Você está na página 1de 281

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

DANILLO COSTA LIMA

CONHECIMENTO DE SI COMO CAMINHO


FILOSÓFICO EM PLATÃO, PLOTINO E PROCLO

MESTRADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

DANLLO COSTA LIMA

CONHECIMENTO DE SI COMO CAMINHO FILOSÓFICO EM PLATÃO,


PLOTINO E PROCLO

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Filosofia, sob a
orientação do Prof. Dr. Marcelo Perine.

SÃO PAULO
2018
BANCA EXAMINADORA:

____________________________________
Prof. Dr. Marcelo Perine

____________________________________
Prof. Dr. Mauricio Pagotto Marsola

_________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rocha Sapaterro
Bolsista integral da CAPES, contrato nº 1346195, de 02/2016 a 02/2018
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar aos meus pais, sem cujo apoio e suporte ao longo dos anos da realização
deste Mestrado nada disso seria possível.

À minha companheira Marilen, por sua incansável companhia e encorajamento.

Ao meu amigo Gilberto pelos domingos na ágora, e os diálogos que tanto me ajudaram ao
longo do processo de escrita deste trabalho.

Ao meu orientador Marcelo Perine e aos meus colegas de faculdade pelos anos de convivência.

À CAPES pelo financiamento integral ao longo de dois anos.


RESUMO

LIMA, Danillo Costa. Conhecimento de Si como caminho filosófico em Platão, Plotino e


Proclo. 2018.281f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2018.

Em Proclo, a máxima délfica “gnothi seauton” alcançou o estatuto de princípio fundamental da


filosofia, segundo duas perspectivas: teórica e prática. Do ponto de vista teórico, em resposta
ao desafio do Ceticismo ao conhecimento representativo em sua dualidade sujeito-objeto, a
tradição neoplatônica levou a cabo um considerável aprofundamento da reflexão filosófica
sobre a autorreflexividade ou conversão a si mesmo (epistrophê pros eauton), inaugurando
assim uma forma própria de “virada ao sujeito” como método filosófico. Do ponto de vista
prático, o conhecimento de si constituía um verdadeiro caminho espiritual de cuidado de si,
conduzindo a alma de uma condição natural e irrefletida para uma vida de piedade filosófica e
transformação de si, culminando na deificação da alma em união ao Divino. Para este fim, há
nas escolas neoplatônicas deste período uma formalização de um processo gradual de educação
da alma, delineando, sob a forma de uma escada de virtudes e saberes, os vários níveis do
caminho a serem percorridos por ela em sua ascensão até à bem-aventurança da assimilação à
divindade. Subjacente às duas perspectivas está uma compreensão do cerne da alma, sua pura
existência indeterminada (huparxis), como sendo deiforme, de modo que dele depende tanto a
possibilidade do conhecimento verdadeiro, sob a forma de intuição intelectual (noesis), quanto
a possibilidade da bem-aventurança, sob a forma do amor (eros). Atualizá-las é o propósito da
ascese a que se dedica o filósofo platônico. Esta dissertação busca reconstruir hipoteticamente,
a partir de Proclo, este caminho de autoconhecimento do Neoplatonismo Tardio, partindo de
uma investigação de suas raízes na religião grega, em Platão e em Plotino.

Palavras-chave: Conhecimento de si, autokinêsis, caminho filosófico, deificação, Platonismo,


Mistérios, Platão, Plotino, Proclo, Neoplatonismo Tardio.
ABSTRACT

In Proclus, the delphic adage “gnothi seauton” reached the status of the fundamental principle
of philosophy, according to two perspectives: theoretical and practical. From the theoretical
point of view, and in answer to the Skeptical challenge to representative knowledge in its
subject-object duality, the neoplatonic tradition carried out a considerable deepening of the
philosophical reflexion on self-reflectivity or conversion to one’s self (epistrophê pros eauton),
thus inaugurating a form of “turn to the subject” as philosophical method. From the practical
point of view, self-knowledge constituted a true spiritual path of self-care, leading the soul from
a natural and irreflected condition to a life of philosophical piety and self-transformation,
culminating in the soul’s deification through union to the Divine. To this end, in the neoplatonic
schools of this period, a formalization of the gradual process of the soul’s education takes place,
delineating in the form of a ladder of virtues and sciences, the various levels of the path to be
pursued until the soul’s ascension into the beatitude of assimilation to deity. Underlying these
two perspectives is a comprehension of the core of the soul, its pure indeterminate existence
(huparxis), as being deiform, in such a way that upon it depends both the possibility of true
knowledge, in the form of intellectual intuition (noesis), and the possibility of beatitude, in the
form of love (eros). To actualize them is the purpose of the ascesis to which the platonic
philosopher dedicates himself. This dissertation aims at hypothetically reconstructing, based on
Proclus, this path of self-knowledge in Late Neoplatonism, starting with an investigation upon
its roots in greek religion, Plato and Plotinus.

Key-words: Self-knowledge, autokinêsis, philosophical path, deification, Platonism,


Mysteries, Plato, Plotinus, Proclus, Late Neoplatonism.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 9

1 TRADIÇÕES RELIGIOSAS HELÊNICAS E AS ORIGENS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO 22


1.1 A Religião Olímpica e a Filosofia Jônica .............................................................................. 25
1.2 A Religião Mistérica e a Filosofia Itálica .............................................................................. 37
1.3 O Sofismo e o impulso Socrático à Filosofia ........................................................................ 55

2 A FILOSOFIA EM PLATÃO COMO CONDUÇÃO DA ALMA (PSUKHAGOGIA) AO


DIVINO................................................................................................................................................. 63
2.1 A herança socrática ............................................................................................................... 63
2.2 A Via da Dialética Ascendente ............................................................................................. 80
2.3 A Via da Dialética Descendente............................................................................................ 88
2.4 O Filósofo Platônico............................................................................................................ 101

3 PLOTINO E O CONHECIMENTO DE SI EM RESPOSTA AO CETICISMO ....................... 106


3.1 A virada Neoplatônica ao Sujeito em resposta às objeções céticas ..................................... 106
3.2 A Metafísica do Intelecto e do Uno..................................................................................... 113
3.3 O autoconhecimento como ascesso transcendente ao Intelecto e ao Uno/Bem .................. 134
3.4 A Alma hipóstase e a alma particular em Plotino ............................................................... 153

4 A ALMA E O CAMINHO FILOSÓFICO DO CONHECIMENTO DE SI EM PROCLO........ 169


4.1 A autorreflexividade da alma automotriz ............................................................................ 169
4.2 (I) Cultura e (II) Filosofia no Caminho da ascensão da Alma ............................................ 199
4.3 Sua culminação na (III) Sabedoria ...................................................................................... 240

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................................. 271


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 272
INTRODUÇÃO

Diante da tarefa de estudar o Neoplatonismo Tardio1, uma das primeiras constatações


que se faz presente é o longo silêncio com que esse período da filosofia recebeu por um longo
tempo na modernidade. Um breve olhar sobre as opiniões dos estudiosos formados ainda sob a
influência do século XIX nos revela algo do desconcerto moderno diante da Antiguidade
Tardia. Gilbert Murray (1866-1957), por exemplo, entendia a história do desenvolvimento da
filosofia antiga como constituída por um movimento decadente, que vai do ápice do
racionalismo da Antiguidade Clássica ao misticismo irracional decaído da Antiguidade Tardia,
processo que entendeu como uma “falha de nervos”. A expectativa positivista da história é que
ela se movesse segundo um vetor de crescente “racionalidade”, de forma que a razão se
emancipasse da religião através da filosofia, e por fim se emancipasse também da filosofia
através da ciência. Que a Antiguidade Tardia representasse uma negação dessa expectativa
provocava evidente embaraço. Outro estudioso, Émile Bréhier (1876-1952), entendia que os
desenvolvimentos da Antiguidade Tardia só podiam ser explicados por uma influência de um
certo “misticismo oriental” sobre a “razão ocidental”, necessário para explicar a reversão da
expectativa histórica do positivismo no seio da “civilização ocidental”, que deveria ser a
civilização da razão.
Em seguida Dodds (1893-1979), preocupado com o que ele entendia ser uma onda de
irracionalismo em seu tempo, também supunha que o desenvolvimento histórico da
Antiguidade é paralelo ao nosso, que há entre a sociedade helênica e o mundo moderno uma
identidade de experiência, como se pudéssemos compreender os anseios civilizacionais dos
antigos gregos a partir dos conflitos da civilização moderna (HANKEY, 2007, p. 503). Ele
entende que o mundo helênico e o Ocidente moderno representam civilizações abertas,
modernas e progressivas, e que são ameaçadas desde seu interior pela ameaça do irracionalismo
sistemático, cuja causa é o medo da liberdade, o peso da responsabilidade da escolha individual
que a sociedade aberta coloca sobre seus membros. A ameaça do irracionalismo destruiu o
mundo helênico, e poderia vir a destruir o mundo moderno.
Mas, contrário a Murray, ele não acreditava que o ‘irracionalismo’ helênico só teve
origem na Antiguidade Tardia, nem, contrário a Bréhier, que era necessária uma influência

1
Isto é, posterior a Plotino e Porfírio, um período da filosofia platônica na Antiguidade que vai, aproximadamente,
de Jâmblico (245 – 325) a Olimpiodoro (495 – 570). Evidentemente, agrupar os platonistas deste período numa
categoria não implica sugerir que haja uma homogeneidade entre eles.
9
oriental para explicá-lo. O ponto alto da cultura helênica estaria no quinto século a.C., quando,
a partir dos sofistas e depois em Sócrates, abriu-se a perspectiva de progresso, a “marcha da
civilização” segundo o exercício emancipado da razão. Em Platão, ele já identifica um suposto
“irracionalismo” do quarto século, cuja causa seria um desapontamento com a perspectiva de
progresso que havia sido aberta no século anterior. O mesmo tipo de “irracionalismo
sistemático” que vemos na Antiguidade Tardia, portanto, já é identificável no seio do próprio
período Clássico. Ele diz encontrar já em Eurípedes, por exemplo, o “irracionalismo” da
Antiguidade Tardia caracterizado pela combinação de ceticismo e misticismo, da primazia da
emoção sobre a razão na determinação da conduta humana, do desespero político que resulta
no quietismo, no desespero religioso que decai de uma teologia racional a uma ânsia por uma
religião de natureza ‘origástica’ (HANKEY, ibid., p. 502). Com sua leitura, Dodds de fato
permite “salvar” o caráter propriamente helênico do pensamento na Antiguidade Tardia sem
precisar culpar algum estrangeiro, mas sob a pena de associá-la ao que há de pior no Helenismo
clássico, com uma tendência à decadência que é sempre possível à civilização ocidental, e sob
a qual nós, modernos, também podemos decair.
Ora, o que vemos em comum em todos estes exemplos, é um fator característico da
reconstrução do Helenismo na modernidade: a suposição de que a filosofia grega tenha
emergido tal qual o entendeu Aristóteles, como um processo de racionalização gradual que se
dá na medida em que elementos míticos são substituídos por explicações racionais
(WALBRIDGE, 2000, p. 43). A força dessa perspectiva se reforça, ainda, na medida em que se
identifica com o processo pelo qual a autoconsciência moderna emergiu de seu passado
medieval, cujo vetor é uma passagem da religião – entendida como tradição, ortodoxia, dogmas
– para o pensamento livre, a autonomia da razão diante da tradição, a livre investigação etc,
culminando, ao menos na sua versão positivista, no já mencionado vetor linear: religião,
filosofia, ciência.
Segundo essa leitura, portanto, se encontramos elementos da religiosidade helênica nos
antigos filósofos, isso se deve somente ao fato de que eles “ainda” não haverem logrado a
completa emancipação da sombra do irracional, o que nós, modernos, finalmente alcançamos
(ou alcançaremos). A construção da imagem de um tal Helenismo, suposto antepassado
histórico da autoconsciência moderna, tem como resultado uma série de concepções viciadas,
como a citada relação entre religião e filosofia na Grécia Antiga. Ainda, resulta numa rejeição
que torna impossível a frutificação do estudo e a compreensão de um período da história da
filosofia como aquele do Neoplatonismo Tardio.

10
Por outro lado, o século XX testemunhou a chegada da pós-modernidade. Central ao
pensamento de uma das maiores figuras da filosofia neste século, Martin Heidegger (1889-
1976), é sua leitura da história da metafísica ocidental como onto-teologia, o excesso de
racionalismo que reduz Deus e o Ser a meros objetos, e a consequente rejeição e declaração da
morte de toda a história da metafísica. Como Hankey (2004, p. 431) comenta acerca da
importância de seu pensamento, “a busca de Heidegger se tornou ou expressou a busca de
muitos para quem a metafísica havia se tornado a racionalidade objetificante que expressava ou
causava nossa cegueira”. Porém, sua crítica à história da metafísica terminou por despertar o
interesse pelo Neoplatonismo por parte de muitos filósofos e teólogos que nele encontraram um
caminho alternativo para a filosofia, a teologia e a religião no Ocidente (ibid., p. 427). De fato,
os últimos quarenta anos de produções na história da Filosofia têm testemunhado uma grande
expansão de estudos acerca do Neoplatonismo, o que tem contribuído para o surgimento de
uma espécie de “neo-Neoplatonismo”, especialmente na França: um fenômeno que Derrida
chamou de “a aurora de um novo Platonismo, que é o dia seguinte à morte do Hegelianismo”
(apud ibid., p. 430).
Em sua maior parte, porém, os estudos neoplatônicos na primeira metade do século
passado centraram seu interesse no pensamento de Plotino (203 – 270) apenas, e por vezes, seu
discípulo Porfírio (233 – 305). O véu de silêncio que recaía sobre o Neoplatonismo Tardio só
começou a se desfazer, de fato, entre pensadores católicos franceses que o abraçaram como
alternativa filosófica ao tomismo: André-Jean Festugière (1898-1982), Jean Trouillard (1907-
1984), Stanislas Breton (1912-2005), Henry Duméry (1920–), Joseph Combès (1920–) e
Henry-Dominic Saffrey (1921– )2. Esse desenvolvimento se insere já dentro de um contexto
pós-moderno3, de forma que esses autores buscarão no Neoplatonismo um pensamento vivo
que ainda fala às nossas inquietações contemporâneas, capaz de iluminar perplexidades
religiosas e filosóficas de nosso tempo. Como o comentou Hankey (2007, p. 534), “no
Neoplatonismo tardio os filósofos contemporâneos mais inovativos descobrem a base para as
perguntas e respostas radicais que eles põem à modernidade”. Como consequência desse
movimento, vemos em estudos recentes um processo de revisão da história da filosofia a partir
de uma reinterpretação do Platonismo em geral, e do Neoplatonismo em particular (HANKEY,

2
Poderíamos acrescentar ainda o alemão Werner Beierwaltes (1931–), que apesar de não pertencer ao mesmo
grupo dos demais, foi um dos mais importantes estudiosos de Proclo do século.
3
Hankey (2007, p. 528) aponta o impacto que essa recuperação do Neoplatonismo teve sobre figuras do pós-
modernismo francês, como Louis Althusser (1918-1990), Michel Foucault (1926-1984), Emmanuel Lévinas
(1906-1995), Jacques Derrida (1930-2004), Michel Henry (1922-2003) e Jean-Luc Marion (1946–).
11
2004, pp. 437 e 442), que tem contribuído para avançar nossa compreensão do seu verdadeiro
lugar nessa história.
Um dos temas que emergem desses estudos recentes como sendo central ao
Neoplatonismo Tardio é a sua versão da máxima délfica gnothi seauton ou “conhece-te a ti
mesmo”, uma vez que o conhecimento de si é considerado como o princípio fundamental do
Platonismo e de toda a filosofia (c.f. WALBRIDGE, 2000, p. 171). No pensamento de Proclo,
duas facetas fundamentais da sua concepção filosófica do conhecimento de si se destacam: uma
teórica e a outra prática.
Do ponto de vista teórico, identifica-se que em resposta4 ao desafio do Ceticismo ao
conhecimento representativo em sua dualidade sujeito-objeto, o Neoplatonismo teria levado a
cabo um considerável aprofundamento filosófico na reflexão acerca da natureza da
autorreflexividade ou conhecimento de si, buscando neste o fundamento verdadeiro do saber
filosófico. Como o observou Gerson (1997, p. 20), autores neoplatônicos tardios como Proclo,
Damáscio, Olimpiodoro, Simplício e Hierócles detêm cerca de noventa por cento das
ocorrências na literatura filosófica grega da frase indicadora desse movimento de autorreflexão,
’επιστροφη προς ’εαυτον ou conversão a si mesmo. Neste processo, eles teriam inaugurado
uma forma de centralização do sujeito sobre o objeto, segundo a qual as formas de realidade
objetiva são “fundamentalmente determinadas pelas perspectivas dos diversos sujeitos”
(HANKEY, 2005b, p. 19), realizando assim uma espécie de “recentramento do conhecimento
e da criatividade no caráter do sujeito e sua perspectiva” que seria central “ao Neoplatonismo
pós-Plotiniano e a seus herdeiros medievais Gregos e Latinos” (ibid., p. 21).
Do ponto de vista prático, o conhecimento de si constitui um verdadeiro caminho
espiritual de cuidado de si, visando conduzir a alma de uma forma de vida natural e irrefletida
para uma vida de piedade filosófica segundo o cultivo do saber e da virtude, uma transformação
de si que culmina na deificação da alma e na sua elevação e união ao Divino. O conhecimento
de si, em seu mais elevado nível, se identifica ao conhecimento da própria divindade. A filosofia
é um caminho a ser trilhado, e que como intermediária entre a ignorância do estado natural e a
sabedoria da deificação, alcança uma “unificação de abstração e inatismo, de produção e
contemplação, de raciocínio e iluminação” que nos guia pelo autoconhecimento “à mais elevada
união que a religião busca” (HANKEY, 2005a, p. 53). Para este fim, observa-se que nas escolas
neoplatônicas deste período há a formalização de um processo gradual de educação da alma, o

