulista, a
subordinação das atividades regionais à performance econômica da
indústria concentrada em São Paulo, a canalização e transferência de
meios de uma região para outra e a disparidade do desenvolvimento
entre o campo e a cidade, são todos conflitos referidos à forma de
regulação espacial, conflitos que ocorrem praticamente nas linhas de
clivagem dos recortes territoriais que demarcam a relação cidade-
campo, região-região e cidade-espaço. E são as políticas territoriais do
Estado, via ação superestrutural e políticas de infra-estrutura, que regulam
esses conflitos, canalizando-lhes as energias para a integração e
desenvolvimento da formação espacial no seu todo.

17
RUY MOREIRA

A PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO DO ESPAÇO E


DESINTEGRAÇÃO DO PROJETO NACIONAL

A resposta desses confrontos não vem, no entanto, pelo


viés das reformas, mas de uma reordenação espacial, que orienta
o desenvolvimento na linha de uma modernização conservadora.
Estratégia de ação que usa da rearrumação do espaço no lugar
da transformação estrutural da sociedade demandada pelos
movimentos pró-reformas de base do período da industrialização,
a modernização conservadora afeta e altera de modo ainda mais
radical o mapa dos assentamentos, introduzindo na formação
espacial brasileira um período de desarrumação demográfica e
sócio-ambiental anteriormente nunca vistos (GUSMÃO, 1990).
É a reestruturação do espaço brasileiro (MOREIRA, 2003).
De que a década de 1970 é o marco temporal.
Três eixos seguem esta reestruturação: a modernização da
agricultura, a redistribuição territorial da indústria e a
despatrimonialização-desestatização que privatiza a gestão do espaço.
A reestruturação começa pela modernização da
agropecuária, que tem na expansão da sojicultura para as áreas
do cerrado o seu carro-chefe. Esta expansão, todavia, é anterior
aos anos 70, relacionando-se à migração de pequenos produtores
das regiões de colonização alemã e italiana do Sul para a calha
do rio Paraná, buscando reassentar-se no noroeste do Rio Grande
do Sul, oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná, afetados em
suas propriedades pelo desenvolvimento da agricultura gaúcha,
motivada pela industrialização de São Paulo, e pela acentuada
fragmentação da propriedade relacionada às seguidas transmissões
de heranças. Premidos por essas dificuldades, esses pequenos
produtores empreendem um movimento de migração, que nos
anos 60-70 chega ao Mato Grosso, e que os governos militares
aproveitam para orientar no sentido da política de colonização da
fronteira amazônica. É o Estado que está por trás da geração de
uma técnica agronômica de uso dos solos dos cerrados pela EMBRAPA,

18
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

que estimula o movimento migratório e abre esta área para a


implementação agrícola em grande escala. E, ainda, da estratégia
de desenvolvimento do setor de indústria para a agricultura, que
leva a mecanização da agricultura a acelerar-se em toda a região.
Em poucas décadas, a soja toma conta do cerrado.
A política dos grandes projetos, estratégia de
desconcentração industrial, coincide com essa fase de aceleração
da modernização agrícola. Consiste essa política em transferir
para o arco de periferia do país as indústrias de bens
intermediários, implementando-as na forma de grandes pólos
mínero-industriais, muitos dos quais vão instalar-se nas áreas da
fronteira agrícola, a exemplo do pólo Grande Carajás, um enorme
centro mínero-florestal-siderúrgico instalado na província
ferrífera de Carajás, no Sudeste do Pará, voltado para a produção
de lingotes de ferro para exportação, apoiado em alto consumo
de lenha extraída da floresta amazônica. O suporte dessa
implementação combinada de modernização agrícola e
desconcentração industrial é uma política de ampliação para as
áreas do Centro-Oeste e da Amazônia da implantação de meios
de transporte, comunicação e transmissão de energia elétrica
que vinha sendo implementada no Sudeste desde os anos 50-60.
Um número crescente de grandes usinas hidrelétricas, torres de
transmissão de energia e longos eixos de transporte por rodovias
cobre e integra em rede essas áreas aos centros de comando do
Sudeste, articulando e unificando todo o território nacional com
referência nesses centros. A origem da desconcentração industrial
é, entretanto, a deseconomia de aglomeração, que afeta a
concentração urbana e industrial da grande São Paulo nos anos
70, provocada pelo acúmulo de um conjunto de conflitos – dos
conflitos do trabalho aos conflitos ambientais –, que pressiona
pela desconcentração da indústria, que irá ocorrer, em São Paulo,
via interiorização, e em nível nacional, pela política dos pólos.
Nas décadas de 80-90 o espaço brasileiro assim se
redesenha e se descomprime. As atividades agrícolas, pecuárias

19
RUY MOREIRA

e industriais estão agora mais disseminadas. A rede de transporte,


comunicação e linhas de transmissão de energia mais difundidas.
E, como efeito, a população, as cidades e as trocas comerciais
amplamente redistribuídas por todo o território.
Assim, a matriz segundo a qual a formação espacial brasileira
até então se organizara ganha novo formato. Já não mais são as
faixas de sentido litoral-interior e as regiões oriundas dos ciclos as
formas da diferenciação de áreas. As paisagens se dissolvem e se
misturam: a lavoura passa a ser feita nas áreas de vegetação
campestre e o gado nas antigas áreas de matas. E a forma de
regulação desfaz-se, num movimento institucional de desmonte e
remonte, com duas principais conseqüências: 1) a desarrumação
socioambiental do país em ampla escala; e 2) o desalojamento,
expulsão e desterritorialização da população dos velhos nichos de
assentamento. Ambos com ocorrência no campo e na cidade.
Os efeitos socioambientais são conhecidos (MOREIRA,
2003b). Peguemos três exemplos. A combinação de modernização
monoagrícola, grandes usinas hidrelétricas e grandes pólos de
produção mínero-industrial, validada como política territorial
para todo o país, nacionaliza o problema ambiental antes
concentrado nas grandes regiões industriais do Sudeste. A
propagação da soja pelo topo dos chapadões do planalto central
sobre a base da mecanização e consumação de água para
irrigação tirada dos lençóis subterrâneos a grandes
profundidades e em grande escala, esgota as reservas hídricas,
submete os solos a intensos desgastes, assoreia e altera a rede
de drenagem, desorganizando o ecossistema do cerrado. E,
por fim, a opção pelo transporte rodoviário, destinado a
favorecer o escoamento dos grãos e da madeira, intensamente
explorada junto à ocupação predatória do cerrado e da
floresta, reforça a desarrumação socioambiental que já vem
na esteira da ocupação rodoviária do Centro e do Norte desde
a abertura da Belém-Brasília, ainda na década de 60 (VALVERDE
e DIAS, 1967; e VALVERDE, 1979).

20
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

Bem como são conhecidos os efeitos sociais. Nas áreas


rurais, o melhor exemplo é o desalojamento dos assentamentos
onde as populações se localizavam desde os pontos de trilhas do
bandeirantismo e da expansão do gado, com seus embriões de
vilas e comunidades rurais localizadas no fundo dos vales dos rios,
pelos lagos de barragem das usinas. Os lagos inundam as áreas
justamente desses antigos assentamentos, expulsam as comunidades
indígenas e camponesas de seus lugares históricos e forçam-nas a
ter de reinventar seus modos de vida em ambientes totalmente
distintos aos seus, multiplicando a população dos camponeses sem-
terra, indígenas, barrageiros e desempregados do campo. Nas áreas
urbanas, os desalojados são os trabalhadores despedidos de suas
ocupações e empregos pela chamada flexibilização do trabalho,
dividindo a população trabalhadora urbana em população do trabalho
formal e informal quase simetricamente, num volume de
trabalhadores informais até então desconhecido na realidade social
brasileira (KRAYCHETE, 2000).
Essa combinação de efeitos no campo e na cidade
desterritorializa e torna flutuante grande massa de
população, que no campo vai alimentar a pressão dos sem-
terra por novos assentamentos e na cidade a pressão por
empregos urbanos para onde migra em levas sucessivas.
Uma população flutuante para a qual reinventar os modos
de vida torna-se uma imperiosa necessidade.
Há, assim, um movimento de (des)regulação em marcha,
e que a política de privatização das empresas estatais dos anos
80-90 transforma na instituição da gestão privada do território.
Responsável pelas empresas atuantes nos ramos estratégicos da
infra-estrutura e de bens intermediários, chaves no comando da
economia, a exemplo das empresas estatais organizadoras e
gestoras do pólos mínero-industriais implantados no correr dos
anos 80-90, a privatização dessas empresas privatiza a gestão
das suas respectivas áreas. Quando somados seus espaços aos da
cultura da soja, centrados no poder das grandes propriedades, a

21
RUY MOREIRA

escala da privatização da gestão do espaço se torna um fato de


abrangência nacional. O poder dessas empresas fatia o controle
do território, desvincula sua administração do Estado, define
por sua lógica de mercado a lógica da regulação do espaço, e,
por essa via, dissocia a formação espacial brasileira do projeto
nacional que até determinara o seu conteúdo.

A ARTICULAÇÃO DAS SOCIABILIDADES E AS TENDÊNCIAS


DE UMA FORMAÇÃO ESPACIAL COMPLEXA

A privatização da gestão do território desmonta a forma


histórica de regulação do espaço até então associada à ação
pública do Estado e institui como nova forma uma combinação
privado-pública e setorial-global de gestão, em que a face
privada e setorial se expressa na intervenção simbiótica das
empresas e das Agências de Regulação e a face pública e global
na intervenção paralela do Estado e dessas mesmas Agências.
As Agências Reguladoras são o dado novo do esquema
de gestão da formação espacial brasileira. Criadas uma para
cada setor chave da economia (as primeiras das quais foram a
ANP, a ANATEL, a ANEEL e a ANTT, reguladoras, respectivamente,
do setor do petróleo, das telecomunicações, da energia
elétrica e dos transportes terrestres, os setores estratégicos
da regulação do espaço), fazem elas um arremedo de gestão
público-privado com o Estado.
Assim, uma vez que o planejamento global com que o Estado
intervinha desde os anos 40-50 é substituído pela ação fragmentada
por setores, a ação passando a ser levada por esta combinação de
público-privado com conveniente aparência de sociedade civil, o
Estado recua para a função de gestão e levantamento dos recursos
financeiros, em parceria com o capital privado (estratégia das PPPs
- Parcerias Público-Privadas), deixando para as Agências a função
da execução e fiscalização das políticas territoriais, num mix de

22
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

representações ao qual cabe por hipótese a tarefa de pensar e


gerir o todo da nova formação espacial assim criada.
Todo um momento se abre nessa conjuminação de nova
regra de regulação e flutuação em escala crescente de uma
população desalojada dos assentamentos de onde tirava uma
estabilidade relativa de modo de vida. De um lado, um
mecanismo novo de regulação que só assegura estabilidade para
o capital em sua busca de novos nichos de lucro. De outro, um
quadro de institucionalidade do qual parte em restrição crescente
da sociedade compartilha. São os dois modos como o novo
formato da formação espacial brasileira chega aos seus diferentes
segmentos de população. Como num momento novo, essa
(des)regulação entra na vida do capital tal qual um bicho voraz
que sacode suas teias, oferecendo-lhe o espaço-tempo de
reorganização institucional de suas estruturas. Assim, descarta as
componentes que pesam nos seus custos, realinha os vetores de
sua política e traça o momento novo de sua cartografia. Mas
como num processo de brecha, todavia, solta ela as amarras que
prendiam a criatividade do trabalho, liberando as energias da
gestão popular para a emergência de formas espontâneas de
auto-regulação, dando asas ao desenvolvimento de formas
coletivas e individuais de organização da produção e de vida
antes amortecidas ou presas no âmbito da regulação antiga, de
capacidade de intervenção insuspeitadas.
Tudo indica tratar-se de uma nova fase de contraponto,
cujos personagens são melhor exemplificados, de um lado, com
os complexos agro-industriais (ARAÚJO, WEDEKIN e PINAZZA, s/
d; PINAZZA e ARAÚJO, 1993; LOPES, 1996; e BELIK, 2001), que
são a nova face dos monopólios, e, de outro lado, com as formas
urbanas de economia popular (REIJNTJES, HAVERKORT e WATERS-
BAYER (orgs), 1999; KREYCHETE, LARA e COSTA (orgs.), 2000;
GAIGER, 2004; e PACHECO, 2004), a face das experiências
comunitárias que reemergem. Contraponto que encaminha a
formação espacial brasileira rumo ao formato de um complexo

23
RUY MOREIRA

de sociabilidades, em que, de modo claramente explícito,


coexistem a sociabilidade capitalista e as formas de sociabilidade
não-capitalista, num quadro indicativo da entrada da formação
espacial brasileira num momento de perfil societário ainda incerto,
mas que sugere a possibilidade de caminhos e sujeitos novos de sua
organização (MOREIRA, 2005). São novos o paradigma do trabalho
e da política, novos em face da regulação do espaço.
O complexo agro-industrial é sem dúvida a expressão mais
evidente do novo rumo da organização da formação espacial
brasileira pelo lado das classes hegemônicas. É uma economia
indicativa da organização da sociedade e do espaço segundo
padrões de regulação marcados pela ausência da divisão territorial
do trabalho, de um lado, e do Estado, de outro lado, ilustrando
o desaparecimento justamente das estruturas reguladoras das
ações e dos ordenamentos do recente passado. E, assim, a forma
que melhor encarna os efeitos da nova base material trazida à
organização da produção e do trabalho no modo de produção
capitalista pela era técnica da terceira revolução industrial, cujo
epicentro são a microeletrônica e a engenharia genética, e seu
acontecimento num momento de hegemonia do capital de
caráter eminentemente rentista, tal como previsto por Bukarin
em sua teoria da economia mundial capitalista nos começos do
século XX (BUKARIN, s/d). Para além da fusão da agricultura e da
indústria, no complexo agro-industrial fundem-se, numa única
estrutura de produção e trabalho, os setores da agricultura, das
indústrias, dos serviços e da pesquisa-tecnologia, eliminando as
separações setoriais (em setores primário, secundário, terciário
e quaternário) e espaciais (em cidade e campo; e cidade e
região), e introduzindo um novo modo de organização espacial
das sociedades, novo porque sem as separações que segmentavam
territorialmente as formações espaciais capitalistas. Então, as
segmentações territoriais formam-se, agora, no plano da relação
entre os corpos globais das empresas, não mais entre os setores
de especialização da economia, todos os setores juntando-se,

24
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 5-29, 2005

fundidos, numa só empresa e numa mesma estrutura em rede de


espaço. O equivalente na “ponta urbana” do complexo agro-
industrial é o complexo empresarial que junta a produtora, a
revendedora e a financiadora como um só domínio de empresa,
socializando o modelo de realização do valor do ramo das
montadoras de automóveis para todos os ramos de indústria, e
levando esta a se estruturar nesse molde em que produção, venda
e financiamento se ligam numa só unidade corporativa,
eliminando as fronteiras e demarcações que separavam esses
elos numa geografia segmentada de gestão e do trabalho, e
entregando a gestão do negócio inteiramente ao capital rentista,
representado na agência de financiamento do grupo. Daí dizer-
se que o espaço tornou-se uma rede de redes. Um nome
apropriado para o espaço dos complexos.
Assim também, a economia em comum é a expressão mais
evidente do lado popular. Daí a liberação, tanto no campo quanto
na cidade, das formas de sociabilidade até então ocultadas nos
velhos nichos de assentamento. No campo, elas aparecem na
evidenciação dos conhecimentos populares há séculos centrados
na relação de biodiversidade, e, nas cidades, sob o termo
genérico de trabalho informal. E, daí, a multiplicação, na cidade
e no campo, das formas de economia popular, ora designadas de
economia dos setores populares e ora de economia solidária
(KREYCHETE, 2000; E CORAGGIO, 2000), que despontam da
reestruturação capitalista, e cuja natureza é o antigo modo de
produção mercantil simples (SINGER, 2000), supostamente extinto
na história. São formas de produção e trabalho que tomam por
braço de apoio, nessa reemergência e caminhada para
consolidação, movimentos sociais organizados como o MST
(FERNANDES, 2000) e a CUT (NETO e GIANNOTI, 1993), estes dois
particularmente, para estabelecer seu confronto com a sociedade
modelada nos complexos (SOUZA, CUNHA e DAKUZAKU, 2003).

25
RUY MOREIRA

CONCLUSÃO

Ao fazer desaparecer as divisões que distinguiam e


separavam cidade e campo, região e região, e cidade e região,
e justificavam a necessidade da regulação que as unificasse por
baixo do Estado, ou, dizendo de outro modo, ao dissolver a
fronteira das relações cidade e campo, região-região e cidade-
região, superando a divisão territorial do trabalho criada pela
indústria nos anos 50-60 para ser o padrão de organização espacial
da formação capitalista, naquilo que a nova base material do
capitalismo lhe traz de apoio, a regulação privada do espaço
abre para virem à tona sujeitos novos e formas novas dos antigos
sujeitos da história, e essas emergências trazem um modo novo
de contraponto e embaralham a formação espacial brasileira.

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29
30
TEORIAS E CONCEITOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE
CRÍTICO EM GEOGAFIA

Paulo Roberto Teixeira de Godoy1

RESUMO

Este pequeno ensaio consiste em um diálogo com as atuais


tendências da Geografia brasileira contemporânea e com as noções
e conceitos de Crítica. O objetivo é trazer para o debate teórico
as questões referentes ao conteúdo do pensamento geográfico e os
conceitos que sustentam as análises sobre a produção do espaço
social. Sem a pretensão de esgotar a problemática aqui apresentada,
procurou-se ressaltar algumas questões relevantes para repensar
criticamente o pensamento crítico na Geografia. A preocupação
não é, necessariamente, com as proposições de uma Geografia
Crítica, mas com as possibilidades de redefinir o debate sobre
outras bases teóricas e conceituais.
Palavras-chave: teoria, crítica, produção do espaço

RÉSUMÉ

Ce petit essai se compose d’un dialogue avec les tendances


courantes de la Géographie brésilienne contemporaine et des
notions et concepts de la Critique. L’objectif est d’apporter
pour la discussion théorique les questions la référence à la teneur
de la pensée géographique et des concepts cet appui les analyses
sur la production de l’espace social. Sans la prétension épuiser

1
Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista - Rio Claro.

31
PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

le problématique a présenté ici, il a été regardé quelques


questions importants pour repensez, de manière critique, la
pensée critique dans la Géographie. Le souci n’est pas,
nécessairement, avec les propositions d’une Géographie Critique,
mais avec les possibilités pour redéfinir la discussion sur autres
appuis théoriques et conceptuelles.
Mots clés: théorie, critique, production de l’espace

1. INTRODUÇÃO

O saber, cuja essência é crítica, não pode reduzir-se


ao conhecimento objectivo; conduz para Outrem.
Acolher Outrem é pôr a minha liberdade em questão
(LEVINAS, 1980)

A “crença” de que o conceito de Tempo possui uma


fundamentação teórica mais profunda do que o de Espaço tornou-
se ‘lugar comum’, não somente entre os geógrafos, mas, de
modo geral, entre os cientistas sociais (Harvey, 2005; Santos,
2002). Existem, evidentemente, razões para que esse ‘lugar
comum’ permaneça ora como uma constatação, ora como um
refúgio para os que rejeitam a teoria como uma condição para
se pensar as questões do espaço. Mas, deve-se ressaltar que esta
não é uma verdade total ou absoluta. O que é factível, neste
caso, é a consideração de que a análise do espaço enquanto
materialidade dada coloca-se como uma “complicação
desnecessária”, e isto é válido não só para a tradição marxista
como para todo o pensamento positivista (Harvey, 2005, p. 142).
Talvez, o que pode haver de fato é uma rejeição teórica pelo
espaço e não a sua ausência. Para adentrarmos nesta seara, deve-
se reconhecer o alcance e as possibilidades de rupturas de uma
concepção crítica acerca das questões teóricas e conceituais da
produção do espaço social.

32
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

Neste sentido, é crucial compreender, primeiramente, que


a crítica, como argumenta Lebrun (2002), não nos traz uma
verdade maior, mas apenas uma outra forma de pensar. Em
segundo lugar, acredito haver a necessidade de reflexão sobre a
própria negatividade possível do conceito de crítica e,
posteriormente, elucidar as diferentes orientações e sentidos que
ela poderá seguir. Vale dizer que, seja qual for a orientação ou
sentido, o problema da objetividade das conexões lógicas que
sustentam as categorias de análise crítica poderão se apresentar
como negação da sua própria fundamentação teórica, pois contém
como princípio interno a sua própria negatividade. Assim, é imanente
à construção de um discurso crítico a destruição sistemática da
aparência lógica do conhecimento científico.
Numa primeira aproximação, a suposição possível é a de
que a idéia de uma Geografia Crítica é diametralmente oposta
a de uma Geografia Científica. Certamente, a afirmativa não
seria inteiramente correta. O certo é que nem todos os
fundamentos da crítica são, necessariamente, científicos ou
possuem esta pretensão. Embora o conhecimento científico não
seja sinônimo de empirismo, os fundamentos da crítica não estão
vinculados diretamente à experiência empírica. Pelo contrário,
são os fundamentos teóricos que estruturam as experiências
empíricas. Estas, por sua vez, redimensionam a complexidade
dos conceitos de modo a recompor seus conteúdos e, portanto,
enriquecer os fundamentos teóricos.
Sabe-se, entretanto, que a experiência não consiste na única
fonte do saber. Neste sentido, a negação da experiência pela crítica
como fonte única do saber deve-se ao fato de que a experiência
também é, em grande parte, uma dissimulação do real e poderá,
portanto, falsear o conteúdo dos fundamentos que a sustenta.
Para Adorno (1978) nenhuma teoria consegue escapar da
lógica mercantil; elas são expostas como algo funcional a ser
consumido. A presunção de que a teoria esquiva-se de tal
simulacro degenera-se no seu auto-elogio. Nem tampouco a

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

dialética necessita emudecer-se frente a tal conseqüência. A


dialética indica que os objetos superam seu conceito, que
contradizem a norma tradicional da adequação lógica e
racionalizante. “A dialética quer encontrar o cientificismo em
seu próprio campo, ao pretender conhecer melhor a realidade
social contemporânea. Procura traspassar o véu que a ciência
ajuda a tecer” (ADORNO, 1989, p. 118).
“A contradição não é uma essencialidade
heraclítica (doutrina de Heráclito de Éfeso, segundo
a qual a luta é o princípio de todas as coisas e de que
o universo está em constante devenir) por mais que o
idealismo absoluto hegeliano tenha inevitavelmente
que transfigurar-se nesse sentido. É índice da falsidade
da identidade, de que o concebido absorve-se no
conceito. E, no entanto, a aparência da identidade
reside intrinsecamente no próprio pensamento, em
sua forma pura” (ADORNO, 1978, p. 119).

Neste sentido, pensar implica identificar uma ordem


conceitual que se interpõe como elo entre o pensamento e a
possibilidade de compreensão. Aparência e verdade tornam-se
cruzamentos superpostos de modo que a primeira – a aparência
– não sucumbe por decreto uma verdade autocrática.
Assim, a dialética não comporta previamente um ponto de vista
ou um mirante analítico privilegiado, mas impele ao pensamento sua
insuficiência em relação aquilo que é pensado. É assim que se transfere
a impossibilidade de conhecimento do objeto ao método.
Segundo Adorno (op. cit., p. 141)
“O que a dialética tem de dolorido é a dor
desse mundo elevada a conceito. A este mundo, a
dialética tem que se submeter se deseja evitar que a
concreção novamente se degrade em ideologia em
que começa, de fato, a se converter (...) A dialética
desenvolve a diferença, ditada pelo universal, entre

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

o universal e o particular. Como a diferença, a ruptura


entre sujeito e objeto que penetrou em toda a
consciência, integra necessariamente o sujeito e rompe
tudo que ele pensa, até o que pensa de objetivo, só
pode encontrar seu fim na reconciliação”.

2. ORDEM E (DES)ORDEM

Em A Crítica da Razão Indolente, Sousa Santos (2001, p.


26-28) identifica algumas possíveis causas das dificuldades de se
construir uma teoria crítica. Segundo este autor,
“A teoria crítica moderna concebe a sociedade
como uma totalidade e, como tal, propõe uma
alternativa total à sociedade que existe. A teoria
marxista é exemplar a este respeito. A concepção da
sociedade como totalidade é uma construção social
como qualquer outra. O que a distingue das construções
rivais são os pressupostos em que assenta. Tais
pressupostos são os seguintes: uma forma de
conhecimento ele próprio total como condição de
abarcar credivelmente a totalidade social; um
princípio único de transformação social, e um agente
colectivo, igualmente único, capaz de a levar a cabo;
um contexto político institucional bem definido que
torne possível formular lutas credíveis à luz dos
objetivos que se propõem (...) O conhecimento
totalizante é um conhecimento da ordem sobre o caos.
O que distingue neste domínio a sociologia
funcionalista da sociologia crítica é o facto de a
primeira pretender a ordem da regulação social e a
segunda pretender a ordem da emancipação social.
Em segundo lugar, a industrialização não é
necessariamente o motor do progresso nem a parteira

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

do desenvolvimento. Por um lado, ela assenta numa


concepção retrógrada da natureza, incapaz de ver a
relação entre a degradação desta e a degradação da
sociedade que ela sustenta. Por outro lado, para dois
terços da humanidade a industrialização não trouxe
desenvolvimento”.

Para Morin (1987), a ordem é a palavra-chave da ciência


clássica. Não sem motivos Humboldt intitulou sua grande obra
de Cosmos. A concepção de ordem universal reinou absoluta e
soberanamente escorada na crença da imutabilidade das leis da
natureza. Foi necessário esperar, entretanto, pela idéia de
degradação energética - entropia - colocada por Carnot, Clausius
e Boltzmann para que a noção de ordem comportasse também o
seu avesso, isto é, a desordem.
O desmoronamento da ordem suscitou, por sua vez, uma
reconstrução teórica do conceito de modo a problematizar suas
evidências ontológicas. Neste sentido, ‘regular’ ou ‘superar’ a
ordem, como argumenta Sousa Santos (2001), possui apenas um
caráter tautológico, pois tanto uma como a outra não implica
em determinação de um estado de equilíbrio, constância,
regularidade e permanência. Ordem e Desordem estão
mutuamente imbricadas e indissoluvelmente unidas, são
mutuamente constitutiva da organização e da desorganização.
Se se entende a superação como o estabelecimento de uma
“nova ordem”, pode-se indagar sobre a natureza da superação e
suas formas de re-organização.
Por outro lado, torna-se impraticável associar a noção de
desenvolvimento com a noção de ordem sob a lógica do
crescimento econômico capitalista, porque o primeiro não tem
no segundo a sua condição essencial, a não ser que consideremos
o segundo como a glorificação das regras da acumulação
capitalista. Assim, ordem significaria o cumprimento sistemático
de etapas evolutivas do capital urbano-industrial.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

A distinção básica entre a visão dialética da totalidade, e


a positivista, se evidencia porque o conceito dialético de
totalidade pretende ser ‘objetivo’, enquanto o positivismo
preocupa-se somente com a escolha de categorias as mais gerais
possíveis, reunir constatações sem contradição em um contínuo
lógico. Ao distorcer o conceito de totalidade produz uma espécie
de teologia da ciência. Sua orientação tende ao primado de
métodos disponíveis, em vez de do objeto real. Desta forma, o
positivismo amputa as contradições que afetam o procedimento
científico e o seu objeto particular.
Segundo Adorno (1989, p. 117) “o cerne da crítica ao
positivismo consiste em que este se fecha à experiência da
totalidade cegamente dominante, tanto quanto à estimulante
esperança de que finalmente haverá uma mudança, satisfazendo-
se com os destroços desprovidos de sentido que restaram após a
liquidação do idealismo, sem interpretar e descobrir a verdade,
por sua vez, da liquidação e do liquidado”.
Para a concepção marxista, o real pode ser capturado
mediante a articulação de categorias, portanto de uma lógica, das
relações internas necessárias desta realidade, isto é, as relações
capitalistas historicamente reais, ou seja, o movimento
internamente contraditório destas relações, o movimento
sistemático pelo qual o capital se constitui como processo de
autovalorização do valor; trata-se de expor o desenvolvimento
conceitual do capital a partir de sua forma elementar, a mercadoria.
Sem esta exposição categorial, seria impossível explicar o caráter
e a natureza do capitalismo; a dialética emerge, portanto, como
a estruturação lógica necessária enquanto condição adequada para
conceituar a realidade histórica factual do capitalismo. Por esta
razão, os conceitos de O Capital têm, no sentido mais estrito
possível, uma pretensão de objetividade, isto é, eles não constituem
simplesmente uma construção conceitual a partir da qual o objeto
poderia ser apreendido. Eles reproduzem ou pretendem reproduzir
o real que é movimento em sua configuração específica.

37
PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

A conseqüência primeira disto é, entre outras coisas, a


suspensão de qualquer verdade eterna, imutável, situada num
campo fora da experiência. Tanto a filosofia como as ciências
da natureza e da sociedade levantaram pretensões de tematizar
verdades eternas, no caso da ciência, através da tematização
de leis que teriam validade eterna. Assim, por exemplo, na ciência
econômica moderna as categorias econômicas são entendidas
como idéias eternas e não como a expressão teórica das relações
históricas de produção que correspondem a um grau determinado
de desenvolvimento material.

