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Historicidade e Dados divisórios

A historicidade é o material com o qual o filosofo clínico fundamenta todo seu


trabalho, seus fundamentos estão no historicismo, método conhecido na
filosofia e utilizado por muitos filósofos. Recorrendo ao passado o filósofo tenta
entender e até modificar o presente.
A Filosofia Clínica faz uso adaptado do historicismo, não segue os passos de
nenhum filosofo em específico. Enquanto outros pensadores se valeram de
dados históricos para conhecer um pouco mais sobre o desenvolvimento do
homem, a evolução política e social da humanidade, o filosofo clínico utiliza os
dados históricos da vida do partilhante para conhecê-lo melhor. O historicismo
aliado a outros métodos como o fenomenológico, epistemológico, o empirismo,
a lógica formal, a analítica da linguagem e a matemática simbólica, possibilita
que o filósofo, além de conhecer, também entenda o funcionamento da pessoa.
Nos primeiros contatos com o filosofo o partilhante falará o que quiser, aí,
normalmente, já aparece algum sintoma, o partilhante faz alguma queixa e
apresenta o motivo que o levou a procurar um filósofo clinico. Quando uma
pessoa está passando por uma crise existencial é natural que as coisas fiquem
meio confusas em sua cabeça, memória, raciocínio, coisas da mente em geral.
Após este primeiro contato o trabalho segue com o filosofo solicitando ao
partilhante as lembranças mais remotas, algumas vezes a pessoa não lembra,
mas sabe, por intermédio de alguém, que algo aconteceu. Todos os dados
considerados pela pessoa como parte de sua história, assim será. Pode haver
casos em que a história do partilhante comece antes mesmo do nascimento
pois, a pessoa pode saber de coisas que aconteceram durante a gravidez.
Coisas como preparativos, tratamentos, e muito mais. Tudo isso sendo contado
ao filho, pode passar a fazer parte de sua história. Atendi um partilhante que
começou a contar sua história a partir de quando sua avó chegou da Itália ao
Brasil com 6 anos de idade. Neste momento da clínica ao filósofo não interessa
a veracidade do que está sendo relatado, o que o filósofo precisa saber é
exatamente a visão a edição que a pessoa fez de sua história e não uma
"provável" história. Schopenhauer, na primeira parte do livro O Mundo como
Vontade e Representação, falou da representação que cada um de nós
fazemos do mundo, seria essa representação que o filósofo busca, a
representação que o partilhante formou de tudo que aconteceu e, o filósofo fará
para si uma representação da representação do partilhante. É estar diante de
uma pessoa, que em seu funcionamento é única, é como se estivéssemos
diante de um fenômeno nunca conhecido antes, e para entendê-lo apenas
observamos e ouvimos o que ele tem a nos dizer (fenomenologia). Qualquer
tentativa de adivinhação resultará, com certeza, em fracasso. Por isso,
deixamos de lado as fórmulas prontas, que foram criadas para outros
fenômenos já conhecidos. Qualquer tentativa de encaixá-lo em um modelo a
priori ao seu conhecimento será desastroso, pois ele é único e ainda não foi
conhecido; pré-juízos e interpretações devem ser afastados, não podemos
correr o risco de descobrirmos o que queremos, e deixarmos de lado o que a
pessoa quer nos mostrar. Por tudo isso o filósofo deve deixar que o partilhante
conte sua história por si mesmo e, se o partilhante diz coisas que são
polemicas quanto a possibilidade de serem provadas como vidas passadas,
vidas em outros planetas, etc, a metodologia não muda, estamos tentando
conhecer um pouco mais desta pessoa, e tudo isso faz parte de seu mundo
subjetivo, o qual precisamos conhecer, por isso nada é questionado neste
momento, apenas ouvimos.