4
Ou, se não em resposta a ele propriamente, ao menos no embate dialético com argumentos semelhantes.
12
delineamento dos vários níveis do caminho a serem percorridos por ela em sua ascensão até à
bem-aventurança da assimilação à divindade.
Subjacente às duas facetas está uma compreensão do cerne da alma, uma pura existência
indeterminada (huparxis), como sendo deiforme, de modo que é deste cerne que depende tanto
a possibilidade do conhecimento verdadeiro, sob a forma de intuição intelectual (noesis), quanto
a possibilidade da bem-aventurança, sob a forma do amor (eros). Atualizá-las é o propósito da
ascese a que se dedica o filósofo platônico.
Além disso, o avanço nos estudos acerca desses autores contribuiu para que uma visão
mais ampla do Neoplatonismo como tradição filosófica começasse a emergir nos estudos
contemporâneos. Por um lado, porque é ao adentrar no universo do Neoplatonismo Tardio que
se tem acesso aos debates internos da escola, à variedade de desenvolvimentos do seu
pensamento nas obras remanescentes de seus muitos autores, etc. Mas além disso,
neoplatônicos como Jâmblico (245 – 325), Proclo e outros possuíam uma autocompreensão de
seu pertencimento a uma linhagem filosófica, uma “corrente dourada” cuja inspiração contínua
partia do Orfismo, passando pelos filósofos pré-socráticos itálicos (como Empédocles,
Pitágoras e Parmênides), por Sócrates e Platão, por gerações de medioplatônicos e
neopitagóricos, até por fim chegar, na Antiguidade Tardia, até eles próprios. Deste modo, “o
Platonismo estava agora em relação apropriada a milhares de anos de pensamento humano”
(FINNAMORE apud Uzdavinys, 2004, p. ix).
O Platonismo, neste contexto, não se identifica estritamente ao pensamento de Platão,
mas a uma posição filosófica arquetípica da qual Platão é talvez o melhor, ou um dos melhores,
intérpretes e transmissores. Sua característica distintiva é ser uma theia philosophia (Fedro,
239b), seus grandes representantes são dignos da alcunha de “divino”, devido à profundidade
de sua penetração na luz da sabedoria divina. Mesmo filósofos como Aristóteles e os estoicos,
que eram em níveis distintos assimilados e estudados no currículo neoplatônico de leituras
como propedêuticos à filosofia platônica, não pertenciam à mesma estirpe, uma vez que eram
no máximo daimônicos mas não divinos.
Certamente que tal compreensão da tradição platônica é tomada com ceticismo em
nossos tempos. Em primeiro lugar, a opinião comum desde os séculos XVIII e XIX é que os
neoplatônicos nem sequer podem receber crédito como autênticos sucessores de Platão, razão
pela qual lhes foi concedido o prefixo “neo”, sinal de sua distância da “verdadeira” filosofia
platônica, da qual são deturpadores ou, às vezes em uma nota mais positiva, inovadores. Sua
reivindicação de parentesco com Orfismo e com Pitágoras, por sua vez, é ainda mais incerta,

13
diriam, dado à escassez de fontes autênticas que nos permitam determinar precisamente o que
esses de fato eram.
Mas creio que essa questão não pode ser reduzida meramente à análise da transmissão
histórica das ideias, nem à suposição de alguma forma de homogeneidade de pensamento.
Antes, o sentido de uma tradição filosófica repousa sobre a consistência de uma certa lógica
interna, de uma certa partilha de problemas, um elã e temperamento filosófico em comum, que
de fato fazem com que certas posições filosóficas sejam arquetípicas, capazes de emergência e
reemergência em lugares e épocas distintos, unindo em simpatia pensadores que talvez nem
sequer tenham tido algum tipo de conexão direta um com o outro na transmissão histórica das
ideias. Neste sentido, encontro proveitoso uma breve excursão no pensamento de um filósofo
persa, Sohrawardī (1154 – 1191), o qual, apesar de não haver exercido qualquer influência no
curso da escrita do presente trabalho, ilustra vários pontos fundamentais daquilo que os
neoplatônicos tardios compreendiam por filosofia platônica.
Sohrawardī havia sido um filósofo peripatético em sua juventude, na tradição do grande
Avicena, a qual ele eventualmente rejeitou em prol da filosofia platônica (WALBRIDGE, 2000,
p. 139), o que constituiu, segundo ele próprio afirmou, o evento crítico de seu desenvolvimento
intelectual (ibid., p. 125). Foi assim o fundador da escola Ishrāqī (iluminacionista), à qual
pertenceram, desde o século XII até o XX, vários pensadores persas por ele influenciados, os
ishrāqīs, que são “os platonistas da Pérsia”5 (ibid., pp. 27 e 29).
A doutrina do conhecimento por presença é o aspecto fundamental da epistemologia de
Sohrawardī, e o traço distintivo de toda a escola Ishrāqī. Segundo esta, aquilo que
fundamentalmente caracteriza todo o conhecimento é a apreensão de si por parte do sujeito, o
conhecimento de si, que não se dá através de um intermediário ou alguma faculdade – pois
postular algum intermediário demandaria outro, e assim em diante numa regressão ao infinito
–, mas pela presença imediata do sujeito a si mesmo, na qual não há dualidade ou exterioridade
do conhecido em relação ao cognoscente (ibid., pp. 157 e 166). Para que qualquer outra forma
de conhecimento acerca de qualquer objeto seja possível, é preciso que o conhecedor esteja na
presença desvelada do conhecido. Mesmo que, por exemplo, o “maquinário” de olhos, nervo
óptico, cérebro etc sejam condições de uma percepção, a percepção de fato não se dá neles ou

5
O termo “Neoplatonismo Islâmico” é, observa Walbridge (2000, p. 124-125), muitas vezes atribuído de forma
muito vaga a pensadores islâmicos como Avicena, cujo pensamento apresentava algum elemento neoplatônico,
como um certo emanacionismo. Porém, ele ressalta, Avicena era propriamente um pensador peripatético: sua
lógica e sua psicologia eram consistentemente aristotélicas, sua obra era organizada segundo o arranjo tradicional
do corpus aristotélico, e para quem o momento crítico de desenvolvimento intelectual era a leitura da Metafísica
de Aristóteles. Os neoplatônicos islâmicos propriamente ditos são os ishrāqīs do Irã, que ao longo dos séculos
consistentemente se diferenciaram da filosofia peripatética e se reconheceram como platônicos.
14
através deles, mas na imediaticidade da experiência subjetiva do “eu conheço”. Nesta, o objeto
não é apreendido como sendo externo ao cognoscente, mas como uma extensão da pura
apreensão de si. A razão conceitual não é o fundamento do conhecimento, mas uma atividade
secundária que depende daquela pura presença para que possa se exercer, pois a intuição
(dhawq) é o que fornece à razão o fato que a permite construir seu conhecimento. Desta forma,
o conhecimento por presença é o que torna possível todas as formas de conhecimento, sensível
e suprassensível (ibid., p. 23), e o conhecimento de si é todo o fundamento da filosofia.
O termo que dá o nome à escola, Ishrāqī, significa iluminação, uma referência àquela
efusão de luz que se dá sobre a alma quando esta se encontra abstraída do corpo (ibid., p. 28),
que é precisamente a forma intuitiva de conhecimento que é a presença. Ela se caracteriza,
portanto, como a filosofia que emprega a intuição como instrumento. Porém, aquela apreensão
direta e imediata da presença é mais forte na medida em que o sujeito é incorpóreo (ibid., p.
167), de modo que embora esteja sempre presente no fundamento de toda cognição, ela não o
é sempre de maneira evidente. Alcançá-la, portanto, requere do filósofo ishrāqī uma virtude
especial, a qual é adquirida através da dedicação a uma ascese, uma forma específica de vida
pautada pela transformação do seu ser interior, e que constitui, portanto, um verdadeiro
requerimento epistêmico (ibid., p. 53). Por esta razão, segundo Sohrawardī, poucos filósofos
atingem as raias dessa divina filosofia (ibid., p. 28). Aqueles que apenas exercitam sua razão
desprovida de intuição, são al-baḥth, filósofos proficientes na “investigação”; mas aquele que
é proficiente na filosofia intuitiva é ta’ alluh, aquele que está “se tornando Deus”, ou al-ilāhī,
divino6 (ibid., p. 176). O filósofo intuitivo é aquele que conhecendo a si mesmo é deificado
(ibid., p. 171).
A crítica de Sohrawardī ao peripatetismo incluía um debate argumentativo em que
rejeitava sistematicamente vários elementos da lógica e da ontologia aristotélicas, tais quais: a
crítica àquilo que ele entendia ser uma reificação peripatética dos “seres da razão”, e a
consequente perda da compreensão da verdadeira natureza das Ideias platônicas (ibid., pp. 21-
22); uma crítica à lógica aristotélica e ao método das definições; uma crítica à teoria aristotélica
da visão, entre outras. Porém, estes pontos não são o cerne de sua rejeição. Sohrawardī não
considerava que o pensamento peripatético fosse meramente “errado”, mas uma forma limitada
de filosofia que, mesmo que pudesse ser de fato sensata quando corretamente levada a cabo,
não era capaz de alcançar as verdades mais elevadas. A sua limitação adviria principalmente de
dois fatores inter-relacionados: em primeiro lugar, ela seria uma filosofia que tem apenas a

6
O atributo aplicado ao “divino Platão”, tanto pelos neoplatônicos da Antiguidade Tardia quanto pelos ishrāqīs.
15
razão discursiva como instrumento, e, na ausência de uma faculdade intuitiva que a guiasse,
caminhava cegamente em meio ao mundo. Em segundo lugar, precisamente porque operava
apenas através da razão discursiva e não aspirava à verdadeira intuição intelectual, a sua prática
filosófica não envolvia a necessidade do comprometimento ético, ascético e espiritual
necessário para purificar a alma e assim torná-la capaz daquela intuição (ibid., p. 140).
Assim como os neoplatônicos da Antiguidade Tardia, ele considerava, portanto, que a
filosofia peripatética fosse adequada apenas a iniciantes, como uma propedêutica à filosofia
platônica – e enquanto tal, digna inclusive de comentários escritos por ele próprio. (ibid., p.
183) O programa de formação filosófica por ele proposto compreendia, portanto, que o
estudante deveria atingir maestria da “ciência das coisas menores através dos métodos exatos
mas não exaltados dos peripatéticos, e perseguir coisas mais elevadas através dos caminhos de
Platão” (ibid., p. 133).
Os ishrāqīs não são, segundo sua própria definição, apenas filósofos intuitivos: na
medida em que buscam o entendimento, também se dedicam à maestria da filosofia discursiva
em suas divisões prática e teórica (ibid., p. 53). De fato, até mesmo consideram que esta é
necessária, promovendo a preparação que possibilita o filósofo a alcançar a intuição (ibid., p.
177), e o instrumento pelo qual pode compreender o que assim intui (ibid., p. 23). Por esta
razão, há para Sohrawardī não apenas duas, mas quatro categorias daqueles que sabem: i)
aqueles que apenas têm sede de conhecimento e começam a jornada em sua busca; ii) aqueles
que atingiram proficiência na filosofia discursiva, mas são estranhos à filosofia intuitiva (como
os peripatéticos); iii) aqueles que, como os santos sufis, purificam sua alma e alcançam a
filosofia intuitiva, mas são estranhos à filosofia discursiva; e por fim, iv) aqueles que se dedicam
tanto à purificação da alma e a filosofia intuitiva, quanto à proficiência na filosofia discursiva
(NASR, 1997, p. 64).
Esta quarta categoria é aquela que possui a mais elevada realização (WALBRIDGE,
2000, p. 53), e o filósofo a ela pertencente são ishrāqīs, entre os quais Sohrawardī inclui antigos
como Empédocles, Pitágoras, Sócrates e Platão (ibid., p. 28). Isto é, ishrāqī seria o nome não
apenas dessa escola dos ‘platônicos persas’, mas também o nome de toda genealogia ou
linhagem de filósofos inspirados descendentes da antiga “escola italiana” de Empédocles e
Pitágoras, passando por Platão, e chegando até os persas (ibid., pp. 30-31 e 47).
Ora, toda esta apresentação sintetiza alguns pontos que permitem justificar que o projeto
filosófico de Sohrawardī seja corretamente caracterizado como uma espécie de restauração do
Neoplatonismo em terras persas (ibid., p. 182), devido às enormes semelhanças que possui com

16
aquele. E, sem dúvidas, esta restauração foi também movida pelas fontes consideravelmente
escassas de material neoplatônico que chegou até ele, porém, devido a essa mesma escassez,
seu projeto filosófico não pode ser considerado como sendo inteiramente derivado do material
a que tinha acesso, mas também em grande medida ele foi capaz de reinventar ou redescobrir
muito daquilo que os neoplatônicos haviam pensado sem que ele o soubesse. Trata-se, portanto,
duma versão própria de um ponto de vista filosófico estabelecido, inspirada também a partir
das próprias reflexões e debates de seu tempo e lugar, de reflexões próprias, de modo que é uma
versão própria de um ponto de vista filosófico estabelecido (ibid., p. 184). Algo semelhante se
dá no pensamento do cristão João Escoto Eriúgena (815 – 877), o qual, sem haver contatado
diretamente os textos platônicos ou neoplatônicos, mas apenas através de suas influências
indiretas através de certos teólogos cristãos, foi capaz de “reinventar” certas reflexões da
filosofia de Proclo que nunca havia lido (HANKEY, 2017, p. 3). A este respeito, Walbridge
(2000, pp. 184-185) faz um comentário muito relevante:
... quando quer que a hegemonia do Aristotelismo se enfraqueceu, interpretações da
história da filosofia emergiram nas quais Pitágoras e Platão têm um papel central, na
qual simbolismo e escritos simbólicos são meios centrais de expressão filosófica, um
orientalismo eclético é uma fonte de inspiração, e uma interpretação neoplatônica de
Platão forma o cerne filosófico central. A razão, eu penso, é que esse complexo de
doutrinas representam uma posição filosófica coerente, com sua própria lógica interna
e consistência, que atrai filósofos de uma inclinação particular. Por conseguinte, ela é
periodicamente reinventada quando quer que condições sejam favoráveis e um número
suficiente de textos retorna à circulação. Esses textos não precisam ser compreensivos
ou sistemáticos; para um leitor simpático e cuidadoso como Sohrawardī até uma coleção
bem fragmentária de material é suficiente para desencadear a reinvenção da posição.
[...] Este fato tem implicações para o estudo da história da filosofia, pois tende a reduzir
o valor do estudo da transmissão de ideias e a elevar o valor do estudo da lógica interna
de sistemas filosóficos. [...] Se uns poucos ossos são suficientes para um filósofo atento
como Sohrawardī redescobrir o dinossauro do Neoplatonismo pitagorizante, então há
quase sempre material suficiente para explicar como uma determinada posição
reemerge – e há material suficiente disponível quando ela não reemerge. Em vez disso,
o desenvolvimento e a mudança de sistemas filosóficos devem ser explicados por uma
lógica intelectual. [...] Em outras palavras, o problema crítico não é entender como as
ideias passaram de um filósofo ao outro, ainda que isto seja indispensável em sua
própria esfera, mas entender a lógica interna e a dinâmica de posições filosóficas
particulares, como elas se desenvolvem, qual é o seu cerne, e por que os filósofos,
tempos e lugares são por elas atraídos. (ibid., pp. 184-185)