3. CATEGORIAS E CONCEITOS

O debate sobre a possibilidade de uma teoria crítica em


Geografia deve, portanto, centrar-se, inicialmente, sobre os
fundamentos teóricos que sustentam as análises sobre a produção
do espaço social sob a égide do capitalismo e os desdobramentos
das categorias e conceitos. Epistemologicamente, isto significa
a busca de um modo de apresentação que revele o processo
contraditório efetivo e, portanto o nexo interno por trás de suas
formas de ocultamento e, com efeito, explique a relação
necessária entre o nexo e a aparência invertida dele nas suas
manifestações visíveis, pois os fenômenos do cotidiano
econômico são exatamente o inverso de seu nexo interno
contraditório. Isto é feito por um desenvolvimento categorial
que tenta explicitar a articulação entre vários aspectos do
conceito de capital enquanto um desdobramento de seus
momentos, o que faz com que a exposição categorial signifique
um enriquecimento semântico na medida que as categorias se
referem a funções cada vez mais complexas até atingir o
conteúdo ‘concreto’, a unidade das múltiplas determinações: há
assim na exposição uma primazia das formas mais ricas e mais
complexas em que as formas iniciais mais abstratas não são

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

eliminadas, mas redefinidas em seu papel, como é o caso por


exemplo da circulação simples, que não é anulada no capitalismo,
mas existe subordinada à circulação e produção capitalista, em
que cada uma delas é uma forma específica de manifestação da
contradição que tudo abrange.
Este aspecto apresenta a diferença crucial entre Hegel e
Marx. Para Hegel o conteúdo é uno. Em Marx, a forma
determinada de efetivação do capital processual não é de
necessidade absoluta. Há, portanto, uma indeterminação quanto
à forma que não provém do fato de que as formas de existência,
que são exteriores, não correspondem ao conteúdo essencial
que é interior, mas é o conteúdo mesmo que é cindido em
aspectos opostos, contraditórios, abrindo assim a partir de si
mesmo o núcleo para a indeterminação e a contigência na decisão
sobre as formas de efetivação do movimento do capital.
Para R. Fausto (1987), o que caracteriza a dialética
hegeliana é o ocultamento do discurso científico e positivo
envolto em uma ciência filosófica real, isto é, a ausência de um
questionamento sobre a legitimidade do discurso do entendimento
como forma de desviar a dialética idealista do dogmatismo. A
dialética de Marx se apresenta, num primeiro momento, como uma
dialética dogmática no sentido da transgressão do entendimento.
Marx produz um discurso que pretende apresentar um paradigma
novo em relação ao pensamento de Smith e Ricardo. Neste sentido,
O Capital pretende substituir a lógica categorial da análise
econômica convertendo-se, desse modo, em antidogmatismo.
De acordo com R. Fausto (1987), existe em Marx uma
espécie de ‘metalógica’ do conceito que retoma tanto a lógica
do ser como a lógica da essência. Isto significa que o conceito é
finito e está sujeito a corrosões provocadas pelo próprio
movimento do objeto. No plano da apresentação, há uma certa
descontinuidade objetiva na sucessão temporal das formas, ou
seja, a dialética torna-se impensável sem o entendimento. Entre
razão e entendimento existe um equilíbrio instável, o que

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

permite a simultaneidade da análise e da crítica do sistema. Embora


a negação da negação em Marx não restabelece a positividade
como em Hegel, mas faz com que a versão metalógica de Marx seja
geradora de uma nova versão da dialética.
Diante do exposto acima, algumas questões podem ser
colocadas: em que ângulos e profundidade a crítica pretende romper
com o caráter cientificista e, portanto positivo, do conhecimento
geográfico? O problema da objetividade das conexões lógicas que
sustentam as categorias de análise será tratado em quais aspectos?
A base de fundamentação teórica da crítica carregará, como princípio
interno, a sua própria negação? A construção do discurso crítico
terá, como pressuposto último, a (des)construção estética da
aparência lógica do conhecimento científico?
Para Lebrun (2002, p. 74)
“Os conceitos, tomados enquanto atos formais,
não permitem ainda decidir quanto à possibilidade
de sua utilização teórica (...) Os conceitos são
inteiramente impossíveis e não podem ter nenhuma
significação ali onde nenhum objeto é dado”.

A ausência da preocupação em examinar as condições


sob as quais os conceitos adquirem sentido delimita ainda mais
o seu campo de identificação; deste modo, contenta-se com
‘puras categorias’, quer dizer, com conceitos que podem servir
para o conhecimento daquilo que é transcendental.
O conceito de espaço, por exemplo, é diferente do conceito
de região, pois aquele contém este, mas ainda outra coisa; mas, na
própria coisa, existe, entretanto, identidade entre os dois, pois a
divisibilidade reside realmente na necessidade de síntese. Mas,
neste caso corre-se o risco tomar o real por uma proposição.
Não se trata, desde então, de uma “ilusão inextirpável”.
Esta surge quando o entendimento, orientado pela razão, não
pode realizar mais que uma totalidade absoluta sem significação.
O erro não consiste, então, em pôr o mundo como totalidade,

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

mas em efetuar essa posição de modo desastrado, por não ter


dado ao sensível e ao inteligível aquilo que lhes pertence.
Vale ressaltar que as semelhanças e as diferenças entre os
conceitos de espaço, região, lugar e território não devem dissi-
mular a diferença das problemáticas. Pois, se se considera que
todas as coisas são condicionadas no (no interior do) espaço e
tempo, nenhum Todo é possível. Entretanto, os que admitem
um Todo Absoluto de simples condições condicionadas con-
tradizem a si mesmos, quer eles considerem esse Todo como
limitado (finito), quer eles o considerem como ilimitado (in-
finito) e, portanto, o espaço deve ser visto como um tal Todo,
assim como o tempo passado.
A possível arbitrariedade da idéia de totalidade absoluta
pode-se apresentar como uma idéia paradoxal, pois se o espaço
for dado como infinito, dado pode significar aqui, limitado. De
acordo com Lebrun (2002), “Não é um milagre que em nós, seres
finitos, o espaço e o tempo infinitos residam como formas
acabadas? Como essas formas estáveis nasceram?” Com efeito,
o espaço torna-se apenas uma condição da razão formal e não
recupera o seu sentido de condição material de um sistema de
ações. Isto é, torna-se apenas uma idéia que deve servir de
regra para considerar todo movimento situado no seu interior.
Ora, as posições das partes do espaço, umas em relação às
outras, supõem que elas possam ser ordenadas em uma tal relação
- e, no sentido mais estrito, a região não consiste na relação que
uma coisa no espaço entretém com outra (o que é, propriamente,
o conceito de lugar), mas na relação do sistema desses lugares
com o espaço total do mundo. Assim, ao contrário de afirmar,
dogmaticamente, que o lugar é um princípio da diferenciação,
deve-se procurar portanto salientar uma diferença interna própria
ao espaço e, através disso, provar a existência de uma totalidade
concreta. Mas, se o espaço é sempre finito, pois ele só é dado
na medida em que produzido, pode-se interrogar: sem os objetos
já dispostos no espaço, como determinar a sua concretude?

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

Acredito que as questões acima podem nos conduzir a


uma espécie de prolegômenos das antinomias dos conceitos
geográficos e, certamente, aos interstícios da base teórica que
articulam as categorias de análise do que atualmente
denominamos de Geografia Crítica.

4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO


DE ESPAÇO

No final dos anos 70, a imunização contra o pragmatismo


descritivo da Geografia assume a forma de uma concepção estrutural
de sociedade e de espaço cujo foco das análises dirigia-se para as
contradições, os conflitos e os antagonismos inerentes aos
movimentos da estrutura social. Logo, o espaço revelava no conteúdo
de suas formas as mesmas contradições que o produziram. Essas,
por sua vez, geravam também as condições de reprodução das
relações sociais. Nesse sentido, o espaço aparecia como resultado
e, ao mesmo tempo, condição da reprodução social. Em outras
palavras, o espaço consistia em um “efeito” que se transformava
em “causa”, ou, um resultado que se transformava em processo.
Para Santos (1991, p. 38), a idéia central da interpretação
da produção do espaço situa-se na combinação simultânea entre
a forma, a estrutura e a função. Isso porque “os movimentos da
totalidade social modificando as relações entre os componentes
da sociedade alteram processos e incitam funções”. Essa
totalidade social, crê o autor, pressupõe a existência de um
movimento dialético da estrutura que opera sobre as formas e
funções, fazendo com que os lugares tornem-se combinações de
variáveis que diferenciam-se ao longo do tempo.
A diferenciação entre as variáveis resulta tanto da periodização
histórica, pois atravessam épocas posteriores ao seu surgimento e
convivem com variáveis novas, quanto de suas formas de espacialização,
isto é, do seu lugar de origem e de sua difusão territorial.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

Nesse sentido, é a idéia de movimento da totalidade no


tempo e no espaço que fundamenta a concepção de que o espaço
é produzido no e pelo movimento da totalidade social. Consiste,
portanto, em uma “geografização” do movimento estrutural da
sociedade que se traduz espacialmente em novas formas e
funções e estas, ao se combinarem para atender as necessidades
geradas pelos “efeitos” de reestruturação dos processos de
organização das relações sociais, produzem o espaço. Neste caso,
a idéia de produção do espaço torna-se prisioneira de sua
conotação técnica e econômica e adquire a noção de fabricação
repetitiva de formas e geração de movimentos.
A produção do espaço consiste, então, na realização
prática de produção de objetos “geograficizados” segundo uma
dada lógica econômica, e destinam-se a cumprir funções
diferenciadas em sintonia com as necessidades de reprodução
das relações sociais de produção e da divisão social do trabalho.
Em A Natureza do Espaço, Santos (1996, p. 21) tem com o
ponto de partida a definição de espaço como um “conjunto
indissociável de sistemas de objetos e sistema de ações”. Esta
noção permite, segundo o autor, reconhecer, entre outros
conceitos, o de produção do espaço e de rugosidades.
Sem estender-se em detalhes referente à fundamentação
teórica da concepção do autor acima, seguiremos a direção de
análise cujo ponto de partida é o entendimento de que a produção
do espaço insere-se em um sistema de pensamento que assenta-se
em uma dada lógica interpretativa visando revelar o movimento
de transformação de determinadas partes da totalidade.
A idéia de sistema retroativo permite-nos repensar, em
síntese, a relação dialética entre o conceito e a fundamentação
lógica da teoria que o sustenta. O sistema de pensamento,
construído enquanto um método de pensar, de analisar e de
interpretar um determinado objeto, organiza a relação entre o
sujeito e o objeto de diferentes modos: separando-os, e assim
construindo um conhecimento reducionista dado o caráter

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

sistêmico de sua organização; ou, unindo-os e os integrando em


uma organização que se reorganiza dialeticamente, produzindo
um conhecimento complexo e crítico. Trata-se de imunizar o
conceito de produção do espaço contra o simplismo mecanicista
da “geografização das variáveis”.
Assim, quando fala-se em produção do espaço deve-se,
primeiramente, entender que os conceitos que procuram explicá-
la se organizam a partir de uma lógica interpretativa
correspondente aos objetivos traçados pelo sujeito. Para
esclarecer essa questão, vamos partir do conceito de produção.
Na análise da produção do espaço, a idéia de produção está
ligada ao conceito marxista de trabalho e às noções de
transformação e mudança. A “produção” implica também em
organização do trabalho e dos meios necessários para a sua realização
enquanto produção de valor. Vale lembrar que os meios necessários
ao trabalho constituem-se, também, em trabalho. Pode-se pensar
que o espaço produzido é produto do trabalho, isto é, de uma
organização do trabalho que materializa-se em formas espaciais. A
“produção” significa, então, “trabalho morto” e organização.
Para Marx, o conceito de trabalho pode ser entendido
como atividade teleológica de transformação da Natureza e como
síntese inseparável da natureza objetiva, circundante, e a
natureza subjetiva do homem. O ‘trabalho’ constitui o “princípio
gerador” do homem e não apenas uma atividade produtiva, mas
enquanto constituição de uma natureza objetiva e de um
horizonte de apreensão e transformação da realidade. Neste
sentido, o conceito contém uma dupla dimensão: a de
transformação da natureza e de constituição de objetos, que
trazem o momento da objetividade constituída (MÜLLER, 1978).
Vale ressaltar que os conceitos de trabalho e produção se
alteram ao longo da obra de Marx. Nos Manuscritos Econômico-
Filosóficos (1844), o conceito de trabalho funciona como equivalente
do conceito de ‘práxis revolucionária’ (primeira tese contra
Feuerbach), envolvendo todas as objetivações da essência humana.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

Essa concepção torna-se, no entanto, alvo de uma crítica


enfática de Habermas (1987): se a práxis é considerada como
um dos aspectos do trabalho, está incluída no agir instrumental;
assim, a práxis tende a ser reduzida ao trabalho, a ‘síntese
materialista’ tende a tornar-se unidimensional e as relações de
produção são apenas um momento da produção material.
Em uma passagem dos Grundrisse, Marx diz: “o
desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber
social universal, knowledge, tornou-se força produtiva imediata,
e portanto, até que ponto as condições do processo de vida
social foram submetidas ao controle do general intellect”
(MÜLLER, 1978, p. 24). Ao apontar as contradições imanentes do
capital, Marx mostra que as relações sociais de produção e o
quadro institucional em que se realiza a integração social não
são meras especificações ou efeitos do processo de trabalho.
O conceito de espaço, por sua vez, apresenta múltiplas
faces de interpretação. Mas, a junção estabelecida entre os dois
conceitos – produção/espaço – elucida a matriz teórica do sistema
de pensamento que o sustenta. Percebe-se que as categorias
que executam uma operação de análise fundamentam-se no
conceito de trabalho, enquanto objetivação da síntese homem-
natureza através das correlações entre a estrutura normativa
dos intercâmbios sociais com as rugosidades exteriorizadas do capital
fixo no interior do processo de desenvolvimento das forças
produtivas. A variável espacial pode, então, ser explicitada pela
verificação de caráter empírico da divisão social do trabalho.
Assim, a produção do espaço é produção de objetos que
articulam e organizam, em suas funções específicas, intercâmbios
sociais que envolvem o trabalho e a produção. O espaço seria,
neste caso, a materialidade e a mediação entre os sistemas
de produção, de controle e reprodução do trabalho em sua
dimensão técnica e material. Em poucas palavras, o espaço
seria um sistema de sistemas ou, como quer Santos (1996),
“sistemas de objetos” e “sistemas de ações”.

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

Por outro lado, vale argumentar que o espaço como um


sistema não define-se como um conjunto serial, mas, como diria
Kant, um quantum composto de partes. Mas só com isso o espaço
permanece como conceito inconsistente. Somente na síntese,
que não é uma mera somatória equacionada das partes, vai
expressamente de um espaço limitado ao espaço que o contém
e permite, para o sujeito, tomar consciência de ir do
condicionado à condição, de progredir na ruptura das partes.
Neste caso, o espaço surge como uma seqüência de limitações,
não mais como uma soma de partes constituintes. Assim,
considerava-se o espaço como um agregado, quando ele só pode
ser vivido de fato como uma seqüência de rupturas do contínuo.
Pode-se pensar, então, que o espaço não é um objeto de
análise, mas um sistema de objetos. Interpretá-lo, portanto, na
ótica de sua produção, faz com que o espaço torne-se a dimensão
empírica da organização das ações que o produz. A organização
das ações emerge, por sua vez, de uma estrutura normativa e
reguladora cujo movimento é dado pelos processos de
transformações resultantes das relações entre trabalho e capital.
Isto significa que as formas espaciais produzidas contêm elementos
das partes e do todo, como também elementos novos surgidos
da (des)construção espacial dessas relações. A natureza mutante
das relações sociais traz, por sua vez, mudanças na organização
dos “sistemas de ações” e, portanto, na eficácia da funcionalidade
das formas – nos “sistemas de objetos”.

5. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A NOÇÃO DE


(DES)CONSTRUÇÃO

A noção de (des)construção do espaço baseia-se na concepção


de que a sociedade pós-moderna, ao mesmo tempo em que produz
formas espaciais correspondentes, em um dado momento histórico,
às necessidades de produção, circulação, consumo e informação,

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também as dissolvem e as redefinem em sintonia com as novas


necessidades sociais que emergem, por sua vez, em um dado
momento para, em seguida, serem diluídas e transformadas.
Para Dosse (2001), o conceito de (des)construção possui suas
raízes mais profundas em uma reflexão epistemológica de denúncia
ao historicismo, em que a história não coloca-se em situação de
exterioridade em relação à estrutura mas é “desconstruída” por
dentro. Essa reflexão assumiu duas formas: a nietzschiana, com
Michel Foucault, e a heideggeriana, com Jacques Derrida.
Na primeira abordagem o conceito de (des)construção
coloca-se essencialmente relativista: “já não há continuidade
por apreender nem racionalidade a atuar no pensamento e na
ação do homem, e como o sujeito se encontra preso nas malhas
do objeto, num laço indissolúvel e imutável, nenhum modo de
ver é estável”. A visão heideggeriana traduz-se pela “busca da
verdade, da gênese do sentido”, a história “é uma história
pluralizada, fundamentalmente heterogênea” (DOSSE, 2001, p. 219).
A visão de Derrida sobre a (des)construção provém
das análises sobre os pensamentos de Rousseau, Saussure e
Lévi-Strauss. A (des)construção para o filósofo francês
tornou-se uma “modalidade de pesquisa filosófica” e uma
forma de “diálogo crítico que usa os exemplos de casos
particulares (...) como sintomas de uma configuração ou
estrutura mais geral”. Além disso, coloca-se como uma
possibilidade de ampliação dos quadros de referências e
de ‘desvelamento’ dos “sistemas rígidos de oposições, que
habitualmente moldam e restringem nossa compreensão do
mundo” (JOHNSON, 2001, p. 38).
Entende-se a (des)construção do espaço como um processo
de supressão e emergência de formas e funções que atendem às
necessidades, em um dado momento, da divisão social do
trabalho, da acumulação capitalista e do poder estatal. A
supressão de formas espaciais significa, em outras palavras, a
supressão de ‘rugosidades espaciais’ (SANTOS, 1980).

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PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

A idéia de ‘rugosidades espaciais’, expressada de diferentes


modos desde o século XIX por Marx, Cavaillès, Bachelard,
Canguilhem, Hegel, Engels e outros autores, foi revisada por Milton
Santos (1980) com o objetivo de fundamentar o importante papel
das paisagens técnicas herdadas nos diferentes períodos da história.
A noção de ‘rugosidades’ complementa a concepção de
que a produção do espaço é, ao mesmo tempo, construção e
destruição de formas e funções sociais dos lugares. Ou seja, a
(des)construção do espaço não refere-se apenas à destruição e à
construção de objetos fixos, mas também às relações que os
unem em combinações distintas ao longo do tempo.
As ‘rugosidades’ são, nesse sentido, as formas espaciais do
passado produzidas em momentos distintos do modo de produção
e, portanto, com características sócio-culturais específicas. Nessa
linha de interpretação, as ‘rugosidades’ constituem-se em paisagens
técnicas que podem ser periodizadas segundo o desenvolvimento
do modo de produção ao longo do tempo histórico.
A emergência de novos arranjos espaciais, no entanto,
não suprime integralmente as formas do passado, mas as renovam
através das funções que adquirem na articulação do território e,
ao mesmo tempo, fazem-nas objetos de um sistema de ações
econômicas, políticas e sociais que visam produzir as condições
materiais de produção, a capacidade de “controle” sobre o
território e de regulação do processo de acumulação capitalista.
No entanto, o “controle” não se faz cumprir somente no sentido
político e ideológico da ação social, mas no sentido econômico
e técnico-informacional dos mecanismos de acumulação do capital
e de organização das forças produtivas. A centralização das
informações e das decisões em escala planetária atua, de modo
relativo, na tentativa de restringir as ‘rugosidades espaciais’,
como argumenta Santos (1980); ou de suprimir, na acepção de
Harvey (1993), o espaço através do tempo produtivista.
A capacidade de fluidez e articulação das novas relações
de produção, acumulação e consumo no processo de

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

(des)construção de ‘rugosidades’ espaciais são possíveis em


virtude da redução temporal entre os lugares através da difusão
momentânea das mudanças manifestas nos centros informacionais
de decisões, como também pela aceleração da circulação de
mercadorias e fragmentos sócio-culturais em escala mundial.
Em relação ao argumento citado acima, referente ao
estudo da paisagem como escavação arqueológica, poder-se-ia
dizer que as camadas produzidas nos últimos 50 anos seriam
extremamente compactas, porém, numerosas. A deposição
acelerada das sucessivas camadas caracterizaria, deste modo, o
processo de (des)construção do espaço.
Outro argumento na mesma direção explicativa procurou
mostrar que, com a atual racionalidade tecno-científica e
informacional, o capital mundial seria levado a adaptar-se ao
espaço e não mais o contrário. Passa-se, por um lado, para o processo
de (des)construção de formas espaciais vinculadas à intensidade e
à multiplicidade de funções atribuídas em períodos de tempo cada
vez mais restritos, e, por outro, em virtude do aumento na
velocidade de giro do capital e da expansão do “império do consumo
efêmero” e massificado, os lugares tornar-se-iam a condição e o
resultado da mundialização da economia e da cultura técnica.
Contudo, devem-se apontar dois aspectos merecedores
de maior atenção e que conduzirão a uma melhor compreensão
da noção de ‘rugosidades’ e, em contrapartida, de
(des)construção do espaço. O primeiro refere-se à seletividade
do capital. Se o capital visa à obtenção de altos lucros a baixo
custo, isso por si só bastaria para imprimir-lhe o caráter de
seletivo. Desse modo, poder-se-ia afirmar que, desde a expansão
marítima no século XVI, o capital mostrou-se seletivo na escolha
dos lugares para sua reprodução e acumulação. Neste caso, a
alteração se deu em relação à capacidade de seletividade dada
pelos meios técnicos de investigação e de reconhecimento de
um número crescente de lugares e condições materiais e imateriais
para a acumulação capitalista.

49
PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

O segundo aspecto trata-se do papel do Estado na


produção das condições de reprodução do capital e do trabalho.
Durante todo o século XX, em grande parte dos países capitalistas
e, particularmente no Brasil, as condições objetivas de
reprodução social do capital foram produzidas através do Estado.
A produção dessas condições resultou, para os fins que pretendeu-
se nesta reflexão, em supressão das ‘rugosidades’ através da
(des)construção das paisagens herdadas e da reorganização dos
fluxos de bens, de capitais e de pessoas.
De acordo com Carlos (1996, p. 129), “a construção de um
espaço novo a partir de um preexistente (ora integrando, ora destruindo)
inclui a articulação da técnica e do saber à gestão onde o Estado, ao lhe
atribuir funções, constitui-se em um espaço de dominação”.
O fato, entretanto, da seletividade do capital não ser
espontânea e sim planejada, contando com meios eficazes de
pesquisa e de avaliação das condições materiais e de
possibilidades de investimentos, faz com que o processo de
(des)construção do espaço apresente-se como apropriação do
espaço público pelas funções e necessidades do capital privado.
A seletividade do capital recoloca, em outros termos,
a relação entre mercado e planejamento. De acordo com
Ianni (1995, p. 151),
“a globalização do capitalismo reaviva a
controvérsia mercado ou planejamento ao nível dos
setores produtivos, das economias nacionais, dos
blocos regionais e, obviamente, da economia mundial
como um todo”. O planejamento apresenta-se, desse
modo, como uma “técnica de organização e
dinamização das forças de mercado (...) uma técnica
versátil, podendo influenciar a racionalização das
forças produtivas, inclusive funcionando como técnica
anti-cíclica. Na medida em que se traduz em
diretrizes, normas de ação e instituições, envolvendo
padrões e valores sócio-culturais e jurídico-políticos,

50
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

influencia as relações de produção também em termos


de racionalização, sempre em conformidade com as
exigências da reprodução ampliada do capital”.

Esses dois aspectos permitem avaliar a dimensão econômica da


noção de ‘rugosidades’, notando que se constituem em espaços de
rigidez a partir da perspectiva do capital, como também a significação
política da relação entre o espaço público e privado no processo de
emergência e supressão de formas e funções espaciais.
Nesse sentido, a introdução de novos capitais em uma dada
região ou, como quer Harvey (1993), de modalidades flexíveis de
acumulação e gerenciamento, supõe a busca de vantagens
comparativas que se materializam em formas espaciais novas ou na
reutilização de formas preexistentes, proporcionando, em escala
local-global, a intensificação dos fluxos de bens e informações. As
vantagens comparativas podem apresentar-se momentâneas ou
transitórias e gerar formas espaciais cujas funções serão dissolvidas
na medida em que as vantagens localizacionais tornarem-se
‘rugosidades’ para a reprodução do capital.
A retomada desse conceito, portanto, possui razões
históricas que o tornam, às vezes, uma expressão do “modismo”
acadêmico ou de um “debate surdo” entre as concepções de
modernidade e pós-modernidade, em que o nome da coisa
mostra-se mais importante que a própria coisa.
Entre os principais motivos que levaram alguns autores ao
resgate do conceito de (des)construção estão os que se
relacionam, por um lado, às transformações históricas do
capitalismo entre as décadas de 1960 e 1990 e, por outro, ao
esgotamento teórico de paradigmas científicos sustentados pelas
visões generalizantes de totalidade.
Os efeitos espaciais mais explícitos dessas transformações
deram-se com o processo de urbanização da sociedade. As cidades,
sobretudo as metrópoles, tornaram-se os lugares de experimentação
de um novo urbanismo e de uma nova estética arquitetônica.

51
PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE GODOY

Em suma, a concepção de (des)construção do espaço deve


considerar que a compreensão da realidade em escala local supõe
o envolvimento, a interação e a articulação combinada com
outras escalas de tempo e de espaço. De acordo com Randolph
(1992, p. 379), “esta dialética vai além de uma simples articulação
de escalas; tem sua origem na própria concretude do processo
histórico. Pois mesmo em períodos de ordenamentos, integração,
generalização e articulação, mormente através do Estado na
história mais recente, identificam-se momentos de
desintegração, fragmentação e desordem que fazem parte do
mesmo processo histórico”.
A (des)construção do espaço expressa-se na vaga do
movimento dialético da totalidade com as partes, de modo
que a emergência de uma nova forma espacial traduza
fragmentos da totalidade e combinações específicas em
diferentes escalas de tempo e de espaço. Assim, a forma
espacial torna-se um fator social não apenas pela sua
durabilidade no tempo, mas pelo conteúdo técnico, cultural e
ideológico de atribuir “valores sociais ao espaço”.
O conceito de (des)construção do espaço apresenta-se, nesse
momento, como um instrumento de análise do processo de formação
sócio-espacial que busca, através da periodização das paisagens
técnicas e do processo de supressão das ‘rugosidades’, compreender
a produção do espaço mediante a combinação entre as formas e as
funções espaciais, em um dado momento da divisão do trabalho e
do desenvolvimento do modo de produção. Vale dizer, de passagem,
que consiste em uma via conceitual a ser explorada teoricamente
na perspectiva da análise espacial.
Os problemas teóricos levantados neste ensaio são
ingredientes fundamentais de uma reflexão mais aguda sobre o
pensamento crítico da geografia. A reflexão crítica deve, entretanto,
nutrir-se da auto-crítica de seus instrumentos de análise e nos
conduzir a uma reavaliação do método e da relação sujeito-objeto
na construção de um conhecimento complexo do espaço social.

52
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 31-54, 2005

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54
A GEOGRAFIA QUE DESEJAMOS1

Amélia Luisa Damiani2

“Eu aprendo a querer tudo e a não


alcançar nada, guiado pela única
constância de ser humano e a
consciência de não sê-lo jamais o
bastante.” (Raoul Vaneigem)

Tem-se, praticamente como verdade inquestionável, que a


constituição da geografia, enquanto geografia humana, de tradição
francesa, apresenta como fundamento o positivismo, o que equivale
a pensar este momento da geografia como uma aproximação
científica empirista, pois se devota ao fenômeno como ele é,
como ele aparece regular e constantemente, sendo que o aparecer
é o instrumento do conhecimento o mais importante e não nega a
história desse fenômeno, ao contrário, a contém. E por que a contém?
Porque não há descontinuidade: os elementos constitutivos do
fenômeno sempre estiveram presentes e a história é a longa relação
entre eles. Considerando o fenômeno humano como o fundamental,
para essa geografia, os elementos que o constituem são o meio
natural e a habilidade do homem, exercida socialmente. Hoje, se
essa geografia nos parece uma geografia especialmente descritiva,
portanto insuficiente e pouco científica, ela se propunha como

1
A primeira versão deste texto, no seu primeiro fragmento, foi apresentada
no V Encontro Estadual de Geografia de Minas Gerais - A Geografia na
Modernização do Mundo, realizado pela AGB/BH, em 2005.
2
Profa. Dra. do Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

55
AMÉLIA LUISA DAMIANI

ciência, que não se confundia com as técnicas; assim, de um


lado haveria a aplicação de técnicas e a prática, e, de outro, o
conhecimento e a própria ciência geográfica.
Henri Lefebvre, de modo diferente, identifica, no final
do século XIX, uma negação do positivismo, na sua própria
constituição, no sentido de que ele representava pouco os
avanços científicos de seu tempo, avanços que punham a
possibilidade do desenvolvimento da ciência teórica, movida
por hipóteses teóricas, de caráter relativo:
“A hipótese teórica apóia-se numa realidade (portanto
comporta a determinação da coisa, na sua essência,
seu conceito, sua qualidade) [...] expressa a
possibilidade de uma revisão e de um
aprofundamento dos conceitos.”3

Trata-se, também, do reconhecimento do “descontínuo,


do acaso, do cálculo das probabilidades.”4
“As ciências se encontram religadas ou, como se diz em
anatomia, ‘anastomoseadas’ por uma rede cada vez mais
complexa de relações. A matemática sob sua forma
estatística se introduz não somente em física e química,
mas em biologia (ecologia), em sociologia [...].
A biologia comporta uma bioquímica, uma química
biológica. Entre a sociologia e as ciências da natureza,
intercalam-se a geografia humana, a antropologia, a
pré-história, etc.”5
Não haveria fronteiras estanques e rígidas entre as ciências,
como advogava o positivismo, mas linhas de demarcação
flexíveis. “Portanto, as ciências tenderiam à unidade.”6

3
LEFEBVRE, Henri. Méthodologie des sciences. Paris : Anthropos, 2002, p. 47.
4
Op. cit. p. 48.
5
Op. cit. p. 48.
6
Op. cit. p. 48.

56
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Essa perspectiva histórica do desenvolvimento das


ciências, no período de desenvolvimento de uma geografia
humana, propõe repensar os elos estreitos entre ela e o
positivismo e encarar a geografia humana como de caráter
cientificamente mais complexo e numa relação com a prática
também mais complexa. No momento do desenvolvimento das
ciências, quando as ciências naturais absorvem o acaso, definem
leis estatísticas, se aproximam das leis históricas e sociais,
“reciprocamente, o estudo da realidade humana se aproxima
das condições nas quais nós descobrimos as leis da natureza.”7
“Entre as ciências do homem e aquelas da natureza
se intercala a geografia humana”, [entre outras] [...]8
O homem age sobre a natureza; não se separa dela
metafisicamente [...] Sua ação, sua potência sobre a
natureza, é ainda uma relação com a natureza. A
organização (prática) desta relação é então um fato
objetivo fundamental [...] A história humana e a
sociedade podem, portanto, ser estudadas a partir
da natureza e como um processo objetivo e natural.”9

Os elos práticos entre o homem e a natureza, propostos


nesse momento histórico e completamente potencializados,
considerando os avanços das ciências e das técnicas e sua
aplicação prática na indústria, unem, através da geografia, entre
outras ciências, as ciências da natureza e as do homem.
Os limites históricos dessa geografia, que ainda são os
nossos, não são estritamente limites metodológicos, mas limites
de fundamentos da sociedade que se desenvolvia: a sociedade
que se realiza e se nega pelo desenvolvimento das trocas e do
dinheiro; a sociedade cujo processo de identificação é abstrato,

7
LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 118.
8
LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 51.
9
LEFEBVRE, Henri, 2002, p. 122-123.