Um assunto trazido ao consultório por uma pessoa pode ter sua origem no
passado, e mesmo que não tenha, podemos encontrar dados, no passado, que
podem nos auxiliares no presente. O principal motivo de se tirar a historicidade
inteira do partilhante é para que se faça uma clínica com segurança,
conhecendo os antecedentes e podendo prever os consequentes. Como nada
sabemos sobre a pessoa que chega para as primeiras consultas, é necessário
que esta conte sua historicidade desde o começo, a menos que seja um
atendimento emergencial, onde não há tempo de cumprir com detalhe todo o
procedimento. Não podemos chamar de filosófico clínico o atendimento que
não considera dados da história do partilhante.
O primeiro cuidado que o filósofo deve ter é de que a pessoa conte sua história
de forma ordenada. Imagine um filme onde as senas são misturadas e logo no
começo você vê a uma cena do final do filme, logo depois uma cena do
começo, na sequência uma cena do meio do filme, e assim sucessivamente,
como se fosse um quebra cabeça misturado. Neste caso temos um agravante,
o risco de ver uma mesma cena várias vezes, enquanto outras nem
aparecerão, seria difícil de entender a história. Por esse motivo, o primeiro
cuidado do filósofo é que a história seja contada de forma ordenada. Às vezes
a pessoa está em um estado que as coisas se encontram realmente confusas,
fora de lugar, e não se tem noção da ordem, e assim perde-se também a visão
de antecedentes e consequentes. O simples procedimento de se orientar o
partilhante para que sua história seja contada de forma ordenada já pode
ajudar a pessoa a chegar a conclusões e entendimentos que antes não tinha
visto que as coisas estavam desordenadas.
Quando um partilhante está contando experiências de sua infância e daí salta
para um evento de quando tinha 30 anos, isto é o que denominamos de Salto
temporal. O filósofo deve estar atento aos saltos temporais, eles podem
atrapalhar o entendimento. Se uma partilhante conta que gostava de ir ao sítio
dos avós quando criança e após contar tudo que fazia por lá, começa a contar
que aos 19 anos entrou na faculdade, que fez novas amizades e tudo que
decorreu a partir daí, veja que ficou uma lacuna entre os dois períodos.
Quando o partilhante segue sua história, tudo bem, esta lacuna pode ser
preenchida posteriormente, mas, se ele volta para a infância, e depois salta
novamente para outro período, aí o entendimento fica comprometido, neste
caso, o filosofo deve fazer uma pequena intervenção no sentido de levar a
pessoa novamente à ordem cronológica de sua história, é o que chamamos de
Agendamentos mínimos, isto é feito da seguinte forma: "você estava falando
das coisas que fazia na casa de seus avós, e depois o que houve?" Às vezes a
pessoa não quer falar de algum assunto e se for este o caso o filósofo não
insistirá, pelo menos neste momento. Pode ocorrer do salto temporal acontecer
simplesmente porque a sequência lógica de uma história assim o exigi: "nessa
época, com doze anos, aprendi as primeiras palavras em inglês, quando fui
entrar na faculdade, já com 19 anos, entrei no curso de letras". Se um salto
temporal não atrapalhar o entendimento da historicidade, ele pode ser
permitido, porém o filosofo deve ficar atento para retomar o tempo que ficou de
fora da história, é o que chamamos de Dados divisórios.
Outro fator que pode atrapalhar o entendimento da historicidade é o Salto
lógico. Isso ocorre quando o partilhante está falando de um determinado
assunto e, de repente, muda de assunto sem concluir o primeiro. Às vezes o
partilhante entra em assuntos que nada tem a ver com sua história de vida, isto
também é Salto lógico. O procedimento do filosofo clínico diante de um salto
lógico é o mesmo aplicado no salto temporal, ele deve levar a pessoa de volta
à sequência lógica de sua história: "então mudamos para essa cidade, meu tio
era vereador lá, ele ficou rico com política. Os políticos são eleitos pelo povo
para depois roubar o próprio povo, tem alguns que roubam, mas fazem alguma
coisa, agora, tem outros que só roubam"; nessa a pessoa pode ir, e se o
filósofo não trouxer o partilhante de volta para sua história, não teremos a
historicidade da pessoa. Então o filósofo pede que a pessoa volte à sua
história: "você disse que se mudou de cidade, e depois?". Às vezes a pessoa
faz pequenos saltos lógicos que em nada atrapalham, concluem o assunto e
voltam naturalmente à história. A intervenção será feita apenas se o Salto
atrapalhar o entendimento ou o desenvolvimento cronológico da historicidade.