17
Neste sentido, a lógica interna que Sohrawardī compreendeu ser a característica
distintiva da filosofia platônica ou ishrāqī, segundo vimos, passa pelos seguintes pontos
fundamentais: i) que ela é uma forma de filosofia simultaneamente intuitiva e discursiva, e que
portanto demanda tanto o exercício de desenvolvimento racional quanto a ascese da purificação
da alma que dá acesso à verdadeira intuição, se distinguindo, deste modo, tanto do filósofo
puramente discursivo como do místico não filósofo; ii) que essa intuição é da natureza de um
conhecimento de si imediato, que, apesar de ser o fundamento de todo o conhecimento, não é
evidente ordinariamente; iii) que aquele que se desenvolve segundo essa intuição é deificado,
e se difere dos demais por sua inspiração superior.; iv) e por fim, um ponto implícito é que uma
filosofia desta natureza possui uma relação estreita com a devoção religiosa, na medida em que
aquele que se dedica à filosofia o faz por uma aspiração ao divino. Estas são algumas das
características que ele identifica naqueles que introduz à genealogia da linhagem ishrāqī da
filosofia, que começa nos itálicos, passa por Platão, e chega até a Pérsia.
Creio que esses pontos caracterizantes da filosofia ishrāqī se identificam perfeitamente
como elementos que os pensadores neoplatônicos compreenderiam como sendo constituintes
da lógica interna que caracteriza o Platonismo: um filosofar simultaneamente discursivo e
intuitivo, fundamentado no conhecimento de si, movido pela aspiração ao divino e à deificação,
intimamente associado com a devoção religiosa7. Além disso, também os neoplatônicos
compreendiam sua ancestralidade filosófica de modo semelhante, como já foi mencionado.
Como será trabalhado no quarto capítulo, Proclo concebeu o movimento do pensamento
que é simultaneamente intuitivo e discursivo como sendo um helicoide ou espiral, síntese dos
movimentos circular e linear. Isto permite compreender que a história da filosofia seja marcada
por uma espécie de expansão do escopo e da precisão de seu discurso, o que deve ser entendido
não como um movimento de progresso (linear) nem como uma posse imutável de sua intuição
(circular), mas como um movimento temporal de desdobramento discursivo da intuição
originária que é, ao mesmo tempo, um retorno constante àquela intuição. Ora, esses pontos que
foram identificados acima como constituindo a lógica interna do Platonismo podem ser
considerados sua intuição central, a partir da qual emerge uma pluralidade de desdobramentos
discursivos possíveis que ao longo da história expandem seu escopo e precisão, mas sempre
retornando à intuição originária a cada vez. É desta forma, poder-se-ia pensar seguindo Proclo,

7
Evidentemente há diferenças entre a forma de devoção religiosa de um Plotino e um Jâmblico, por exemplo, o
primeiro centrado numa espécie de religio mentis, enquanto o segundo admitia os cultos rituais da religião popular.
Mas a devoção e aspiração religiosa é inegavelmente presente em ambos como um princípio fundamental do seu
filosofar.
18
que as suas teses filosóficas se desenvolvem ao longo da história, ao mesmo tempo em que
permanecem fiéis à sua lógica interna fundamental.
Ora, estudar a questão do conhecimento de si no contexto da filosofia neoplatônica
também significa estudar a sua própria concepção de filosofia, de modo que, ela também,
“conheça-se a si mesma”. O presente trabalho é um estudo da temática filosófica neoplatônica
do conhecimento de si (e, portanto, também da própria natureza do Platonismo) que se
desenvolve segundo a compreensão proclina do movimento helicoidal do pensamento que é
simultaneamente discursivo e intuitivo, de modo a estudar, em cada um dos diferentes períodos
do desenvolvimento histórico da ‘cadeia dourada da linhagem platônica’ aqui tratados, os
mesmos pontos da lógica interna do Platonismo acima citados: o conhecimento de si, a intuição
e o discurso, a aspiração à deificação. Assim, no primeiro capítulo realizo um estudo destes
pontos no contexto do berço religioso helênico do qual emergiu a filosofia pré-socrática; no
segundo capítulo, no contexto do pensamento do próprio Platão; no terceiro capítulo, no
contexto do pensamento de Plotino; e, por fim, no quarto, no contexto do pensamento de Proclo
e do Neoplatonismo Tardio. O movimento ao longo dos capítulos é tal que, sempre preservando
o núcleo dessas mesmas questões, a reflexão se alarga em seu escopo a cada capítulo, tal qual
um helicoide.
O propósito desta passagem por diferentes fases da história do pensamento para, por
fim, chegar ao Neoplatonismo Tardio propriamente dito, é aproximar-se gradualmente das suas
temáticas fundamentais e seu universo de pensamento, construir uma ponte. Neste sentido, a
manutenção do mesmo cerne de questões em cada um dos capítulos também serve como um
modo de buscar, retroativamente, possíveis sementes e antecessores de pensamentos que
aparecem já articulados em Proclo e no Neoplatonismo Tardio. Porém, não é o caso que no
primeiro capítulo eu realize um estudo do berço religioso do qual emergiu a filosofia pré-
socrática baseado no que os neoplatônicos pensaram a seu respeito, ou que no segundo capítulo
proponha uma interpretação neoplatônica de Platão. Antes, em cada um desses capítulos realizo
um estudo a partir de fontes secundárias modernas a seu respeito, priorizando aquelas que mais
se aproximam com aquilo que pretendo desenvolver no último capítulo. Neste sentido, é preciso
clarificar metodologicamente que as interpretações propostas nos primeiros capítulos não são
mais que hipotéticas e aproximativas, as quais não tenho condições de justificar suficientemente
no escopo deste trabalho.
No primeiro capítulo, me baseio fundamentalmente nas teses de Cornford (1952 e
1957), Detienne (2013) , Lebedev (2013 e 2017) e Hadot (1999). Procuro distinguir ali as duas

19
vertentes da religiosidade helênica e a emergência, a partir delas, de duas escolas da filosofia
do período pré-socrático, formando dois pares religiosos-filosóficos que constituem os dois
pólos da cultura helênica: a religiosidade olímpica e a filosofia jônica, de um lado, e a
religiosidade mistérica e a filosofia itálica, de outro. Esses dois pólos apresentam concepções
muito distintas acerca do conhecimento de si, uma vez que o par olímpico-jônico não concebe
uma alma imortal e divina como a verdadeira natureza da pessoa humana, enquanto o par
mistérico-itálico o faz. Consequente a este, não há no pólo olímpico-jônico a aspiração à
deificação, enquanto o mistérico-itálico se define por esta. Em ambos, por sua vez, aparecem
de modos distintos, duas potências religiosas de grande relevância: Alêtheia e Peithô, que
podem ser compreendidas como as figuras míticas da dupla intuição e discurso, bem como da
dupla ontológica correspondente, Ser e aparência, e que, na vertente mistérica-itálica, possui
relevância ao conhecimento de si. Sem voltarmos nosso olhar à religiosidade mistérica e à sua
influência na filosofia, diz Reale (2012, p. 21), vetaríamos a nós mesmos “a compreensão de
todo um importante filão da especulação que vai dos pré-socráticos a Platão e aos
neoplatônicos”: a apreensão da “ponta” deste filão a partir da consideração da religiosidade
mistérica, aqui, expande suas contribuições pelos demais capítulos. Por fim, discuto o lugar
intermediário de Sócrates entre o sofismo e os Mistérios, e, a partir de Hadot, busco definir seu
impulso à filosofia como uma forma própria de piedade.
No segundo capítulo, me baseio fundamentalmente em Hadot (1999), em Schindler
(2008) e Festugière (1975). Desenvolvo ali um exercício interpretativo hipotético de Platão,
segundo o qual a filosofia platônica emerge como caminho espiritual, uma paideia integral de
autoconhecimento e cuidado de si e cuidado do outro, uma conversão da alma em sua inteireza
ao Bem através do cultivo do eros e do logos na formação do verdadeiro saber e a verdadeira
virtude, que culmina na contemplação noética, e, por fim, no ordenamento demiúrgico de si e
do mundo da ação segundo o modelo divino. No movimento duplo (ascendente e descendente)
da dialética, o filósofo se move constantemente entre as margens do discurso e da intuição, do
humano e do divino, se constituindo como um entre, de forma que preserva um acesso
privilegiado à verdade semelhante àquele dos videntes de Alêtheia, ao mesmo tempo em que se
submete às exigências do logos argumentativo do discurso-diálogo.
Festugière (1975, p. 234), que inspirou minha interpretação em certos aspectos, diz que
sua interpretação depende de tomar no sentido literal certas passagens de diálogos como
Banquete, a República, o Filebo, que empregam um vocabulário derivado da religiosidade
mistérica para descrever a atividade filosófica. E ele aponta que “este era o método dos

20
neoplatônicos e nossos resultados concordam com os deles”. Ora, o emprego desta terminologia
religiosa para descrever a filosofia por parte de Platão é inegável; mas em que sentido ele deve
ser tomado como literal? A chave interpretativa aqui empregada é: no sentido de que em Platão,
a natureza fundamentalmente ‘extática’ da inteligência em sua capacidade intuitiva está em ser
intencionalmente direcionada à transcendência de Alêtheia, e na medida em que é capaz de
tocar e deixar algo da Verdade se mostrar, é veículo de uma verdadeira epifania. Também o elã
interno que move a filosofia platônica é fundamentalmente derivado de uma religiosidade
mistérica, a sua aspiração pela deificação, pela transcendência, pela imortalidade. O verdadeiro
conhecimento é uma forma de religiosidade, uma potência transformadora e purificadora capaz
de alterar nosso estado de ser e de elevar a alma ao divino, dotado inclusive de consequências
escatológicas.
No terceiro capítulo, me baseio principalmente em fontes primárias, mas também, em
pontos chaves do desenvolvimento do argumento, em Hankey (2005b), Marsola (2007),
Bussanich (2017), Emilsson (2017 e 2017b) e Rappe (2017). Discuto como Plotino parte de um
embate dialético com objeções céticas à possibilidade da verdade e do conhecimento de si, para
sua concepção da natureza intuitiva do conhecimento de si, que só é possível no nível do
Intelecto, acima da alma. Em seguida exploro a metafísica do Intelecto e do Uno, para na
sequência considerar a maneira como a alma participa desse cenário metafísico por sua
aspiração à deificação através da via unitiva com estes Princípios. Por fim, discuto a relação
entre a Alma hipóstase e a alma particular, como uma passagem para a compreensão da alma
proclina.
No quarto capítulo, no primeiro subcapítulo me baseio em Trouillard (1972 e 1982) e
MacIsaac (2001), para discutir a natureza da autorreflexividade da alma em Proclo, e a natureza
da “virada ao sujeito” que esta concepção implica, em suas facetas epistemológica e ontológica.
No restante do capítulo, porém, me dedico a elaborar uma reconstrução hipotética de toda a
jornada da alma ao longo do caminho do conhecimento de si e deificação segundo o
Neoplatonismo Tardio, dividido em três grandes etapas: Cultura, Filosofia e Sabedoria. Me
baseio fundamentalmente, para isso, em fontes primárias de Proclo, mas também em fontes
secundárias variadas acerca de outros neoplatônicos tardios.

21
1 TRADIÇÕES RELIGIOSAS HELÊNICAS E AS ORIGENS DO PENSAMENTO
FILOSÓFICO

Como foi citado na introdução, pensadores formados no século XIX demonstravam


particular embaraço diante da interrelação entre filosofia e religião que mantinham certos
filósofos da Antiguidade, baseados que estavam na narrativa da emergência da filosofia como
uma gradual emancipação da razão diante da religião. Ora, esta não é a única leitura possível
deste fenômeno. De uma perspectiva neoplatônica, por exemplo, a religião não é apenas um
fenômeno da fase pré-reflexiva do desenvolvimento humano que recua com o nascimento da
razão, mas ela também se eleva a um patamar reflexivo quando a filosofia entra em cena, e
possui até mesmo um patamar suprarreflexivo, a sabedoria, a que a reflexão aspira.
Consequentemente, ela sempre acompanha a vida do filósofo, de modo que, como diz Duhot
(2006, p. 117) acerca do estoicismo e sua muitas vezes desconcertante associação de filosofia
e religião: “Uma só conclusão se impõe: se o Pórtico não se enquadra na ideia que fazemos do
helenismo é porque essa ideia é falsa”.
A religião grega arcaica, no pluralismo que caracterizava o seu universo politeísta, não
possuía uma unidade do tipo homogêneo: não havia fundadores históricos nem “uma dogmática
teológica fixa e imodificável” (REALE, 2012, p. 23) sob a forma de um livro sagrado, e logo,
não se estabeleceu naquela cultura a predominância de uma classe sacerdotal. Segundo Reale
(ibid), os sacerdotes que ali existiram tinham apenas “um poder muito limitado e uma escassa
relevância, uma vez que, além de não terem a tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não
tinham nem mesmo a exclusividade de oficiar os sacrifícios”. Ao contrário da religião na Idade
Média, portanto, a religiosidade grega arcaica não se pautava por uma ortodoxia, ou aderência
a doutrinas e teses, mas sobre uma ortopráxis ou aderência a certas práticas. Estes fatores
conferiram ao mundo da consciência religiosa grega um enorme espaço de liberdade intelectual
criativa, a princípio sob a figura do poeta, e posteriormente, sob a do pensador.
Assim, é possível compreender, tal qual o fez Burkert (1985, p. 305), que a emergência
da filosofia não representou uma transformação da vida religiosa grega em si: “o que muda
quando a filosofia aparece em cena”, ele diz, “é perspectiva e verbalização”. Entre o
sobrenatural e o metafísico, aponta Cornford (1957, p. ix), não há uma diferença de caráter.
Substituindo as regras da poesia, que garantiam um elemento livre e jocoso, agora busca-se um
discurso mais literal sobre a ordem divina do mundo, segundo as regras de um discurso
prosaico. Em outras palavras, é uma passagem de um pensamento predominantemente
22
simbólico a um pensamento predominantemente literal e conceitual que caracteriza a
transformação trazida pela filosofia. Certamente, o pensamento filosófico nascente nem sempre
esteve em perfeito acordo com a religiosidade vigente, havendo entre eles momentos de
aproximação e de afastamento; mas que a filosofia por vezes se aparte das concepções religiosas
não significa uma ruptura tão radical nesta cultura em que a unidade da religião não se funda
sobre uma ortodoxia ou “opinião correta”: na medida em que a atitude piedosa não é ferida,
uma divergência “doutrinal” não constitui nenhum abismo entre elas8.
O resultado de uma tal reavaliação da relação entre a religião e a filosofia na Grécia
Antiga é discernir possibilidades maiores de laços estruturais entre ambas, de forma que a
identificar na visão de mundo religiosa sementes de um pensamento que será desenvolvido
conceitualmente na filosofia. Sobre isso, Cornford (ibid., pp. v–vii) argumenta que:
Há uma real continuidade entre a especulação racional mais antiga e a representação
religiosa que a subjaz; e isto não é uma questão de analogias superficiais, como a
equação alegórica dos elementos com os Deuses da crença popular. A Filosofia herdou
da religião certas grandes concepções […] que continuaram a circunscrever os
movimentos do pensamento racional e determinar suas direções principais. A Religião
se expressa em símbolos poéticos e em termos de personalidades míticas; a Filosofia
prefere a linguagem das abstrações áridas, e fala de substância, causa, matéria, e assim
por diante. Mas a diferença externa apenas dissimula uma afinidade interna e
substancial entre esses dois produtos sucessivos da mesma consciência. Os modos de
pensamento que atingem a clara definição e afirmação explícita na filosofia já estavam
implícitos nas intuições não raciocinadas da mitologia. […] A Musa filosófica não é
uma Atena órfã de mãe: se o intelecto individual é seu pai, sua muito mais velha e
augusta mãe é a Religião.
Outra consideração de grande relevância é a distinção entre as duas principais correntes
religiosas formadoras do mundo espiritual heleno, e que incidirão de maneira definitiva na
formação da filosofia grega: a religiosidade olímpica, que tem em Homero, em Hesíodo, no
Oráculo de Delfos e nos cultos e sacrifícios cívicos seus principais representantes; e a
religiosidade mistérica, representada nos Mistérios de Elêusis, nos Mistérios Dionisíacos e no
Orfismo. Esta última por muito tempo foi consideravelmente ignorada na nossa construção da
imagem do Helenismo, mas não é de nenhuma maneira menos relevante para a formação