57
AMÉLIA LUISA DAMIANI

através do desenvolvimento do Estado; a sociedade que se


propõe acumulativa - de capitais; técnicas; experiências,
civilizações -, mas cuja causa acumulativa maior é de cunho
econômico e em que a proletarização de milhões de seres
humanos também é acumulativa, pois leva de roldão, nesta
economia, mais e mais homens, mulheres e crianças, inseridos
precariamente nesta história moderna. Guy Debord avalia que esses
seres não têm o controle da história; eles vivem, de alguma forma,
o tempo cíclico, sob o alvoroço da história que paira acima, história
sempre apropriada pelos poderosos: os que produzem as estratégias,
os que mantêm o controle econômico e político.10
O que a geografia, nesse final do século XIX, na França
especialmente, busca é encontrar a identidade da humanidade
do homem, produzida na relação homem-natureza. O que a
devastação dessa economia acumulativa capitalista nos assegura
tentar decifrar, hoje, é um enorme processo de desumanização.
Raoul Vaneigem fala de economia de exploração, “economia
empobrecida por ter consumido a terra e o homem”, em que “a
relação mercantil substitui a relação humana.”11
A geografia definida como clássica acreditava na forma do
Estado, como civilizatória. O desenvolvimento da geopolítica,
especialmente, tinha este caráter, o que, inclusive, incluía uma
análise positiva do moderno processo de colonização. Então, a
relação da geografia com a prática passava pela mediação do Estado.
Uma geografia contemporânea, que atualiza uma geografia
crítica - de presença anarquista e subversiva, portanto, não estatista
- questiona a economia e o Estado. Esta é a grande aquisição destes
novos tempos: generalizar a crítica do processo de desumanização,
inerente às ações econômicas e estatistas. Portanto, a relação com
a prática já não é, necessariamente, sob a mediação do Estado.

10
DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
11
VANEIGEM, Raoul. Nous qui désirons sans fin. Paris: Gallimard, 1996. p.
18 e 20, respectivamente.

58
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Cedo, a geografia reconheceu o plano das estratégias.


Ele era combinado com o tratamento do objeto no interior de
uma lógica formal. O que é próprio desta lógica e difícil de
romper é a separação entre os elementos de uma relação e o
estabelecimento da exterioridade recíproca destes elementos
no seu desenvolvimento. É possível reconhecer certas relações
de causalidade, mas não a relação constitutiva interna dos
elementos entre si, nos termos da compreensão da dupla e interna
determinação entre eles e de um processo negativo implicado.
E, por isto, se torna mais complicado encontrar um tratamento
do objeto em movimento, uma noção de processo. Pode ser
elucidativo verificar, por exemplo, o tratamento dos elementos
constitutivos da mercadoria - valor de uso e valor de troca -,
como um conceito básico e presente numa geografia mais crítica;
entretanto, é comum manter esses elementos autônomos, como
se fosse possível falar de um ou de outro separadamente. Tal
coisa tem valor de uso; tal outra, valor de troca... A relação
interna e negativa entre esses elementos, na definição da
mercadoria, ainda é de difícil discernimento.
“Esclarecendo, nenhum desses caracteres se manifesta
em estado puro com suas particularidades definidas
uma vez por todas, mas cada um entre eles se une, ao
contrário, submetido a leis de interdependência, num
movimento, numa progressão em que um só se
transforma modificando o outro.”12

Uma geografia que inclua a dialética e, ainda, a relação entre


estratégia e dialética pode nos ajudar a compreender os termos da
modernização do mundo. É necessário examinar o processo de
modernização extensiva e intensivamente. E, neste duplo, os termos
da deterioração da vida social e humana e da própria economia.

12
VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse et le Comte de Lautréamont dans les
Poésies (veiculado por internet, 2005).

59
AMÉLIA LUISA DAMIANI

- Extensivamente, trata-se da incorporação de todos os


espaços e tempos no universo dessa economia; e é uma extensão
paradoxal, pois envolvida pelo universo concentracionista, do
absolutismo financeiro, em que “o espaço se contrai a dimensão
de uma cotação de bolsa de valores”, um ponto concêntrico de
onde se regula à distância “todos os lugares”, que interessam;
cada vez mais, a curto termo.13
Um núcleo de compreensão necessário é considerar a
financeirização. “O absolutismo financeiro engendra um
empobrecimento absoluto.”14
O capital não se resolve em simples entesouramento. A
idéia popular de quem guarda dinheiro no colchão e ele perde
valor é própria de uma percepção popular de que o dinheiro no
capitalismo tem que se manter no mercado, circulando.
Uma outra consideração importante é aquela de que o
dinheiro como meio de circulação no comércio e serviços a
varejo e populares é um meio de circulação “subsidiário” e não
exatamente o meio de circulação dominante. Vamos pensar em
reais, nossa moeda corrente: as moedas propriamente e as notas
de pequeno valor, que circulam na vida cotidiana da maioria da
população, são apenas signos de partes alíquotas do meio de
circulação dominante, que são as notas de maior valor, que
estipulam os preços das mercadorias que definem a qualidade
dos mercados, neste caso nacionais. Então, os preços dos carros,
das televisões, das mercadorias de consumo duráveis, próprios
de nosso mercado, neste momento de nossa história - o recorte
histórico da presença dessas mercadorias, como determinantes,
costuma-se localizar na segunda metade do século XX -, realizam
os preços e não são meios de circulação evanescentes, que
facilmente desaparecem, como as moedas e notas de baixo valor.

13
VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 67. “A realidade econômica é a realidade
economizada. O universo aí se reduz à dimensão do dinheiro.” (p. 72)
14
VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 75.

60
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Entesourar moedas de pequeno valor parece equivocado


exatamente porque o tesouro se produz com notas mais valorosas.
Imaginem quantas moedas de R$ 0,25 centavos seriam necessárias
para guardar R$ 100,00 reais: 400 moedas; um cofre cheio e ao
mesmo tempo de baixo valor. São cofres infantis. Em resumo, o
dinheiro da maioria da população, da população mais pobre, o
dinheiro que ela pode ter na mão todo dia, só reunido em grandes
quantidades, e traduzido em notas mais valiosas, define o
dinheiro dos negócios.15 Ao mesmo tempo, esta parte alíquota
ínfima demonstra a abstração própria do preço e do dinheiro,
que chega na vida humana.
É eloqüente o tratamento da questão por Vaneigem, que
utilizo para considerar o movimento da modernização do mundo:
“O sacrifício da vida humana à necessidade de
trabalhar inaugurou uma lógica de morte que leva a
suas conseqüências extremas o sacrifício da
sobrevivência aos imperativos monetários.”16

- Então, intensivamente, trata-se de decifrar a


metamorfose dos modos de vida, a constituição e a reprodução
da cotidianidade; em suma, a alienação cotidiana, sintetizadora
das várias formas de alienação: política, econômica, cultural,
etc. No lugar da vida, toda ordem de sobrevivência e morte. E,
paradoxalmente, a sociedade se culturaliza, isto é, mercantiliza-
se tudo como tal; o que autonomiza os elementos do que se
convencionaria como cultura, numa generalização de produtos
simbólicos ou simbolizados para consumo.

15
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política
(Grundrisse) 1857-1858. Argentina: Siglo Veintiuno, 1977, volume 2, p. 364
(em alemão, 695). Este parágrafo faz parte de contribuição pessoal num
trabalho coletivo, realizado no Laboratório de Geografia Urbana - LABUR -
sobre a crise do trabalho.
16
VANEIGEM, Raoul, 1996, p. 77.

61
AMÉLIA LUISA DAMIANI

O que seria próprio dessa alienação cotidiana?


- a consciência ambígua das contradições; as contradições
abafadas, atenuadas no cotidiano. Somente, em certos
momentos, vividas de forma crítica. Daí, talvez, a apatia, que
persiste até em momentos de crise.
- a completa identificação entre o homem e o que Lefebvre
chama de a ordem distante - um âmbito do econômico e do
político, que entra na vida das pessoas, sem que tenham dele
discernimento -, numa relação constituída como esquizofrênica,
isto é, o homem se perde na absoluta identificação com o outro
dele, sem consciência desta relação de identificação doentia,
quando o outro, no qual se reflete, é sua negação. De todo
modo, é preciso fazer a pergunta: como são vividas as abstrações?
As relações não são exatamente imediatas. Do concreto da vida,
fazem parte abstrações poderosas, como o dinheiro, a
mercadoria, o Estado... Abstrações concretas. Há uma “regressão
do concreto, diante do abstrato.”
“Sem cessar a tomada de consciência se despoja dos
elementos intuitivos, espontâneos para se elevar a
uma autonomia discursiva, absoluta ao ponto de
ignorar o recurso a uma experiência concreta da qual
ela era, entretanto, solidária nos seus inícios.”17

Neste momento de deterioração da experiência humana


possível, os termos ideológicos de sua aparição, entre outros,
são, de modo invertido, através da contraposição entre qualidade
ambiental e núcleos socialmente pobres: o controle da
urbanização indesejada, por exemplo, definida como de “baixa
qualidade ambiental e social” ou enquanto “ocupação informal”,
“assentamentos irregulares” e “espontâneos”.

17
VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse et le Comte de Lautréamont dans les
Poésies. (veiculado por internet, 2005).

62
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

A natureza humana e a natureza natural aparecem cindidas,


nesta economia de exploração que inclui a ambas.

...

Num processo de, através de um conceito e de sua negação,


superação, encontrar a formação de outro conceito, tem-se o
deciframento de seus elementos comuns, que tenderam a ser
superados, e de suas diferenças, tornadas contradições. Um convite
interessante é ensaiar o esboço de um movimento de dialetização
dos conceitos de meio geográfico e espaço geográfico.
A concepção de meio geográfico exaltava a atividade
humana, na relação do homem com a natureza. Definiu-se como
possibilista, inclusive, nesta medida: sob a determinação da
natureza, o homem apresenta-se como um elemento ativo do
processo civilizatório. A atividade humana era definida como
transformadora. Ao mesmo tempo, singular e universal. Definia
as especificidades de cada meio - especialmente considerando
que o homem, envolvido em certas condições naturais, era
diferente de outros, que viviam outras condições naturais, e à
base dessa diferença se constituía outra diferença, que era a
capacidade humana diferenciada de transformar as condições
naturais - e a universalidade do processo civilizatório em curso.
Em síntese, mais de uma civilização tendia a se realizar e
todo o processo sintetizava a formação do homem e de uma
natureza transformada. O plano era o dos fenômenos de longa
duração. As cidades, na sua identidade com qualquer outra cidade,
era uma mudança de processo que assustava. Ela alteraria a
compreensão clássica posta pelo pensamento geográfico. O que
foi se constituindo - aqui imobilizando, por análise, as influências
fora da geografia - foi o deciframento da natureza dessa atividade
humana: ela não era sempre a mesma. Havia uma particularidade
- dos tempos modernos - que, como mediação, precipitaria uma
transformação radical da compreensão da geografia como ciência

63
AMÉLIA LUISA DAMIANI

humana: a atividade humana, no capitalismo, concebida como


trabalho, sugeria a metamorfose do trabalho útil, concreto, que,
sem deixar de sê-lo, se realizaria como trabalho abstrato.
Nesse momento, o atributo do homem, o trabalho, se
colocaria, ao mesmo tempo, como realização do ser humano e
como perda de sua humanidade, como negação do homem. A
geografia passa a absorver a crítica da economia política, para
muitos, numa versão marxista estrutural.
Esta passagem é um exemplo, aqui reduzido, de
dialetização de um conceito da geografia, para demonstrar o
movimento de superação da geografia clássica e sua produção
como geografia contemporânea, mais propriamente como
geografia crítica. Se o meio, humanizado, seria a tradução da
humanidade do homem e da natureza humanizada; o espaço
geográfico seria a contradição entre o homem e a natureza; o
embate entre os homens, o domínio da natureza não coincidindo
com a apropriação da natureza.
O meio, tornado espaço, pela particularidade posta, se
resolve numa universalidade abstrata, que determina a negação de
sua singularidade: o espaço como mercadoria, o espaço se
homogeneizando, tornando-se apropriado para uma finalidade de
compra e venda e não de satisfação de necessidades cada vez mais
humanas. A satisfação das necessidades torna-se um meio, submetida
a uma finalidade, que, por sua vez, a transforma radicalmente.

...

Considero a Geografia uma das ciências do espaço e,


considero, também, que, por esta via, há um tratamento
particular do objeto de estudo, que inclui a problemática
temporal, mas de modo diferenciado. Simultaneamente, as
diversas temporalidades históricas se realizam no espaço e o
definem. Para nós, trabalhar com determinações históricas,
próprias de uma formação econômico-social - como a capitalista

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

– e com determinações gerais, referentes à história de longa


duração, define uma questão central.
A racionalidade do espaço implica ou não,
necessariamente, fatos de longa duração?
Haveria uma questão espacial própria da formação econômico-
social atual? Ela se sobrepõe às demais questões? Ela as elimina?
O que é da ordem do espacial é cumulativo no tempo. O
que é da ordem do espacial é mais diretamente ligado à estrutura
e à forma. O que é da ordem do espacial inclui a relação entre
elementos ecológicos e sociais. Sendo que os primeiros envolvem
um tratamento, que pode, e não necessariamente, traduzir-se
como próprio a fenômenos de longa duração; com relação
constitutiva com a natureza; na verdade, propondo uma lógica
de interação e organização envolvendo o homem e a natureza,
portanto, tendendo à sistêmica. Os elementos sociais, estes são
mais permeáveis a um tempo de curta duração, metamorfoseiam-
se segundo impulsos econômicos e políticos mais precisos
historicamente; remetem à relação homem-homem; tendendo
a se adequar a uma lógica dialética.
A Geografia, o tempo todo, está incluída neste possível-
impossível de relacionar fenômenos de natureza tão diversa.
Ora, tendemos a discernir a questão ecológica com acuidade
pormenorizada de tratamento físico-ambiental e, num salto no
abismo, escolhemos estratégias políticas para administrá-la,
passando por cima da natureza intrínseca do que é o institucional
numa época como a nossa: aquela do atrelamento do político
com o econômico, nos termos de um Estado de urgência, colado
na economia e, portanto, servindo-a. Por outro lado, meio sem
jeito, tratamos a questão social, de um ângulo complicado que é
a ótica do espacial. Dizia-se num determinado momento da
história das ciências, nesta própria Universidade, que a Geografia
era uma ciência que identificava ocupação e uso no e do espaço,
incapaz de decifrar a abstração concreta do valor de troca e do
valor, francamente a imperar na modernização da sociedade.

65
AMÉLIA LUISA DAMIANI

Uma Geografia sistêmica conduziu os estudos de Geografia


Física e uma Geografia Crítica refletiu a Geografia Humana que
estudava os fenômenos modernos e sociais. Este partilhamento
jamais o superamos. A crise ecológica atual, os instrumentos
técnicos à disposição do geógrafo, as formas de profissionalização
propostas por nossa época definem praticamente um segmento
da Geografia, cindido do outro, aquele que ensaia ler a
determinação da crise econômico-social.
O “ambiente urbano”, que vivenciamos, quer em São
Paulo, quer, possivelmente, em outras grandes metrópoles, põe
ambas determinações em embate - a determinação ecológica e
a determinação social. As áreas de proteção ambiental; as áreas
de conservação não se realizam plenamente como tais, são
assuntadas pela crise social, que reflete a gravidade da crise
econômica. É só examinar os milhões de moradores ao redor
das represas Billings e Guarapiranga, em São Paulo. Pesquisas
recentes sugerem, a propósito dos loteamentos da Represa
Guarapiranga, um mercado informal de terras muito lucrativo,
impulsionado pela própria legislação ambiental. O mesmo se
repete na Billings.18 Também importante considerar que, no
Programa Estratégico do Rodoanel, que chega a se pretender
enquanto uma estratégia de controle de espaços deteriorados e
socialmente degradados, pela “valorização” dos espaços
implicados, a idéia de qualidade ambiental se contrapõe a tais
espaços deteriorados. E o Programa apareceria como “inibidor
da ocupação irregular”.19

18
MARTINS, Sérgio Manuel Merêncio. Nos confins da metrópole: o urbano às
margens da represa Guarapiranga, em São Paulo. Tese de doutorado. São
Paulo: Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 1999. E BUENO, Ana Karina S. e REYDON,
Bastiann P. O mercado de terras informal nas áreas de mananciais. São
Paulo: UNICAMP (manuscrito); entre outras pesquisas.
19
Avaliação Ambiental Estratégica do Programa Rodoanel. Governo do Estado
de São Paulo, 2004.

66
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Outras pesquisas apontam a relação entre novos


empreendimentos imobiliários e a absorção não só discursiva do
ambientalismo, mas a utilização da legislação em benefício da
formatação dos novos negócios urbanos; um exemplo importante
é a recuperação da RPPN - reserva particular de patrimônio
natural - como parte constitutiva dos núcleos de condomínios
fechados.20 Ainda a acrescentar, as compensações, constantes da
Lei nº 11.216, de 2002, alterando a lei de proteção dos mananciais
de 1976, do estado de São Paulo, que remetem à vinculação ao
mesmo empreendimento de áreas de terreno ou gleba não
contíguas. A partir dessa nova legislação compensatória, é possível
a anexação, a um loteamento irregular, para regularizá-lo, de
uma área que passa a constituir uma reserva particular do
patrimônio natural (RPPN), protegida não pelo poder público,
mas pelos particulares. Com o tempo, pode vir a significar uma
valorização potencial futura, com a possibilidade de expulsão
da população do loteamento popular assim regularizado.
A compreensão sobre a metrópole de São Paulo, com a
qual venho trabalhando, pretende sintetizar, nesse sentido, a
concepção de urbanização crítica.
Do que precede: seria possível escolher entre os problemas
ambientais e sociais? Seria possível administrá-los?
Ambos imbricados estão a ressaltar a crise dos fundamentos
dessa economia de exploração, cuja solução aparece como o
impossível-possível, isto é, aponta para sua superação a necessária
crítica radical desses fundamentos, na teoria e na prática.

20
FREITAS, Eliano de Souza Martins. A reprodução social da metrópole em
Belo Horizonte: APA Sul RMBH, mapeando novas raridades. Tese de doutorado.
Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Geografia, Instituto de
Geociências, Universidade de Minas Gerais, 2004. Entre os exemplos,
destaca-se o “do empreendimento imobiliário ‘Vale dos Cristais’ (localizado
às margens da rodovia MG-030), resultado da articulação entre a Anglo-
Gold e a Odebrecht Engenharia e Construções.”(p. 246)

67
AMÉLIA LUISA DAMIANI

Voltando à concepção, acima levantada, a do cerne do


espacial e a Geografia, é inegável, desde meados do século XX,
no mundo inteiro, o sentido abrangente da urbanização; parte
significativa da população mundial vive nas cidades. É também
significativo o processo de homogeneização e fragmentação da
vida social e urbana. A este propósito, a noção de cotidianidade
traz à luz os termos da reprodução social atual. E há hierarquias
sociais, que se inscrevem no espaço dolorosamente. Em nossas
periferias, abrigando mais da metade da população da cidade,
se vive a distância física e social da cidade propriamente. O
desemprego e, no mundo do dinheiro, esses sem dinheiro
sobrevivem nesses guetos, confinados, tornados territórios, que,
abrigando políticas clientelistas, abrigam também
simultaneamente territórios religiosos vários, de fundamento
apocalíptico. A extensão do tecido urbano, por si só, define uma
questão ecológica importante: a extensão dos espaços de
concreto. “É exato afirmar que o quadro de vida e a qualidade
do ambiente passam ao grau das urgências e da problemática
política.”21 A presença possível de adensamentos populacionais,
através de novos loteamentos clandestinos e conjuntos
habitacionais, nas áreas periféricas já densamente ocupadas,
destrói a possibilidade de vida urbana. Portanto, observa-se uma
deterioração urbana, intensiva e extensiva, posta.
Vende-se qualidade de vida, vende-se “natureza”, a
demonstrar não o que temos, mas uma presença-ausência: o que
necessitamos e somente negando radicalmente essa forma de
reprodução social alcançaremos. Portanto, em síntese, a
problemática do cotidiano põe simultaneamente as questões
sociais e ambientais, sem resolvê-las institucionalmente; embora,
sejam invadidas pelas institucionalidades várias.

21
LEFEBVRE, Henri. Quand la ville se perd dans la métamorphose planétaire.
IN : La Somme et le Reste, nº 3, fevereiro de 2004, p. 24.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

“O urbano concebido e vivido como prática social está


em vias de deterioração e talvez de desaparição... Aí
se produz uma dialetização específica das relações
sociais, e é um segundo paradoxo: centros e periferias
se supõem e se opõem.”22

Na cidade, o citadino está em movimento perpétuo, no sentido


de que há um processo de transformação da situação geográfica da
cidade, própria do urbano como negócio, que, considerando a
valorização e capitalização do espaço urbano, impõe essa itinerância
urbana. Os mais pobres a vivem na pele e a aceitam como destino.
Impõe-se a necessidade da vida associativa e
autogestionária, que rompe com as instituições e não a alimentam.
“É preciso restituir o lugar eminente de formas bem
conhecidas mas um pouco negligenciadas, tais como
a vida associativa ou a autogestão, que adquirem um
outro conteúdo quando elas se aplicam ao urbano. A
questão é então de saber se o movimento social e
político pode se formular e se articular em torno dos
problemas pontuais mas entretanto concretos,
concernindo todas as dimensões da vida cotidiana.”23

O “ambiente urbano” se define como o lócus dessa síntese


de natureza espacial, com conteúdos sócio-ecológicos a resgatar.
E não poderia fazê-lo sob o modelo formal, sistêmico, pois está
cravado nas contradições desta sociedade.

...

O sentido do processo mercantil moderno é a economia


financeirizada extremamente volátil, gastando vorazmente

22
LEFEBVRE, Henri, fevereiro de 2004, p. 21.
23
Op. Cit. p. 22.

69
AMÉLIA LUISA DAMIANI

recursos humanos e recursos naturais e migrando


incessantemente.24 “A economia faz o homem à imagem da
mercadoria”25. Raoul Vaneigem chega a situar um estado de delírio
esquizofrênico: a estrita identificação entre o homem
desumanizado e a coisa que o desumaniza, ele se gasta como
humano. E esse universo de economia dilapidadora é um universo
concentracionário.26 Luta-se por inclusão não residual.
Verifica-se a intensificação de assimetrias entre
países que centralizam essa economia, que se financeiriza,
e aqueles que, de modo precário, dela fazem parte, sendo
que a América Latina e a África compõem
preferencialmente esses grupos de países - lembrando que
esta economia tem circuito mundial, mas seleciona espaços
de mercado privilegiados o tempo todo -, portanto há uma
crescente desigualdade, considerando a globalização e a
integração produtiva, comercial e financeira. 27
Nas questões sociais e econômicas a cidade personifica
esses processos: adotando-se estratégias de competitividade na
atração de investimentos e os poderes locais devendo promover
essas possibilidades de inserção nos espaços econômicos globais,
completamente envolvidos pelas agendas e organismos
internacionais de financiamento. A gestão, as ações deliberadas
das estratégias se tornam cada vez mais dominantes.
“Se se quer atrair os investimentos do setor privado
em lugares precisos, é preciso sem dúvida melhorar a
infra-estrutura, mas é preciso antes melhorar as
capacidades de gestão das autoridades locais. É uma

24
VANEIGEM, Raoul, 1996 e outros textos do autor.
25
Op. cit., p. 54.
26
VANEIGEM, Raoul,1996, p. 66.
27
BARRETO, Maria Inês. Inserção internacional de governos locais. Revista
Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, ano 17, nº 59, agosto/
setembro de 2004, p. 12-16, p. 12.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

transformação em profundidade das modalidades da


gestão urbana local [...] Ela é legitimada pela busca
de uma melhor rentabilidade dos investimentos
públicos e privados.”28

Entre os itens de inserção: a promoção econômica para o


exterior e a concepção e implementação de projetos urbanísticos.29
No mundo dessa economia, que inclui a cidade assim
francamente, a cidade se eleva a sujeito. Inclusive, cidades
populares, especialmente as pequenas, de inserção mais residual,
passam a se tornar cidades econômicas - verdadeiros complexos
produtivos -, o que pode substituir o grupo dominante local;
cidades culturais - envolvendo aí a presença do turismo, que
também altera substancialmente a inserção econômica e cultural
de sua população; etc. É uma transformação social: a cidade se
culturaliza, se economiza... 30 Para a compreensão dessa
possibilidade de interpretação da cidade, aqui apenas anunciada,
observe-se o tratamento do processo do capital como sujeito:
“A força coletiva do trabalho, sua condição de trabalho
social, é por fim a força coletiva do capital. Outro
tanto ocorre com a ciência. Outro tanto com a divisão
do trabalho, tal qual aparece enquanto divisão dos
empregos e da troca resultante. Todos os poderes
sociais da produção são forças produtivas do capital,
e este mesmo se apresenta, pois, como o sujeito
(grifo nosso) destas forças. Ante o trabalhador
individual esta associação aparece como acidental.
Aquele se vincula à sua própria associação com os

28
OSMONT, Annik. La banque mondiale et les villes – du développement à
l’ajustement. Paris: Karthala, 1995, p. 145.
29
BARRETO, Maria Inês, agosto/setembro de 2004, p. 15.
30
A partir de diálogo com Henri Lefebvre, publicado na revista M, de fevereiro
de 1988.

71
AMÉLIA LUISA DAMIANI

demais trabalhadores e à sua cooperação com eles como


algo alheio, como um modo de operar do capital.”31
Num plano abstrato de tratamento desses processos, quanto
ao espaço, eis um ensaio de movimento possível de uma crítica,
pretendendo-se de algum modo dialética: do espaço livre da
mercadoria - o espaço em si - à ocupação do espaço ou realidade
do espaço - o espaço diferencial.
Como termos do espaço livre da mercadoria32:
a) Enquanto pressuposto: um pensamento que põe o espaço
como a priori. Ao mesmo tempo neutro e dando universalidade
“fictícia” aos conteúdos reais. O espaço como continente. Re-
visitado, numa outra abordagem, o espaço, assim configurado,
seria a produção do vazio.
O espaço geométrico e vazio aparece como varredura ou
a “telescopagem”33 entre a geometria do espaço e a história do
espaço (uma oscilação entre ambas, como indústria da herança;

31
MARX, Karl, 1977, volume 2, p. 86.
“O capital [...] supõe já em certa escala, maior ou (p. 86) menor, uma
concentração; por um lado em forma objetiva, ou seja, como concentração
[...] de meios de subsistência, matéria-prima e instrumentos ou, para dizê-
lo em uma palavra, de dinheiro como forma geral da riqueza; e por outro
lado na forma subjetiva, a acumulação de forças de trabalho e concentração
das mesmas em um ponto, sob o comando do capital.” (p. 87)
“[...] quando se fala unicamente do capital, a concentração coincide com a
acumulação ou com o conceito do capital. Isto é, que ainda não constitui
uma determinação especial. Certamente, não obstante, o capital se enfrenta
desde o começo na qualidade de um ou de unidade frente aos trabalhadores
enquanto pluralidade. Desta sorte e frente ao trabalho aparece como a
concentração dos trabalhadores, como uma unidade externa a estes. Neste
sentido, a concentração está compreendida no conceito do capital [...] unidade
à margem dos mesmos.” (p. 92)
32
DEBORD, Guy, 1992.
33
O termo foi utilizado por Henri Lefebvre, em La production de l’espace. A
télescopage está no plano de uma ilusão, de uma confusão, de um misto de
realidade e representação, potencializado, por transferência e redefinição
de conteúdos, terrivelmente ativas.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

reinvenção das tradições). Henri Lefebvre fala, assim, em


acumulação primitiva do espaço.34
b) Como condição de existência: o espaço como ponto de
reunião de conjuntos de produtos específicos. Como conjunto que
não supera a exterioridade recíproca desses objetos. Socialmente
é a fragmentação-unificação dos conteúdos da vida individual e
social. Os limites de subjetivação que implica: a totalização pela
economia, a produção capitalista unificando o espaço na
fragmentação. Chega-se ao espaço enquanto espaço produtivo.35
Em direção à realidade do espaço:
a) Espaço geométrico como presença real, não só
existência lógica, mas sua “vivência” em estado de ambigüidade
(quando as contradições se deterioram, a oposição estagna, há
confusão, mistura dos termos em oposição). Que se leve, no plano
do conhecimento, a hipótese até o limite: vislumbrando da extensão
do mundo da mercadoria e do mercado ao deciframento das formas
insurgentes. Que se questione o equilíbrio espacial, e se ponha no
lugar uma geografia do movimento.
b) Decifrar os objetos em diferentes escalas é
suficiente? Somente se se reconhecer a sobreposição de escalas,
os entrecruzamentos, os imbricamentos: o local realizando o
mundial e incluindo, ao mesmo tempo, o subterrâneo.
c) Desdobramentos em dimensões: a trama, a rede é
suficiente? Sim, caso se realize a metamorfose: no lugar do espaço
em si, a ocupação do espaço (práticas espaciais) ou a realidade
do espaço, como negação da seleção dos espaços, negação de
um processo extensivo e intensivo de banalização posto pela
unificação (igualizando as diferenças: mercadorias produzidas

34
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000, 4ª edição.
35
A noção de supostos históricos e de a condição de existência são argumentos
decisivos sobre o movimento da acumulação originária do capital. MARX, Karl.
Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse)
1857-1858. Argentina: Siglo Veintiuno, 1977, volume 1.

73
AMÉLIA LUISA DAMIANI

em série para o espaço abstrato do mercado). Põem-se as qualidades


dos lugares, as diferenças: o espaço diferencial, vivido, a história
como ativa, como referência de acontecimentos, a implicação dos
espaços sociais, a deriva. A deriva tornando-se um procedimento
de conhecimento, de trabalho de campo, ainda potente.36

...