Qualquer coisa que o filósofo diga no momento da consulta poderá ser
agendado pelo partilhante em seu intelecto, por isso o filósofo deve estar muito
atento ao que vai falar no momento em que está tirando a historicidade de uma
pessoa. A orientação é que se faça agendamentos mínimos, ex: e depois;
continue de onde parou; prossiga. Agendamentos mínimos são intervenções
que apenas estimulam o partilhante a continuar sua história. Um dos motivos
deste procedimento é o fato do filosofo ainda não conhecer a história de seu
partilhante, um comentário pode afrontar o partilhante desnecessariamente,
pode direcionar a história do partilhante, inibir, etc. prejudicando assim a
clínica. Perguntas aparentemente simples, podem direcionar o rumo da
historicidade e em alguns casos até por a perder toda clínica, ex: O partilhante
pode falar que se mudou de casa aos 12 anos e se o filósofo pergunta "por
que", este já está direcionando a historicidade para o lado da razão, dos
motivos, o que é errado. O partilhante deve contar sua historicidade como esta
está para si. Se o partilhante vai falar sobre os motivos da mudança, se vai
simplesmente falar sobre a nova cidade, de pessoas que conheceu, de coisas
que aprendeu, o que sentiu ou pensou, seja lá o que for, deve falar por si, não
pelas perguntas do filósofo, pois para conhecermos o partilhante e interagirmos
posteriormente com segurança, temos de encontrar as coisas como estão para
ele. No caso acima o partilhante pode falar da mudança de casa de várias
maneiras, para o filósofo é importante que seja a maneira do partilhante. Se
direcionarmos a historicidade para tópicos como as emoções, a razão, as
sensações, abstrações ou qualquer outro, já não teremos mais a história pura.

Após o partilhante ter chegado aos dias atuais com sua história o filósofo
focará sua atenção para os saltos temporais cometidos por este. O filosofo vai
fazer o que chamamos de Divisão, ele vai pedir que o partilhante conte sua
história de um ponto a outro. É importante que o filosofo utilize os mesmos
termos usados pelo partilhante para se orientar temporalmente em sua história,
ex: o partilhante pode ter saltado de quando terminou a oitava série para a
faculdade; de quando tinha 18 anos para os 25; da festa de aniversário de 15
anos para a festa do casamento; de quando se mudou para uma cidade para o
nascimento de um filho; de quando tirou habilitação de motorista para a
aposentadoria. São infinitas as formas pelas quais podemos dividir
temporalmente nossa historicidade, cada um de nós temos uma maneira
totalmente nossa, e é baseado na maneira do partilhante que o filósofo vai se
orientar para fazer a divisão e tentar resgatar a parte da história que não foi
contada. Pediremos então ao partilhante que conte sua história de um ponto a
outro, normalmente os saltos são cometidos por motivos simples, por confusão,
por não ter entrado em algum assunto relacionado ao período, etc. Porém se o
partilhante saltou algum trecho de propósito, por não querer entrar no assunto,
então o filósofo respeitará a postura do partilhante neste momento.
Posteriormente, se o filosofo constatar, através dos Exames Categoriais e da
Estrutura de Pensamento do partilhante, que o trecho em questão está
relacionado ao assunto da clínica e que é importante maiores informações
sobre o período, então o filosofo vai proceder com muita cautela, para acessar
estas informações.

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