8
Como veremos, a única corrente de pensamento no período pré-socrático em que uma atitude impiedosa se
desenvolveu de fato foi a Sofística, o que constitui, inclusive, um fator muito relevante na sua rejeição por parte
da tradição filosófica predominante. Mesmo o materialista Demócrito “orava para que ele pudesse encontrar
espectros favoráveis dos deuses, que podiam afetar o homem para o bem ou para o mal, e revelar o future em
sonhos. Por isso seus discípulos podiam compará-lo a um profeta, chamando-o de a Voz de Zeus; e a tradição o
representa como um asceta contemplativo, evitando a sociedade, e sujeito a acessos de loucura” (CORNFORD,
1952, p. 66).
23
espiritual do mundo grego, e para a filosofia inclusive. Segundo a tese de Cornford (1957, vii),
para quem essas duas formas de religiosidade, a partir de seus temperamentos e visão de mundo,
deram forma, ainda no período pré-socrático, a duas tradições filosóficas distintas: a Jônica e a
Itálica, que ele chama de “científica” e “mística” respectivamente – embora talvez seja mais
preciso entendê-las segundo suas orientações metafísicas, como “naturalista” e “idealista”9.
Esta bifurcação da primeira filosofia em duas tradições é uma categoria historiográfica
que data desde Diógenes Laércio (180-240), e talvez mesmo de Platão, que no Sofista (246a-c)
fala da “guerra de deuses e titãs”, entre aqueles que definem o Ser como idêntico ao corpo,
arrastando “tudo do céu e do invisível para a terra”, e aqueles que sustentam o Ser como
constituído de “formas incorpóreas concebidas exclusivamente pelo intelecto”, “utilizando
armas provenientes do invisível”. Lebedev (2013, pp. 35-36) cita também um texto sofista pré-
platônico, de 400 a.C., que parece sustentar essa antiga categoria historiográfica. Tal bifurcação
dominou a história da filosofia desde a Antiguidade até o século XIX, e começou a ser
abandonada a partir de então, quando a filosofia pré-socrática como um todo passou a ser lida
como constituída apenas de naturalistas, de forma que todo o início de um pensamento
propriamente metafísico foi atribuído somente a Platão. Lebedev (2017, pp. 495-497) conta um
pouco dessa passagem:
Até o fim do século XIX, Parmênides era comumente visto como o precursor de Platão
e como ‘o pai do idealismo’. Em 1892, John Burnet propôs uma interpretação fisicalista
do ser de Parmênides e polemicamente o renomeou como ‘o pai do materialismo’. […]
Burnet fez o seu melhor para expurgar todos os possíveis traços de idealism e metafísica
especulativa de Parmênides, e para apresentar toda a filosofia Grega primeiva como
precursora não do idealismo Alemão, mas da ciência empírica Britânica. Ele dissolveu
a escola Eleática, este bastião do idealismo, ao fazer de Xenófones um poeta satírico ao
invés de teólogo, se livrou do logos divino de Heráclito ao fazer dele uma palavra trivial
para ‘discurso’, ele explicou a jornada mística de Parmênides à morada dos deuses como
uma viagem real de carruagem a outras cidades Italianas (na companhia de Heliades,
‘filhas do Sol’ e com ‘eixos ardentes’!), ele reinterpretou o fr. B3 de Parmênides sobre
a identidade do Ser e da Mente como uma platitude positivista de que o objeto do

9
A filosofia Jônica não pode ser chamada de “científica” no mesmo sentido em que hoje entendemos este termo,
como o próprio Cornford se corrige em Principium Sapientiae (1952), pois, ele aponta, o único ramo do saber
nesse período que partilhava de alguma similaridade com o que hoje entendemos por ciência era a medicina.
Chamá-la de naturalista tampouco é muito adequado, na medida em que este termo carrega uma conotação
pejorativa; mas podemos empregá-lo no sentido de uma visão de mundo hilozoísta, isto é, que não diferencia
transcendência e imanência, espírito e matéria, etc. De qualquer forma, certamente não lhe cabe a alcunha
“materialista”, a não ser no seu desenvolvimento posterior na escola atomista. Já a filosofia Itálica, poderia ser
chamada de “mística” se levarmos em conta que não se trata de uma mística no mesmo sentido afetivo-devocional
cristão, mas num sentido propriamente helênico, que trabalharemos ao longo deste capítulo. Ela pode também ser
chamada de “idealista”, mas no sentido de uma visão de mundo para a qual o Real é da natureza da Inteligência.
24
pensamento deve ser real etc. Apesar de que o livro de Burnet é virtualmente esquecido
hoje em dia, sua herança teórica ainda está viva. […] seu trabalaho, mas que qualquer
outro, contribuiu para a emergência do estereótipo persistente dos ‘Présocráticos’ como
naturalistas e cosmólogos não interessados em antropologia, ética e filosofia política.
[…] A negação da existência de uma tradição idealista (mentalista) na metafísica Grega
primeva é devida ao evolucionismo pseudo-histórico, Platonocentrismo e o termo
moderno enganoso “Présocráticos”, três estereótipos persistentes na historiografia da
filosofia Grega.
Estando de acordo com a crítica de Lebedev, e temos que o Helenismo é constituído
como um mundo cultural de duas polaridades: a olímpica-jônica e a mistérica-itálica10.
É como um desenvolvimento da concepção antropológica mistérica que a Antiguidade
Tardia fixará o sentido da máxima gnothi seauton, no cerne da filosofia, como conversão da
alma à deiformidade pelo autoconhecimento, e que marca a “virada para o sujeito” naquele
período. Neste sentido, ao invés de um vetor histórico linear da religião para a filosofia, o que
vemos é um movimento mais complexo: a religiosidade mistérica influencia a filosofia itálica
pré-socrática, e através desta, Platão; posteriormente, esta tradição filosófica, por sua vez,
influencia a religiosidade mistérica, de maneira que uma ampla cultura filosófico-religiosa de
têmpera mistérica toma forma. A Antiguidade Tardia será, então, o período em que esta vertente
do Helenismo predominará e se popularizará, tanto na religião quanto na filosofia, enquanto a
vertente olímpica se enfraquecerá.
Intimamente associada com a questão do conhecimento de si, neste capítulo, está a
concepção arcaica da Alêtheia como potência mântica divina, e que servirá à filosofia como
modelo de intuição intelectual.
As analogias entre a emergência da razão moderna e a razão filosófica grega começam
a ruir já a partir do momento em que notamos a diferença entre as respectivas religiosidades
que lhes serviram de solo.

1.1 A Religião Olímpica e a Filosofia Jônica

A Teogonia de Hesíodo, marcada por uma intenção de produzir uma compreensão coerente
e unificada da estrutura, origens e funcionamento do kosmos (MCKIRAHAN, 2013, p. 56),

10
Ressalto que embora considerem essa divisão em duas vertentes como fundamentalmente correta e
pedagogicamente útil, elas fazem parte de um mesmo âmbito mais geral do mundo falante de grego, razão pela
qual as fronteiras entre elas não sejam tão perfeitamente definidas, havendo muito diálogo e influência mútua entre
elas.
25
evidencia o fato de que o pensar mítico já prefigurava as questões fundamentais que moveriam
o pensamento filosófico jônico. Hesíodo se pergunta pelo princípio de todas as coisas, no qual
vislumbramos um protótipo da busca dos filósofos jônicos pela arché, raiz ou princípio de todas
as coisas, de uma unidade originária da qual emergiu a multiplicidade dos entes que compõem
a existência. Este é identificado por Hesíodo como o Caos11, o que foi gerado primeiro de todos
(Teogonia, 2.1.). Não a partir do nada, nem a partir da ação de um criador, mas da diferenciação
desse primeiro princípio previamente existente, sob a forma de pares de deuses e suas cópulas
e gerações, nasce o mundo. Portanto, “a teogonia de Hesíodo é também uma cosmogonia
(‘nascimento do mundo ordenado’) ” (ibid., p. 46), o nascimento dos deuses e o nascimento do
mundo são uma e a mesma coisa, de forma que “o mundo é um lugar divino, literalmente, um
lugar cheio de e habitado por deuses” (ibid.).
Há, por parte de Hesíodo, um interesse na “história” e na composição, bem como em
manifestações naturais que pertencem às esferas de atuação específica dos deuses, como os
fenômenos astronômicos e meteorológicos. Céu, Terra e Submundo, as regiões “geográficas”
da cosmologia arcaica, são verdadeiras divindades. Mas o kosmos de Hesíodo contém mais, e
inclui divindades “abstratas” como o Amor, a Memória, a Morte, o Sono, o Destino, o Engodo,
a Discórdia, as Mentiras, o Poder, o Certo, a Ordem, a Paz e a Justiça, entre outros (ibid.).
Forças que são vistas atuar na psique humana também atuam na ordem do mundo; em outras
palavras, o mundo também é alma.
A visão de mundo que se expressa aqui parece traduzir uma vivência religiosa segundo
a qual as teofanias dos deuses eram onipresentes: eles se manifestam através da própria
constituição do mundo natural – celeste, vegetal, animal, subterrâneo –, e mesmo através das
forças que constituem a psique humana, suas paixões e faculdades cognitivas. Segundo Walter
Otto (2007, pp. 99-100):
As realidades do mundo são, em verdade, deuses, presenças e revelações
divinas. Cada uma, em todos seus níveis e esferas, está plena do Deus que se
revela no elemental assim como no vegetal e animal e que, na altura, mostra um
rosto humano. E sempre é o universo em sua totalidade que cada um dos deuses
abre. Porque numa revelação específica estão contidas todas as coisas.
Todo o espaço natural, e também o espaço psíquico humano, são, para a religiosidade
olímpica, constituídos por e permeados pela presença dos deuses. Em sua manifestação cívica,
essa religiosidade se expressava como um amálgama heterogêneo de rituais, mitos, sacrifícios,

11
“Embora, na Antiguidade tardia, a palavra significasse aquilo que significa para nós, tem-se argumentado
convincentemente que aqui ela refere-se a abismo” (MCKIRAHAN, 2013, p. 45)
26
oráculos, festivais – práticas piedosas que se realizavam em contextos públicos nas cidades, e
que se identificavam com a própria vida coletiva das cidades gregas. Nestas, o calendário do
ano cívico, “profano”, coincidia com o calendário das festividades religiosas, fazendo com que
o homem grego comum “participasse de centenas de atos religiosos e habitasse milhares de
regiões de espaço religioso” em um único ano (MORGAN, 1992, p. 229). Toda a sua vida
estava potencialmente permeada de religião: a política, a moral, a ciência, a pintura, a música,
a dança, o drama, a agricultura e tudo o mais podiam possuir um caráter religioso graças à
conexão que cada uma dessas atividades possuíam com algum deus do panteão (MORGAN,
1992, p. 228).
Parece-me lícito especular que no contexto da religiosidade olímpica não havia uma
diferenciação entre o deus e a sua teofania: a teofania é o próprio deus, o seu ser e sua
manifestação coincidem. Não há portanto, nesta consciência religiosa, uma distinção clara entre
o transcendente e o imanente, que se interpenetram de maneira indistinta12.
Dessa consciência religiosa, como expressa na prática piedosa dos gregos e na poesia
de Hesíodo, parece ter emergido as ideias fundamentais dos primeiros filósofos jônicos. Nas
três doutrinas que fizeram Tales de Mileto famoso, parecemos encontrar uma continuidade
direta daquela visão de mundo. A primeira delas: i) que a natureza das coisas é água. Ora, a
questão que motiva tal doutrina é a mesma pela qual Hesíodo buscava a arché a partir da qual
o todo emergiu, a “natureza das coisas” é nada mais que aquele algo do qual o mundo das coisas
que vemos emergiu e no qual voltará a se dissolver (CORNFORD, 1952, p. 7); o pensamento-
semente que ela expressa, como viu Nietzsche, é que “tudo é um” (apud LEFRANC, 2011, p.
53).
Porém, o verdadeiro sentido desta doutrina nos é normalmente obscurecido pelo fato de
que “natureza”, em um período posterior da filosofia, virá a ser concebido como algo
“imanente”, oposto à transcendência do espírito; e pelo fato de que Aristóteles insistiu em
categorizar as teorias dos primeiros filósofos jônicos como tocantes às “causas materiais” da
sua própria filosofia. Porém, como coloca Cornford (1952, p. 7): “o significado primário de

12
Isto não significa, porém, que se trate de uma religião “materialista” ou “imanentista”: estas posições só se
tornam possibilidades quando o seu oposto, a transcendência, se distingue, e assim inaugura a noção de uma
matéria desprovida de vida ou de um mundo desprovido de divindade. Como Otto (2007, p. 115) o coloca: “O
pensamento primordial, ainda não teórico, desconhece a corporeidade que seja só matéria”. Neste contexto
olímpico, trata-se apenas de uma indistinção entre transcendência e imanência e não a preferência de um sobre o
outro. Além disso, poder-se-ia objetar que os deuses olímpicos, do alto da imortalidade e bem-aventurança do
Olimpo, formam uma imagem de transcendência; porém, esta imagem é transcendência em relação ao homem,
mas não transcendência em relação à ordem do mundo, da qual os deuses são parte, submissos que são à Moira
(Destino).
27
phusis é ‘crescimento’, e suas primeiras associações são de vida e moção, não de quietude e
morte”.
De fato, a segunda doutrina de Tales evidencia isso com clareza: ii) que o todo é vivo,
ou é dotado de alma (tò pan empsuchon). Guthrie (1962, p. 65) nos lembra que o sentido
primário de alma (psuché) em Tales é poder motor, causa de movimento. Vista em conexão
com a questão da ‘natureza’ que é posta na primeira doutrina, emerge que essa natureza que é
o objeto de sua especulação é alma, uma realidade intangível cujas propriedades são
semelhantes àquelas atribuídas a deuses e outras entidades abstratas (CORNFORD, ibid., p.
128-129). De fato, diz Cornford (ibid.), “esta é uma razão pela qual nenhum dos Jônicos
identificou a natureza das coisas com o quarto element, terra. A terra é preeminentemente
‘corpórea’ – tangível, pesada, imóvel – e portanto menos adequada para ser o veículo de uma
substância psíquica viva” (ibid.).
Guthrie também considera este fato significativo. Ele aponta que na época posterior do
pensamento à qual Aristóteles pertencia, os quatro elementos eram considerados “materiais”.
Mas estes primeiros pensadores jônicos antecedem a distinção entre “espírito e matéria”, que
só ocorre posteriormente; logo, para eles, não pode haver tal coisa como matéria morta e inerte.
Aceitar água, ar ou fogo como a única fonte do ser significa ter em mente a sua mobilidade
inerente, algo que a imagem do elemento terra não lhes ofereceria, e, portanto, esta não lhes
serviria como arché, “pois eles precisavam de algo que deveria ser não apenas o material da
mudança, mas também seu autor em potencial. Isso os outros elementos podiam ser porque,
para estes pensadores primevos, eles eram vivos” (GUTHRIE, 1962, pp. 63-64). Esta doutrina
de Tales foi o que justificou a caracterização de sua filosofia (e também a de seus sucessores)
como “hilozoísta”, termo que caracteriza uma forma de pensamento animista no qual corpo e
alma são totalmente indistintos, no qual ainda não apareceram as figuras da matéria inerte, por
um lado, e do puro espírito do outro (ibid.).
Ora, parece-nos que esta visão de mundo e postura metafísica que caracterizava a
filosofia jônica pode ser vista como uma continuidade direta daquela visão teológica da
religiosidade olímpica, que, como havíamos sugerido acima, não distinguia os deuses de suas
teofanias no mundo, a transcendência da imanência, e que encontrava o mundo espaço-temporal
permeado de divindade. Aqui, a terceira doutrina de Tales parece trazer esta similitude à tona
ainda mais: iii) o todo (que havia sido identificado com a phusis, a água e a alma) é divino, está
cheio de deuses. Se a segunda doutrina qualifica o pensamento jônico como hilozoísta, esta
terceira lhe caracteriza como um panteísmo.