Dessa forma, é possível contrapor duas leituras de processos,


sendo que ambas ativas na produção das ações populares e estatistas:
1. Um empirismo a guiar o conhecimento, tendo a
experiência como seu fundamento, a determinação do particular e
do finito. Empirismo que rondou a geografia clássica, mas, na verdade,
mantém sua atualidade. É uma hipótese. Diante desse método, embora
ele contenha certa universalidade de tratamento do objeto e certa
unidade, o acento estaria na determinação do objeto como situação
conjuntural, a dos processos quando experienciados de modo que,
mesmo levando em conta a história - e ela aparece como sedimento
de um presente -, é o presente o que conta. A noção de processo
inclui aqui a de rupturas, sem sobras. Esse empirismo é combinado
com uma compreensão de separação nítida do objeto e do sujeito.
E o sujeito, livre da objetividade, pratica o mundo. É um
pensamento tecnocrático, muito atuante, movido por uma
racionalidade que pode se definir como técnico-burocrática. Quanto
ao urbano, guarda nessa concepção a definição de urbanização
desordenada, entre outras, que sugere a possibilidade de projetos
de planificação, fundados em uma “racionalidade técnica
competente”. Esse caos espacial, que, inversamente, pode ser um
sintoma complexo das circunstâncias próprias à deterioração das

36
A deriva se define como um “comportamento ‘lúdico-construtivo’; ligada a
uma percepção-concepção do espaço urbano enquanto labirinto: espaço a
‘decifrar’ (como decifrando um texto com características secretas) e a
descobrir pela experiência direta” (New Babylon, Constant - Art et Utopie –
textes situationnistes. Paris: Cercle d’Art, 1997, p. 14).

74
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

contradições; assim, da incapacidade de se vislumbrar sua superação e


não de correção.37 Enquanto caos espacial, pode-se conceber, ao invés
da urbanização desordenada, a urbanização crítica.
2. Uma outra leitura de processo ensaia superar a separação
sujeito-objeto; e definir o sujeito não por sua particularidade, mas
pela relação do particular e subjetivo com o que é universal e definido
como objetividade: as situações conjunturais estão envolvidas, ao mesmo
tempo, num processo histórico e num complexo estrutural.
Na primeira concepção, o conhecimento e a ação, que
sugere, são positivos.38 No segundo caso, inclui-se uma razão
definida pelo trabalho do negativo. 39 Em direção à prática,
incluindo o trabalho do negativo.

37
LEFEBVRE fala em oposição estagnante: “em que os termos se afrontam ‘face a
face’, significativamente, depois se separam, se misturam na confusão” (LEFEBVRE,
Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 2000, 4ª edição, p. 257).
38
“[...] é preciso em geral compreender por esta palavra o entendimento abstraindo
e por isto dividindo, que persevera em suas divisões. Voltado contra a razão ele se
comporta como senso comum, e faz valer suas visões segundo as quais a verdade
repousa sobre a realidade sensível e os pensamentos são somente pensamentos, no
sentido que é somente a percepção sensível que lhe dá conteúdo e realidade, e que
a razão, na medida em que ela permanece em e para si dá vida a quimeras... o
conceito de verdade se restringe ao conhecimento da verdade subjetiva, ao
fenômeno, alguma coisa que não corresponde à natureza da própria coisa, o
saber cai ao nível da opinião subjetiva.” [HEGEL, Morceaux choisis. Paris:
Gallimard, 1995 (1ª edição 1939), tradução de Henri Lefebvre e Norbert
Guterman, p. 77 (Ciência da Lógica ou Grande Lógica)].
39
“É preciso procurar o fundamento desta idéia tornada geral na descoberta do conflito
necessário das determinações do entendimento. A reflexão já mencionada consiste
em ir além do dado imediato concreto, de o determinar e de o dividir; mas ela deve
ir igualmente além de suas determinações fragmentadoras, e antes de tudo as
colocar em relação. No estágio desta relação seu conflito aparece; este
procedimento de relação operada pela reflexão pertence implicitamente à
Razão... chegar à descoberta do conflito é o grande passo negativo em direção
ao conceito verdadeiro da razão... a contradição é precisamente o ato pelo
qual a razão se eleva acima das limitações do entendimento e as dissolve” [Op.
cit. p. 78 (Ciência da Lógica ou Grande Lógica)].

75
AMÉLIA LUISA DAMIANI

Antonio Negri e Giuseppe Cocco falam que, do ponto de


vista de classe, a relação de exploração mexe diretamente com
a multidão. Dizem:
“Com certeza, a multidão se apresenta como força
produtiva, seu conceito integra (e não exclui) o
conceito de classe operária.”40

A categoria de multidão, que hoje se atualiza, fez parte


de um confronto de concepções, no século XVII, entre Spinoza e
Hobbes; sendo a primeira definidora de “uma pluralidade que
persiste como tal na cena pública [...] sem convergir no Uno”41,
próprio, por sua vez, de uma concepção de Hobbes, sobre o
povo, estreitamente ligado à existência do Estado: “depois da
instauração do Estado advém o povo-Uno, dotado de uma vontade
única”42; assim, a multidão, refrátária à obediência, é um conceito
anti-estatal. Neste momento, é a confirmação de que a ação estatista
não realiza a sociedade civil. A multidão apareceria como um
conceito negativo, ativo e potente: “a forma de existência social
e política dos muitos enquanto muitos... Para Spinoza, a multidão é
a base, o fundamento das liberdades civis.”43
O sítio dessa presença massificada é a cidade, mais
particularmente a metrópole. Para se realizar como multidão as
classes sociais, em particular a classe trabalhadora, se reproduzem
de modo concentrado. Trata-se de uma exigência do processo
de circulação do capital, mesmo com os avanços da divisão do
trabalho no processo produtivo, avanços que propõem a

40
NEGRI, Antonio e COCCO, Giuseppe. Novidades na América do Sul. Teoria e
Debate. São Paulo: FPABRAMO, abril/maio de 2005, ano 18, nº 62, p. 40/42.
41
VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para un análisis de las formas de
vida contemporáneas. Madri: Traficantes de Sueños, 2003, p. 21. (baseado
em Spinoza)
42
VIRNO, Paolo, 2003, p. 23.
43
VIRNO, Paolo, 2003, p. 22. (citando Spinoza em Tratado Político)

76
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

desconcentração; o processo do capital é concentrador: de


trabalhadores, de mercados, de mercadorias, de dinheiro, de
finanças, de fluxos do capital, de signos; da força de trabalho
como potência. Mas a particularidade do processo concentrador
e massificador é também política: é possível identificar a
produção política da massa, em detrimento da identidade da
classe trabalhadora. Esta contradição histórica a pelo menos meio
século se põe. Corroboram com esta situação particular as
estratégias de organização, controle, regulação das populações
e de sua mobilidade, na condição de trabalhadora, de moradora,
de visitante, que acabam por estender esse processo
concentrador, econômico e político, enquanto processo de
redução da vida cotidiana, então concentrador dos restos de
vida social e individual. Essa base particular do processo
concentrador, localizada na metrópole, é, ao mesmo tempo, a
universalidade do tempo e do espaço como valores de troca e a
luta mundial pelo seu emprego: o do tempo e do espaço: “uma
forma moderna de luta de classes”, imprevista por Marx, nos
termos de Henri Lefebvre”44.
Paolo Virno discorda do sinônimo massa-multidão; ao
contrário, trata-se para ele da subjetividade possível, neste
momento de negação da subjetividade das classes populares:
“os muitos devem ser pensados como individuação do universal,
do genérico, do comum compartido.”45
Mas os atos de revolta e revolução são artes e não
ciência positiva e dogmática, que reverbera através das
políticas estatistas.

44
LEFEBVRE, Henri. A propos du centenaire de la mort de Marx. Revue La
Somme et le Reste – études lefebvriennes – réseau mundial, nº 1, 2002, p.
20-26. São fragmentos de respostas de Henri Lefebvre a uma revista de
Belgrado, a propósito de um questionário sobre o socialismo no mundo.
Escritos referentes aos anos de 1983-84.
45
VIRNO, Paolo, 2003, p. 26.

77
AMÉLIA LUISA DAMIANI

“Mas as teorias não são feitas senão para morrer na guerra


do tempo: são unidades mais ou menos fortes que se
deve empregar no combate no momento justo; e sejam
quais forem seus méritos ou suas deficiências, certamente
não se pode empregar mais que aquelas que estão aí no
seu devido tempo. Assim como as teorias se devem
substituir porque se desgastam com as vitórias decisivas,
mais ainda que com as derrotas parciais, assim nenhuma
época viva saiu de uma teoria: no princípio estava um
jogo, um conflito, uma viagem.”46

...

A partir da urbanização crítica, supõem-se como premissas:


- a compreensão da miserabilidade potencializada neste
momento da história da formação econômico-social capitalista:
definida como processo de proletarização (destituição do lugar
produtivo do trabalhador). Sequer a funcionalidade de um
mercado informal de trabalho é suficiente para explicar o que
as crises social e econômica atuais apontam, nos termos de seu
sentido histórico mais amplo.
- a riqueza tornada processo expressivo de financeirização
implicada nesta economia.
- o envolvimento da urbanização neste processo de modo
nuclear: então se trata de urbanização crítica e não desordenada.
Há, inclusive, concentração de novos migrantes - dos últimos
dez anos - na fronteira periurbana da metrópole de São Paulo.
Os dois fundamentos anteriores são incluídos no sentido de vinculá-
los à urbanização crítica e permitir a superação do limite da
urbanização ser compreendido como “urbanização desordenada”.

46
DEBORD, Guy. In girum imus nocte et consumimur igni e basuras y escombros.
Barcelona: Anagrama, 2000, p. 27-28.

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BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Falar nestes termos implica muita coisa, não se resolve


facilmente. São sedimentos analíticos implicados, mutuamente
relacionados. As relações definem contradições externas e
internas e a metamorfose de uma na outra, isto é, a internalização
subseqüente, do que aparece em princípio como
condicionamento externo.
1. Que o processo urbano se realiza também como um
processo econômico da urbanização, que pode ser definido como
produção do espaço urbano.
2. Enquanto produção do espaço urbano, os elementos
materiais envolvidos nesta produção - edifícios (para todas as
formas de usos: comercial, serviços, industrial, doméstico...),
pontes, viadutos, produção dos subterrâneos adequados, estradas,
sistema viário de modo geral, canalizações - constituem formas
autônomas do capital ou condição tecnológica para o efetuar-se
do processo produtivo imediato (os lugares em que ocorre a
produção, a distribuição, a comercialização...). Esses elementos
materiais se realizam, enquanto determinação formal do capital,
como capital fixo, cuja realização do valor, e do mais-valor
envolvido, aparece sob formas financeiras cada vez mais
internacionalizadas, abstratas - envolvendo títulos,
endividamentos, consórcio entre o Estado e empresas, ações,
rendimentos balizados por juros, de remuneração mundial -, para
assegurar um retorno paulatino do valor adiantado - dada a
natureza desses elementos. Em síntese, o urbano de per si sempre
envolveu uma economia, enquanto determinação formal do
capital, de complexa realização; portanto, logo potencialmente
financeira, com todas as regulações implicadas enquanto
adiantamentos, para realizar como circulante um capital de
natureza fixo. Um momento dessa contabilidade financeira
complexa é a realização da moderna propriedade da terra urbana:
que tem buscado formas hiper-financeirizadas de realização e,
portanto, mobilização. Assim, muito cedo, a economia urbana
real incluiu uma economia fictícia. A relação entre a

79
AMÉLIA LUISA DAMIANI

materialidade dos elementos e sua constituição enquanto


determinação formal do capital vai se redefinindo para sua
realização enquanto tal (determinação formal do capital, tendo
por finalidade realizar a mais-valia). A magnitude da parte fixa
do capital aumenta, o que lhe é próprio, o define - inclusive
criticamente - e, ao mesmo tempo, produzem-se modos renovados
de lhe determinar como circulante: a verticalização é um grande
momento de tradução da materialidade em capital fixado enquanto
circulante. São os apartamentos, depois as cotas de grandes negócios
imobiliários. As Operações Urbanas também aperfeiçoam as formas
de realização de um corpo maior de edificações, definidas, também
e não só, como unidade e totalidade. Os Planos Estratégicos se
põem neste sentido também. Mas a possibilidade de realização do
capital assim fixado e fixado localmente - configurando a idéia de
ambiente construído: o capital fixado, inserido espacialmente a
determinar a consideração do sentido ativo dessa qualidade
espacial 47 - depende da possibilidade de valorização e/ou
capitalização do entorno implicado. A valorização do entorno realiza
- como renda da terra, como remunerações possíveis - as massas
fixadas, mesmo assim com o concurso de dotações do Estado,
consorciadas com capitais e fundos internacionais.
A considerar também aqui que tudo isso é processo,
movimento: altera-se o tempo todo o estado geral do urbano
economizado.
3. É necessário, na imagem dos sedimentos, neste momento,
incluir: um sedimento que é essa economia na sua particularidade
e, ao mesmo tempo, universalidade: considerando que a
situamos no processo do capital, implicado na urbanização.
Acompanhem, neste sentido, o trabalho de pesquisa em Geografia
sobre a reprodução crítica da economia urbana, envolvendo a
produção do espaço; a considerar as teses trabalhadas pela profa.

47
Para maior aprofundamento, HARVEY, David. Los límites del capitalismo y la teoría
marxista. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, capítulo VIII, p. 210-243.

80
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Ana Fani Alessandri Carlos48, sobre o capital imobiliário e as de


outros pesquisadores, cujos trabalhos são tão necessários para
tal desvendamento, pois têm que ser, por sua natureza complexa,
um trabalho coletivo. Outro sedimento é a população
trabalhadora atraída, para seus negócios (incluindo a produção
do espaço) e aqueles que os mesmos viabilizam - os próprios
processos produtivos imediatos -, com todas as derivações históricas
do processo de exploração. Nesse sentido, não só atrai, mas o faz
perversamente, pois, o tempo todo, é posta também uma população
superficial ao processo. Classicamente, o lumpen-proletariado. E,
hoje, este excedente é rigorosamente o proletariado sem a
possibilidade de inserção na produção, senão de modo contingente.
Quiçá nossa sociedade - a brasileira; assim como outras similares -
tenha posto cedo a impossibilidade da absorção produtiva do
trabalho potencial; não estando aquém do moderno sistema
produtivo, mas anunciando sua própria natureza crítica: a
sobrevivência instaurada no lugar da vida. Um terceiro sedimento
é aquele da espoliação urbana, para usar um termo já consolidado
de Lúcio Kowarick.49 Pois o espaço de localização dessa população
está implicado economicamente e, portanto, potencialmente
não serve às suas necessidades e vai ganhando preços cada vez
mais substanciosos - aqueles de denotam o processo de valorização
real e fictício. A finalidade não são as suas necessidades, mas tornar
capital: a terra, o edifício, o urbano... Até rentismos, mercado de
lotes e casas precário, sendo esses lotes periféricos de grande
potencial de absorção de rendimentos com formas creditícias
popularizadas para viabilizá-lo (aos preços dos aluguéis).50

48
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A reprodução da cidade como “negócio”. IN: CARLOS,
Ana Fani Alessandri e CARRERAS, Carles (orgs.) Urbanização e mundialização –
estudos sobre a metrópole. São Paulo: Contexto, 2005, p. 29-37.
49
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
50
BUENO, Ana Karina S. e REYDON, Bastiann P. O mercado de terras informal
nas áreas de mananciais. São Paulo: UNICAMP, manuscrito.

81
AMÉLIA LUISA DAMIANI

4. Houve uma literatura que concebia a necessária presença


dessa população trabalhadora potencial nas cidades, que
concentrava o substancial do moderno processo de produção.
Dela derivou um lugar à política habitacional governamental,
inclusive, com seu sentido político integrador. Mas logo se
reconheceu o outro da cidade preparada como condição do
capital: a “cidade” dos pobres urbanos, produzidos por esse
duplo processo de capitalização. Eram os cortiços, as favelas, o
aluguel e a casa própria auto-construída. Agora, também, os
conjuntos habitacionais, os loteamentos clandestinos, os
mutirões, as estratégias de mercantilização popular e clandestina
dos espaços de moradia popular; estes últimos inclusive definidos
como negócios lucrativos (especialmente quanto aos lotes
produzidos nas fronteiras urbanas, especialmente considerando
as estratégias de manutenção de parte do loteamento em espera
para valorizações potenciais).
A partir deste segmento é possível falar de segregação
sócio-espacial e centralidade como opostos e compostos.
5. Mas a cidade é real, com seus limites, e ela propõe
trajetórias. Não é possível resolver os espaços centrais como
espaços vazios para essa população proletarizada. As fronteiras
estão e, ao mesmo tempo, não estão estritamente delimitadas.
Lembro-me do prof. Pedro Vasconcelos a esse propósito no
tratamento da segregação espacial, no VIII SIMPURB - Simpósio
Nacional de Geografia Urbana51. Ele advogava a dificuldade de
falar em segregação espacial. É uma problemática, não um fato
empírico decisiva e facilmente constatado. Vera da Silva Telles
fala de trajetórias urbanas, enquanto “mobilidades urbanas:
trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, deslocamentos
cotidianos, que articulam trabalho, moradia e serviços urbanos.

51
VIII Simpósio de Geografia Urbana - Cidade, Espaço, Tempo, Civilização: por
“uma transformação radical da sociedade como sociedade política”, realizado
no Recife, em Pernambuco, no período de 10 a 14 de novembro de 2003.

82
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias individuais e


familiares.”52 Então, há segregação espacial, ela é recorrente e se
torna aguda hoje: são milhões de moradores nas franjas dos espaços
urbanos. Muda a medida do fenômeno periférico, com suas
conseqüências a enfrentar. Aqui se localiza o tratamento necessário
da multidão e essas multidões tendem a ser verdadeiras muralhas de
habitação popular, localizadas, que do ponto de vista da mobilidade do
capital são também mobilidades espaciais53. E, de alguma forma, torna-
se impossível não se relacionar com o outro da segregação: as
centralidades, inclusive, como bem lembradas pela profa. Odette
Carvalho de Lima Seabra, as centralidades das periferias.
Assim teríamos, espacialmente falando, do ponto de vista
da lógica do espaço e da realidade do espaço, a necessidade de
pensar na existência de redes, numa sociedade que, mesmo de
modo irrisório, põe o relacional.
Pierre George em Sociologia e Geografia avalia que é
comum a possibilidade de uma concepção da importância das
comunicações e das técnicas de informação enquanto elos de
cada lugar com o mundo; contudo, como são tecidas essas relações
no espaço vivido é mais complicado de considerar. A relação entre
o fenômeno urbano e o cotidiano na geografia urbana tornou-se
temática importante. Trata-se de uma temática aberta.

52
TELLES, Vera da Silva. Trajetórias urbanas: fios de uma descrição da cidade,
(no prelo), manuscrito p. 7.
53
Sobre este assunto é importante considerar as aquisições de outros trabalhos
envolvendo a alteração da natureza do fenômeno, de acordo com a diferença
de magnitude expressa. Trabalho com a noção de medida e sua importância
na compreensão das periferias metropolitanas. Um texto, sob o título
“Urbanización Crítica: Periferias Urbanas – Elementos a considerar en el camino
de la comprensión de la ciudad como sujeto”, contém uma análise nessa direção.
Texto que poderá ser publicado em livro, em Barcelona, ainda em 2006, referente
ao projeto “Globalización y Transformaciones Socio-Espaciales en las Metrópolis
del Siglo XXI: Barcelona y São Paulo”, coordenado pelos professores Ana Fani
Alessandri Carlos e Carles Carreras. Outros momentos da argumentação aqui
exposta compõem esse texto de modo mais analítico.

83
AMÉLIA LUISA DAMIANI

Com toda a necessidade de reconsideração, inclusive


proposta pelo próprio autor, em livros posteriores, é preciso
localizar o sentido da “grade de práticas espaciais”, intentada
por David Harvey em Condição Pós-moderna.54 Nos termos de
Roncayolo “a cidade é um campo de práticas”.55 Isto é, existem
níveis e dimensões de espaços a decifrar. Com toda a turbulência
implicada. Não existem só formas de combinação, mas rupturas
postas nessas implicações.
6. A noção de situação geográfica é de grande valia para
interpretar a materialidade do processo urbano e suas derivações
enquanto determinações formais do processo do capital. Desde
o início, a geografia concebeu essa necessidade de pôr a relação
do núcleo urbano com seu entorno e a concepção vem se
mobilizando desde então, para constituir a possibilidade de uma
geografia do movimento, sintonizada com os fundamentos da
sociedade contemporânea.
Deste ponto de vista, há uma metamorfose da
funcionalidade da presença do trabalhador potencial na do
morador temporário. A valorização e capitalização das periferias,
inclusive reproduzindo formas de especulação financeira e
fundiária, constitutivas de centralidades potenciais, acabam por
levar a uma acumulação primitiva desses espaços; isto é, uma
varredura dos seus usos e moradores existentes, em prol de novas
estratégias e empreendimentos. Considerando a imensidão das
periferias, as estratégias de expropriação devem ser gigantescas,
a exemplo do Rodoanel Mario Covas, em São Paulo, que envolve
potencialmente a metrópole inteira.

54
HARVEY. David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992, p. 203.
55
RONCAYOLO, Marcel. La ville et ses territoires. Paris: Gallimard, 1978,
citado por TELLES, Vera da Silva. Trajetórias urbanas: fios de uma descrição
da cidade (no prelo).

84
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

Exatamente tendo em vista esse processo de produção de


centralidades, envolvendo as periferias, pode-se pensar na presença
de equipamentos, como os shoppings centers, os hipermercados...,
que alteram as trajetórias e a dinâmica das periferias,
significativamente. E definem o sentido do processo de expropriação
potencial. Em São Paulo, um exemplo interessante é o do Shopping
Center Tatuapé, onde existe uma circulação de pobres urbanos da
região, que acaba por se tornar incômoda aos desígnios da promoção
espacial, surgida com a capitalização do “bairro” do Tatuapé.
7. A sobrevivência e a vida como contradições no plano
do possível-impossível, eis a conclusão. Os moradores vivendo
esse sentido de perda: os adensamentos habitacionais; a extensão
precária do tecido urbano; os territórios estritamente demarcados
- como o do tráfico de drogas. Sendo que a grande droga é essa
economia, que situa a destituição produtiva como incluída e a
necessidade e a atração sedutora de consumos diversos, que
alçam a presença do intermediário possível nesta situação limite:
os negócios ilegais e a proletarização e morte, que envolvem. O
tráfico de drogas faz parte das seduções dos consumos vários,
pois facilita o caminho a percorrer para realizar os desejos de
consumo administrados, próprios a essa economia.
Considerando essa base, toda ordem de institucionalidades
se põe como anteparo e solução; institucionalidades que também
perfazem as trajetórias mencionadas: descentralização dos
poderes políticos, clientelismos políticos e institucionais,
organizações não governamentais, igrejas, associações de
moradores nominais. Mas põem-se também ações insurgentes e
potenciais que buscam a vida, no interior da sobrevivência
reiterada todo dia. Elas são menos econômicas e mais diversas -
pois há limites de tratamento econômico dos seus fundamentos.
Diversas, diferentes, insurgentes, negando explicitamente os limites
de sobrevivência, localizando a possibilidade de vida: seu traço é
cultural e ambiental. Dando identidade irreverente a espaços
de sobrevivência, amontoados de gente sem infra-estruturas

85
AMÉLIA LUISA DAMIANI

urbanas. É a tentativa de buscar espaços qualitativos56, daí seu


perfil cultural e ambiental, diferente, neste último caso, das formas
institucionais dos ambientalismos.57 Espaços como diz um militante
amigo, Aldo: de busca da “extrema beleza como direito”.

...

BIBLIOGRAFIA

Avaliação Ambiental Estratégica do Programa Rodoanel. Governo


do Estado de São Paulo, 2004.
BARRETO, Maria Inês. Inserção internacional de governos locais.
Revista Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
ano 17, nº 59, agosto/setembro de 2004, p. 12-16.
BUENO, Ana Karina S. e REYDON, Bastiann P. O mercado de terras
informal nas áreas de mananciais. São Paulo: UNICAMP (manuscrito).
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A reprodução da cidade como
“negócio”. IN: CARLOS, Ana Fani Alessandri e CARRERAS, Carles
(orgs.) Urbanização e mundialização – estudos sobre a metrópole.
São Paulo: Contexto, 2005, p. 29-37.
DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
DEBORD, Guy. In girum imus nocte et consumimur igni e basuras
y escombros. Barcelona: Anagrama, 2000.
FREITAS, Eliano de Souza Martins. A reprodução social da metrópole em
Belo Horizonte: APA Sul RMBH, mapeando novas raridades. Tese de
doutorado. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Geografia,
Instituto de Geociências, Universidade de Minas Gerais, 2004.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
56
Ver o tratamento substancioso do tema em: SEABRA, Odette Carvalho de
Lima. Urbanização e fragmentação: cotidiano e vida de bairro na metamorfose
da cidade em metrópole. Tese de livre-docência. São Paulo: DG, FFLCH,
USP, 2003.
57
Sobre o significado do ambientalismo, ver: MARTINS, Sérgio Manuel
Merêncio, 1999.

86
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 55-88, 2005

HARVEY, David. Los límites del capitalismo y la teoría marxista.


México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
HEGEL, Morceaux choisis. Paris: Gallimard, 1995 (1ª edição 1939),
tradução de Henri Lefebvre e Norbert Guterman.
KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos,
2000, 4ª edição.
LEFEBVRE, Henri. Méthodologie des sciences. Paris: Anthropos, 2002.
LEFEBVRE, Henri. A propos du centenaire de la mort de Marx.
Revue La Somme et le Reste – études lefebvriennes – réseau
mundial, nº 1, 2002, p. 20-26.
LEFEBVRE, Henri. Quand la ville se perd dans la métamorphose
planétaire. Revue La Somme et le Reste – études lefebvriennes
– réseau mundial, nº 3, fevereiro de 2004, p. 21-24.
MARTINS, Sérgio Manuel Merêncio. Nos confins da metrópole: o urbano
às margens da represa Guarapiranga, em São Paulo. Tese de doutorado.
São Paulo: Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1999.
MARX, Karl. Elementos fundamentales para la crítica de la
economia política (Grundrisse) 1857-1858. Argentina: Siglo
Veintiuno, 1977, volumes 1 e 2.
NEGRI, Antonio e COCCO, Giuseppe. Novidades na América do
Sul. Teoria e Debate. São Paulo: FPABRAMO, abril/maio de 2005,
ano 18, nº 62, p. 40/42.
New Babylon, Constant - Art et Utopie – textes situationnistes.
Paris: Cercle d’Art, 1997.
OSMONT, Annik. La banque mondiale et les villes – du
développement à l’ajustement. Paris: Karthala, 1995.
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. Urbanização e fragmentação:
cotidiano e vida de bairro na metamorfose da cidade em
metrópole. Tese de livre-docência. São Paulo: Departamento de
Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 2003.

87
TELLES, Vera da Silva. Trajetórias urbanas: fios de uma descrição
da cidade (no prelo).
VANEIGEM, Raoul. Nous qui désirons sans fin. Paris: Gallimard, 1996.
VANEIGEM, Raoul. Isidore Ducasse et le Comte de Lautréamont
dans les Poésies (veiculado por internet, 2005).
VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para un análisis de las formas
de vida contemporáneas. Madri: Traficantes de Sueños, 2003.

88
PROBLEMÁTICA AMBIENTAL = AGENDA POLÍTICA
ESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

Arlete Moysés Rodrigues1

RESUMO

Este ensaio apresenta, com uma perspectiva crítica,


ponderações sobre o ideário do “desenvolvimento sustentável”.
Tenta mostrar que os problemas ambientais são utilizados, no
discurso oficial sobre desenvolvimento sustentável, como forma
de ocultar contradições de classe, de apropriação das riquezas
naturais, do território, através da construção do ideário das
riquezas naturais como bem comum e da necessidade de suprir
as necessidades da geração atual e da futura. Destaca a
importância da Geografia e dos Geógrafos para colocar em
destaque a complexidade do território, do espaço, das relações
sociais, que não existem sem expressão espacial.
Palavras-chaves: ambiente, espaço, território, classes sociais,
conflitos sociais, desenvolvimento sustentável.

INTRODUÇÃO

Este texto tem o objetivo de apresentar algumas análises


sobre a construção do ideário de desenvolvimento sustentável.2

1
Profa. Livre Docente da UNICAMP – amoyses@terra.com.br.
2
A pesquisa científica tem um tempo longo de maturação. Este texto foi
escrito especialmente para o Boletim Paulista de Geografia, mas as idéias
aqui contidas foram apresentadas em debates, simpósios, encontros, em
especial, na Semana de Meio Ambiente de Geografia da AGB-SP, em 2005.

89
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

Partimos do pressuposto de que o uso do termo provocou


deslocamentos de análises em relação ao território, às causas e
conseqüências da dilapidação das riquezas naturais, aprofundou
as formas de ocultar os conflitos entre classes sociais, transformou
a questão ambiental em agenda política de países e entre países.
Apresentamos algumas inquietações com a intenção de
propiciar debates sobre o tema que virou “moda” nas agendas
políticas, em programas, pesquisas, projetos. O desenvolvimento
sustentável é apresentado como “conceito” 3 , como um
“objetivo” a ser alcançado num futuro, visando “garantir as
necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as
gerações futuras atenderem também as suas”. Afirma-se que o
“conceito” tem limites (Nosso Futuro Comum, 1991) que deverão
ser superados com o avanço da tecnologia e da organização
social. Indagamos se o limite é conceitual ou se diz respeito aos
objetivos que se pretende obter.
Um conceito exprime uma noção abstrata que se refere
a um objeto suposto único, ou a uma classe de objetos. É
caracterizado por sua extensão e compreensão. Extensão significa
“o conjunto particular dos seres aos quais se estende este
conceito”, enquanto a compreensão refere-se ao “conjunto dos
caracteres, que constituem sua definição” (Japiassu, 1989:53).
Qual é a extensão que se pretende com o “conceito” de
desenvolvimento sustentável? Parece que é o planeta Terra. Quais
seriam os conjuntos de caracteres? Parece que tudo e nada ao
mesmo tempo, sem nenhuma contradição, conflito, sem análise
da complexidade da configuração do mundo real.
De acordo com Deleuze & Guattari (1991), conceito é
necessariamente complexo: “conceito é um todo, porque totaliza

3
Documentos oficiais da ONU, em especial o Relatório “Nosso Futuro Comum”,
afirmam que desenvolvimento sustentável é um conceito. Veja-se, em
especial “Nosso Futuro Comum/Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento” (1991- 2a edição).

90
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

seus componentes, mas um todo fragmentado... Todo conceito


remete a um problema e os problemas exigem ‘soluções’ pois são
decorrentes da pluralidade dos sujeitos, sua relação, de sua
apresentação recíproca” (Guattari, F, Deleuze, G. 1991:27-28).
O termo “desenvolvimento sustentável” não é um
conceito, mas uma idéia que pretende encontrar soluções para
problemas de esgotamento, poluição das riquezas naturais4, num
futuro... Idéia genérica que abstrai a realidade, oculta a
complexidade, a reflexividade 5 do modo de produção de
mercadorias, cria uma espessa cortina de fumaça sobre a
apropriação dos territórios, a existência de classes sociais,
dificulta a análise crítica6.
A junção das duas palavras – “desenvolvimento” e
“sustentável” – tornou-se “senso comum”, moda, consenso para
a formulação de políticas para utilizar as riquezas naturais (os
recursos) de modo a não destruí-las e, ao mesmo tempo,
continuar com o desenvolvimento, promover a “diminuição
da pobreza”. Tornou senso comum a preocupação com a
biosfera, o “bem comum”. Criou um ideário de que todos são
igualmente responsáveis pela depredação das riquezas e pela
preservação para as gerações futuras. Transformou a questão
ambiental em agenda política.
Como se contrapor à manutenção das condições de vida
para as gerações futuras? Como colocar a idéia dos bens vitais
como bens comuns? As idéias do meio ambiente “bem comum”
da humanidade, de preservar riquezas para as gerações futuras
são tão fortes que viram palavras mágicas?

4
Utilizamos “riqueza natural” como contraponto de “recursos naturais”, o
último caracterizando os elementos da natureza como mercadoria.
5
Sobre complexidade, veja-se Morin, E. e Moigne, 2000; sobre reflexividade,
veja-se Giddens, A.; Beck, U.; Lasch S. (1997).
6
O debate sobre se o termo é um conceito, uma noção, uma proposta é
importante para aprofundar o conhecimento de categorias analíticas.

91
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

Desenvolvimento sustentável passou a ser uma idéia


mágica (não um conceito) para a resolução de problemas do
meio-ambiente, do desenvolvimento e das “gerações futuras”.
Tornou senso comum a simplificação, a falta de análise de
complexidade. Aparece como um “conceito” sem instrumentais
teóricos analíticos que exprimam porque é tido como conceito.
Em vez de “ambiente” – que exprime a totalidade, a
complexidade –, a ênfase é dada ao “meio ambiente”, que parece
referir-se principalmente ao meio externo à sociedade, embora
pudesse, na sua origem, referir-se à totalidade do meio físico e
social.7 A sociedade é uma abstração nos documentos oficiais,
projetos, programas, pesquisas que utilizam o termo
“desenvolvimento sustentável”.8
Os problemas ambientais, do meio ambiente, são reais e
debatidos desde o século XVIII. Tornam-se mais conhecidos na
segunda metade do século XX. Não há neste texto negação da
problemática. As questões apresentadas dizem respeito à forma
como se traduzem problemas, contradições, conflitos,
problemáticas ambientais, sem considerar a realidade concreta.
A sociedade é dividida em classes sociais, em frações e
extratos de classes – que aparecem como classes de rendas, ricos
e os pobres. Simplificadamente, as classes sociais podem ser
diferenciadas entre, de um lado, aqueles que detêm o poder, o
dinheiro, o conhecimento e o domínio das técnicas e, de outro
lado, os que possuem a força de trabalho e que vivem, em
geral, no limite da sobrevivência. Todos têm como atributo
fundamental a capacidade de pensar. Mas a capacidade humana
de pensar, para os segundos, tem sido “reduzida” a “recursos

7
O meio ambiente entendido como externo à sociedade é visível quando se
analisam, por exemplo, os EIA-RIMAS e as propostas de mitigação de efeitos
dos empreendimentos ao meio físico. Não há idéias de compensação pelas
perdas imprimidas aos indivíduos.
8
Veja-se Relatório Nosso Futuro Comum, Agenda 21 (e as Agendas 21 locais).

92
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

humanos”, força de trabalho. São tidos como responsáveis por


suas mazelas e pelas da humanidade.9
Embora todos os componentes da sociedade sejam
promotores do desenvolvimento, o progresso é atribuído aos
detentores de capital, que criam empregos, recebem os “frutos
bons” do progresso. O trabalho não é considerado. Assim, os pobres
– a maioria – só recebem os “frutos podres”, não têm acesso a
educação, saúde, moradia, equipamentos, informação. São tidos
como os maiores responsáveis pela poluição, depredação das
riquezas naturais. Em 1962, a ONU, ao apontar que os recursos
naturais eram vitais para o desenvolvimento econômico, destacava
que o desenvolvimento econômico nos países menos desenvolvidos
poderia pôr em risco os recursos naturais (McCormick, 1992). Assim,
os pobres, os países pobres poderiam pôr em risco as riquezas,
embora já fosse conhecido que o maior uso e abuso das riquezas
naturais ocorria nos países do centro do sistema.
A proposta de crescimento zero do Clube de Roma, na
Conferência do Meio Ambiente, em 1972, está alicerçada nos
documentos anteriores da ONU e na idéia de que a preservação
dos recursos naturais só poderia ser obtida com o uso de alta
tecnologia sob a proteção dos países ricos.
Os problemas de esgotamento de riquezas naturais, a
poluição, o “medo” de destruição, o receio de perda de qualidade
de vida etc. são debatidos desde o início do processo de
industrialização, mas a preocupação se torna mais explícita após a
segunda metade do século XX. Como diz Baudrillard: “novos medos,
novos temores, recriam, várias pequenas lendas, religiosas, étnicas,
políticas ou a grande e falsa lenda planetária da informação, do
mundo conhecido, das técnicas e de seus usos futuros”.
Consideramos que entre as novas lendas está a do Desenvolvimento
Sustentável. Uma lenda, um mito, uma idéia para o futuro.

9
Atribui-se a pobreza aos pobres, a falta de empregos à falta de iniciativa da força de
trabalho, a dilapidação do meio ambiente aos países pobres e aos pobres, no geral.

93
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Para tornar explícita a idéia de que desenvolvimento


sustentável é um ideário construído que oculta as causas e as
conseqüências da problemática ambiental, que torna obscuro
compreender a existência de classes sociais, a importância do
território, as formas de apropriação das riquezas, apresentamos
uma breve síntese sobre os debates oficiais internacionais.
A 1 a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, em
Estocolmo, em 1972, apontava a preocupação internacional com
o desenvolvimento e o esgotamento de recursos. Os conflitos
entre o norte “desenvolvido” e o sul “subdesenvolvido”
expressavam também os interesses das corporações internacionais
na implantação de indústrias poluentes e na exploração de recursos
naturais dos países da periferia do sistema, porém apareciam
como conflitos entre países.
Na 2 a Conferência sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (CNUMAD), em 1992, no Rio de Janeiro,
referenciada na publicação do Relatório Nosso Futuro Comum,
que resultou na assinatura, pelos representantes dos países, da
Agenda 21, coloca-se o desenvolvimento sustentável como meta
a ser atingida, no futuro. Não se explicita quando será o futuro,
e para quem haverá futuro. A afirmação de que em 1962 os
interesses das corporações internacionais ficaram ocultos é
passível de ser observada quando se analisa que as propostas dos
países da periferia do sistema capitalista não foram contempladas
no ideário do desenvolvimento sustentável.
Desde a assinatura da Agenda 21, “desenvolvimento
sustentável” torna-se expressão “usual”, sem que se saiba quem
a utilizou pela primeira vez.10 Incorporar a palavra “sustentável”
a “desenvolvimento” foi um ajuste na terminologia, mantendo-
se o modo de produção de mercadorias e atribuindo os problemas

10
Nobre, Marcos e Amazonas, Maurício, 2002.

94
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

aos desvios do “modelo” de cada país, e não ao modo de produção


dominante. Também representou um ajuste das
“responsabilidades”, pois todos passaram a ser responsáveis pelos
problemas de esgotamento e poluição dos recursos.
É um princípio discursivo para tratar dos problemas
ambientais que ocultam a complexidade da problemática ambiental.
Desloca os conflitos de classes para a idéia abstrata de gerações.
Desloca as formas de apropriação das riquezas territoriais,
apropriadas privadamente, para a “natureza”, “a biosfera”, o “meio
ambiente” como bem comum. Obscurece, esconde a importância
do território. Deslocam-se, também, algumas análises da produção
para o consumo, que passa a ser objeto de programas da Agenda 21
e das Agendas 21 locais. A solução para os problemas do meio
ambiente advirá do uso de tecnologia “apropriada”.
A Agenda 21 local, em princípio, deveria ser a agenda de
cada um dos países que assinaram o documento da CNUMAD,
mas, em especial no Brasil, denomina-se de Agenda 21 local a
que se refere a projetos, propostas municipais.
A técnica parece neutra, para o bem e para o mal. Mas “Se a
técnica tomou a aparência de um potencia independente frente à
sociedade, é porque ela foi primeira utilizada para dominar o
trabalhador independente frente à sociedade” (Chesnais, F.,
Serfati, C. 2003:60). A aparência de neutralidade da técnica mostra
a importância que os países “desenvolvidos” e as corporações
internacionais têm no meio técnico-científico-informacional. São
os “zeladores” do meio ambiente para as gerações futuras.
Implanta-se a idéia, nas Agendas 21 locais, de que a
“preservação, conservação” dos recursos naturais poderá
provocar a “inclusão” social, em especial, com a coleta, separação
dos resíduos sólidos recicláveis. Teoricamente, vivendo de
“restos” da produção os excluídos seriam incluídos no sistema,
mas não no meio técnico-científico-informacional. Esse exemplo
da chamada “inclusão” nos mostra que a técnica não é neutra e
que serve como uma alavanca para dominar o trabalhador.

95
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

As abstrações em relação ao espaço, ao território, às


classes sociais iludem cientistas, técnicos, políticos. A ilusão faz
com que a expressão mais utilizada seja a de que “todos” devem
contribuir para o futuro da humanidade, para as gerações futuras.
É fundamental a contribuição de todos, mas não basta repetir
palavras vazias de conteúdo. É preciso analisar a realidade para
compreender o significado da “contribuição” de todos que está
expressa nos documentos oficiais.
Também é importante compreender a dinâmica da
natureza, que não obedece a fronteiras administrativas ou
políticas. Mas como compreender a dinâmica, o tempo geológico,
as diferentes escalas, se aparentemente as problemáticas podem
ser resolvidas com a tecnologia de ponta? Como “cuidar” das
riquezas naturais se o território parece não ter importância?
Onde estão as riquezas naturais? Qual a importância do território,
espaço, lugar, paisagem? Preservar áreas “reservadas” para a
perpetuação do capital e do modo capitalista de produzir mais
e mais mercadorias ou da sociedade? Como evitar a sociedade
do descartável e a sociedade descartável?
A questão ambiental, com o mito do desenvolvimento
sustentável, é elevada ao primeiro plano da agenda política e
todas as questões e problemas referem-se ao meio ambiente
como bem comum e as necessidades das gerações futuras.
Para alguns estudiosos, a aceitação de desenvolvimento
sustentável relacionado ao meio ambiente fornece um amplo leque
de alternativas decorrente da própria imprecisão do termo.
Consideram possível construir uma agenda política para mudanças
societárias. Busca-se legitimar o desenvolvimento sustentável com
definições sobre sustentabilidade social, política, econômica,
territorial, ecológica, espacial. Porém cada uma dessas definições é
contraditória em relação à outra, por exemplo, a sustentabilidade
econômica é contraditória com a idéia de sustentabilidade social.
A busca de legitimação científica com definições de
sustentabilidade aponta que o desenvolvimento sustentável

96
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

realizou a façanha de reunir visões antagônicas, mesmo sem nenhuma


formulação sobre quais os limites na utilização de recursos, sobre
os limites das ciências para compreender a biosfera.
O termo “sustentabilidade” foi utilizado inicialmente como
mediador, para lançar uma ponte entre os “desenvolvimentistas” e os
“ambientalistas” com um “conceito vago e inerentemente
contraditório, de modo que as correntes sem fim, de acadêmicos e
diplomatas, podiam passar muitas horas confortáveis tentando defini-
lo sem sucesso” (O’Riordan 1993:27 in Nobre, M. e Amazonas M.,
2000:42). Num grande número de pesquisas, projetos, “sustentabilidade”
e/ou “sustentável” aparecem como eixo norteador.
O ideário do desenvolvimento sustentável, da
sustentabilidade é uma espécie de resposta ao que era considerado
na década de 60 como limites do “desenvolvimento” (entendido
como crescimento econômico) e o meio ambiente (no sentido de
estoque de recursos naturais). O meio ambiente passa, assim, a ser o
tema mais importante do final do século XX e início do século XXI.
É preocupante verificar que a maioria dos que utilizam
“desenvolvimento sustentável”, “sustentabilidade”, parece aceitar
a questão ambiental como moda, agenda política, sem analisar como
se oculta a realidade. A construção discursiva do desenvolvimento
sustentável parece limitar também o desenvolvimento do principal
atributo do homem, ou seja, a capacidade de pensar.
Os deslocamentos discursivos impedem que se compreenda
que os conflitos de classe passaram, na agenda política
internacional, para os conflitos de gerações? Impede que se analise
a importância do território para a reprodução ampliada do
capital? Dificulta a análise do espaço, da produção do espaço,
do poder dos detentores do conhecimento, da tecnologia na
apropriação das riquezas naturais?11

11
Há também os oportunistas que buscam conseguir recursos para implantar
projetos, programas, empregos, trabalhos etc. Porém o que nos preocupa é
a forma como se ocultam as contradições e os conflitos.

97
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

É evidente que, para os capitalistas (chamados de eco-


capitalistas), a aceitação do desenvolvimento sustentável implica
impor regras de controle, usar novas tecnologias, obter
certificados de uso racional de recursos (ISOS), de controle de
resíduos e, sobretudo, permitir a continuidade de reprodução
ampliada do capital, conferindo-lhes legitimidade para a
concorrência com outras empresas “que não contribuem para a
preservação do meio ambiente”, não têm o certificado ambiental.
A institucionalização do termo “desenvolvimento
sustentável” está ligada à hegemonia da economia neoclássica
predominante no Banco Mundial quando da assinatura da Agenda
21, em 1992. A agenda política passa a ser construída tendo, como
meta, atingir o desenvolvimento sustentável e, como referencial,
o neoliberalismo. São os Estados que assinam a Agenda 21, no entanto
são as corporações multinacionais que detêm o poder da tecnologia.
Os Estados são responsáveis pela implementação, porém, para o
neoliberalismo, o Estado tem de ser “mínimo”. São formas de ocultar
a realidade através dos discursos.

ESPAÇO, TERRITÓRIO, CLASSES SOCIAIS

Os elementos da natureza, as riquezas naturais, as matérias-


primas passaram a ser “recursos naturais” que devem ser utilizados
para a reprodução ampliada do capital, mas, ao mesmo tempo,
têm de ser preservadas, sem contradições e conflitos, pois tudo se
resolverá no futuro. As riquezas naturais são mercadorias desde o
advento do capitalismo, porém a mercadificação atinge novas
dimensões, em especial com a hegemonia do pensamento neoliberal,
a financeirização da economia.
Até a primeira metade do século XX, falava-se em
matérias-primas e/ou fontes de energia para os elementos da
natureza como o ferro, o carvão, o betume, os vegetais, a hulha,
o carvão de pedra, a madeira, a água, entre outros. Embora

98
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

mercadorias e tidas como capitais naturais, a concepção era


diversa da atual. Observa-se inclusive que o valor não foi incluído
nas contabilidades. Exemplo: o guano (Peru), o ouro e a prata
(Américas), o diamante (África), o pau-brasil, o ferro, o carvão,
o petróleo eram riquezas naturais, compradas e vendidas no
mercado, mas o valor para a vida não era contabilizado.
Consideradas como riquezas “naturais” à disposição para
apropriação, uso e propriedade dos que as estavam explorando.
Dádiva divina para quem as explorava. O preço era estabelecido
pela raridade e pela exploração, não pelo seu valor.
Cabe lembrar que neste período – colonialismo e imperialismo
– o domínio do território era demarcado por posse, apropriação
direta ou indireta de territórios, e que essa característica altera-se
com o novo imperialismo. Além dessas riquezas naturais, desde o
final do século XX, são também mercadorias: a água, o ar puro, a
atmosfera, a biosfera em sua totalidade. Há a mercadificação da
paisagem, do ambiente e até mesmo sua financeirização, com
papéis que garantem a posse/propriedade das mercadorias no
território – a propriedade intelectual.
Vandana Shiva (Shiva, 1991) aponta que o fato de as
riquezas naturais não serem contabilizadas gera problema para a
economia. Repercutem no computo econômico mas, ao serem
omitidos nas contas, esquece-se de que o esgotamento ou a
limitação da exploração pode ser, por exemplo, fator de inflação.
A autora lembra que o valor em si não é computado. O que se
considera é o preço, o valor de mercado. Para se considerar o
valor, ter-se-ia de analisar o ambiente (incluída a sociedade, o
espaço etc.), debater o valor da vida, da água, do ar, dos
elementos e riquezas naturais. A financeirização da economia
retirou o lastro da produção e também a possibilidade de
incorporar o ambiente, desterritorializando o território, ao
mesmo tempo em que o tema “meio ambiente” é incorporado
na agenda política. Um exemplo: na exportação de madeira,
hoje incluída no “agronegócio” computa-se nos “custos” a mão-

99
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

de-obra barata e superexplorada, as máquinas utilizadas, o


transporte etc., mas não a árvore da qual foi retirada a madeira.
Ou seja, a madeira como mercadoria aparece no mercado, tem
um preço, mas não se analisa o seu valor, o tempo de formação
da vegetação, a retirada de água e de nutrientes do solo, etc.
A força de trabalho transformou-se em “recursos humanos”,
devendo ser treinada (ou adestrada) para não provocar
esgotamento dos “recursos naturais”. O deslocamento discursivo
de “ambiente” para “meio ambiente”, de “desenvolvimento” para
“desenvolvimento sustentável”, de “matérias-primas e energia”
para “recursos naturais”, da “força de trabalho” para “recursos
humanos” oculta a existência das classes sociais e a importância do
território, desloca conflitos de classes para o um suposto conflito
de gerações, e os conflitos de apropriação dos territórios para a
“natureza, ambiente”, o bem comum da humanidade.
O desenvolvimento sustentável busca o equilíbrio num futuro,
sem considerar o presente e o passado. Oculta o lugar, o espaço onde as
relações sociais concretas se constituem, existem, têm contradições e
conflitos. Assim, no futuro (sempre enunciado, mas nunca atingido),
utilizando-se alta tecnologia, grande volume de capitais, construir-se-
iam possibilidades de preservação dos “recursos naturais”.
Embora a problemática ambiental coloque em destaque
a importância do espaço12, a agenda política construída com os
problemas ambientais oculta o espaço, o território, transforma
o meio ambiente em bem comum, esconde as relações sociais.
De modo geral, a categoria de análise “espaço” permanece
“oculta”, com o pressuposto de que os problemas espaciais e
sociais seriam resolvidos no futuro, com o uso adequado das
“novas” tecnologias. Parece que o tempo futuro é o século XXI,
pois a Agenda é Agenda 21, as metas do milênio devem ser
atingidas no século XXI. Já estamos no século XXI, e os discursos
continuam a referir-se ao futuro.

12
Rodrigues, Arlete Moysés, 1998.

100
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

Se a tecnologia acelerou a degradação do ambiente, como


esperar que essa mesma tecnologia promova a sustentação do
modo de produção? Se as formas de produzir comprometem a
reprodução da vida presente, então como acreditar que sua
continuidade resolverá os problemas para as gerações futuras?
Nega-se e reafirma-se, ao mesmo tempo, a fé na ciência/
tecnologia. Nega-se na medida em que as tecnologias do passado
provocaram os problemas ambientais e precisa-se de tecnologias
adequadas. Reafirma-se na medida em que serão as novas
tecnologias que irão proporcionar o desenvolvimento sustentável.
Nega-se também a capacidade de “pensar” das gerações futuras
para encontrar outras formas de sobrevivência que não as atuais.
Oculta-se a importância do território, as contradições, os
conflitos da apropriação, propriedade dos meios de produção e
a existência de classes sociais. Ao ocultar as classes sociais e
deslocar os conflitos entre a geração presente e a futura, a
realidade transforma-se em abstração. Constrói-se o mito do
conceito de desenvolvimento sustentável.
O tempo curto de transformações sociais, desde a revolução
industrial até nossos dias, comparado com o tempo longo da
natureza, parece não ser obstáculo para o desenvolvimento
sustentável. O tempo de que se fala nunca existiu e parece que não
será alcançado nem nas gerações futuras. Sabemos que do século
XVIII ao XX as transformações provocaram a compressão do tempo/
espaço13, utilizando-se dos motores da história e suas poderosas
máquinas14, em especial o motor da informática, que provoca
mutação nas formas de produzir, comunicação instantânea, alterações
no ciclo da vida, decifração do código genético, que é guardado
em bancos de germoplasma (para o futuro), os avanços da
biotecnologia com a produção de transgênicos etc., reordenam o
processo de trabalho em todos os setores.

13
Veja-se Harvey, David, 1992.
14
Sobre a designação motores da história, veja-se Virilio, Paul.

101
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

É importante considerar que há um desafio para analisar


o espaço com mudanças substanciais no que se considerava
separação entre campo e cidade, entre urbano e rural. Junto
com as mercadorias, matérias-primas, produtos agrícolas,
exportam-se também elementos da natureza que se esgotam
(solo, água, energia da força de trabalho, dos lugares, riquezas
esgotáveis como o petróleo, carvão, utilizados como fonte de
energia diretamente ou indiretamente para as máquinas, os
motores utilizados para produzi-los) e a força de trabalho utilizada
tanto na produção direta como na indireta.
Como já dito, a apropriação das riquezas do ambiente,
do território, da força de trabalho não é considerada na agenda
política ambiental. Para destacar a importância do espaço, é
fundamental que analisemos a complexidade da produção,
reprodução, consumo. Trata-se de compreender como as idéias
de busca do futuro “esquecem” o passado e o presente, a do
“bem comum” “esquece” a importância do território e das
riquezas naturais, e como a preocupação com a geração futura
“esquece” as contradições e conflitos de classes.
A “nova” divisão territorial do trabalho, que Harvey (2005)
denomina apropriadamente de novo imperialismo, impõe o
domínio político e econômico com a financeirização, a
tecnologia, o poder das corporações multinacionais. No novo
imperialismo, as riquezas naturais, os “recursos” podem ser
patenteados, independentemente do local onde se encontram.
Um “papel”, o registro da patente, garante a “propriedade
intelectual” aos que detêm as técnicas. Os bancos de germoplasma
guardam o poder do conhecimento para o futuro. Guardar para
o futuro, em especial para as gerações futuras, é tido como uma
forma de garantir o meio ambiente – um bem comum da
humanidade. O Estado-Nação é subjugado pelas normas do capital
financeiro, do neoliberalismo.

102
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

CONSIDERAÇÕES GERAIS

O espaço, objeto de estudo da Geografia, é mais poderoso


do que a capacidade que temos de o analisar e das formas
retóricas e discursivas que tentam ocultá-lo, pois o poder de
intervenção ou atuação no espaço depende da apropriação e
propriedade (terra, capital, meios e força de produção) que
garantem o poder em seus vários matizes. O poder do espaço e
da Geografia que o analisa são demonstráveis pela tentativa de
ocultar a importância do espaço e dos Geógrafos.15
As contradições e conflitos de classe não aparecem,
“transformam-se” em direitos individuais, como mostra Harvey (op.cit)
ao analisar o processo de construção da hegemonia norte-americana.
As contradições e conflitos de classes são novamente transmutadas com
o ideário de preservação do meio ambiente para as gerações futuras.
Os conflitos de apropriação das riquezas naturais são transformados
com a tecnologia informacional, com o poder de conhecimento técnico,
com a agenda ambiental transformando-se em agenda política,
especialmente a agenda política do meio ambiente onde não há classes
sociais, território, conflitos, contradições.
O desenvolvimento como progresso produz sempre novas
mercadorias, consome força de trabalho, matérias-primas,
energia, compromete o ambiente, dilapida os elementos da
natureza, provoca poluição, altera o uso do solo, insere o mundo
no fetiche das contas, com a tentativa de ocultar o espaço e
diminuir a importância dos Geógrafos.16 Para mostrar a importância
do espaço, da Geografia é necessário compreender a
complexidade do mundo atual, o que não é uma tarefa fácil.

15
Veja-se Rodrigues, Arlete Moysés, 2004.
16
A Geografia ficou “subalterna” das ciências dominantes. Além da divisão social
e territorial do trabalho, é importante também considerar a divisão técnica do
trabalho entre as diferentes categorias profissionais. A problemática ambiental
mostra a importância da Geografia, e cabe aos Geógrafos não se intimidar
pelas tentativas discursivas e não aceitar a subalternidade.

103
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

Os deslocamentos dos discursos dificultam a análise das


relações entre sociedade e natureza. Coloca, em primeiro plano,
o desenvolvimento sustentável como meta para um futuro.
Um outro ideário para o desenvolvimento é apontado por
Amartya Sen (2002) que afirma que o desenvolvimento pode ser
visto como um processo de expansão das liberdades reais que as
pessoas desfrutam. A sociedade sustentável é um lema proposto
pelas ONGs e movimentos sociais em 1992. Pensar não ocupa
espaço, não polui a natureza, utiliza energia dos alimentos etc.,
mas não necessariamente com tantas máquinas, motores e
mercadorias. Sem pensar não há liberdade.
Segundo Amartya Sen, há diversos condicionantes para pensar
esse desenvolvimento como liberdade: acesso à saúde, à educação, ao
lazer, à cultura, à informação, ao conhecimento. Significa a remoção
das fontes de privação: remover a pobreza econômica, que rouba das
pessoas a liberdade de saciar a fome, de vestir-se, de morar. A remoção
das fontes de privação implica, necessariamente, a retomada da
importância do espaço, do território.
A liberdade, para o autor citado, envolve tanto os
processos que permitem a liberdade de ações e decisões como
as oportunidades reais que as pessoas têm, dadas as suas
circunstâncias pessoais, sociais, locais, regionais, nacionais. Esses
processos não ocorrem no espaço sideral, mas no território, no
espaço produto e condição da ação societária transformadora e
libertadora que tem como meta o desenvolvimento como
liberdade, a sociedade sustentável.
Parafraseando Neil Smith17, que aponta as dificuldades para
se contrapor aos discursos do “século americano”, no período
de construção da hegemonia norte-americana, indagamos se seria
possível negar a importância de pensar nas gerações futuras. Mas
ao mesmo tempo como pensar nas gerações futuras, se a geração

17
Smith, Neil in Harvey, David, 2005.

104
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

presente não tem participação na apropriação das riquezas? Em


que lugar, em que território, em que espaço, em que paisagem,
estará a geração futura? Esta é uma questão vital para que
possamos debater o espaço, o território, sua fundamental
importância para compreender o mundo presente.
Pensar o espaço com categorias de análise que mostrem as
contradições e conflitos permite considerar as liberdades dos indivíduos
como aspectos constitutivos básicos para compreender a construção da
matriz discursiva que responsabiliza todas as classes sociais pela
dilapidação das riquezas naturais, que torna o território ainda mais
abstrato na idéia da biosfera como bem comum, que oculta a importância
do espaço para a reprodução ampliada do capital.
Como tornar o espaço produto – o espaço segregado – em
espaço condição de mudança? Pensar no ambiente, no
desenvolvimento, significa, a meu ver, analisar o espaço produto,
o espaço segregado (lugares, locais, regiões, onde se concentram
os que não têm acesso ao conhecimento, à liberdade, à reprodução
adequada da vida), interferir neles, como condição de superação e
não apenas como condição de permanência da pobreza e exclusão.
Enfim, compreender o ambiente em seu significado e
significância é tentar compreender as relações societárias, as
relações da sociedade com a natureza, desenvolver a capacidade
de pensar, o desenvolvimento como liberdade, pode trazer à
tona, com sua plenitude, a importância do espaço, do território,
do lugar e outras categorias analíticas da Geografia.
Pensamos que os desafios de compreender como se torna
senso comum falar em desenvolvimento sustentável,
sustentabilidade, na garantia de vida das gerações futuras, na
biosfera como bem comum só poderão ser transpostos se nós,
Geógrafos, nos propusermos a debater algumas questões
fundamentais do mundo contemporâneo. Este é o objetivo das
questões apresentadas neste texto.

105
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

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São Paulo, 27/02/05. Caderno Mais.
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106
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 89-107, 2005

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107
108
O ORDENAMENTO TERRITORIAL CAPITALISTA E A
ESPACIALIDADE BRASILEIRA ATUAL: UMA
INTRODUÇÃO AO DEBATE DA RELAÇÃO ENTRE
FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E BLOCO HISTÓRICO

THE CAPITALIST TERRITORIAL ARRANGEMENT AND THE


CONTEMPORARY BRAZILIAN SPATIALITY: AN INTRODUCTION
TO THE DEBATE CONCERNING THE RELATION BETWEEN
SOCIOSPATIAL FORMATION AND HISTORICAL BLOCK

William Rosa Alves1

RESUMO

Parte-se da hipótese de que, desde as mudanças parciais


no modo de regulação da formação socioespacial brasileira (com
a eleição de Collor de Mello para Presidente), forma-se um bloco
histórico (no sentido gramsciano) que avançou para uma quase-
hegemonia no Brasil. Considerando-se que as repercussões de
tal processo na dimensão espacial-territorial ainda não têm sido
analisadas e refletidas o suficiente pela Geografia Brasileira ao
nível do entendimento, pretende-se demonstrar, por ocasião da
governança conseguida por Luís Inácio Lula da Silva, as
permanências e mudanças recentes na espacialidade brasileira.
Palavras-chave: Brasil: espacialidades; Brasil: formação
socioespacial; Brasil: hegemonia; Brasil: movimentos sociais.

1
Professor de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG;
Estudante de doutorado em Geografia da Universidade Federal Fluminense
– UFF; Coordenador de Assuntos Urbanos e Meio Ambiente da Associação
dos Geógrafos Brasileiros – Seção Local de Belo Horizonte – AGB-SLBH.

109
WILLIAM ROSA ALVES

ABSTRACT
This paper starts from the hypothesis that, since some partial
changes occurred in the way of regulation of the Brazilian sociospatial
formation (with the election of Collor de Mello for President), a
historical block was formed (in the gramscian sense), which attained
a quasi hegemony in Brazil. Considering that the repercussions of
such process in the spatial-territorial dimension havent yet been
sufficiently analysed and reflected upon by Brazilian Geography, at
the level of its understanding, this paper intends to show, in the
occasion of the govern of Luís Inácio Lula da Silva, what remained
the same and what was recently changed in Brazilian spatiality.
Keywords: Brazil: spatialities; Brazil: sociospatial
formation; Brazil: hegemony; Brazil: social movements.