28
Este fato é importante para considerarmos o interesse dos jônios pelos fenômenos
naturais. Já Hesíodo, mostrava interesse “quanto à estrutura física do universo, [...] em aspectos
geográficos da terra de grande escala, nas mais amplas características cósmicas e em fenômenos
astronômicos e metereológicos, tratando-os todos como divinos” (MCKIRAHAN, 2013, p. 46).
De fato, uma consciência hilozoísta e panteísta não poderia se dirigir aos fenômenos naturais
de outra forma que não a da reverência, o espanto e o maravilhamento. O interesse dos
Milesianos e do pensamento jônico em geral por fenômenos naturais precisa ser visto em
continuidade com este berço mítico do pensamento antigo, mesmo que transfigurados em uma
linguagem distinta, mais abstrata e literal.
O interesse principal dos Milesianos em relação à investigação da natureza é exatamente
sobre aquelas esferas do mundo que, para a consciência mítica, pertenciam aos deuses: os céus
e o subterrâneo. Tampouco os raros casos de “experimentação” a eles associados devem ser
exagerados, pois o método deles era predominantemente especulativo e apriorístico; como
ressalta Cornford (1952, pp. 41-42), a única disciplina antes de Aristóteles que podia ser
descrita como uma forma de “ciência natural”, em nosso sentido experimental moderno, era a
medicina, que já se desenvolvia como um saber fundado em um procedimento próprio, e que
se distinguia dos princípios e procedimentos desses filósofos naturais – com os quais por sinal,
aquela frequentemente entrava em conflito.
De qualquer maneira, é preciso ter com clareza ao menos o fato de que a “natureza”, no
pensamento dos jônicos, não é o princípio divino do mundo. O objeto da sua especulação não
é a pluralidade fenomênica do mundo em si, mas sua unidade metafísica fundamental, que,
embora não seja de natureza transcendente, é divina. O problema, segundo Cornford (1952, p.
138), sempre foi como fazer sentido do fato de que esse princípio divino é a verdadeira realidade
das coisas, e como a partir dele emergiu o mundo tal como nós o vemos. Não apenas Tales, mas
também Anaximandro identificará no apeiron – sua arché – o “divino (tò theion), imortal e
imperecível”; Anaxímenes dirá que aquilo que os homens chamam Ar (que é a arché de sua
filosofia) é o que “possui pensamento, e que dirige tudo e é mestre de todos; pois é justamente
isso que é, eu creio, Deus, e alcança toda parte e dispõe todas as coisas e é em todas as coisas”13
(CORNFORD, 1957, p. 135).

13
Vê-se aqui o começo do surgimento, já na filosofia jônica, de uma noção epistemológica que permeará grande
parte da filosofia antiga: o semelhante conhece o semelhante. Como uma extensão da forma como o pensamento
mítico arcaico concebia o mundo permeado de divindades cujos nomes as colocavam em relação de identidade ou
continuidade com as forças e faculdades que operam na alma, a visão de mundo hilozoísta parece fornecer o
fundamento para se compreender a continuidade entre a alma do homem e a do mundo. “...se é para a Alma
conhecer o mundo, o mundo deve consistir ultimamente da mesma substância que a Alma. Phusis e Alma devem
ser homogêneos” (CORNFORD, 1957, p. 133).
29
Neste ponto nos encontramos com outro fator importante deste estudo: esta unidade
divina originária também é um princípio de ordenação do todo que dela emerge. Isto é, unifica-
o sob uma harmonia, faz dele um kosmos. A ordem do mundo, já em Hesíodo, é uma forma de
ordem moral, como se vê em passagens como esta na Teogonia: “...o mando de Zeus é sábio e
bom. [...] O justo Zeus recompensa a justiça entre os humanos e pune suas injustiças, e assim
erige-se a garantia de uma ordem moral no kosmos como um todo e, especificamente, na esfera
humana” (MCKIRAHAN, 2013, pp. 50-1). Já em seu Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo
apresenta o trabalho no campo como uma prática mágica-religiosa profundamente relacionada
com os ciclos da natureza, uma vez que “as meras operações práticas não serão efetivas a não
ser que haja uma correspondência simpática entre as maneiras dos homens e o curso da
Natureza” (CORNFORD, 1957, p. 167); e na medida em que são capazes de lembrar-se dos
preceitos do poeta, e assim viver em harmonia com os ciclos do mundo, os homens são de
alguma forma divinos: “aquele que conhece o encadeamento ritual dos trabalhos, aquele que se
lembra de cada rito, sem cometer nenhum erro de esquecimento, esse é ‘homem divino’”
(DETIENNE, 2013, p. 27). Já se prefigura, aqui, a ética do viver segundo a natureza, que terá
um lugar tão proeminente na filosofia grega posterior.
Porém, a figura mais fundamental da ordem moral do mundo, no pensamento arcaico, é
uma força ordenadora unitária ao qual tudo está submetido: a Moira ou Destino, poder remoto
que é mais antigo que os deuses. Em relação a ela, “os Deuses de Homero são limitados. [...]
Eles são limitados pelo Destino (Moira), que eles não criaram e contra o qual não conseguem
se pôr” (CORNFORD, 1957, p. 12). O decreto do Destino, porém, não é mera imposições de
uma força cega e sem sentido, mas é “um decreto moral – o marco do certo e errado. Nós
podemos até dizer que as duas noções de Destino e do Justo são dificilmente distinguíveis”
(ibid., p. 13); “o reino da Necessidade também é igualmente um governo moral, um Reino da
Justiça” (ibid., p. 5).
Insondável, nem os deuses a compreendem; todo-determinante, mesmo eles são
impotentes diante dela. Moira, este Destino inexorável, não é apenas uma concatenação
determinada dos fatos no decorrer do tempo, mas uma força moral que os ordena de acordo
com um princípio de justiça, que será entendido como uma forma de “dispensação de
províncias”14: a medida que dá limites aos seres, destinando os seres a serem uma coisa e não

14
“... a noção da ‘dispensação’ vinculam Moira e Nomos […]. Para o entendimento da palavra grega, é necessário
compreender que Nomos não sugere a uniformidade da sequência temporal, mas o exercício do poder dentro
limites espaciais ou departamentais. Nós devemos pensar a Lei como uma dispensação ou um sistema de
províncias, dentro das quais todas as atividades de uma comunidade são divididas e coordenadas.” (CORNFORD,
1957, p. 30)
30
outra15, a exercerem suas atividades dentro de um domínio específico do todo e não outro, de
forma que cada um tenha aquilo que lhe cabe, e que o todo seja equilibrado; assim,
“Necessidade e Justiça [...] se reúnem nesta noção primária de Ordem” (CORNFORD, 1957, p.
40). E é exatamente o impulso para romper esses limites, o Artifício (Poros) e seu filho Desejo
(Eros), passaram a ser concebidos como “símbolos da ambição ilícita e presunçosa”
(CORNFORD, 1957, p. 120), o que constitui a injustiça, o vício, a hubris (desmedida): as
noções que governam a moralidade olímpica (ibid., p. 119). O limite, o equilíbrio, a proporção,
a medida forma a saúde e a moral tanto da alma quanto do mundo; o ilimite, a desmedida, o
desequilíbrio, é a própria imoralidade. E justiça consiste na eliminação desta última pela
primeira.
Diante das ações movidas por tais impulsos que atentam contra o equilíbrio cósmico,
Moira, como uma força de compensação automática, se volta contra seu responsável e o destrói.
Trata-se, portanto, de uma Justiça geométrica, estática, espacial: o Destino a tudo ordena
segundo o equilíbrio, a medida, o limite, a distribuição de províncias; o desequilíbrio, a
desmedida, o ilimitado é sempre punido. E é esta noção de ordem moral que governará a
maneira como os primeiros filósofos jônicos conceberão o modo pelo qual o mundo múltiplo
emerge do princípio e a ele retorna (CORNFORD, 1957, p. 6).
Nesta perspectiva se insere a importante noção teológica e antropológica desta forma de
religiosidade, que se encontra bem ilustrada no famoso dito no pórtico do Oráculo de Délfos:
“conhece-te a ti mesmo”. O que isto significa, neste contexto, é que cada homem deve conhecer
os seus limites; mais especificamente, a distância que o separa da natureza dos deuses: aqueles
são imortais e bem-aventurados, perfeitos em poder e conhecimento, enquanto que os homens
são, essencialmente, mortais e sofredores, fracos e ignorantes: “...fugaz e fútil é o homem, e
apenas os deuses perduram. O sonho de uma sombra, isto é o homem” (OTTO, 2007, p. 121)”.
Não há entre eles nenhuma ponte que permita ao homem aspirar a elevar-se à condição que
caracteriza a existência dos deuses, não lhe cabe nenhuma esperança soteriológica pela
imortalidade, o que seria uma forma de hubris, uma ambição desmedida que atenta contra a
dispensação das províncias que funda a ordem das coisas. Esta separação irreconciliável e
intransponível entre o divino e o humano é a postura teológica central da religião olímpica 16.
Morgan (ibid., pp. 230-231) a ela se refere como “teologia délfica”; mas talvez podemos

15
Vê-se aqui, também, um princípio mítico para a posição filosófica do essencialismo.
16
De fato, há a exceção que são os heróis: homens que, por feitos extraordinários, são concedidos uma espécie de
apoteose. Porém, no contexto olímpico estes permanecem estruturalmente como exceções, pois tal apoteose não
configura uma possibilidade universal, nem a atualização de uma natureza divina de si que é universalmente
possuída.
31
igualmente referir-nos a ela como “antropologia délfica”, uma vez que se trata de uma visão
específica da natureza humana.
Assim, nessa impossibilidade de o homem ser elevado a um estatuto superior de
existência, a divindade aqui não exige do homem nenhuma forma de transformação interior,
não cabe espaço para alguma questão soteriológica sobre o post-mortem, ou algum tipo de
caminho religioso pessoal, ascese, ou aspiração a alguma forma de santidade (OTTO, apud
Reale, vol. I., pp. 21-22); estas não são questões que movem esta forma religiosa. De fato, a
antropologia olímpica não concebe uma identidade imortal ao homem, como uma noção de
alma. A alma homérica não é nada mais que um sopro, extrínseco ao ser do homem, e que o
deixa no momento da morte, para posteriormente existir como uma mera sombra inconsciente
no Hades. A identidade do homem se restringe à sua forma (o corpo) e ao seu nome, e diante
da morte do primeiro, a única forma de imortalidade que lhe cabe é a do último, quando a
memória do seu nome é preservada e seus louvores cantados pelas gerações posteriores. “A
coroa da vida”, diz Otto (2007, p. 121), “é a memoria de suas virtudes. [...] (assim) se vence a
morte, e eternamente jovem flutua, levado pelo canto, de geração em geração”: esta é a única
imortalidade do qual o homem é capaz, através de seus feitos heroicos. Por outro lado,
esquecimento aqui significa morte.
Sugere-se aqui a concepção grega do valor religioso destas potências da memória e
esquecimento: através destas, o poeta é capaz de conceder a morte ou imortalidade aos homens.
Assim, o valor de uma pessoa jaz no seu louvor, que é capaz de conceder-lhe ser e realidade,
pois o homem esquecido nada é (DETIENNE, 2013, pp. 24-25). A memória é, portanto, uma
força divinizante, que concede Ser ao homem, e através da qual um mortal participa, por seu
nome, da natureza divina, como um semi-deus.
Mas o que é esta memória pela qual o poeta compõe os seus poemas e os transmite de
geração em geração? Ela também é, aqui, em um primeiro momento, um treino de atenção e
concentração, como um exercício religioso que abre o poeta à inspiração das Musas, filhas da
deusa Mnemosúne (Memória). Porém, a memória do poeta não é o poder de reconstruir o
passado segundo uma perspectiva temporal, mas é uma potência propriamente religiosa e
inseparável da inspiração:
Nesses meios inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter divinatório; tal como
o saber mântico, define-se pela fórmula: ‘o que é, o que será, o que foi’. Com sua
memória, o poeta tem acesso diretamente, numa visão pessoal, aos acontecimentos que
evoca; tem o privilégio de entrar em contato com o outro mundo. Sua memória lhe
permite ‘decifrar o invisível’. A memória, portanto, não é apenas o suporte material da

32
palavra cantada, a função psicológica que sustenta a técnica formular; é também e
sobretudo o poder religioso que confere ao verbo poético o estatuto de discuso mágico-
religioso. De fato, a palavra cantada, pronunciada por um poeta dotado de um dom de
vidência, é um discurso eficaz; com sua virtude própria, institui um mundo simbólico-
religioso que é a própria realidade. (DETIENNE, 2013, pp. 15-16).
Nesta forma de pensamento da Grécia arcaica, Detienne ressalta, esta concepção de
Memória está na essência do que significava a Verdade. Alêtheia, ele aponta, se identifica com
a Memória, o Elogio, a Luz; e se opõe ao Esquecimento, à Reprovação, à Noite. Ela é
“concidadã dos deuses, única autorizada a compartilhar a vida dos Imortais” (ibid., p.25). O
poeta, através do exercício da Memória, quando profere o seu discurso, “o faz por Alêtheia, em
seu nome; seu discurso é alêthes, como seu espírito (nous). O poeta é capaz de ver a Alêtheia,
ele é um ‘mestre da Verdade’” (ibid., p. 26). Portanto, Detienne acrescenta, Verdade nesse
contexto não é concordância entre proposição e objeto, nem se opõe à mentira; aqui, o discurso
se identifica com a Verdade na medida em que se fundamenta num dom de vidência (a
Memória), e por isso é dotado da efetividade de criar Ser e realidade (ibid., p. 29).
Além dos poetas, este poder de Alêtheia, acesso a um conhecimento divino que se
expande ao passado e do futuro, se expressa também na figura do adivinho. Burkert (1985, p.
111) explica que em uma religião desprovida de escrituras reveladas, os sinais que os deuses
enviam aos homens através das mais variadas formas, tal qual interpretados por especialistas,
constituem a forma preeminente de contato com o mundo divino e o fundamento da piedade
religiosa. A capacidade de interpretar tais sinais, porém, não era algo acessível a qualquer um:
só aquele inspirado com um dom carismático, o sacerdote oracular, era capaz de fazê-lo
apropriadamente. Também são chamados de adivinhos aqueles que, de uma forma ou de outra,
são capazes de ver, ouvir e experienciar realidades que estão fora do alcance da experiência
ordinária, graças à intervenção de um deus. Fenômenos de possessão divina (entheos e katechei)
e fenômenos extáticos (ekstasis e mania) são constituintes do ofício. De uma maneira ou de
outra, o adivinho era aquele que tinha uma relação especial com o divino e um conhecimento
mais do que humano (ibid.).
Uma vez que a fama de suas interpretações e profecias inspiradas se espalha, ao redor
dele se estabelecem oráculos: santuários de adivinhação que conferem unidade geográfica
àquele mundo religioso, uma vez que se tornam como que centros supra-regionais e mesmo
“internacionais” visitados por cidadãos e líderes das mais variadas cidades gregas (ibid., p.
114). Nos oráculos, as palavras dos deuses se manifestavam para aqueles que neles buscavam
orientação para suas vidas. Estas palavras eram muitas vezes registradas em escrita, sob forma

33
poética, e preservadas para gerações posteriores como coletâneas de sabedoria prática, de forma
que estes textos oraculares vieram a constituir uma das primeiras formas de escrita na Grécia
(ibid., p. 117).
Há ainda outra forma de adivinhação, que se extende ao domínio da justiça. Detienne
(2013, pp. 35-36) aponta, ainda, que no pensamento religioso, a Justiça e a Verdade constituem
um e o mesmo domínio, “porque a Alêtheia é a ‘mais justa’ de todas as coisas”. Também a Díke
(Justiça) é um poder divino de onisciência, aquela “que conhece em silêncio o que ocorrerá e o
que ocorreu”. Este fato se encarna na figura dos antigos reis micênicos, que, sendo mestres da
Justiça, também eram mestres da Alêtheia – em seu sentido mântico. Na imagem mítica de
Minos vemos um rei que possui relações pessoais com os deuses, através de práticas
adivinhatórias em uma caverna do Monte Ida. Nesta tradição mítica, “o exercício da justiça é
inseparável da prática de certas formas de adivinhação” (ibid., p. 46), “diversas formas de poder
político e certas práticas judiciárias baseiam-se essencialmente num saber de natureza mântica”
(ibid., p. 48).
Emerge desta noção arcaica de Alêtheia uma verdadeira teologia do discurso, na qual o
logos do aedo possui, em forma e conteúdo, uma força divina capaz de conferir vida, ser,
realidade, ou morte e esquecimento. Este logos efetivo é emanação de Alêtheia, a Verdade, a
potência religiosa que é o conhecimento mântico superior àquele dos mortais, restritos que são
aos sentidos. Isto é, estamos diante de uma forma de discurso mágico-religioso cuja principal
característica é a eficácia. O verbo poético, uma vez articulado, se torna uma força, uma ação,
que institui uma realidade da mesma ordem (ibid., p. 58). O discurso oracular e adivinhatório,
da mesma forma, não só profetiza algo, mas também o realiza: “é um dos elementos de sua
realização”, segundo Detienne (ibid., p. 60). A Justiça goza da mesma eficácia, pois o rei,
dotado do cetro de autoridade, emite decretos, juízos e ditos de justiça que são como oráculos,
palavras que possuíam a mesma eficácia instauradora de realidade que aquela do poeta,
colocando em moção a força divina da Justiça no mundo humano. O discurso da justiça está
sempre em conformidade com a ordem cósmica, “pois cria a ordem cósmica, é seu instrumento
necessário” (ibid., p. 66).
Este discurso eficaz, realizador, não possui distância alguma do ato. O próprio discurso,
desde o princípio, é ação e realidade. Ele não está, portanto, submetido à temporalidade – o que,
aponta Detienne (ibid., p. 63), ressalta o fato de que ele está além das forças humanas. Assim,
têm o privilégio da ‘Verdade’ aqueles discursos que são dotados de tal eficácia, e seu oposto
não é a mentira, mas o discurso cujas palavras são desprovidas de eficácia e realização, e