Ao Thiers e à Ruth, geógrafos em formação sublimada em 2006

“O que é o que é?
São sete mortos esticados
E cinco vivos passando
Os vivos estão calados
E os mortos estão cantando...”
(Adivinha cantada em moda de viola no interior de
Minas Gerais desde as calendas do século XX)

PRÓLOGO E INTRODUÇÃO

A título de provocação, relato mui brevemente um episódio


que nos chama a pensar sobre o que se vive como geógrafas(os) e
professora(e)s de Geografia: uma amiga professora, enquanto
gestante, instintivamente rumava às geladeiras em busca de algo
que nunca descobriu por si própria. Olhava o aparelho com a porta

110
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

aberta por vários minutos e, com a consciência de tal perplexidade,


irritava-se e chorava. Foi assim até que uma amiga comentou que,
quando grávida, chupava gelo compulsivamente. Foi o suficiente
para a professora acorrer com freqüência aos refrigeradores para
“descontar o tempo perdido” sem o seu “delicioso” gelo. Superou
assim alguns dos vários períodos de depressão emocional.
A provocação acima nos serve para iniciar ou continuar a
pensar sobre os desencontros entre a Geografia e as contradições
entre a potência do mundo contemporâneo – fase que chamamos
de “urbanização crítica”2 – e a mundialização da miséria como relação
socioespacial3 fundamental e extensiva. Diante de um objeto
moderno – a geladeira –, alguém de nós – chamadas/os pela
“Geografia Crítica” a contribuir para a compreensão da realidade
por meio da categoria espaço – já não percebe – e assim muito
menos pensa e entende – sua própria amplitude humana por meio
do sensório. É uma evidência da ausência do sensível – no sentido
dinâmico e projetivo, utópico, enfim. Propomos à Geografia uma
análise das lacunas e opacidades que impedem um conhecimento

2
Expressão construída por Henri Lefebvre (1999, em esp. cap. 1) para exprimir
a idéia de que quanto mais esta sociedade produzir – coisas – mais ela segregará
as possibilidades de apropriação. Amélia Luisa Damiani (2000, em esp. p. 28)
explica-a como “pura negatividade: o trabalho como miséria absoluta”.
3
Na Geografia Brasileira, até onde chegamos, mais contribuíram para a elaboração
da idéia de formação socioespacial Milton Santos (1977), Ariovaldo Umbelino de
Oliveira (1988) e Ruy Moreira (1994); esses tensionaram o binômio Tempo x Espaço
nos termos positivista kantiano e buscaram desenvolver referentes teórico-
conceituais mais íntegros a fim de corresponder à inteireza e sincronicidade do
mundo contemporâneo. Quanto ao primeiro geógrafo, entre os muitos comentários
encontra-se no exame de Anselmo Alfredo (2005) uma análise mais próxima da
idéia de movimento – íntegro nalgum sentido, embora não o realize em absoluto, e
não somente como soma dos fluxos mostrados pelas digressões parciais. A
concretização de abstração da formação socioespacial é, grosso modo, a
espacialidade, temporal, histórica, correspondente aos conteúdos presentes
somados aos virtuais da formação social, ou seja, um projeto que nega o presente
– não para eliminá-lo, mas selecionar dele elementos que reafirmem tática e
estrategicamente um projeto, mesmo que não-esclarecido (Milton Santos, 1978).

111
WILLIAM ROSA ALVES

efetivo do(s) movimento(s) que nos atingem, impelem e aprisionam


rumo a uma unidimensionalidade alienada e alienante como produtores
de saberes e fazeres a fim de superação dos limites por ora apresentados.
Do debate da Geografia na formação socioespacial francesa
que viu e sentiu as “barricadas do desejo” no maio de 1968, até os dias
de hoje considera-se como contribuição fundamental a discussão teórica
da totalidade como categoria a ser explorada e desvendada em prol
da compreensão do “mundo moderno”. Quanto aos desdobramentos
de tal episódio, Ruy Moreira (1992) relata o período de 1978 a 1988
como o de maior transformação – chamada desde então de “renovação”
– da Geografia Brasileira (a irrupção dos presentes ao 3º Encontro Nacional
de Geógrafos em Fortaleza), e indica as fases e os seus respectivos
elementos temáticos que questionaram efusivamente o compromisso
da institucionalidade da Geografia por aqui praticada. Selecionamos
entre as idéias de tal artigo a perspectiva de desenvolvimento de
conceitos que propiciassem diálogos e práticas que relacionassem, como
espacialidade e territorialidade, a formação socioespacial brasileira
com a formação mundial(izada). O autor já empunhava a necessária
consideração da escala a partir dos escritos de Yves Lacoste e do
espaço como Henri Lefebvre e Milton Santos – cada qual à sua maneira
– analisavam, e sua gana por uma “teoria transparente” permanece
como requisito a uma possibilidade de intervenção, por meio de
uma – agora – Geografia Brasileira, a fim de emancipação sem
constrangimentos de qualquer ordem.
Naquele momento, parte das elaborações da Geografia por aqui
desenvolvida contrapunha-se às representações da formação
socioespacial da integração passiva à ordem mundial mercantil por
meio do crescimento econômico sem a contrapartida do
“desenvolvimento social” – como alertava desde a crise do imperialismo
capitalista – revelada com a Segunda Guerra Mundial – uma
intelectualidade significada com Caio Prado Júnior, Celso Furtado,
Florestan Fernandes e tantas e tantos com gana de brasilidade autônoma,
soberana e emancipatória. Comparando-se com a plêiade que se
apresenta atualmente como “Geografia Brasileira”, a primeira impressão

112
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

é que há um crescimento e diversificação notáveis da disciplina, tanto


em termos das temáticas assumidamente “internas”, como as interfaces
– ditas multi, inter e transdisciplinares – nos envolvimentos com os
demais campos disciplinares científicos institucionalizados, iniciativas
e projetos dos chamados “movimentos sociais”4 e mesmo a coalizão de
governança autodita “democrático-popular” que se apresenta nas várias
esferas da atuação do Estado no sentido estrito – as instituições
oficiais – e amplo – a sociedade civil organizada 5. Este texto

4
Considera-se que aí cabem movimentos que na sua origem empunharam perspectiva
distinta do sentido geral de docilidade frente às contradições geradas pelo próprio
desenvolvimento do capital na formação socioespacial brasileira, mesmo que de
forma relativa em razão de suas particularidades – como os populares, os sindicais
de trabalhadores, os de “minorias” etc. A expressão, a nosso ver, carece ainda hoje
de densidade conceitual, pois que o adjetivo “social” a qualquer movimento em
geral pressupõe uma perspectiva teleológica ampla e profunda de transformação
social, que quase sempre não se encontra na própria fala dos protagonistas. Assim,
acompanhamos a vertente teórica de Eder Sader ([1988] 1995), que se não antecipa
conteúdo às práticas dos agentes investigados e as exacerba em nome de uma
história heróica, não as reduz às contingências de sua fundação. A partir da idéia de
“configurações sociais”, o autor reconhece em seus fazeres um “sentido novo”
reconhecido pelos próprios em razão das pequenas mas valiosas conquistas
num cotidiano amesquinhado por uma urbanização-metropolização voltados
para a apropriação privada dos meios de vida. Foi concreta a articulação das
lutas, a confluência das reivindicações e a integração das formas e conteúdos
de cidade e urbano – por vezes imaginada até como país e nação – que, aí sim,
os consistiram como movimentos sociais.
5
“Tanto em Marx como em Gramsci a sociedade civil – e não mais o Estado, como em
Hegel – representa o momento ativo e positivo do desenvolvimento histórico... [e
em Marx] esse momento ativo é estrutural, enquanto em Gramsci é superestrutura”
(Norberto Bobbio, O conceito de sociedade civil, Trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio
de Janeiro, Graal, 1982, p. 33, citado em Marco Aurélio Nogueira, 2000/2001, nota
5, p. 121). Mas o próprio Nogueira alerta para uma relação dialética em que a
formação da sociedade civil pode tanto contribuir para a organização do povo a fim
de protegê-lo da negação de sua superação como explorado-dominado, como favorece
a pretensão de uma classe em converter-se no próprio Estado (p. 121). Miguel
Abensour (1998) avança quando acompanha o alerta marxiano para o risco de a
sociedade civil aproximar-se da anatomia da ação cilvilizatória da burguesia, que
institui a simbiose entre Estado e mercado e, no limite, um totalitarismo com
fachada de “democracia”, a “democracia burguesa”.

113
WILLIAM ROSA ALVES

pretende indicar alguns eixos de reflexão sobre os


fundamentos da espacialidade-territorialidade que no Brasil
desafiam a perspectiva de contribuição ao entendimento
do(s) sentido(s) da reprodução social – e socioespacial –
por ora mais próxima da hegemonia, a reiterar a permanente
separação entre a potência de produzir objetos-mercadorias
e as possibilidades de apropriação e produção de humanidade.
Mais precisamente, prioriza a reflexão sobre o ordenamento
territorial a que estamos submetidos na espacialidade
contemporânea brasileira, considerando a hipótese de que
um campo de mobilização oriundo e insistente das lutas
por uma territorialidade livre, ruma para a colaboração com
a aceleração, reverberando assim uma perspectiva redentora
da classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho 6 por
meios das formas e do sentido próprio da modernização
capitalista: o crescimento – cada vez mais centrado na
circulação – do próprio capital, como se somente através de
uma distribuição das estreitas formas vigentes da riqueza se
possa ampliar as possibilidades de humanidade entre nós.
Trata-se da constituição e instituição contemporânea de

6
A partir e com Ricardo Antunes (2000, p. 101 e ss.), propõe-se o conceito de
“classe-que-vive-da-venda-do-próprio-trabalho”, pois que a totalização e
hipostasia do trabalho no contexto da mundialização do capital implica em
expansão e heterogeneização das subsunções formal e real à totalidade da
superfície do planeta e todos os momentos e tempos da vida dos seres
humanos, fato que até aprofunda, através da mercantilização das dimensões
da vida – nunca absolutamente – o domínio do trabalho-do-outro por parcela
restrita da humanidade – a classe proprietária. O autor indica que a expressão
é mais abrangente que a “classe trabalhadora” (de Karl Marx) e assim tenta
atualizá-la. A nosso ver é deveras mais consistente para o período atual da
modernização crítica, não só porque contempla as formas que não se
apresentam como trabalho manual direto, operário fabril ou agrícola, mas
por que se afirma numa locução verbal (“que-vive-da-venda-...”) e não de
em uma adjetivação (“trabalhadora”), que no chamado “mundo ocidental”,
se instituiu como senso comum moral, de “trabalhador(a) assíduo e honesto”.

114
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

um bloco histórico7, algo inédito na formação socioespacial


brasileira e que requer, por parte da Geografia, atenção que pode
contribuir para o entendimento do sentido – significado e tendências
com potências e limites – que a espacialidade brasileira atual assume
ou pode assumir nas querências de uma efetiva transformação social.

EXPRESSÕES ATUAIS E FUNDAMENTOS HISTÓRICOS


DA FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL BRASILEIRA

A formação socioespacial brasileira vive o aprofundamento


gradativo – cuja exposição midiática é extremamente seletiva –
das contradições que constituem o momento em que a produção
de mercadorias amplia-se sem aparentemente comprometer suas
condições de permanência ou crescimento. Ao mesmo tempo
em que o crescimento dos volumes e valores monetários da
produção e da reprodução do dinheiro aparecem,
respectivamente, como recordes das exportações sem diminuição
do consumo pelo mercado interno, e como crescimento
significativo da rentabilidade das maiores instituições financeiras
– em especial os bancos de varejo –, é notória a precarização

7
A expressão é elaborada de forma mais conceitual por Gramsci ([1955] 1981,
p. 31-63), que ao discutir os traços mais permanentes da Filosofia e da
História presentes no debate do campo do Materialismo Histórico-Dialético,
infere seu descolamento com o mundo real e assim tornarem-se justificação
da exploração-dominação. Na perspectiva de construir um conhecimento
popular – e suas ações genuínas correspondentes – rumo à superação do
senso comum pragmático, Gramsci explora questões particulares transversais
– religião, individualismo, ciência etc. – para encontrar, via concretude das
contradições vigentes nas formações econômico-sociais debatidas pelos
“filósofos materialistas”, um fundamento real que dá coerência – ordem e
eficácia – ao modo de produção capitalista: o bloco histórico. Assim, a expressão
significa uma integridade e dialética entre a “infra-estrutura” e a “super-
estrutura” a ponto da “inversão da práxis” (p.52), o que para nós pode significar
uma chave para reflexão sobre as contradições teoria-práxis do campo
“democrático-popular” expressas mais amplamente no governo Lula.

115
WILLIAM ROSA ALVES

das condições de trabalho e intertrabalho8 para a maioria de


quem vive por aqui como semiproprietário ou não-proprietário
do além de si mesmo – sua força de trabalho. Se pululam falas da
instabilidade e fraqueza do crescimento econômico medido pelo
Produto Interno Bruto (PIB), por outro lado observamos que não
se interrompeu um modelo de reprodução social que acirra a
desigualdade em quaisquer termos que se considere9. Os debates
atuais quanto às orientações do governo de Luis Inácio Lula da

8
Acompanhando Ricardo Antunes (2000), o intertrabalho é a articulação entre
o trabalho concreto (produtor dos objetos de valor de uso) e o trabalho
abstrato (produtor dos objetos de valor de troca, as mercadorias). Se há
como distingui-los, tampouco há como separá-los, pois como atividade
propriamente humana o trabalho traz ao mundo conteúdo que interfere na
vida humana. Com a modernização, cada vez mais as atividades repercutem-
se tendentes a um sistema, a totalidade, que não se completa nunca. A
apropriação do trabalho – sentido genérico – é também cada vez mais
complexa, porque suas formas se multiplicam e assim geram e desenvolvem
níveis cuja realização mercantil varia, mas sempre com algum grau de
composição pró-capital: a mesma atividade pode, no decorrer de um período,
assumir uma forma tipicamente capitalista e em outro momento não. Um
exemplo singelo é a sazonalidade do trabalho agrícola de semicamponeses,
que podem ser requisitados por empresas da agroindústria a qualquer
momento do ano, dependendo da demanda do mercado capitalista de gêneros
agrícolas. Assim, em alguns anos na mesma estação climática ocorre evasão
relativa de homens jovens trabalhando, pois como mais produtivos e
rentáveis, e assim considerados mais competitivos no trabalho abstrato,
deixam as lavouras rústicas das suas propriedades familiares para as
mulheres, as/os sexagenárias/os e até as crianças e adolescentes.
9
A partir da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) da Fundação
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pesquisadoras/es
confluem para a revelação de um ciclo de acirramento da desigualdade
socioeconômica no Brasil até 2002, seguido de algum arrefecimento desde
2003. Porém, a forma predominante de tal reversão relativa não tem sido o
emprego formal, mas os programas governamentais como o Bolsa-Família,
o que é visto por quase todas/os as/os analistas como forma insuficiente para
uma reversão da concentração das riquezas nas suas diversas formas de efetiva
apropriação. (Cf. “Pobres se distanciam de ricos e dependem mais do governo”,
Folha de São Paulo. Brasil. São Paulo, 25 de dezembro de 2005).

116
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

Silva (desde 2003 e com a possibilidade de reeleição neste 2006)


pouco colocam em questão mais do que o próprio sentido
capitalista de uma via brasileira: mesmo os “desenvolvimentistas”,
entre os quais alguns arautos de uma “soberania nacional” não
trazem à baila as contradições permanentes de tal formação.
Assim – e sobretudo na mass media, a “grande imprensa” – são
apresentados de um lado ou de outro quaisquer indicadores que
revelem “teses” quanto ao desempenho e projeto econômico-
social. Em tal contexto, é relevante “Geografizar” o que está
oculto no debate: a dimensão espacial do sentido que tem
reiterado os fundamentos dessa modernização, que a nosso ver
instituiu a “cidadania competitiva”.
Por isto que a referência conceitual da formação
socioespacial e da espacialidade é a que nos embasa a fim de
uma chegada a uma problematização atual da Geografia
Brasileira, pois que se constituem em expressões contínuas do(s)
movimento(s) do mundo; são unidade na diversidade e unidade
da diversidade; constituem particularidade(s) e não singularidade
versus absoluto em separado, pois que são mediação(ões) entre
o singular – quase sempre apresentado pela Geografia como
“local” – e o total – “global” ou “mundial”, a depender do fenômeno
objetivado. A formação socioespacial e a espacialidade não são
transparentes quanto ao movimento, pois que sendo este complexo
e contraditório, sua representação jamais é instantânea. Daí se
observar o tempo como mediação do próprio espaço, constituindo
enfim a formação socioespacial – sentido geral – e espacialidade –
momentos e fases não-etapistas, pois o processo não é linear.
No caso do Brasil, a sucessão das espacialidades foi imposta
como território colonial virtualmente desde antes do dito
“descobrimento” – pois que o arranjo da propriedade conseguido
pela Monarquia Portuguesa em seu expansionismo preemptivo
(preventivo) evitou uma disputa antagônica entre burguesia
mercantil nascente e proprietários fundiários, destrutiva da
formação nacional como vivido na França, Inglaterra, Itália,

117
WILLIAM ROSA ALVES

Estados Unidos da América e outros exemplos de revolução


burguesa (Luiz Felipe de Alencastro, 1998, p. 7). Daquela
formação da propriedade dos meios de produção e suas
decorrentes formas da apropriação dos meios de vida – entre
eles a terra no sentido territorial –, não se alterou a formação de
prevalência do trabalho manual por meio da escravidão e de
uma industrialização que aprisionou, ideológica e praticamente,
o trabalho à propriedade no nível do território: Colônia e “Período
Independente” – Império e “Repúblicas” – mantiveram o domínio
da propriedade no nível do constrangimento das formas modernas
de socialização, até das relações tipicamente capitalistas que
mantém o mando sobre o outro – considerado humano só nos discursos
da figuração formal “republicana” e não no centro e/ou conjunto
das práticas sociais (José de Souza Martins, 2000).
Para as pretensões deste texto, consideraremos a partir
mais estritamente a espacialidade da mudança parcial do modo
de regulação da sociedade brasileira para o modelo comumente
chamado de “neoliberal”10, período inaugurado pelo governo
Collor de Mello-Itamar Franco (1990-1993) como presidentes do
Brasil – o primeiro renunciou em razão da sua própria consciência
quanto ao forte risco de impedimento constitucional. Antes de
tal recorte se restringir a um evento de Estado-Nação, advém
de uma acepção em que a idéia de “regulação” não se restringe
à administração econômico-política das atividades em uma
parcela da sociedade, ao gosto da “Escola Regulacionista”
francesa. Acompanhamos, então, Francisco de Oliveira (1998)
quando afirma que “Em 1989, todo o arcabouço da ‘revolução

10
Marilena Chauí (1999) apresenta um histórico do imaginário chamado de
“neoliberalismo” e Perry Anderson (1995) discute seus efeitos nas
espacialidades continentais e no mundo com um todo, com descompassos e
riscos de totalização de uma imagem de mundo que se realiza porque se
legitima como a única possibilidade; trata-se de mais uma ideologia no
nível da mimésis – uma mediação condutora –, que corrói as práxis
intencionadas na poiésis, uma relação livre entre seres humanos e natureza
(Lefebvre, ([1965] 1967).

118
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

passiva’ e das contradições não resolvidas quase foi abaixo: um


devastador terremoto... aparecia na expressão dos 45% de votos
conquistados por Luís Inácio Lula da Silva na eleição de 89...
Aprendida a lição [pelas classes dominantes], o amálgama de
interesses divergentes no bloco dominante e a fusão entre
economia e política, voltou a funcionar com a eleição de
Fernando Henrique Cardoso [1994]... A situação sugere, pois,
hegemonia.” Porém, para além da constatação de continuidade,
o autor chama a atenção para o “desmantelamento do campo de
significados” no Brasil, em que o “neoliberalismo”, por meio da
destruição dos direitos, agora contabilizados como “custo Brasil”,
nega a presença minimamente subjetiva, participante das classes
subalternas, e assim realiza o “apartheid total” (p. 200 e ss.,
grifos do autor, apontamentos meus).
Consideramos, portanto, que dois fluxos se polarizaram
desde as impossibilidades do pacto político estatista-
desenvolvimentista desde o advento da república – o Golpe que
instituiu a Ditadura de Execução Policial-Militar de 1964: 1) à
direita, as organizações mercantis insistiram na “aliança do
atraso”, em que os proprietários fundiários chamados de
“fazendeiros” alcançaram legitimidade e cumplicidade com as
classes médias urbanas11 a ponto de evitar a distribuição da
propriedade da terra por meio da Reforma Agrária (José de Souza
Martins, 1994); 2) à esquerda, parte significativa da “oposição”
as organizações de inspiração política variada – desde as
“comunitaristas cristãs” até as reverberantes de versões do
materialismo histórico-dialético (chamadas comumente de
“marxistas”), todas as críticas do capitalismo em razão da

11
Compõe-se majoritariamente dos funcionários públicos civis e militares,
comerciantes, profissionais liberais etc., uma acepção mais enquanto
mediação sociopolítica que estritamente socioeconômica, medida pelos
chamados “rendimentos monetários”: trata-se de capacidade de fazer valer
seus interesses na intervenção do Estado federativo brasileiro. Como agentes
da dimensão sociopolítica.

119
WILLIAM ROSA ALVES

individualização prevalecente nas relações sociais –


reivindicavam desde os meios institucionais uma cotidianidade
identificada com a democracia12, o que implicava na mudança
nas normas de decisão a partir do Estado, portanto, com
eleições dos representantes legislativos e agentes decisórios
mores do Poder Executivo.
Se a unidade político-eleitoral se manteve enquanto tal
confluência não alcançou a Presidência da República, a partir de
2003, o desempenho efetivo e a captura ideológica do
desenvolvimentismo para os axiomas da doutrina “crescimento
econômico” de uma coalizão liderada por Luís Inácio Lula da
Silva eleito para o maior posto de comando formal do país,
implicou na aparição de falas descontentes e até
desqualificatórias, mesmo dos agentes reconhecidos como
“esquerda”. A fim de iniciar uma reflexão mais ampla sobre a
dimensão mais ampla do ordenamento territorial na
determinação – não-determininista – da vida de quem por
aqui habita, selecionamos as posições mais contundentes sobre
a espacialidade brasileira por ora existente, considerando dois
momentos: o das expectativas quanto às mudanças
preconizadas pela coalizão eleitoral identificada à “esquerda”
– as candidaturas de Luís Inácio Lula da Silva à presidência da
República – e colaboradores acadêmicos da Geografia
Brasileira, antes das eleições de 2002; e o segundo momento
com a perspectiva mais nítida da eleição de Lula e assim
desde a “Carta aos brasileiros” até alguns resultados vistos na
dinâmica da formação socioespacial em estudo.

12
A democracia, como mo(vi)mento, é o desaparecimento do Estado, não no
sentido da sua substituição por uma aristocracia, mas rumo a um êxtase de
contínua (re)criação das possibilidades da vida, pois que as condições
produzidas pelos seres humanos podem ser apropriadas por quaisquer seres
humanos, sem hierarquias, sem seletividade, sem competição (Miguel
Abensour, [1997] 1998, p. 20 e ss.). Significa liberdade (ibid., p. 71 e ss.).

120
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ALGUNS ELEMENTOS DO DEBATE OCULTO SOBRE A


ESPACIALIDADE BRASILEIRA ATUAL

Dentre as diversas posições que consideram a espacialidade


brasileira – mesmo que esta apresentada em outros termos –,
iniciamos pela coordenada por César Benjamin et al. (1998),
que envolve várias autoras/es significativos nas análises,
proposições e mesmo em atuação concreta na história das
posições à esquerda entre nós13 . A principal característica da
espacialidade brasileira desde 1990 é a fragmentação, iniciada
desde a fundação da colônia, mas recrudescida com a
transnacionalização da indústria maquinofatureira com sede nos
países “centrais” do mundo capitalista: Estados Unidos da América
ou nos países da Europa Ocidental. Tal “configuração espacial”
carece de “reatualização da questão agrária” e da “imperfeita
constelação de cidades”, e assim padece da “concentração de
renda e riqueza” e do “envelhecimento da estrutura”. Os autores
identificam alguma potência de crescimento econômico a
contribuir para a superação da problemática da “exclusão” –
dita, em genérico na Introdução do livro, como o maior problema
nacional, porque contagiante de todo o país. Coerentes com
uma visão periodizada em que sempre o cume das ações da
sociedade resultou na negação de um “povo de cidadãos”, os

13
Além do próprio coordenador, figuram entre os autores do livro Ari José
Alberti, Emir Sader, João Pedro Stédile, José Albino, Lúcia Camini, Luis
Bassegio, Luís Eduardo Greenhalgh, Plínio de Arruda Sampaio, Reinaldo
Gonçalves, Tânia Bacelar de Araújo. Alguns/mas desses/as foram
parlamentares estaduais e federais e depois – o livro foi escrito no calor da
campanha eleitoral de 1998 que legou a Fernando Henrique Cardoso um
segundo consecutivo mandato presidencial – até ocuparam cargos em equipes
de trabalhos de programa de governo Lula ou foram consultores ou próceres
de agências de desenvolvimento regional ou ministérios do mesmo. Na
Apresentação do livro há referência à origem do livro em encontros
preparatórios estaduais e uma reunião nacional da “Consulta Popular” –
movimento criado em 1997 e que existe até os dias de hoje.

121
WILLIAM ROSA ALVES

autores cobram um Estado “que expresse uma ordenação jurídico-


política legítima e eficaz”. A sempre possível vantagem do enorme
território unificado foi prejudicada pela “difícil e tardia construção da
identidade nacional”, o que nos legou enfim uma unidade somente
formal e a “ausência de um projeto popular para o Brasil”. Naquele
“momento crítico” (1998), ainda assim os autores diziam das vantagens
– em especial a “população jovem, com presença marcante de pessoas
habituadas à produção moderna... vasto espaço geográfico, recheado
de recursos... centros internos geradores de dinamismo... ”, enfim, “A
estrutura econômica que emergiu das transformações operadas no ciclo
longo de 1930-80 permite... a abertura de caminhos novos... não se
trata de retornar à trajetória anterior, nem de, no outro extremo,
negá-la – mas sim de desdobrá-la, de acordo com novas condições
locais e internacionais”. A continuidade da crítica às elites chega a uma
síntese sobre a espacialidade requerida para a “opção brasileira”
proposta: “só retomaremos um crescimento acelerado se adotarmos
uma estratégia que seja homogeneizadora dos níveis de produtividade
e de renda presentes em nossa sociedade” [grifos dos autores]. A
partir de tal corolário, o livro achega até a algumas considerações
econômicas de talhe setorial, o que revela sua limitação na perspectiva
de um entendimento da relação entre a espacialidade e a formação
socioespacial como um todo, uma vez que as considerações sobre os
fundamentos políticos para uma sociedade autônoma, uma nação
soberana e uma realização socialista – nos termos apresentados no livro
– não vislumbraram claramente a amplitude e a profundidade do
ordenamento territorial contínuo.
Uma segunda posição, vista a partir de Milton Santos & María
Laura Silveira (2001), pode até ser vista como em parte contínua à
vista acima – até porque os autores agradecem ao geógrafo agora em
foco –, se considerarmos a dimensão técnica do trabalho como central
do sentido da formação socioespacial. Mais preciso do que o anterior
em termos teórico-metodológicos – já inicia assumindo um “caminho
de método” para discorrer sobre um objeto tão amplo como o Brasil –
os autores se centram na “constituição do território, a partir dos seus

122
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usos, do seu movimento conjunto e do de suas partes, reconhecendo as


respectivas peculiaridades”; desdobram o “esforço central de
operacionalizar geograficamente a idéia de sistemas técnicos,
entendidos como objetos e também como formas de fazer e de regular”,
a fim de encontrar os sentidos da sociedade a cada momento, em
suma, para elaborar uma teoria do Brasil a partir do território – utilizando-
se da categoria formação socioespacial. A espacialidade começa a
aparecer na idéia de uso do território, definido desde a “implantação
da infra-estrutura... [os] sistemas de engenharia, mas também pelo
dinamismo da economia e da sociedade”. Nesse nível do discurso, os
elementos indicados para a espacialidade – como conceito – são
apresentados como didaticamente separados, mas a idéia de “novo
meio geográfico” aparece logo em seguida para observar o fenômeno
da “fluidez do território, hoje balizada por um processo de aceleração”.
Tal assertiva nos é importante para considerarmos a espacialidade atual
– pós-1990, correspondente ao período comumente chamado de
“neoliberal” – constitui não somente um suporte, mas um veículo das
possibilidades de transformação do sentido da formação socioespacial
como um todo – o que não iguala suas partes entre si e forma uma
homogeneidade como desejado na obra anteriormente analisada.
Provoca à reflexão também quando afirma que “cada momento da
história tende a produzir sua ordem espacial” – considerando o espaço
como “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de
ações” e procura sintetizá-los para compor uma síntese que observe a
dinâmica da formação socioespacial: ao dizer do “uso competitivo do
território” e da “guerra global entre lugares”, os autores demonstram
algo das contradições do espaço 14, como a “circulação

14
A expressão foi cunhada e desenvolvida por Henri Lefebvre ([1972], inéd.),
ao discutir exemplos em que a própria rentabilidade das atividades
capitalistas decaem conforme o desenvolvimento da complexidade do espaço
como totalidade; o que serve para demonstrar que o capitalismo não é um
sistema, pois que não se realiza segundo um plano, uma lógica, mas no
desenvolver de estratégias em escalas virtuais e materiais crescentes, até
a mundialização do próprio capital.

123
WILLIAM ROSA ALVES

desnecessária”, a “instabilidade do território”, as


“especializações alienígenas alienadas”; chegam até “às
desarticulações resultantes” e às “desvalorizações e
revalorizações do território”. Neste ponto, é interessante
considerar o território como “uno”, pois que o “seu movimento
é solidário” a algum nível de capital e por isso mesmo “menos
valioso para os homens”. Tal elaboração parece coincidir
território com a noção “espacialidade” conforme indicamos
anteriormente, além de poder significar a polaridade entre as
“práticas do neoliberalismo, com sua seletividade maior na
distribuição geográfica dos provedores de bens e serviços,
levados pela competitividade... [sua] solidariedade
organizacional”, e as práticas de “solidariedade orgânica... [que]
resulta de uma interdependência entre ações e atores que emana
de sua existência no lugar”.
Se por um lado, na obra em foco, Santos & Silveira já
achegam a uma análise da dinâmica concentradora e até podem
revelar elementos da dimensão social da divisão do trabalho –
mais complexa, embora não mais importante que a dimensão
técnica –, os interesses concretos na reprodução do espaço na
formação socioespacial brasileira são mais explicitados por Milton
Santos (2000, p. 134 e ss.) ao considerar a “metamorfose das
classes médias”. Se essas se expandem quase ininterruptamente
desde as intervenções estatistas mais contundentes – com o
“Estado Novo” de Getúlio Vargas (1937-1945), os “50 anos em 5”
de Juscelino Kubitschek de Oliveira, o “JK” (1955-1960) e o
“milagre econômico” do “regime militar” (1968-1973) –, vivem
uma crise de base econômica que se generaliza para a própria
identidade nacional (im)posta sempre pelas elites. O “ocaso do
projeto nacional” implicou em limites para a “nação ativa” – as
frações reconhecidas pelo senso comum como produtivas e não
classificadas como estorvo ao crescimento econômico – e a
“dissolução das ideologias e utopias” deixou a formação
socioespacial brasileira à mercê da “aceleração” da história –

124
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

numa concepção cronológica do tempo –, mas a própria


contradição de ter formado uma massa urbano-industrial – não
estritamente fabril – no contexto de uma “involução
metropolitana” 15 implicou em recusa dos pobres quanto à
tendência de apartação quanto aos benefícios mínimos do seu
próprio trabalho. Conformou-se assim uma espacialidade em que
praticamente todos – classes médias e pobres – são “deficientes
cívicos” (Milton Santos, 1999), mas para o autor os “pobres”, até
por sua “integração orgânica com o território” (Milton Santos, 2000;
Milton Santos, Odette Seabra, Mônica Carvalho & José Leite, 2000),
são sujeitos em potência que já constituem uma base que, se quase
invisível por agora – e a Geografia, cobra o mesmo, deve não só
conferir visibilidade ao que quase não aparece, mas cumpliciar-se
com formas já existentes, visíveis portanto –, força o todo à ruptura
– contra o totalitarismo da globalização, o globaritarismo.
Pelo exposto, encontramos algumas condições teóricas
para introduzir o debate sobre o momento atual – lembramos a
hipótese central deste trabalho –, em que a “esperança” – anseios
legítimos porque relativos à própria sobrevivência, nos níveis
individual, familiar e territorial mais estrito – da maioria do
povo brasileiro conseguiu que sua representação político-eleitoral
mais direta, o ícone do “campo democrático-popular”, alçasse,
para o período 2003-2006, à Presidência da República e o Governo
Federal. O brilho de tal feito pode ter diluído o debate – mais
convicto para as posições à esquerda em tempos de oposição
política do que situação eleitoral – sobre o próprio projeto de
nação, uma vez que a aparente centralidade do governo mais
reforçou a imagem fetichista do Estado como provedor-mor da
formação social do que esclareceu o desafio de diminuí-lo frente
a uma poiésis – e não à mimésis da mercadoria.

15
A expressão tem origens em estudos – sistematizados em Milton Santos (1994)
– que revelaram índices de crescimento regional e nacional maiores nos interiores
e nas cidades pequenas e de porte médio do que nas metrópoles.

125
WILLIAM ROSA ALVES

O TENSIONAMENTO DA ESPACIALIDADE BRASILEIRA


ATUAL: QUASE-HEGEMONIA?

Chegando à principal questão suscitada na hipótese deste


texto – a formação quase-hegemônica de um bloco histórico
que congrega bases do projeto da “utopia democrática”
confluentes com a vertente tecnoburocrática da “sociedade
política” brasileira –, há que se refletir sobre algumas
contribuições clássicas do Materialismo Histórico Dialético,
considerando-o o terreno e o meio de superação da dicotomia
kantiana Tempo x Espaço e assim entender como a formação
socioespacial “se movimenta”: qual a (in)suficiência da
espacialidade perante a disputa das correntes político-eleitorais
– que rumam para constituir e instituir-se como blocos históricos
no Brasil pós-1990 – pela hegemonia inédita no país?
Com tais achegas conceituais – ver nota 6 –, podemos
entender a “Carta ao Povo Brasileiro”, documento da candidatura
de Luís Inácio Lula da Silva em 22 de junho de 2002. Anuncia-se
que “o sentimento predominante em todas as classes e em todas
as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se”, o que revela
a ausência de uma hegemonia política como problema geral do
país. Daí a candidatura presidencial em foco conclamou uma
“vasta coalizão” e uma “ampla negociação nacional” centradas
na objetividade de um “crescimento econômico com
estabilidade e responsabilidade social”, para o que deve
concorrer uma espacialidade com rigidez interna em termos
da gestão da atividade econômica – chamada no texto de
“equilíbrio fiscal” e superadora da “vulnerabilidade externa”.
Sugere ainda que já se encontravam ali – ao menos
potencialmente – as condições para uma competitividade que
resgatasse o papel soberano do povo brasileiro. É coerente o
apelo ideológico-moral a concluir tal manifesto, chamando
“todos que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de
um programa de mudanças corajosas e responsáveis”.

126
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 109-138, 2005

Desde então, vê-se um aparente paradoxo no


desenvolvimento da formação socioespacial brasileira: se os
impactos da desconfiança quanto ao governo Lula foram intensos
e freqüentes nas mass media – chegando ao ponto de pedido do
impedimento presidencial constitucional –, o desempenho da
economia – medido quase exclusivamente pelo crescimento do
PIB – não teve significativa alteração, o que demonstra em
princípio a heteronomia da espacialidade brasileira considerando
os elementos sociopolíticos constituintes – sociedade política e
sociedade civil. Para os propósitos deste debate, considera-se
que ainda vige entre nós, a contraponto da história da coalizão
que se insinuou “democrático-popular” – desde a “Frente Brasil
Popular” com Lula candidato a Presidente da República nas
eleições gerais diretas de 1989, primeiras desde 1960 –, inferimos
a instituição da espacialidade do “totalitarismo neoliberal” (Chico
de Oliveira, 1999). Assim, nos dias de hoje, os resultados
econômicos não são de se estranhar quando se investigam como
os fundamentos da espacialidade participam da fase atual da
formação socioespacial brasileira; se é consenso a continuidade
da insuficiência do Governo Federal na expansão, atualização
e/ou sofisticação da “infra-estrutura” – a base de espacialidade
para as atividades produtivas –, os exemplos mais contundentes
são aqueles referidos à apropriação do nível concreto da
dimensão espacial, as territorialidades com seus domínios mais
“puros”, privados, ou mediadores, ou os mais complexos e
participativos dos diversos “públicos” constituintes da formação
social. A classificação básica – sem o arrogo de estabelecer mais
uma tipologia – é, por enquanto, crivada entre campo e cidade.16
A conseqüência lógica do paradoxo entre o crescimento
das exportações de gêneros agrícolas in natura ou usinados e a

16
Acompanhamos Marx e Engels ([1845-1846] s.d., p. 20 e ss.) em A ideologia
alemã, quando afirmam a anterioridade e a primazia da “separação” – em
verdade, trata-se de uma distinção didática de um conteúdo integrado –
entre campo e cidade, entre “trabalho agrícola” e o “industrial e comercial”.

127
WILLIAM ROSA ALVES

permanência da carência de alimentos para a maioria dos


habitantes do campo brasileiro é a insistência na “Reforma Agrária”
como expediente de apropriação da terra como meio de trabalho
e de vida anteposto ao negócio fundiário como componente da
valorização capitalista da terra17.
Considerando os questionamentos e elaborações de
geógrafos (Ariovaldo Umbelino de Oliveira, 2006; Bernardo
Mançano Fernandes apud in Dafne Melo, 2006), vê-se que a soma
entre formação de propriedade por troca mercantil, somada à
expulsão de viventes do campo, a promoção de loteamentos
com fins de produção agrícola – a colonização – e à regularização
fundiária institucional superam a distribuição da terra por
reconhecimento da necessidade de assentar, em propriedades
que não cumprem sua “função social”, quem está disposto ao
trabalho agrícola em terra própria sem depender exclusivamente
das formas pré-capitalistas ou tipicamente capitalistas de emprego
no campo. Em não havendo apropriação positiva – por meio da
desapropriação de terras “improdutivas” de produzir gêneros
agrícolas no patamar do fator produtivo, cuja definição data de
1976 – assumida pelo próprio Governo Federal de plantão – o 2º
Plano Nacional de Reforma Agrária –, acrescido do crescimento
significativo da atividade agrícola puramente mercantil – o
“agronegócio” – podemos dizer que a espacialidade brasileira,
na particularidade do campo, acompanha o sentido geral de
conformação capitalista da formação socioespacial brasileira ao
não fazer avançar a Reforma Agrária conforme uma concepção

17
Várias formações socioespaciais já realizaram, mormente na Europa
Ocidental – numa forma mais próxima da realização burguesa da expropriação
do campesinato, chamada por Marx ([1890] 1996) de “acumulação primitiva”
– e na América – em que os Estados Unidos da América tiveram um processo
de formação mercantil burguesa com a anteposição policial do Estado,
enquanto no México houve intervenção estatal iniciada em 1920 já na própria
distribuição de terras. Uma classificação simplificada se encontra em João
Pedro Stédile & Bernardo Mançano Fernandes (1999, p. 157-163).

128
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mais afeita aos que ela reivindicam, sobretudo no aspecto da


produtividade social da terra (João Pedro Stédile & Bernardo
Mançano Fernandes, 1999, p. 157 e ss.). Para além deste âmbito
técnico de tal problemática, Carlos Walter Porto Gonçalves (2006,
nota 16, p. 12) considera que “todo o latifúndio contribui para a
produção de uma estrutura social injusta”, e assim rechaça a
idéia de “latifúndio improdutivo x produtivo” por isto já se
encontra na circunscrição ideológica da produção capitalista.
Tal posição destoa daquela apresentada por lideranças do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terras – MST. Ele é
explícito ao defender que a desapropriação de terras
improdutivas deve contribuir para que “o camponês assentado
tenha acesso a capital” (João Pedro Stédile & Bernardo Mançano
Fernandes, 1999, p. 161), e assim contribui para avaliarmos em
parâmetros e termos mais profundos os limites da produtividade
capitalista de uma espacialidade, principalmente quando se pensa
numa superação no nível do modo de produção e não só na
regulação da formação socioespacial, embora esta implique em
fase imprescindível da análise da Geografia.
Tais percalços não demovem o reconhecimento dos
contrapontos à valorização do espaço – e da terra – no campo
brasileiro, pois observamos que o MST insiste na prevalência do
valor de uso sobre o de troca, algo pouco estudado na própria
Geografia Brasileira18. Considerando a própria consciência da

18
A priorização das práticas de prevalência do valor de uso sobre o de troca é
questão por demais polêmica na história das elaborações intelectuais e das
práticas pela socialização dos meios de produção e de vida. A fim da discussão
sobre a qualidade da espacialidade brasileira na perspectiva de análise da
formação de uma hegemonia, interessa-nos aqui observar a dimensão de
apropriação concreta transformadora da propriedade privada rumo a uma
totalidade com a redistribuição dos meios de vida, inclusive a terra. Se tal
fato implica em outra forma que não a da competição capitalista no campo,
é importante observar os fundamentos e resultados da “cooperação
produtiva” que o MST desenvolve sistematicamente (João Pedro Stédile &
Bernardo Mançano Fernandes 1999, p. 95-121).

129
WILLIAM ROSA ALVES

limitação da luta pela terra no campo, o MST sugere a princípios e


objetivos similares de luta pelos meios de vida na cidade (João
Pedro Stédile & Bernardo Mançano Fernandes, 1999, p. 126 e ss.),
fato que nos impele a considerar que a perspectiva da hegemonia
aí já se encontra, ao mesmo tempo que é fundamental perquirir tal
questão na dimensão da espacialidade da(s) cidade(s).
Também contra uma concepção de espacialidade – no
contexto da(s) cidade(s) – como “máquina produtiva” do capital,
os movimentos sociais “urbanos”19 já pautavam por ocasião da
eleição presidencial de 2002 questões e propostas no sentido da
(re)distribuição dos meios de vida, traduzidos como elementos
constitutivos de uma presença democrática. Um elemento
importante para pensarmos a regulação específica das
espacialidades “urbanas” brasileiras é o Estatuto da Cidade20,
que “estabelece normas de ordem pública e interesse social que
regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo,
da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ambiental” (Cap. I, Artigo 1º). Mais preciso que o artigo

19
V1 Com relação à concepção de movimentos sociais por aqui burilada, ver
nota 3. Quanto ao adjetivo “urbano”, o uso mecanicamente associado à
espacialidade conhecida como “cidade” – aglomerado de seres humanos denso
de ocupação e atividades, qualquer que seja o seu tamanho – não deve
encobrir que ele se realiza como qualidade das práticas que (des)envolvem
as obras sem o destino alienado como produto e mercadoria; ou seja, a
produção está voltada para a humanidade do homem no sentido genérico,
sem os constrangimentos da propriedade e suas conseqüências: a escassez,
a desigualdade e a competição. “Enfim, o urbano tornar-se-ia o lugar de
uma democracia cada vez mais direta, o cidadão-citadino-usuário participando
de maneira cada vez mais próxima de todos os momentos da realização. Do
que? De uma vida social diferente: de uma sociedade civil fundada não em
abstrações, mas no espaço e no tempo tais como ‘vividos’” (Henri Lefebvre,
1986, p. 10). Podemos dizer que o verdadeiro urbano é a poiésis (Henri
Lefebvre, [1965] 1967), a liberdade.
20
Lei Federal – Ordinária, ou seja, de regulamentação e normatização dos
artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 e logo abaixo desta na
resolução dos conflitos aí prescritos – nº 10.257, de julho de 2001.

130
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mencionado, o 2º (Cap. I) aponta o objetivo da lei em “ordenar


o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais...” É
importante observar aí a escala genérica de consideração do urbano,
embora alguns elementos concretos – fundamentalmente a
propriedade – podem contribuir para, via precisão das atribuições
(Cap. I, Art. 3º), instrumentos (Caps. II e III, Arts. 4º ao 42º), princípios
de gestão (Cap. IV, Arts. 43º ao 45º) e “disposições gerais” (Cap. V,
Arts. 46º ao 58º), as ações no campo da sociedade política – cidadania
representada ou delegada aos governantes dos “poderes
republicanos” – que correspondam aos anseios das frações da
sociedade civil reivindicativa de condições concretas para uma
vida até então representada como mera reprodução da sua força
de trabalho. De fato, nas cartilhas e folhetos do Fórum Nacional da
Reforma Urbana (FNRU)21, nos anos de 1990 observa-se a transição
das reivindicações particularizadas pela “infra-estrutura urbana”
– asfalto, saneamento, transporte coletivo, equipamentos de
saúde e educação e similares – para uma perspectiva política
sintética, por vezes expressa como “cidadania”22. Numa primeira

21
O FRNU surgiu em 1987 em razão mesma de aprovar uma “plataforma da
Reforma Urbana” na Constituinte que definiria a Constituição Federal (CF)
a ser promulgada – como de fato o foi – em 1988. Como não alcançou nem a
legitimidade da Reforma Agrária, ficou para os Projetos de Lei de Iniciativa
Popular – que devem ter assinatura de ao menos 1% do eleitorado nacional –
e para a regulamentação do Cap. II (Da Política Urbana) do Título VII (da
Ordem Econômica e Financeira, sic!) da CF, a depender de aprovação por
maioria simples do Congresso Nacional. Os quase 13 anos de demora na
definição do Estatuto da Cidade – de outubro de 1988 a julho de 2001 –
demonstra a insuficiência do processo legislativo para a superação dos
interesses privatistas – mesmo que minoritários no quantitativo eleitoral
da formação social brasileira – em torno da terra urbana.
22
Para Jean Rossiaud e Ilse Sheren-Warren (2000, p. 28-9), a cidadania é
vista na dinâmica desde a crítica refratária à ordem até algum acordo com
o Estado; sua construção “inclui um processo contínuo de mobilização social
e de busca de ampliação de direitos que se realiza através de momentos de
denúncia, de resistência, de proposta e de negociação”.

131
WILLIAM ROSA ALVES

mirada, as experiências e resultados dos movimentos sociais


“urbanos” se expressam de forma íntegra no Estatuto da Cidade e
sugerem, por meio da crítica à(s) espacialidade(s) capitalista – mercantil
–, não só alguns avanços rumo a condições mais profícuas à socialização
dos meios de vida, mas a constituição – por enquanto como potência
no nível da participação e representação, ou seja, dalguma presença
das frações da sociedade civil no Estado – mesma do Direito à Cidade
conforme a publicidade do FNRU (FASE & Fórum Nacional da Reforma
Urbana, s.d.). Sem a pretensão de esgotar a complexidade da questão
urbana e das suas relações vistas como espacialidade específica –
mas não setorial ou sistêmica, pois que particular na unidade da
formação socioespacial brasileira –, recorremos à provocação de
Henri Lefebvre (1991) quanto à cara expressão grifada acima:

O direito à cidade não pode ser concebido com um simples


direito de visita ou retorno às cidades tradicionais. Só
pode ser concebido como formulado como direito à vida
urbana, transformada, renovada. Pouco importa que o
tecido urbano encerre em si o campo e aquilo que
sobrevive da vida camponesa conquanto que o ‘urbano’,
lugar de encontro, prioridade do valor de uso, inscrição
no espaço de um tempo promovido à posição de supremo
bem entre os bens, encontre sua fase morfológica, sua
realização prático-sensível (p. 116-117, grifos do autor).
Acompanhando a ênfase quanto ao valor de uso como critério
de uma espacialidade mais avançada rumo à emancipação – como
realização semelhante à Comuna de Paris –, até então não há notícia
de apropriação mais ampla e íntegra do Estatuto da Cidade como
nível de colaboração tática – muito menos estratégica – entre as
frações demandantes do urbano – na concepção lefèbvriana
co(r)tejada na nota 17 – e o Estado já demonstrado suficientemente
como simbiótico aos interesses privatistas, a compor um sentido
mercantil da urbanização-metropolização que se totaliza na
formação socioespacial em questão.

132
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À guisa de concluir este tópico, deixamos a pergunta sobre


qual o grau da crítica dos movimentos sociais no campo e na
cidade brasileiros quanto à espacialidade existente e a possível,
uma vez que os termos da transformação social – sobretudo no
chamado “campo democrático-popular” – já carregam
considerações quanto às qualidades requeridas a uma vida
moderna democrática – ver nota 11. Mas o que dizer das
possibilidades de superação da tendência capitalista – por meio
da produtividade crescente do trabalho social – da formação
social, agora acrescida por uma fração significativa do que foi
parte crítica da sociedade civil?

GEOGRAFIA E LIBERDADE

Se de um lado já se consideram as elaborações reveladoras


da aceleração e transformação do mundo (David Harvey, [1989]
1999; Milton Santos, 2000), a teoria crítica deve explicar a
instrumentalização e conseqüente despolitização da(s)
espacialidade(s) ao acompanhar o aprofundamento da divisão
do trabalho a fim da expansão capitalista. Entre as(os)
pensadoras(es) do Brasil, tem sido consenso que a espacialidade
sem hegemonia corresponde a uma formação socioespacial sem
soberania, o que não quer dizer que um projeto de hegemonia
heterônoma implica em soberania nacional – pró-Estados Unidos
da América, como se iniciou a partir do governo de JK (1955-
1960) e parece avançar com os governantes de turno. Ainda não
há expressões de forças sociopolíticas que alterem os rumos
apontados pela reestruturação parcial do modo de regulação a
partir de 1990, e assim a análise da constituição e instituição do
bloco histórico por ora em consolidação é um enfoque necessário
ao entendimento da qualidade e papel da espacialidade brasileira
atual, e assim à disputa do sentido desta formação socioespacial
que não seja o da inércia dos “ventos reinantes”.

133
WILLIAM ROSA ALVES

Contra a perspectiva da simbiose capitalista – Estado +


mercado –, em verdade a destituição da fala autêntica da
territorialidade que ainda não acompanha sincronicamente a
reprodução mercantil, à Geografia requer-se o dissenso interno
e externo, mesmo – e sobretudo se – visto como anti-eficiência
econômica. Se o nível do território continua como ameaça
quando seus agentes propensos a sujeito insistem na sua dimensão
política última, a soberania popular, que comecemos por uma
análise refinada – sem perder a escala – do ordenamento territorial
que até então conforma as espacialidades onde vivemos. Que os
esforços até então faiscados no chão desse “mundinho” chamado
“Brasil” não sejam engolidos pela quimera da via única. Que a
dança dos vivos também cante no passeio sobre as cordas da
viola, que o gosto desta jornada não seja o gelo de uma Geografia
insípida encerrada na visão de uma geladeira aberta.

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STÉDILE, João Pedro & FERNANDES, Bernardo Mançano. Brava


gente: a trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil. São
Paulo: Fund. Perseu Abramo, 1999.

138
GEOGRAFIA: CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE (OU DA
RECONCILIAÇÃO ENTRE NATUREZA E CULTURA)

Marcos Bernardino de Carvalho

“Mas quando a abstração começa a matar-nos,


é necessário que nos ocupemos da abstração...”
(A. Camus)

Ciência do espaço, dos lugares, das relações homem-meio,


das territorialidades, das paisagens, dos estados, da guerra....
Muitas são, enfim, as definições que já “colaram” na Geografia,
graças aos contextos em que foram produzidas ou aos pensadores
- de Kant a Lacoste - que as adotaram e as divulgaram.
Aqui, retomando um tema que vimos desenvolvendo em
outros trabalhos1 , pretendemos chamar a atenção para uma outra
possível definição da Geografia: ciência da complexidade. Ou, caso
se prefira, uma das ciências da complexidade, como seria mais
adequado dizer nestes tempos excessivamente corretos (plurais) e
também para dar uma medida mais justa dos objetivos deste artigo.
Pioneirismos produzidos por diversos geógrafos, a manutenção
de certas características e potencialidades do saber que produziram,
além dos reconhecimentos divulgados por pensadores de outras áreas,
nos autorizam a sugerir e a fundamentar tal definição.
A complexidade, enquanto horizonte epistemológico,
como se sabe, devemos aos progressos e formulações
desenvolvidos sobretudo pelos físicos e biólogos que
praticamente repartiram o século XX entre si. Com a mecânica
quântica, a dupla hélice do DNA, por exemplo, as formulações
desses pensadores nos aproximaram (e seguem nos aproximando)

1
Nos referimos, entre outros, a Carvalho (2004). Este trabalho também foi
publicado em http://www.ub.es/geocrit/sn-34.htm.

139
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

de uma possibilidade maior de compreensão da vida e da matéria,


demonstrando quão simplificadoras e, portanto, afastadoras do
real eram algumas de nossas mais caras e antigas certezas. Por
tabela, enriqueceram nosso vocabulário que a partir de então
passou a conviver com inúmeras expressões derivadas das novas
formulações, ou por elas recuperadas: espaço-tempo, quanta,
incerteza, relatividade, caos, fractais, estruturas dissipativas,
macromoléculas, genômica, etc.
Às ciências humanas ou sociais esse novo “horizonte” revelou-
se mais tardiamente. Após longo período de afirmação análítico-
corporativa e após os abalos desferidos pela realidade dos fatos
produzidos no “curto século XX”, as sociologias, histórias, antropologias,
geografias e demais “humanas científicas” também se renderam e foram
instadas a rever alguns dos caminhos simplificadores ou reducionistas a
que invariavelmente se entregavam.
Seja pelo velho hábito de macaquear os caminhos
indicados pelas chamadas ciências duras, típico de quem vive
em permanente “obsessão do descompasso”2 , seja pela imposição
das novas necessidades cognitivas, algumas das humanas também
impuseram a si próprias uma revisão dos estatutos que as
obrigavam a identificar os fragmentos de cultura, de história,
de espacialidade, de economia e de política, que acreditavam
presentes em cada situação investigada. A difusão de tal crença,
diga-se de passagem, prende-se muito mais ao propósito de
justificar a existência de quem investiga do que o de entender
(dialogar com) as realidades multidimensionais perscrutadas.
Nessas revisões não são poucos os atalhos e caminhos
inéditos, principalmente inconclusos ou pouco explorados, e
sistematicamente recusados pelas histórias de cada especialidade

2
Expressão utilizada por Alfredo Bosi (Dialética da Colonização, São Paulo:
Cia. das Letras, 1993) e recuperada por Laymert Garcia dos Santos (2003)
para expressar a condição daquelas mentes obcecadas (colonizadas, em
verdade) por alguma condição, de modernidade ou desenvolvimento, que
por ser a do “outro” (o colonizador) é eleita como a ideal.

140
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

disciplinar, que de pronto chamam a atenção pelas


potencialidades de diálogo com as tais necessidades cognitivas
contemporâneas, principalmente aquelas estimuladoras da
reconciliação entre os fragmentos-objetos mencionados.
É nesse sentido que pensadores como Edgar Morin e Boaventura
Souza Santos, por exemplo, em algumas de suas produções recentes3 ,
nos chamam a atenção para as contribuições que a Geografia poderia
oferecer ao debate. Para Boaventura, essa contribuição viria graças às
características de ambigüidade e indefinição de uma ciência que ao
mesmo tempo se manteve interessada pelos fenômenos da natureza e
da sociedade. Para Morin, por sua vez, isso seria proporcionado
diretamente pelo fato da Geografia revelar-se como saber complexo,
que não cedeu à pressão analítica, não abandonou esse seu arco ampliado
de interesses e, portanto, pode se oferecer como exemplo de
instrumento cognitivo e facilitador para reconciliar grande parte dos
objetos (divididos entre naturais e sociais) que as ciências pautadas
apenas pela disjunção e/ou redução multiplicaram.
Ambos os pensadores mencionados não se referem apenas à
Geografia como sendo portadora dessas características de um saber
complexo (ou de indicadora de caminhos para orientar o “paradigma
emergente”, como prefere Boaventura S. Santos). À antropologia
também é sugerida essa mesma condição, pois aquela também teria
lidado mal com as separações exigidas entre as “naturais” e as “sociais”,
tanto que, tal qual a Geografia (física e humana), cindiu-se internamente
entre uma antropologia que é cultural e uma que é físico-biológica4 .
Mas aqui, para os propósitos deste artigo, nos restringiremos
à Geografia e ao exame de como aprofundar esse potencial que
permitiria de fato defini-la como uma ciência da complexidade.

3
Ver especialmente Morin (2001) e Souza Santos (1995).
4
A essa cisão o mencionado texto de Boaventura S. Santos (op. cit.: 40) faz
menção explícita. Edgar Morin, em uma outra obra sua (Morin & Kern, 1993:
50) a esse propósito afirma o seguinte: “A antropologia, ciência multidimensional
(articulando nela o biológico, o sociológico, o econômico, o histórico, o
psicológico) que revelaria a unidade/diversidade complexa do homem...”

141
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

Antes, no entanto, convém estabelecer que apesar das


possibilidades indicadas pelas formulações dos pensadores que
exemplificamos, as condições de ambigüidade, as cisões internas e os
duplos estatutos verificados em algumas disciplinas, que bravamente
resistiram às pressões analíticas, podem ser apenas um bom ponto de
partida para o estabelecimento das reconciliações (ou separações)
cognitivas necessárias, mas estas terão que ser construídas, redefinidas
e mais bem aproveitadas, pois, do contrário, permanecerão apenas
sendo o que são: potencialidades..., mesmo que dignas de nota.

VOCAÇÃO DE ABRAÇAR O MUNDO

A condição de saber complexo, indicada para a Geografia,


invariavelmente nos remete para a história dessa disciplina, sobretudo
a partir do seu reconhecimento acadêmico-institucional. As características
realçadas em favor dessa condição também remontam às muitas
exortações conectivas, que ainda sob inspiração do chamado romantismo
alemão levaram figuras como Ritter, Humboldt e posteriormente Ratzel
a formular instrumentos cognitivos que pretensiosamente nos
capacitariam a “abraçar o mundo com as próprias mãos”.
As propostas ratzelianas, como já tivemos a oportunidade
de demonstrar em outros trabalhos 5 , apoiavam-se em sua
concepção hologeica, que o próprio pensador alemão definia
como uma perspectiva de observação “abraçadora de toda a
Terra” (Ratzel, 1914: 91)6 . Assim, de uma Antropogeografia,

5
Aqui nos referimos ao trabalho já indicado na nota 1 e também aos seguintes:
Carvalho, 1997a e Carvalho, 1997b.
6
A expressão aparece na obra mencionada, no seguinte contexto (tradução
nossa): “Se é verdade que a geografia investiga os mesmos fenômenos que
são estudados também por outras ciências, todavia o seu método se distingue
por causa de sua tendência natural a ultrapassar seus próprios muros,
realizando uma observação que eu denominarei hologeica, ou seja,
abraçadora de toda a Terra.” (Ratzel, 1914: 91). No original alemão:
“hologäische Erdansicht” (Ratzel, 1882).

142
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

incapaz de conceber investigações geográficas desvinculadas dos


estudos históricos ou antropológicos, a uma Biogeografia
Universal que se propunha abarcar estudos de todos os seres
vivos sobre a superfície da terra (fito, zoo e antropogeografia),
o critério hologeico oferecia-se como suporte para, diríamos,
complexizar (na etimologia latina, complexus refere-se ao ato
de abraçar, entrelaçar, compreender) o instrumento cognitivo
proposto e para resistir à excessiva desconexão entre os saberes:
“Nós não desconhecemos a grande ajuda que o critério
hologeico traz ao estudo de cada um dos problemas
antropogeográficos. Em uma época como a nossa, na qual,
por efeito da especialização, cada uma das ciências é
dividida em um grande número de pequenos estudos
particulares, é uma verdadeira felicidade que na ciência
geográfica tal fracionamento não seja ainda muito
acentuado, de forma que a investigação possa ser dirigida
e conduzida sobre uma base ampla, possibilitando a
descoberta de campos investigativos completamente
novos” (Ratzel, 1914: 92).