34
portanto, vãs (ibid., p. 62). Trata-se, nesta província mágico-religiosa, de algo análogo aos
sonhos que não se realizam, os procedimentos divinatórios ineficazes, as maldições que não se
cumprem – todas falhas que sinalizam que aquele que proferiu o discurso o fez sem o “direito
divino” (ibid.).
A questão da eficácia do discurso suscita outra potência mítica de grande importância:
a Peithô ou sedução. Segundo Detienne (2013, p. 68), “no panteão grego, Peithô corresponde
ao poder do discurso sobre outrem; no plano mítico, traduz o encanto da voz, a sedução do
discurso, a magia das palavras”. Ela se apresenta, portanto, como “a potência do discurso no
modo como este se exerce sobre outrem, sua magia, sua sedução, o modo como o outro o
recebe” (ibid., p. 67). Peithô é “fundamentalmente ambivalente: benéfica e maléfica” (ibid., p.
68), e de fato, ela é um “aspecto necessário da Alêtheia” (p. 67).
Parece-nos surpreender que uma tal força de sedução do discurso, da magia das palavras,
possa ser de qualquer forma benéfica, ainda mais ser um aspecto necessário da verdade, mas
que assim o é, para a mentalidade arcaica, fica evidente ao levar-se em consideração a natureza
do discurso eficaz que caracterizava a Verdade. Retomando as figuras dos “mestres da
Verdade”, vemos na figura mítica da profetiza Cassandra, que foi privada da peithô e, portanto,
do poder de convencer os outros acerca das suas profecias, alguém cujo privilégio da Verdade
está ameaçado pela não-eficácia do seu discurso: uma vez que lhe falta capacidade de
convencimento, suas palavras são condenadas à “não realidade”. Também o rei necessita da
sedução do discurso: no dom que recebe das Musas está incluída a doçura e suavidade que
encanta e incita os corações com palavras apaziguadoras. A sedução do discurso poético, por
sua vez, é concebida como análoga àquela que é exercida pelo olhar, a voz e a aparência física
de uma mulher.
Estas são, ressaltamos, expressões do aspecto positivo de Peithô, pelo qual ela está
intimamente associada a Alêtheia. Os jogos de sedução amorosa, o seu prazer suave e ternura,
e cuja figura mítica por excelência é a deusa Aphrodite, representam este aspecto positivo.
Porém, como já havia sido mencionado, Peithó não deixa de ser uma potência ambígua. O seu
aspecto maléfico, que na nossa mentalidade é o mais óbvio, também se faz presente ali: o
engodo (pseudeîs), filha da Noite e irmã de Lêthe (Esquecimento), que aparece miticamente
associado a Hermes, o noturno. Segundo Detienne (2013, pp. 68-69):
Ao lado da boa Peithô, que acompanha os Reis sábios, há outra, que ‘comete
violência’; [...] A malvada Peithô é inseparável das ‘palavras aliciantes’
(haimýlioi lógoi), que são os instrumentos do engodo, as ciladas de Apáte. Por

35
um de seus aspectos, Peithô, tão fortemente articulada a Alêtheia, vincula-se a
potências negativas da espécie de Lêthe.
Ora, encontramos em Peithô, portanto, a expressão paradigmática mesma da ambiguidade:
a capacidade de persuadiar à verdade é também a capacidade de enganar. Nela contemplamos
a inseparabilidade e complementaridade destas forças antitéticas: Alêtheia e Lêthe. E disto
resulta uma importante reflexão sobre a ambiguidade do discurso que será desenvolvida em
dois caminhos distintos: “por um lado, o problema do poder do discurso sobre a realidade,
questão essencial para toda a primeira reflexão filosófica; por outro, o problema do poder do
discurso sobre outrem, perspectiva fundamental para o pensamento retórico e sofístico”.
(DETIENNE, 2013, p. 86).
Ora, no poeta, no adivinho e no rei justiceiro encontramos resquícios de uma figura
arquetípica antiga que unificava todas estas características, e que era comum aos povos indo-
europeus: o poeta-profeta-sábio (CORNFORD, 1952, p. 87), pessoas mânticas em contato com
o mundo dos deuses e dos espíritos (ibid., p. 90). Em toda a Europa pagã, entre os povos
helenos, celtas, teutônicos, nórdicos, este vidente arquetípico é universal17. Em todas essas
culturas, o dom da poesia é inseparável da inspiração divina, que traz consigo um conhecimento
exaltado e fora do alcance da vida ordinária (ibid., pp. 93-94). O reconhecimento coletivo da
sua inspiração divina é garantido pela sua superior excelência espiritual, intelectual e artística
(ibid, p. 95). É ao redor dessa figura arquetípica que a cultura religiosa se centra, e nela se forma
o primeiro modelo do sábio18, e em seu discurso, a imagem da Verdade.
Neste contexto, é possível vislumbrar a maneira pela qual o modelo de sabedoria do
filósofo emergiu na cultura grega como herdeira deste arquetípico poeta-profeta-sábio. O
modelo cognitivo a priori que será herdado pela primeira filosofia, representa uma visão a
respeito das origens do conhecimento que é muito mais antiga que aquela representada pelo
empiricismo das ciências médicas (CORNFORD, 1952, p. 61), e que remonta a este caráter
mântico da Verdade. Vemos, por exemplo, como um filósofo jônico tardio, o atomista
Demócrito, dirá que os sábios, assim como os deuses e os animais, possuem um sentido extra
para além dos cinco ordinários, e que intervém quando aqueles falham. O instinto dos animais,
o gênio poético dos poetas e a clarividência dos videntes, bem como a intuição do filósofo –
por ele chamada de “sabedoria verdadeiramente nascida” (gnesín gnome) –, aparecem como

17
Cornford (ibid., p. 98) também cita o exemplo da figura indiana do “kavi”, o poeta-vidente-sábio que compõe
os versos dos hinos védicos.
18
De fato, Burkert (1985, p. 112) menciona que a palavra para vidente, mantis, está conectada com a raiz indo-
europeia para poder mental, e que também se relaciona com mania (loucura divina, êxtase). O vidente é o
“protótipo do homem sábio” (ibid).
36
fenômenos conectados, manifestações de um saber superior. É através de tal saber superior que
o filósofo é capaz de intuir os princípios últimos que constituem o mundo – o que, no caso de
Demócrito, significava os átomos e o vazio (CORNFORD, 1952, pp. 66-67).
Não por acaso os seus seguidores o comparavam a um profeta, chamando-o “a voz de
Zeus” (ibid.), e o atomista Lucrécio até faria uma comparação entre os filósofos pré-socráticos
e o oráculo de Apolo (ibid., p. 64). Mesmo Epicuro, descendente filosófico de Demócrito no
período helenístico, será exaltado como um profeta, alguém embuído com uma sabedoria mais
que mortal (ibid.). Este último, por sinal, apesar de defender uma epistemologia empiricista, ao
procurar conhecer os princípios metafísicos últimos da sua filosofia (átomos e vazio), lança
mão de uma reveladora “apreensão mental”. Segundo Cornford (ibid., pp. 29-30) o termo
“apreensão” (epibolé) indica, segundo o seu significado originário, uma projeção da mente em
direção a algum objeto. Ou seja, trata-se de uma metáfora que deriva de uma concepção da
mente como um poder de “escapar do corpo e vaguear à vontade em um voo ao mundo
invisível” (ibid.). Isto é evidente no emprego que Lucrécio faz desta metáfora, ao falar do
espaço infinito “ao qual a inteligência está a olhar sempre, e que a livre projeção da mente
atravessa em seu voo” (ibid.).
Porém, no contexto olímpico a potência mântica é uma espécie de privilégio de alguns
extraordinariamente abençoados por dons especiais. Ela não é expressa algo sobre a natureza
mais profunda daquele que a exerce. Não é na escola filosófica que descende da afinidade à
mentalidade olímpica que se encontra uma forma de filosofia que é caracterizada por uma
disciplina de conhecimento e si visando à atualização da inteligência intuitiva.

1.2 A Religião Mistérica e a Filosofia Itálica

Na religiosidade mistérica encontraremos espaço para uma forma mais pessoal de


aspiração espiritual, uma forma mais íntima de experiência religiosa do que aquela que a
religião olímplica pública representava. As suas origens são de difícil constatação. Casoretti
(2014, pp. 15-16) cita Lévêque acerca de ritos e ceremônias secretas da religião cretense que já
prefiguravam os Mistérios, muito antes de Homero. De qualquer forma, as religiões dos
mistérios se desenvolveram de maneira mais reclusa, paralelamente aos cultos cívicos, em
comunidades formadas por afinidade e escolha – o que constitui uma novidade importante no
cenário religioso grego.

37
Apesar das diferenças consideráveis entre a religiosidade olímpica e a mistérica,
Detienne (2013, pp. 134-135) aponta que estas comunidades iniciáticas, ou “seitas filosófico-
religiosas”, “põem em ação procedimentos e modos de pensamento que constituem o
prolongamento direto do pensamento religioso anterior”. Em especial, elas parecem ter uma
conexão importante com os mecanismos das práticas adivinhatórias, embora agora expandidas
a um universo religioso mais amplo que a simples busca de orientações divinas para a vida
comum.
Detienne (2013, p. 48) faz referência à prática da incubação no oráculo dedicado ao
deus Trofônio em Lebadia, que parece oferecer um material interessante para a reflexão acerca
dessa continuidade entre a religiosidade olímpica e a mistérica. Ali, em seu antigo santuário, o
consulente passa por um período de restrições alimentares, ritos e claustro, preparando-se para
a entrada num mundo estranho ao dos humanos. Por fim é conduzido ao oráculo, na entrada do
qual se depara com as duas fontes: uma chamada Lêthe (Esquecimento) e a outra Mnemosúne
(Memória). Ele toma, então, a água da primeira fonte, que lhe faz esquecer toda a vida humana
e tornar-se, portanto, semelhante a um morto. Ele é então colocado na boca oracular, onde seu
corpo é como que “engolido”, e então fica inconsciente: as portas do Hades lhe são abertas. Ele
é em seguida retirado dali e colocado, ainda inconsciente, no trono da Memória. Quando enfim
retorna à consciência, ri: está de volta ao mundo humano, após a viagem ao além. Antes de
partir, deve beber da segunda fonte, a da Mnemosúne, para que lhe seja possível lembrar de
tudo o que viu e ouviu no outro mundo, e assim permaneça enriquecido por um conhecimento
superior, que se estende pelo “que foi e será”. A incubação é, assim como a adivinhação, o
poder de “lembrar-se” no mundo do Esquecimento (ibid., pp. 49-50). Detienne (ibid., pp. 50-
51) expande na significação desta experiência:
A descida do consulente de Trofônio ao Hades, portanto, é como que o correspondente
ritual da experiência religiosa por meio da qual o adivinho ou o poeta inspirado penetra
no mundo invisível: em ambos os casos, Memória e Esquecimento são os valores
essenciais. Ao sair da consulta incubatória, o iniciado está dotado de uma memória e de
um dom de vidência que não se diferenciam em nada dos de poetas e adivinhos. Pela
virtude da água de Memória, o consulente de Trofônio goza de um status equivalente
ao de um adivinho: assim como Tirésias e Anfiarau, ele se torna um ‘vivo’ entre os
mortos.
Ora, é bastante significativo o fato de que, aqui, o contato direto com o mundo invisível
já não é o privilégio de alguma função social específica. Enquanto a Memória do poeta e a
capacidade mântica do adivinho eram dons concedidos pelos deuses a um número pequeno de
pessoas, aparentemente, aqui, todo aquele que for ao santuário e se submeter às purificações
38
alimentares e ao claustro, tomar a água das duas fontes, etc., seria capaz de tal contato. Além
do mais, esse privilégio que é concedido ao consulente parece ter continuidade após a visita ao
santuário. De fato, são estes aspectos que parecem fazer do oráculo de Trofônio ser aparentado
aos ritos mistéricos. O acesso a esta forma superior de conhecimento, que em outros contextos
era meramente um dom extrínseco a quem o exerce, nos Mistérios é a verdade constituinte da
alma de todos, uma atualização de algo intrínseco à sua verdadeira natureza. Todas as almas,
quando libertas do corpo no sonho, no êxtase ou na morte, se tornam proféticas, de forma que
todos os iniciados, após as suas purificações, podem partilhar, no momento da revelação, da
prerrogativa de um conhecimento inspirado proveniente do mundo dos deuses e espíritos.
Em contraste com a “teologia/antropologia délfica”, que sustentava uma separação
abissal entre o divino e o humano, nos mistérios essa barreira é diluída. Propaga-se, nestas
correntes, “o pensamento na divindade da alma humana” (ROHDE apud Casoretti, 2014, p. 21).
A possibilidade universal, portanto, que todo homem possui para ser elevado para além dos
limites da vida cotidiana, abrir as portas de um contato direto com algo que transcende a sua
realidade ordinária e à luz do qual sua existência é remoldada. Por outro lado, surge uma forma
distinta de ‘elitismo’, uma vez que aqueles que de fato são iniciados em tais mistérios e se
elevam a tal domínio da verdade passam a ser dotados de um privilégio semelhante àquele que
detinham os “mestres da verdade” arcaicos, que os distingue do restante dos homens. Não por
acaso, suas cerimônias iniciáticas serão rituais pessoais acompanhados de segredo
(CASORETTI, 2014, p. 24). A razão disto é que “o que os definia como ‘mistérios’ era,
justamente, a possibilidade de se alcançar uma ‘vida’ que seria inacessível por vias normais e
que não poderia ser exposta ao público” (ibid., p. 22).
Em outras palavras, trata-se aqui de uma forma de religiosidade de salvação e
transformação pessoal, que introduzia seus iniciados a um novo estado de espírito, uma
transformação da consciência, uma revelação de uma realidade superior que transcende o
comum dos homens (ibid., p. 24), e que está voltada a responder às angústias existenciais acerca
da morte. Ao menos três serão suas principais correntes: a eleusina, a dionisíaca e a órfica. As
três se interpenetram em alguma medida, em conteúdo e formação histórica, mas ainda assim
mantêm sua autonomia e distinções em relação umas às outras.
Os Mistérios de Elêusis, que se localizavam nos arredores de Atenas, caracterizavam-
se como um culto à deusa Deméter e sua filha Perséfone. O mito que inspirava o seu rito
centrava-se na grande temática da morte, a descida ao mundo subterrâneo e a ressurreição – que
se referia, simultaneamente, a dois níveis de significação, os dois presentes de Deméter à