A partir disso poderíamos até parafrasear uma famosa


afirmação de Tricart e conferir também à (Antropo)Geografia
de Ratzel a mesma condição de precocidade que o geógrafo
francês atribuiu à Ecologia. Sugerida em meados do século XIX
por Ernst Haeckel (que, diga-se de passagem, foi professor de
Ratzel), a Ecologia, segundo Tricart, nasceu prematuramente uma
vez que se propôs a estudar as relações dos seres vivos com seus
habitats, exatamente em um momento de grande privilégio às
formulações analíticas em detrimento das visões de conjunto:
“O meio natural foi deixando de ser tomado em consideração
à medida em que as disciplinas que o tinham como objeto
de estudo foram se subdividindo: climatología, hidrología,
geomorfología, biogeografía, edafología, que por sua vez
se fragmentaram em inúmeros pontos de vista setoriais cada

143
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

vez mais limitados e parciais, com tendência a se tornarem


incompatíveis entre si, e impróprios para se integrarem em una
visão de conjunto” (Tricart, 1988: 470).7
Neste tipo de contexto, a perspectiva hologeica de Ratzel
sofreu duro combate. E uma volumosa obra, cujos marcos inicial
e final podem ser considerados, respectivamente, a
Antropogeografía (1882-91; Anthropogeographie) e A Terra e a
vida (1901-02; Die Erde und das Leben), foi alvo de uma rica
polêmica, com destaque para a reação daqueles que viam entre
as principais idéias presentes nesse conjunto um grande potencial
de diluição dos objetos e dos territórios pretendidos pelas
ciências sociais que, na virada do século XIX para o XX, também
buscavam se estabelecer como disciplinas analíticas, lastreadas
em corporações e associações científico-profissionais.8
Um artigo de Émile Durkheim (fundador do L’Année
Sociologique) - La Sociogeographie - e um livro de Lucien Febvre
(um dos fundadores dos Annales d’Histoire) - La terre et
evolution humaine -, podem ser considerados igualmente como
marcos, inicial e final9, dessa reação cujo conteúdo pode ser
muito bem ilustrado por esse trecho extraído do texto de Febvre:
“Agora compreendemos melhor o que querem dizer os
partidários da morfologia social quando denunciam ‘esta

7
O texto de Jean Tricart foi publicado originalmente nos Annales de Géographie,
1979, LXXXVIII, p. 705-714, compilado e traduzido por Mendoza, 1988, do
qual extraímos essa citação (tradução nossa).
8
Nos limitamos a lembrar alguns dos principais fatos e episódios de uma
história, como já indicamos nas notas 1 e 5, que tratamos mais
extensamente em outras oportunidades. Os aspectos a que estamos nos
reportando, e que logo mais concluiremos, são fundamentais para a
compreensão dessa nossa abordagem e por isso voltamos a essa história,
mas com certa brevidade, pois envolvem desenvolvimentos conhecidos por
muitos dos que agora nos lêem.
9
Estamos nos referindo, respectivamente, aos seguintes textos: DURKHEIM, E.
La Sociogéographie. L’Année Sociologique, 1897, vol. I, p. 533-539; FEBVRE,
L. La Terre et l’évolution humaine. Paris: La Renaissance du Livre, 1922.

144
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

disciplina de grandes ambições que denomina a si mesma


geografia humana’. Os geógrafos querem explicar pela
Geografia, ou ao menos reivindicam como objeto de estudo,
as sociedades humanas, das menores às maiores, das mais
rudimentares às mais complicadas... Abusos flagrantes que
não cometeria, por sua vez, uma ciência sociológica de
objetivos modestos e marcha prudente, por ter um objetivo
limitado e fixado de antemão...” (Febvre, 1925: 65).10
De fato, se dependesse das exortações de Ratzel, a
prudência, a modéstia e a reclusão disciplinada às fronteiras
demarcadas pelos Estados, inclusive para o conhecimento, não
teriam lugar. Um exemplo desse inconformismo poderia ser
colhido nas páginas finais daquela que é considerada sua última
grande obra, Die Erde und das Leben:
“É próprio do nosso tempo! Fala-se de ciência universal, de
comércio mundial, de política mundial, e se busca ao mesmo
tempo ansiosamente evitar cada sinal que possa revelar que
as barreiras nacionais existem para estreitar o olhar que
aspira a abraçar o mundo inteiro. Mas é evidente que no
progresso da civilização, no incremento da cultura, das
comunicações, dos Estados se inscreve uma tendência em
direção a uma cidadania universal” (Ratzel, 1907: 817).11
Como sabemos, no entanto, prevaleceu a
disciplinarização, a prudência e a modéstia, como queria Febvre
que, para tal, forjou até mesmo uma falsa oposição entre La
Blache e Ratzel, atribuindo ao primeiro a condição de verdadeira
“tábua de salvação”, que com sua “geografia, ciência dos
lugares”, produziria os antídotos necessários para o combate à
“rapinagem” pretendida pela “antropogeografia Ratzeliana”12.
10
Esse trecho, com nossa tradução, extraímos da versão espanhola do livro
de Febvre. Essa versão preservou o texto integral do original francês e foi
publicada apenas três anos depois da primeira edição francesa de 1922.
11
Extraído da versão italiana do mencionado livro (tradução nossa).
12
Todas as expressões entre aspas foram colhidas na citada obra de Febvre.

145
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

GEOGRAFIA: SABER INDISCIPLINADO

Essa disciplinarização, no entanto, logrou mais sucesso entre as


outras ciências sociais emergentes, garantido-lhes a posse territorial
das fatias de conhecimento reivindicadas. A Geografia mal se conteve
(no lugar que lhe fora determinado por Febvre) e a despeito da exortação
às produções especializadas, das discussões e das tentativas de
enquadramento, seguiu vivendo seu estatuto de ambigüidade, orbitando
entre as preocupações com o mundo natural, o social e particularmente
com os resultados produzidos pelas relações entre os dois. Mas, o abraço
que originalmente se propunha a dar no conjunto das dimensões do
planeta intimidou-se diante da vitória corporativa e, em vez de ser
assumido como uma vantagem comparativa diante das outras disciplinas,
passou a ser (auto)criticado como sintoma da ausência de cientificidade,
da indefinição de objetos e da vaguidão. Ou seja, mesmo onde o
potencial de desenvolvimento de um saber complexo já estava presente,
isso não foi além dessa condição potencial e jamais se configurou com
a mesma ousadia dos pioneiros desse processo de institucionalização.
Em favor do desenvolvimento desse potencial é que David
R. Stoddart lançou seu repto, ao homenagear Carl Sauer, em
uma importante conferência proferida na Universidade de
Berkeley no início dos anos 1980. Para amparar esse desafio,
que a citação abaixo sintetiza, além de Sauer, Stoddart relembra
a ousadia de várias personalidades da Geografia, com destaque
para Forster, Humboldt, Ratzel, Kropotkin que, entre outros:

“Se atreveram a fazer algo que nós, com nossa sofisticação,


raramente fazemos: formularam as grandes perguntas sobre
o homem, sobre o território, sobre os recursos, sobre o
potencial humano. Não há melhor exemplo disto que Sauer
com suas intrépidas especulações acerca do fogo, da função
da costa, da origem da agricultura. Necessitamos recordar
que a ciência tem que fazer-se perguntas atrevidas como
essas” (Stoddart, 1988: 544).

146
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

Lamentando os “muros edificados” entre os especialistas


dedicados aos estudos físicos e os da chamada Geografia humana,
o biogeógrafo (e geomorfólogo) Stoddart, em sua homenagem ao
geógrafo cultural (e histórico) Sauer, demonstra, inclusive, os
prejuízos práticos que investigações conduzidas em estrita e cega
obediência às fronteiras disciplinares (sobretudo as que rigidamente
dividem fatos físico-ambientais dos humano-sociais) podem
acarretar. Para tanto, sugere o exame do caso de Bangladesh no
qual uma intervenção, com vistas a conter os constantes processos de
inundação ali verificados, que optou pela construção de Polders
(chamada por Stoddart de “solução holandesa”), em detrimento da
recuperação dos mangues, revelou-se profundamente desastrada: não
só destruiu meios de vida de enormes contingentes populacionais,
dependentes do fluxo interrompido das águas e da ecologia dos
manguezais, como sucumbiu tecnicamente diante de novas inundações
que, diga-se de passagem, apenas acrescentaram números às vítimas
dos “acidentes naturais”. A opção holandesa, segundo Stoddart, teria
resultado de uma incorreta percepção do nível de interdependência
que os fatos das geografias humana e física de Bangladesh apresentam.
Mas que outra solução se poderia esperar daqueles que estão aprisionados
em um dos lados daqueles rígidos “muros edificados”?
Segundo Stoddart, o malogro resultou, portanto, de uma
solução técnico-especializada que se recusa ou tem dificuldade
em ver o seguinte, conforme conclui em sua conferência:
“Não existe uma Geografia física de Bangladesh separada
de sua Geografia humana, sendo a recíproca ainda mais certa.
Uma Geografia humana divorciada do meio físico constitui
pura e simplesmente algo carente de sentido” (Ibid.: 542).
Com certeza a conclusão de Stoddart é absolutamente
generalizável para quaisquer outros lugares. E hoje não
precisaríamos nem argumentar longamente em favor disso.
Bastaria mencionar fatos recentes como as tragédias provocadas
pelo Tsunami asiático de 2004 (mais de 300 mil mortes) ou pelo
episódio do furacão Katrina e a devastação de Nova Orleans

147
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

(EUA) em 2005 (obrigando a evacuação de mais de um milhão de


pessoas) para não termos sequer que lembrar da condição que a
chamada questão físico-ambiental tem assumido na determinação
da “Geografia humana” (política, econômica, social...) do
planeta. E, evidentemente, também não precisaríamos chamar
a atenção para o fato do vice-versa dessa determinação ser,
como afirmaria Stoddart, ainda mais certo.
Os números de vítimas e as catástrofes colhidas graças à
voracidade do reducionismo analítico que dificulta a percepção
desta interdeterminação alerta-nos para outra reciprocidade: aquela
existente entre prática e teoria, que invariavelmente são colocadas
em oposição, ou como tópicos de identificação dos diversos saberes
especializados. Quantos, por exemplo, já não caíram na tentação
de associar geografias humanas à teoria e, em contrapartida,
geografias físicas à prática? Ou quantos jovens incautos e
desinformados já não foram (auto)convencidos a optar por essa ou
por aquela especialidade, em função de maior afinidade com a
prática do que com a teoria, ou vice-versa?
Mas o reducionismo analítico, mesmo que de fato seja,
antes de mais nada, uma opção teórica, não traz como
conseqüência apenas problemas teóricos, como podemos muito
bem demonstrar somente com os fatos e exemplos mencionados,
pois contam-se aos milhões os números de vítimas decorrentes
desses “problemas teóricos”.
Enrique Leff (Coordenador da Rede de Formação
Ambiental para América Latina e Caribe - PNUMA) é hoje um dos
que melhor consegue traduzir essa relação teoria/prática para o
âmbito das idéias que aqui desenvolvemos. Ao propor suas
formulações voltadas para a construção do que ele denomina de
uma “pedagogia da complexidade ambiental” (Leff, 2003),
demonstra que nossos chamados problemas ambientais são em
grande parte decorrentes da forma como temos produzido e
conduzido nosso conhecimento do mundo. Segundo ele,
abandonamos a perspectiva de um entendimento das coisas para

148
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

uma “intervenção sobre o real que culminou na tecnologização


e na economização do mundo” (Ibid.: 39). A primazia conferida
a esse processo de “objetivação e coisificação do mundo”, no
entanto, “desterrou a natureza e a cultura da produção, dando
lugar a um desenvolvimento das forças produtivas fundadas no
domínio da ciência e da tecnologia” (Ibid.: 43).
Conseqüentemente, conclui Leff:
“A crise ambiental não é crise ecológica, mas crise da
razão. Os problemas ambientais são, fundamentalmente,
problemas do conhecimento. Isto tem fortes implicações
para toda a política ambiental - que deve passar por uma
política do conhecimento -, e para a educação. Aprender
a aprender a complexidade ambiental não é um problema
de aprendizagem do meio, mas de compreensão do
conhecimento sobre o mundo” (Ibid.: 55).
Sendo assim, a denominada crise ambiental deveria ser
vista, antes de mais nada, como um chamado à revisão dos
processos cognitivos e de produção dos discursos que conduzem
a nossa apropriação do mundo. Nas palavras de Leff, “um
chamado à reconstrução social do mundo: a aprender a
complexidade ambiental.” (Ibid.: 57).
Mas isso é o equivalente a sugerir que os processos, tidos
como irreversíveis, de economização ou tecnologização, cedam
passo para as perspectivas de complexização, com todas as
implicações daí decorrentes: reconhecer os defeitos da razão
prevalecente; recusar a pecha de irracionalismo para as
formulações divergentes dessa razão prevalecente; admitir a
falibilidade e também o poder destrutivo da ciência e da
tecnologia, e de qualquer outra construção humana; investir nos
esforços para reconciliar saberes e disciplinas que tenham sido
vítimas de separações ou agrupamentos artificiais ou simplistas;
sacrificar interesses corporativos em nome do privilégio ao
conhecimento; recusar a subordinação permanente do logos em
relação ao nomos (para pensar a relação entre ecologia e

149
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

economia, p.e.)13 ; considerar todos os saberes produzidos e


lastreados por tradições coletivas, como legítimos promotores
de conhecimentos, sem hierarquização entre eles; promover
diálogos sinceros entres esses saberes; estimular abordagens
integradas das naturezas e das culturas (em nosso caso: das
geografias físicas e das humanas); e assim por diante...
Para contribuir com o equacionamento de várias dessas
implicações, entre muitas mais que poderíamos enumerar, é que
acreditamos ser possível convocar o saber geográfico, e seus praticantes,
a desenvolverem aquele potencial de instrumento cognitivo da
complexidade que nas origens de seu processo de institucionalização já
havia sido indicado. Como buscamos demonstrar, nos sentimos
autorizados a fazer tal convocação, sobretudo quando consideramos o
peso de uma tradição histórica ainda pouco difundida e as características
de resistente epistemológica cultivada por inúmeras geografias que
não sucumbiram totalmente diante da rendição generalizada à ordem
disciplinar (ou departamental), ditada por aquilo que
contemporaneamente poderia se sintetizar na expressão “mundo
corporativo”, mesmo que na sua versão acadêmico-burocrática.

IDENTIDADE ENTRE SABERES COMPLEXOS E


CERTAS GEOGRAFIAS

A recuperação (ou revisitação) das formulações originais


dos conteúdos preconizados pelas idéias de uma biogeografia
universal, de uma antropogeografia ou do critério hologeico,
devidamente recontextualizadas, é claro, podem ser muito

13
Segundo Susan George: “O logos é a palavra, mas é também o princípio
diretor. Em uma sociedade normal o princípio diretor do domínio ou da casa
[oikos] deveria ser mais importante que as regras, que o nomos. Mas, em
realidade no mundo moderno atuamos como se nomos prevalecesse sobre o
logos, e isto se traduz pela supremacia outorgada à economia sobre a
ecologia.” (George, 1996:41)

150
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

férteis, portanto, no sentido de contribuir para a afirmação de


um horizonte epistemológico da complexidade. Assim como pode
ser igualmente fértil a consideração das formulações e produções
mais recentes que continuaram a assumir o duplo estatuto de
uma Geografia que é 100% física e 100% humana, ao mesmo
tempo, como os fatos e fenômenos que nos rodeiam.
Em todos esses casos encontraremos grandes sintonias com
os princípios que podem caracterizar saberes que se pretendam
tributários do pensamento complexo.
Segundo Morin, os saberes que podem assim ser identificados
manifestam algumas características comuns e de fácil percepção.
Em primeiro lugar, e como princípio geral, esses saberes
não são pautados pela rigidez canônica das categorias conceituais
clássicas, mas são dependentes de macro-conceitos, isto é, de
um “pensar por constelação e solidariedade de conceitos” (Morin,
1991), abrangentes e abertos à imprecisão. Sujeitos, portanto, à
interpretação, aos contextos e diálogos de quem os adota.
Tal princípio geral tende a desviar-nos de uma preocupação
obsessiva com as fronteiras, ou seja, com o estabelecimento de
limites rígidos e artificiais entre fenômenos, apenas por causa
dos interesses analíticos em sua volúpia classificatória, e a buscar
o significado, as interferências e flexibilidades recorrentes que
os objetos investigados sempre apresentam.
As dificuldades que historicamente o conhecimento geográfico
encontra, seja para definir a própria Geografia, seja para fixar o
significado de algumas de suas mais caras categorias conceituais, tais
como paisagem, espaço, território, entre outras, nos dão vivas indicações
de que estamos diante de um conjunto de macro-conceitos. E com
esse espírito eles deveriam ser tratados, pois, em outras palavras, tais
“dificuldades” sugerem estarmos diante de um saber que se move
muito mais inspirado pela abrangência, ambigüidade e contingências
mutantes, típicas dos fenômenos reais, do que pelas clarezas, distinções
e iterações inexistentes, a não ser nos ambientes controlados e criados
no interior de assépticos laboratórios.

151
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

Desse princípio geral é que decorrem, segundo Morin, os


três princípios básicos da complexidade - o dialógico, o da
recursão organizacional e o hologramático - que nos permitem
identificar os saberes que lhes são tributários.
Caso cotejássemos o significado de cada um deles com
características das formulações, desenvolvimentos de análises e
produções de certas geografias, não teríamos muita dificuldade
para identificar tal filiação epistemológica.
O princípio dialógico se nutre da associação entre
complementares e antagônicos, concomitantes. Sobrevive da
dualidade, da ambigüidade e das dicotomias assumidas (geografias
físicas e humanas, determinismos e possibilismos, p.e). Não busca
superar contradições, nem forçar sínteses artificiais. Pelo contrário,
mantém a unidade graças à diversidade das lógicas assumidas.
Lógicas ecossistêmicas, portanto. Com espaço para as duplas (dúbias)
existências - em uma palavra, ambi-entes -, dos objetos de interesse
das geografias que são físicas e humanas, ao mesmo tempo, e para
realidades que não se explicam sem a consideração de que todos
os fatores, dos físico-naturais aos humano-sociais, são determinantes
para a produção das espacialidades.
O segundo princípio básico, da recursão organizacional,
caracteriza aqueles saberes que não buscam estabelecer
hierarquizações lineares entre causas e efeitos, mas que se
pautam pelo reconhecimento das recorrências circulares
existentes entre esses pólos. Nesse caso, reconhecem ‘causas’
em todos os ‘efeitos’, produtores em todos os produzidos,
submissão em todos os que submetem e assim por diante.
Naquelas formulações geográficas em que as realidades espaciais
são configuradas como produtos - seja de injunções histórico-sociais,
seja das físico-naturais ou de uma combinação entre todas elas -, que
ao mesmo tempo produzem as novas (ou reproduzem as mesmas)
condições, esse princípio de recursão sempre esteve presente.
Por último, segundo o chamado princípio hologramático,
emprestado da idéia de holograma físico (que preserva as mesmas

152
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

dimensões constituintes da totalidade da imagem em quaisquer


de suas partes), a caracterização de saber complexo só deve ser
reconhecida naquelas formulações avessas a qualquer tipo de
reducionismo, resulte este do modismo holista, que só realça a
importância do todo, ou da cegueira analítica que investe apenas
na investigação da parte.
A Geografia, como sabemos, resulta, em certo sentido,
de uma recusa a adotar os caminhos que os diversos reducionismos
buscaram lhe impor. Ademais, há inúmeras formulações na
Geografia em que se podem observar claramente tentativas de
rechaçar, tanto o analitismo negligente com a percepção do todo,
como as abordagens abrangentes e descuidadas das partes. Tais
geografias se poderiam inserir entre aquelas que mesmo sem o
saber já aderiram a esse “princípio hologramático” de que nos
fala Morin. Apenas para lembrar alguns, mencionaríamos: o
“hologeismo” de Ratzel, a “célula de paisagem” de Troll; a
“ecogeografia” de Tricart, a “ciência diagonal” de Bertrand, o
“sistema-mundo” de Dollfus14 , etc.
É importante dizer que os princípios mencionados não se
desenvolvem isoladamente, nem tampouco podem ocorrer de
maneira opcional, entre os saberes identificados por sua filiação
(mesmo que potencial) à complexidade, pois cada um deles
evidentemente revela a existência dos demais, já que há um
movimento de recursão e de dialógica na relação que se
estabelece, por exemplo, entre a parte e o todo, ou seja: “a
idéia hologramática está ligada à idéia recursiva, que por sua
vez está ligada à idéia dialógica...” (Morin, 1991: 90).
No entanto, da mesma forma como há geografias que desde
as formulações pioneiras estão claramente pautadas por essas

14
Para uma maior familiarização com algumas dessas idéias e também com
as de outros autores, sugerimos a coletânea organizada por Josefina Gomez
Mendoza, Julio M. Jiménez e Nicolás Cantero (Mendoza, 1988). Ver também:
Santos, M e Souza, M.A. et alii (Orgs.). Col. O Novo Mapa do Mundo (3
vols.). São Paulo: Hucitec-Anpur, 1993.

153
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

características aproximativas de saberes complexos, há as que


se pautam pela simplificação e afastamento desse mesmo
horizonte epistemológico. E as indicações desse afastamento
também não são difíceis de serem percebidas, pois estas
geografias da simplificação costumam deixar muitos vestígios.
Entre outros15: pautam-se por abordagens monodimensionais e
monocausais, aferrando-se às determinações quase exclusivas de
uma dimensão ou uma explicação (como costuma-se fazer com a
dimensão econômica, p.e.); operam separações simplistas entre os
chamados fatores endógenos e exógenos, sejam estes identificados
como externos e internos à economia-política de um país, ou com
as forças, igualmente externas e internas, que atuam nas estruturas
geomorfológicas dos lugares; costumam ser adeptas também de
formulações monoescalares ou fracamente multiescalares, que
dificultam a percepção do conjunto de dimensões - das físicas às
humanas -, presentes nas geografias de todos os lugares; além do
mais, negligenciam o papel do espaço, reduzindo e simplificando
suas componentes naturais e sociais, produzindo enfoques
banalizadores, seja porque naturalizam os problemas sociais, seja
porque sociologizam as causas dos naturais.
Por fim, o “caráter fechado, absolutizante, etnocêntrico
e teleológico das teorias”, acrescenta Marcelo L. de Souza (op.
cit.), costuma ser também uma característica importante e
comum para identificar essa “inclinação obsessiva para a
simplificação” que certas formulações apresentam. Estas, além
de se pautarem pela adesão exclusiva aos modelos ocidentais
(eurocêntricos, quase sempre), com suas perspectivas de
progresso, suas “etapas de desenvolvimento” e seus mecanismos

15
A relação das características que reunimos a seguir inspira-se em lista
sugerida por Marcelo L. de Souza para detectar o conjunto “dos principais
sintomas dessa inclinação obsessiva para a simplificação” (Souza, 1997:
48), que algumas formulações geográficas apresentam. Não se trata de uma
citação literal, pois os acréscimos e ampliações para inclusão dos chamados
aspectos físico-ambientais são de nossa inteira responsabilidade.

154
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

de conhecimento, pouco investem nos diálogos transculturais,


pouco estimulam as posturas transdisciplinares16 .
Diante disso, como se vê, fica estabelecido que, para
desenvolver o potencial de uma abordagem sintonizada com as
exigências da complexidade, não basta apenas elogiar as
resistências epistemológicas, nem tampouco recompor certos
itinerários abandonados pela “inovação” ou pela obsessão
analítico-corporativa da Geografia. Há também que se produzir
escolhas, investir nas opções e vencer pressões. É isso que de
certa forma nos indicam, conforme apontam os autores que
examinamos, tanto aquelas características que aproximam como
aquelas que afastam as formulações geográficas de abordagens
sintonizadas ou não com a complexidade.
Inegável, no entanto - insistimos -, o potencial para a
afirmação e desenvolvimento dessa sintonia que está
reconhecidamente (por geógrafos e não geógrafos) presente nas
muitas formulações, desenvolvimentos e histórias da ciência
geográfica, sobretudo dentre as que não receiam a manutenção
das dualidades, dicotomias e contradições que tem caracterizado
essa área do conhecimento.

16
Aqui nos referimos às concepções de transdisciplinaridade, que não se
confundem apenas com aquela justaposição de disciplinas que é adotada
pelos mecanismos interdisciplinares ou multidisciplinares, mas que se abrem
para além do campo disciplinado pelos saberes científicos e
institucionalizados, exortando por diálogos com a arte e outros saberes
tradicionais. Tais concepções foram expressas nos seguintes documentos:
UNESCO (Diversos autores). Ciência e as fronteiras do conhecimento: o prólogo
de nosso passado cultural. Veneza: Unesco, março de 1986;
UNESCO (Diversos autores). Ciência e Tradição: perspectivas
transdisciplinares, aberturas para o XXIº Século. Paris: Unesco, 2-6 Dezembro
de 1991.
As concepções de transdisciplinaridade presentes nesses documentos também
foram trabalhadas e desenvolvidas em: NICOLESCU, B. O Manifesto da
Transdisciplinaridade. Lisboa: Hugin, 2000.

155
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

Pressões simplificadoras que atuam no sentido da superação


das contradições e incertezas, ou na eliminação das dicotomias
e ambigüidades, investindo obsessivamente na precisão dos
objetos, no fraco envolvimento dos sujeitos e na filiação
especializada, invariavelmente têm contribuído apenas para
tornar mais rígidas e impenetráveis as diversas fronteiras
cognitivas, criando, assim, uma grande confusão entre os
territórios corporativos e as fatias do conhecimento.
Tais pressões, antes de mais nada, estimulam o
desenvolvimento de (defi)Ciências que conseguem falar do tempo
sem falar do espaço, ou da cultura sem falar da natureza, das
economias sem as políticas, das histórias sem geografias, sem
antropologias... Ou seja, desenvolvem-se saberes que às vezes
chamam muito mais atenção por causa de suas omissões do que por
seus aportes. E a necessidade contemporânea, que praticamente
todos eles demonstram, de agregação de qualificativos ecológico-
ambientais (em suas diversas variações), ou dos prefixos bios e
etnos, ou simplesmente dos nomes de outras disciplinas, com as
quais estabelecem nova expressão composta, é confissão dessa culpa.
Dito de maneira menos simbólica, e reconduzindo a discussão para
o campo em que a desenvolvemos, tais agregações,
independentemente dos seus oportunismos ou de suas sinceridades,
são um reconhecimento de que é preciso em parte reverter o
processo que ao transformar algumas das ciências sociais (incluindo
a Geografia que aí se aninha) nessas espécies de antropogeografias
reduzidas, impôs às geografias abordagens onde invariavelmente
predominam reduções sociológicas, historiográficas, antropológicas
etc. Nas primeiras é comum deparar-se com análises políticas ou
sociológicas que desprezam o componente territorial e os
fundamentos biogeográficos. E nas segundas é possível deparar-
se com análises ambientais, ou territoriais, que simplesmente
desprezam a dimensão da política, da cultura ou da economia.
A todas essas reduções se pode indicar o horizonte da
complexidade. É o que acreditamos estar fazendo com os

156
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 83, p. 139-160, 2005

destaques oferecidos, entre outras, a uma certa e original


Geografia 17 realçada neste artigo. Para esta, o território e a
territorialidade, aos quais os geógrafos historicamente têm
dedicado grande parte de seus esforços de investigação, de fato
só podem ser compreendidos com o auxílio de instrumentos
cognitivos que estejam abertos a algum nível de reconciliação
disciplinar entre os saberes apartados e, ao mesmo tempo, sejam
suficientemente sensíveis à percepção das lógicas recursivas
(entre fatos da natureza e da cultura) que identificam e presidem
qualquer processo de territorialização.
Angelo Turco, em seu Verso una teoria geografica della
complessitá, ao caracterizar seu entendimento desse processo,
sintetiza em grande parte os elementos concretos que
acreditamos devam ser considerados, tanto para alimentar essa
perspectiva de retomada do diálogo entre os saberes, como
para sugerir as múltiplas lógicas recorrentes que igualmente
devem ser consideradas, para que se perceba as regras desse
jogo complexo que tem promovido todos os espaços do mundo
em territórios da nossa atenção. No pequeno trecho que
reproduzimos abaixo, o conjunto desses elementos podem ser
divisados. Com ele, que claramente nos indica a necessidade de
uma ciência (uma Geografia?) que seja capaz de captar a
complexidade descrita, terminamos essa nossa reflexão:
“A territorialização é, portanto, um grande processo, em
virtude do qual o espaço incorpora valor antropológico;
esse último não se agrega às propriedades físicas, mas as
absorve e as remodela, recompondo-as em associações
com formas e funções culturalmente diversificadas,
irreconhecíveis para uma análise exclusivamente
naturalista do ambiente geográfico. Por outro lado, o

17
Aqui rendemos homenagem ao sentido que o grande arquiteto catalão
conferiu ao conceito de originalidade, e o adotamos: “La originalidad
consiste em volver al origen”.

157
MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO

processo de territorialização não se confunde com o


acúmulo de artifícios sobre a superfície terrestre, com
um crescimento linear e genérico do valor antropológico
de um espaço; pelo contrário, devemos ter presente que
ele se dissolve em contínuas reconfigurações da
complexidade a partir da qual, definitivamente, o homo
geographicus extrai situações, normas ou ao menos
indicações para a sua ação” (Turco, 1988: 76).

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intelectual de Friedrich Ratzel (1844-1904)”. Biblio 3W. Revista
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TURCO, A. Verso Una Teoria Geografica Della Complessità.


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UNESCO (Diversos autores). Ciência e Tradição: perspectivas


transdisciplinares, aberturas para o XXIº Século. Paris: Unesco,
2-6 Dezembro de 1991.

As concepções de transdisciplinaridade presentes nesses


documentos também foram trabalhadas e desenvolvidas em:
NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Lisboa:
Hugin, 2000.

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ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

A AGB tem por objetivo:


· Promover o desenvolvimento da Geografia, pesquisando e divulgando
assuntos geográficos, principalmente brasileiros;
· Estimular o estudo e o ensino da Geografia, propondo medidas para o seu
aperfeiçoamento;
· Promover e manter publicações de interesse geográfico, periódicas ou não;
· Manter intercâmbio e colaboração com outras entidades dedicadas à
pesquisa geográfica ou de interesse correlato, ou ainda à sua aplicação,
visando ao conhecimento da realidade brasileira;
· Organizar e manter atualizado um cadastro de seus associados, com seus
currículos e realizações no âmbito da ciência geográfica;
· Propugnar pela maior compreensão e mais estrita colaboração com os
profissionais e estudantes de disciplinas afins;
· Analisar atos dos setores públicos ou privados que interessam e envolvam
a ciência geográfica, os geógrafos e as instituições de ensino e pesquisa
de Geografia, e manifestar-se a respeito;
· Congregar os geógrafos, professores, estudantes de Geografia e demais
interessados, para defesa e prestígio da classe e da profissão;
· Promover encontros, congressos, exposições, conferências, simpósios,
cursos e debates, bem como o intercâmbio profissional, mantendo contato
com entidades congêneres e afins, no Brasil e no exterior, de modo a
favorecer a troca de observações e experiências entre seus associados;
· Representar o pensamento de seus sócios junto aos poderes públicos e às
entidades de classe, culturais ou técnicas.

ASSOCIAÇÃO DOS GEÓGRAFOS BRASILEIROS

Sede da Seção Local São Paulo


Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Prédio da História/Geografia
Cidade Universitária - USP – São Paulo – SP – BRASIL
Fone: (11) 3091-3758
www.agbsaopaulo.org.br
Correio eletrônico: agbsaopaulo@yahoo.com.br

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O ORDENAMENTO TERRITORIAL CAPITALISTA E A ESPACIALIDADE
BRASILEIRA ATUAL: UMA INTRODUÇÃO AO DEBATE DA RELAÇÃO
ENTRE FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL E BLOCO HISTÓRICO

MARCOS BERNARDINO DE CARVALHO


GEOGRAFIA: CIÊNCIA DA COMPLEXIDADE (OU DA RECONCILIAÇÃO
ENTRE NATUREZA E CULTURA)

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