39
humanidade: a agricultura e a esperança no destino post-mortem do homem. As celebrações
dos Mistérios Eleusinos possuíam duas faces: uma pública e outra secreta.
Em sua dimensão pública, uma vez por ano se dava a celebração coletiva e oficial destes
Mistérios, a qual era aberta a todos sem distinção de sexo e classe (ibid., p. 26-27). Em sua
dimensão secreta ou privada, os candidatos à iniciação passavam por provas internas e períodos
de purificação por abstenções e jejuns; em seguida, pelas iniciações rituais, os neófitos eram
conduzidos “por meio de estados sucessivos, a uma experiência excepcional” (COLLI, apud
Casoretti, 2014, p. 26), que culminava no estado supremo, a epopteia, “visão transcendente e
transformadora correspondente ao rito final da iniciação” (ibid., p. 27), na qual algo do mundo
divino e da existência post-mortem lhes era revelado.
No mito de Deméter, em uma determinada passagem a deusa parece estar lançando o
filho do rei de Elêusis à morte, queimando-o no forno; mas na verdade, como é revelado
posteriormente, ela lhe concedia a imortalidade. Assim, pela visão em que culminava a
iniciação nestes Mistérios, da morte era retirado o seu terror, e aos iniciados era garantido um
melhor destino no outro mundo, segundo os testemunhos antigos. Mesmo que permaneça sendo
uma realidade, a morte já não é um fim e sim um outro começo: o nascimento da criança divina
(BURKERT, 1985, pp. 288-289), a promessa da ressurreição do fiel (CASORETTI, p. 26).
Neste sentido, Colli (apud ibid., p. 27) caracteriza a iniciação eleusina como uma festa
de conhecimento, onde esta visão reveladora, concedida ao iniciado por meio dos ritos,
promovia um “estado de conhecimento” coincidente com um estado beatífico (ibid., p. 29). Ele
aponta ainda para o fato de que o ato de visão se identificaria doravante com o estado supremo
do conhecimento, não somente neste contexto mistérico, mas também na linguagem dos sábios
e filósofos (ibid., p. 27). A contemplação de uma dimensão de existência se torna paradigma
do conhecimento da mesma (ibid., p. 29).
Os Mistérios Dionisíacos foram, com a maior probabilidade, originados fora do mundo
helênico, e a data da sua introdução na Grécia é incerta. Uma vez ali, vieram a se estabelecer
solidamente na cultura grega. Dionísio, deus do vinho, da vida e do êxtase, se tornou o “deus
do povo”, em cujo culto nem mesmo escravos eram rejeitados. Seu culto era realizado em festas
alegres nos campos e nas montanhas (ibid., p. 30). Sexo, embriaguez, elementos de violência e
crueldade, como meios de indução de um estado de êxtase também se manifestavam em
algumas celebrações dionisíacas (BURKERT, 1985, pp. 163, 164, 167); mas a experiência de
Dionísio vai além destas manifestações, uma vez que o êxtase passa a ser buscado por si mesmo,
em certos círculos, independentemente daqueles meios, como uma experiência de valor

40
religioso intrínseco. E este é que será na maior parte o centro animador dos cultos iniciáticos
dos Mistérios Dionisíacos propriamente ditos.
No culto mistérico de Dionísio, o grupo de iniciados é tomado pelo deus, que neles entra,
tornando-os entusiásticos; ou então em um êxtase, o extático sai de si, experimenta um
desprendimento em relação à sua existência empírica cotidiana e seu senso de individualidade.
Mas possessão e êxtase não parecem se distinguir, são dois lados de um mesmo movimento
pelo qual o deus entra no homem e o homem entra no deus, de forma que o iniciado é posto em
um estado de consciência distinto, divinamente inspirado (CORNFORD, 1957, p. 112). Este
seria propriamente um “delírio” religioso, através do qual o extático poderia sair em alma do
próprio corpo e ter visões e revelações dos seres de mundos superiores (CASORETTI, 2014,
pp. 31-32). Trata-se, portanto, de uma experiência de liberação cognoscitiva, segundo Colli, na
qual “o possuído por Dioniso ‘vê’ aquilo que os não iniciados não veem” (apud ibid., p. 31),
um conhecimento da verdade que toma a forma de uma visão mântica/adivinhatória, cujo
parentesco com a epopteia eleusina não pode passar despercebido. O homem, no rito de
iniciação extática, se libertava temporariamente do jugo da existência cotidiana e contatava o
seu verdadeiro eu em bem-aventurança, trazendo cura e alívio a seus sofrimentos,
transformando a terra em um paraíso (BURKERT, 1985, p. 292).
Nesta experiência extática, o iniciado compreende sua própria realidade como existindo
aparte do corpo e do mundo terreno, mesmo que momentaneamente (CASORETTI, 2014,
p.33), revelando-lhe que a alma19 era mais que um corpo frágil, mas que ela partilhava da
natureza do deus que a possuía (RUSSELL, 2015, p. 46). Aparece no dionisismo, portanto, uma
semente da ideia de que a alma é o divino em nós. A esta ideia segue, naturalmente, também a
distinção entre tal alma divina e a natureza empírico-corpórea, de forma que esta última passará
a ser experienciada como obstáculo àquela. Por esta razão, nos cultos dos Mistérios Dionisíacos
viriam a aparecer, aos poucos, as ideias de “contaminação” e “purificação” da alma em relação
à natureza corpórea (CASORETTI, 2014, p. 33).
Como aponta Morgan (1990, p. 20), em contraposição aos sacrifícios rituais
convencionais da religiosidade olímpica, que expressavam uma visão do cosmos centrada na
noção de uma “antropologia délfica” (como a chamamos), os rituais de possessão e cerimônias

19
Cornford (1957) é da opinião que no Dionisismo ainda não se trata de uma afirmação da alma individual - uma
concepção que só terá seu lugar pleno no Orfismo. Aqui, segundo ele, trata-se principalmente de uma espécie de
pampsiquismo, uma alma ou vida comum ao todo, e que se identifica com o próprio deus Dionísio. É uma hipótese
interessante, que deve ter um fundo de verdade, mesmo que seja difícil assegurá-la diante da diversidade que é o
fenômeno do Dionisismo. Se a descoberta do êxtase Dionisíaco não for ainda a de uma alma individual, ao menos
é a descoberta do deus no homem como sendo uma presença que transcende a sua realidade fenomênica.
41
de iniciação extáticas expressarão uma outra configuração cósmica, na qual há continuidade
entre a vida humana e a divina, abrindo a possibilidade de se pensar a deificação do homem,
sua unificação com a divindade. E este será o conteúdo fundamental da esperança dionisíaca
no post-mortem20: a apoteose, a elevação da alma à condição permanente de divindade e bem-
aventurança que ela vivenciava nos êxtases passageiros das iniciações (BURKERT, 1985, pp.
294-295).
Isso significa uma profunda reversão em relação ao lugar do Eros, a aspiração e paixão
pela imortalidade e a deificação. Enquanto a religião olímpica o condena segundo a noção de
justiça como dispensação de províncias intransponíveis, a religião mistérica fará dele um
daimon que liga o Divino e o mortal em uma continuidade, preenchendo o espaço entre eles, e
reunindo-os em um. Em Dionísio, tem-se uma imagem das divindades sofredoras que são
imoladas e ressuscitadas, revelando possuir uma vida comum com todas as coisas que nascem
e morrem. No deus mistérico, mortal-imortal, Céu e Terra são permeáveis, e as barreiras entre
as províncias de Moira desaparecem. O Divino não está apartado do homem nem o homem do
Divino (CORNFORD, 1957, p. 122).
Por fim, o Orfismo, que constituirá a mais elaborada versão da religião mistérica. Nesta
corrente religiosa a visão de mundo mistérica ganha densidade, se expressando através de
poemas teogônicos, cosmogônicos e antropogônicos, dos quais derivam uma escatologia e uma
forma de vida (bíos) específica.
Surgido por volta dos séculos VI e V a.C., tem na figura mítica de Orfeu o seu ideal.
Neste, encontramos uma fusão dos deuses Dionísio e Apolo, seus símbolos e temas míticos, de
tal forma que o Orfismo pode ser considerado uma espécie de reforma do Dionisismo, na qual
os ritos e práticas deste último são interiorizados, seus excessos e “selvagerias” são moderados
e tornados simbolismo (CORNFORD, 1957, pp. 195-196). Orfeu é, como Dionísio,
embriagante e a todos seduz, mas, como Apolo, o faz através de sua lira e a sua música
harmônica e proporcional. Seu simbolismo já não é mais voltada aos ciclos da vida na terra,
como nas outras correntes mistéricas; mas aos ciclos periódicos das estrelas: um culto celeste,
portanto (ibid., p. 177). É no Orfismo que os gregos cultos encontravam a forma mais atraente
de religião (CASORETTI, 2014, p. 34), e sua influência na filosofia se mostra ser considerável.

20
É preciso ressaltar que os Mistérios Dionisíacos não constituíam, como os de Elêusis, nenhuma espécie de
organização unificada, de forma que não há um dionisismo mas vários. Não há evidências de que todos partilhavam
das características aqui descritas. Para Burkert (1985, p. 295), as preocupações com o pós-vida no dionisismo não
podem ser subestimadas, mas tampouco generalizadas.
42
As iniciações dionisíacas já vislumbravam a possibilidade de que era na alma, que no
êxtase momentaneamente se mostrava independente do corpo e do mundo terreno, que se
encontrava a sua verdadeira vida. No Orfismo, os mitos escatológicos agora o afirmarão com
clareza: o homem é a sua alma, originariamente e verdadeiramente, um daimon, um ser
espiritual, imortal como os deuses do Olimpo, e que, por um certo crime ou culpa originária,
caiu de sua vida divina na região de fogo e luz do Céu estrelado, tomando para si um corpo na
penumbra da caverna da vida terrena. Nesta sua aliança com a vida mortal, o corpo lhe é como
uma tumba na qual ele se encontra sepultado, no qual ele vive em esquecimento da sua
verdadeira natureza e origem divinas, mergulhado nas dores da vida terrena, assaltado pelo
sentimento de exílio e de separação do Divino, assim como pelo desejo de reunião
(CORNFORD, 1957, pp. 178-180). Há uma reversão da concepção ordinária de vida e morte:
o viver se torna um morrer, o morrer se torna um viver.
Após a chamada “morte”, o daimon retorna para o Hades, onde terá uma existência
intermediária de punições ou recompensas, de acordo com os vícios e virtudes da sua vida
terrena. Enfim, retornará ao mundo terreno e tomará para si outro corpo, e assim
sucessivamente. Eis que os órficos serão os primeiros a introduzir na Grécia a ideia da
metempsukhosis, ou o ciclo da transmigração das almas. Há aqui uma afirmação da ordem moral
do mundo: nossos sofrimentos não são gratuitos, mas proporcionais às nossas faltas passadas,
de modo que “toda esta soma de sofrimentos, neste mundo e no outro, é só uma parte da longa
educação da alma, que encontrará o seu último termo na libertação do ciclo dos renascimentos
e no retorno da alma à sua origem divina” (DODDS, apud Reale, 2012, p. 185).
É lícito propor como hipótese, neste contexto, que é no Orfismo que aparece
distintamente a aspiração pela liberdade e o sentido de transcendência. Na religião olímpica, o
Destino (Moira) e a Necessidade (Ananké) governam o mundo, humano e natural, de forma
fatalista, sem que houvesse algum sentido de esperança de sobre estas se elevar. Na religião
órfica, essas mesmas potências encontram continuidade sob a forma do ciclo das
transmigrações; mas agora esta ordem das coisas não é vista como palavra final: a alma aspira
à transcendência, a elevar-se para além do domínio da Necessidade, a alçar-se à liberdade que
se expande além da geração e corrupção das coisas.
A antropogênese mítica dos poemas órficos expressam bem o caráter dividido da
existência encarnada da alma. No mito do Dionísio Zagreu, filho de Zeus e Perséfone21, é

21
Perséfone, a deusa que intercala a vida no mundo celeste e a vida no mundo subterrâneo (Hades), e que era
cultuada em Elêusis. Esta duplicidade da deusa já indica um pouco da natureza de Dionísio, também celeste e
ctônico.
43
contado como o deus é colocado no trono celeste, ainda em tenra idade, como príncipe herdeiro
e governante do mundo junto a seu pai. O menino Dionísio é então raptado pelos invejosos
Titãs, seres ctônicos, que o matam, o desmembram em pedaços, e em seguida assam e comem
a sua carne. Zeus, muito zangado, fulmina os Titãs com seu raio, reduzindo-os a cinzas. O
coração de Dionísio é recuperado por Atena, e a partir deste, o deus é ressuscitado22. Do vapor
das cinzas e do sangue dos Titãs, emerge a humanidade, que conterá em si uma divisão e
conflito existencial: uma natureza obscura ou titânica, pela qual o homem sofre e é corruptível;
e a natureza dionisíaca (vinda da carne do deus que fora comida pelos Titãs), pelo qual o homem
é capaz de divindade. Assim, o homem pode dizer, como deveriam dizer os iniciados órficos
no outro mundo: “Sou filho da Terra e do Céu estrelado. Mas minha estirpe é celeste” (Lâmina
da Tessália, c.f. Bernabé, 2012, p. 327).
Assim, segue-se que a aspiração escatológica órfica necessitará um processo de
purificação, pelo qual nos purgamos da natureza titânica ou mortal, e deificação, na qual
apuramos a natureza dionisíaca e imortal, culminando em uma apoteose: o retorno do iniciado
purificado e iluminado ao pertencimento à estirpe dos deuses, renascendo, como Dionísio, para
a vida divina, após a morte em que se encontrava sepultado. Com esse retorno, a alma
apoteótica, novamente em posse de sua natureza deificada, conquista um estado de bem-
aventurança permanente (a “Ilha dos Bem-Aventurados”), no qual ela viverá com os deuses
num banquete eterno. Pronuncia-se, assim, a noção de que “a vida terrena seria uma mera
preparação para uma vida mais elevada” (CASORETTI, 2014, p. 45).
A identidade humana, portanto, alcança completa reversão em relação àquela da religião
olímpica e sua teologia délfica: não mais o corpo e a mortalidade serão vistos como elementos
essenciais à verdadeira identidade de si. O verdadeiro “eu” é divino e imortal, e é deste – não
do corpo mortal – que provém a vida, inteligência e vontade que move o ente empírico.
“Conhece-te a ti mesmo” significará, doravante, conhecer-se em sua natureza divina, ou
identificar na alma daimônica a verdadeira identidade de si. Reale (2012, p. 179) aponta para a
proximidade de ideias e linguagem que o seguinte trecho de Xenofonte apresenta com essa
reversão órfica da identidade de si:
Quanto a mim, filhinhos, jamais consegui persuadir-me disso: que a alma, enquanto se
encontra num corpo mortal, viva; quando se libertou dele, morra. Vejo, com efeito, que
a alma torna vivos os corpos mortais por todo o tempo em que neles reside. E tampouco
jamais me persuadi de que a alma seja insensível, uma vez separada do corpo, o qual é

22
Também é descrito um segundo nascimento de Dionísio que se dará através de uma mãe mortal, Sêmele. Ele
emerge, assim, como figura do “deus-homem”. (C.f. BERNABÉ, 2012, pp. 237-242)
44
insensível. Antes, quando o espírito se separa do corpo, então, livre de toda mistura e
puro, é logicamente mais sensível do que antes. Quando o corpo do homem se dissolve,
vemos as partes individuais juntarem-se aos elementos da sua própria natureza, mas não
a da alma: só ela, presente ou ausente, foge à vista. Observai em seguida – prosseguiu
–, que nenhum dos estados humanos é mais próximo da morte que o sono: e a alma
humana então, melhor do que nunca, revela com clareza a sua natureza divina, prevendo
o futuro, sem dúvida porque então é quando se encontra mais livre.
Esta realidade que é a alma nos é, ordinariamente, inconsciente; a vida terrena é
esquecimento, é alienamento de si. Píndaro assim o expressou: a alma “está adormecida,
enquanto os membros operam” (fr. 131b), e é no sono e na morte que a alma se desperta. É
preciso viver de forma a despertar para a vida oculta da alma, da qual temos um vislumbre em
nossos sonhos premonitórios. A máxima moral olímpica de “viver segundo a natureza” ganha
uma nova caracterização, pois a verdadeira natureza, de acordo com a qual deve-se viver, é
distinta daquela aparente na vida empírica ordinária. Para viver segundo essa natureza é
necessária uma forma de vida específica, uma conversão e ascese.
O caminho para isto será encontrado nas liturgias órficas – rituais iniciáticos e
purificatórios, preces, cerimônias de culto23 –, às quais correspondia certas regras de vida e
abstinências. Conjuntamente, estas práticas acabavam por envolver o todo da vida do adepto,
dando origem à chamada vida órfica (bíos orphikós), na qual o “órfico renunciava aos falsos
valores, às riquezas, honras e prazeres, em prol da virtude, da simplicidade e da contemplação”
(CASORETTI, 2014, pp. 40-41). O objetivo desta forma de vida era promover a katharsis da
alma (ibid.), de tal forma que aquilo que era buscado como experiência passageira no êxtase
dionisíaco, i.e., a transcendência e divindade da alma em relação ao corpo e o mundo terreno,
agora é o objeto de uma aspiração pela transformação definitiva da alma (ibid., p. 33).
Se a vida terrena profana é associada ao esquecimento, como já foi mencionado, a vida
ascética órfica estará intimamente associada ao exercício da Memória (Mnemosúne). Nas
iniciações órficas, a verdade revelada ao iniciado tinha por propósito despertar-lhe a memória
do que lhe foi ensinado, bem como a memória do que ele já conhecia desde antes de sua queda
ao mundo dos mortais (ibid., p. 52). Nas lâminas órficas, há o tema central da descrição de duas
fontes no outro mundo: uma, associada ao esquecimento, da qual quem bebe retorna à vida
mortal; e a outra, à Memória, do qual quem bebe não mais retorna. Esquecimento e Memória
ganham estatuto soteriológico:

23
Não é impossível que esteja aqui presente uma espécie de comunhão sacramental com Dionísio, uma repetição
simbólico-ritual do mito da ingestão de sua carne e sangue, pela qual sua divindade se infunde no ser do iniciado.
(C.f. CORNFORD, 1957, p. 112).
45
... a adequação a uma precisa norma de vida, juntamente com a iniciação,
permitiria ao iniciado, ao termo de sua trajetória pós-morte, apresentar-se diante
dos guardiões da fonte da Memória e beber da água que o purificaria de todo
traço de temporalidade (ibid., p. 54).
Vale ressaltar, não se trata aqui de uma mera relação de causa e efeito, como se a
Memória ou o esquecimento causassem a libertação ou a queda na vida mortal. Antes, Memória
é a própria vida celeste, esquecimento é a própria vida terrena. O estado de salvação se identifica
com um estado cognoscitivo extraordinário da alma. O exercício da Memória não é apenas uma
preparação que causa a ida da alma à vida eterna no pós-mortem; antes, ele é, na medida em
que nos ocorre, a própria participação na vida eterna agora, e que se desvelará plenamente
quando todo traço de esquecimento houver sido purificado. A este respeito, Detienne (2013,
pp. 138-139):
Nesse plano de pensamento, a Memória já não é apenas, como entre poetas e adivinhos,
um dom de vidência que possibilita a apreensão total do passado, do presente e do
futuro, mas é, sobretudo, o termo último da cadeia das reencarnações. Seu valor é
duplo: como potência religiosa, Memória é a água de Vida que demarca o termo
extremo do ciclo de metensomatoses; na qualidade de faculdade intelectual, é a
disciplina de salvação que propicia a vitória sobre o tempo e a morte, possibilitando
adquirir o saber mais completo. Na concepção dicotômica das seitas filosófico-
religiosas, a vida terrena é gangrenada pelo tempo, sinônimo de morte e Esquecimento:
o homem está lançado no mundo de Lêthe, erra no prado de Áte. Para transcender o
tempo humano e purificar-se do esquecimento, as seitas elaboram uma técnica de
salvação que é uma regra de vida, ‘receita de santidade’ [...] [que] permite que o
iniciado, no fim da ascese, se apresente perante os guardiões da fonte Memória para ali
beber a água que o purificará de qualquer vestígio de temporalidade e consagrará
definitivamente seu status divino.
Neste sentido, encontra-se também no Orfismo um tema que já havia sido observado
tanto nos Mistérios Eleusinos quanto nos Dionisíacos: o tema da liberação cognoscitiva, uma
forma de contemplação ou conhecimento transcendente da verdade divina que é liberdade, bem-
aventurança e até algum tipo de salvação post-mortem. No Orfismo, porém, sob a forma do
exercício da Memória, este tema tomará uma “disposição intelectual” (CASORETTI, 2014, p.
58) maior do que aquela encontrada nas outras duas correntes mistéricas citadas. Não só as
purificações rituais e o êxtase iniciático, mas também uma forma de exercício intelectual

46
voltado ao “conhecimento do homem, do cosmos e dos princípios que regulam um e outro”
(ibid.) constituirão uma faceta importante da vida espiritual de um iniciado órfico24.
Já havíamos sugerido que, na busca escatológica pela transcendência do ciclo de
reencarnações, o Orfismo parece pela primeira vez explicitar a distinção entre imanência,
enquanto domínio governado pela temporalidade e pela Necessidade de Moira, e a
transcendência, enquanto o reino livre do Imutável. Ora, as forças escatológicas da Memória e
do Esquecimento parecem se alinhar com esta descoberta propriamente metafísica. “O plano
do real que agora simboliza Alêtheia”, diz Detienne (2013, pp. 146-147), “tende cada vez mais
a tornar-se uma espécie de prefiguração religiosa do Ser e mesmo do Uno, uma vez que se opõe
de modo irredutível ao mutável, ao multiforme, a tudo o que é duplo”. Ainda, “por toda a sua
história, Alêtheia está no cerne do problema do Ser: por trás da Alêtheia do adivinho, do poeta
inspirado, reconhecemos a noção de ‘discurso-realidade’, e a Alêtheia das seitas filosófico-
religiosas nos aparece como um primeiro esboço do Ser-Uno” (ibid., p. 150). Neste contexto,
Peithô, a potência mítica por trás da ambiguidade do discurso, ganha estatuto ontológico ao ser
associada ao plano do Esquecimento e da mutabilidade: “Peithô simboliza o mundo úmido da
geração, a lânguida suavidade do prazer, o do discurso, mas também o da mulher, o prazer
físico. Para esse pensamento [...] a condição do homem voltado ao Esquecimento, mergulhado
na Noite, está situada sob o signo de Peithô” (ibid., p. 142). Assim, “nas seitas filosófico-
religiosas [...] de um lado há o Imutável, o Ser, a Memória, a Alétheia, e do outro o Fluente, o
Não-Ser, o Esquecimento, Lêthe” (ibid.). Trata-se, desta forma, de um universo que apresenta
duas opções contraditórias e claramente delineadas, e que urge, portanto, a escolha25.
Temos, portanto, que todas estas correntes religiosas mistéricas têm essas características
em comum, e que as apartam da religião olímpica: são caminhos espirituais pessoais para a
divina bem-aventurança que é transcendente ao mundo empírico, através de algum tipo de
purificação que culmina em uma forma de estado cognitivo extraordinário libertador. Ademais,
a temática da morte e da ressurreição é corrente em seus mitos e ritos, assinalando a
profundidade da atenção que dedicavam às questões do post-mortem. No Orfismo, em especial,
encontramos a reversão final da identidade humana, do corpo e do nome (olimpianismo) para

24
Não por acaso, a teogonia e a cosmogênese órficas possuem parentesco com certas linhas especulativas no
pitagorismo e ao platonismo, e terão uma presença significativa no pensamento neoplatônico.
25
É importante ressaltar que, apesar do dualismo entre alma e corpo, transcendência e imanência, não há a cisão
absoluta entre estes contrários. Embora não se confundam, como se dava como Hesiódo, a cosmogonia órfica é
também parte da sua teogonia; a processão dos nascimentos dos deuses inclui em si o nascimento do cosmos, da
imanência, do corpo.
47
a alma imortal aparentada aos deuses; e, consequentemente, emerge a noção de uma forma de
vida ascética.
Estas características terão uma influência considerável na filosofia, em especial nas
colônias gregas na Magna Grécia (atual Itália), local onde cultos mistéricos prosperaram já em
tempos remotos. De fato, as filosofias que aí se desenvolveram assumiram, desde o princípio,
características e uma têmpera distintas daquelas que haviam se desenvolvido na Jônia
(CASORETTI, 2014, p. 61), adotando muitas das temáticas mistéricas como ponto de partida
para sua visão a respeito da natureza das coisas (CORNFORD, 1957, p. 194). A primeira
filosofia itálica, o Pitagorismo, é justamente a “filosofia mais religiosa da Antiguidade”
(GERNET apud Casoretti, p. 61), cuja proximidade com o Orfismo era tamanha que, mesmo
na Antiguidade, eram frequentemente confundidas. De fato, Cornford (1957, p. 198) defenderá
que o Pitagorismo deve ser entendido como uma espécie de reforma do Orfismo, que o conduz
a uma forma mais intelectual.
Assim como os órficos, os pitagóricos também serão distinguidos pela sua forma de
vida (bíos pythagoreiós), que preservará prescrições ascéticas órficas (CORNFORD, 1957, p.
200). Ambos formarão comunidades baseadas em decisão própria e disposições comuns,
diferentemente das comunidades pré-existentes da família e da cidade (BURKERT, 1985, p.
303). O Pitagorismo leva adiante a visão escatológica e existencial da alma em exílio do mundo
divino, a dolorosa roda de transmigrações e a aspiração à transcendência da mesma, o retorno
apoteótico à vida dos deuses.
A Verdade, Alétheia, terá aqui uma conotação de realidade transcendente, “a morada
originária das almas imortais antes de sua expulsão violenta para a região terrena (‘a pradaria
do destino’) como punição” (LEBEDEV, 2013, pp. 22-23). Além disso, a oposição entre
verdade e falsidade (alêthes vs pseudês) aparece associada a uma oposição entre alma e corpo,
como Lebedev (ibid., p. 19) indica a partir dos inscritos órfico-pitagóricos do século V a.C. que
foram encontrados em Olbia, e que apresentam a seguinte tabela de quatro pares de opostos:
Ψυχή [Alma] – Σϖμα [Corpo]
Βίος [Vida] – Θάνατος [Morte]
Ειρήνη [Paz] – Πόλεμος [Guerra]
Αλήθεια [Verdade] – Ψεϋδος [Falsidade]
Desta tabela se deduz que: “A alma possui vida eterna, o corpo é sujeito à morte. A alma
repousa na paz, o corpo é imerso ao mundo da Guerra dos opostos, a alma pertence ao reino da
Verdade, e o corpo ao reino da Falsidade” (LEBEDEV, 2017, p. 510). Poder-se-ia, portanto,

48
caracterizar o pensamento pitagórico como marcado por um dualismo de corpo e alma, que
concedia primazia ontológico e axiológica do segundo sobre o primeiro (ibid., p. 495)26. Além
disso, associando cada um dos lados desta tabela com os princípios pitagóricos de peras (limite)
e apeiron (ilimitado), unidade e pluralidade, que prefiguram a posterior distinção entre forma e
matéria (ibid., 2013, p.5), encontra-se uma associação do espiritual com a simplicidade e do
corpóreo com a complexidade: a imortalidade da alma está intimamente ligada com o fato de
ser simples ou sem partes e, portanto, indivisível; enquanto o corpo é mortal devido à sua
infinita divisibilidade (ibid., 2013, p. 21). A ideia subjacente é simples: a destruição é a
separação das partes que compõem alguma coisa; aquilo que é simples, desprovido de partes, é
indestrutível.
O Orfismo já encontrava no exercício religioso da Memória, em sua disposição
intelectual já mencionada, o caminho para tal deificação e libertação; o Pitagorismo levará tal
disposição adiante, identificando na contemplação intelectual o conhecimento libertador. Em
outras palavras, o Pitagorismo identificará no centro consciente da inteligência a alma imortal
ou “eu” divino do Orfismo, a presença de algo pertencente a uma ordem superior de realidade,
de natureza transcendente ao corpo e suas paixões, capaz de desvencilhar-se do tempo, do
espaço, da mutabilidade do mundo, e pensar realidades metafísicas que existem além destas
limitações (CORNFORD, 1952, p. 120). O conhecimento adquirido em contemplação também
seria advindo desta ordem superior, da qual participam os deuses e os daimons, e que a alma
“visita quando destacada do corpo em pensamento concentrado, e ainda mais quando é liberada
na morte” (ibid., p. 111).
O modo de vida pitagórico, que preservará muitas das prescrições ascéticas do Orfismo,
também será um modo de morte – morte para as paixões, que liberta o intelecto para se elevar
ao céu da contemplação imperturbada (CORNFORD, 1957, p. 200). Seguindo o modelo das
iniciações nos Mistérios, a escola pitagórica muito provavelmente era dividida em diferentes
níveis iniciáticos (CASORETTI, p. 71): o grau preparatório do discipulado (paraskeiê), o grau
da purificação (kathartisis), e o grau da revelação, no qual o discípulo alcançava o
conhecimento dos princípios ou causas últimas (teleiôtes)27.

26
No caso do Pitagorismo, no entanto, esse dualismo não significava a rejeição da coluna “negativa”; o centro do
pensamento pitagórico parece estar na harmonia ou analogia, a proporção que unifica os opostos incomensuráveis,
e assim dá origem ao número, a estrutura ontológica e racional, dotada de essência e cognoscibilidade. Embora
este dualismo esteja na fonte de seu pensamento, a sua conclusão é uma de harmonia e não de guerra entre os
opostos.
27
Encontra-se aqui a delineação de uma trajetória filosófico-religiosa de purificação e revelação através da
contemplação, que prefiguram a concepção posterior da filosofia como dotada das dimensões prática (ética) e
teorética (contemplativa).
49
O ato de filosofar se torna, portanto, uma maneira de vida (PEREIRA apud Casoretti p.
73), na qual identificam-se, assim, filosofia e religião, como dois lados de um pensamento
unitário (GUTHRIE apud ibid.), uma vez que a verdade contemplada é a natureza última das
coisas, e que tal contemplação é o conhecimento que “habilita o homem a avançar para a
perfeição espiritual, através da assimilação da sua própria natureza à ordem invisível do mundo”
(CORNFORD, 1952, p. 111). Em outras palavras, estamos diante de uma nova forma de
religiosidade ou piedade que é propriamente intelectual e filosófica.
De fato, um dos grandes problemas acerca do pitagorismo é determinar se era um
movimento místico ou científico, dado a atribuição de descobertas matemáticas importantes aos
pitagóricos. Esta aporia parece ser mais fácil de ser resolvida quando levamos em consideração
este caráter sagrado da inteligência humana, que o pitagorismo pareceu esposar. Para Simone
Weil, os pitagóricos consideravam a matemática pura como, simultaneamente, ciência e
religião: um cálculo formal e instrumento de teorização da natureza, de um lado, e uma
disciplina e doutrina mística de outro. Isto era possível devido ao fato de que o objetivo da
ciência grega, ela aponta, seria conceber cada vez mais claramente a identidade estrutural entre
a mente humana e o universo, o que faria da ciência em si um exercício espiritual, pois: “A
medida, o equilíbrio, a proporção e a harmonia constituíam aos olhos dos gregos o princípio
mesmo da salvação da alma, porque os desejos têm por objeto o ilimitado. Conceber o universo
como um equilíbrio, uma harmonia, é assim o fazer como um espelho da salvação ” (WEIL,
1999, p. 574). O pensamento aspira a conceber o mundo como análogo a uma obra de arte, uma
arquitetura, uma música, e isto significa encontrar a regularidade na diversidade dos fenômenos,
isto é, encontrar as relações de proporção que a tudo une (ibid., p. 573). Em tais relações de
equilíbrio, harmonia e proporção se revelam verdades divinas, de forma que os pitagóricos
buscavam a visão e a contemplação da regularidade como parte de sua disciplina espiritual (V.
MORGAN, 2004, p. 97).
Ainda, segundo Mattéi (2000, pp. 56, 69, 127):
Se os homens morrem, para Alcméon, ‘é porque não lhes é possível juntar o começo e
o fim’, isto é, cumprir, como os astros, esse movimento circular eterno em que consiste
o conhecimento. [...] A própria alma é necessariamente imortal, sem dúvida porque é
semelhante ao mundo que pode contemplar e compreender. [...] A cosmologia
pitagórica não se limita a uma especulação geométrica e aritmética sobre a natureza, à
qual a alma, que contempla o mundo, permaneceria estranha. Ela se prolonga numa
epistemologia e uma psicologia que afirmam o parentesco entre a alma e o princípio das
coisas e, em consequência, com a harmonia original que os une nas operações do
conhecimento.
50
Neste contexto, no reconhecimento da inteligência como uma presença divina no
homem, o pitagórico tem acesso ao conhecimento da ordem divina do mundo, que pode
conhecer segundo o princípio de “semelhante conhece semelhante”. Desta forma, o filósofo
emerge como herdeiro do antigo arquétipo do poeta-profeta-sábio, aquele que possuía acesso a
uma verdade superior. E esta continuidade entre a inteligência humana e divina não se
restringiria ao pitagorismo. Segundo Cornford (1952, p. 150):
Aqui encontramos uma noção que reaparece em vários outros sistemas filosóficos:
nossa inteligência é uma porção da inteligência divina, e portanto capaz de entender o
‘pensamento’ que governa a Natureza. [...] a importante concepção da mente humana
como afim à mente divina [...] garante a verdade do logos de Heráclito e é a base de
sua reivindicação de ser um profeta. Nós temos aqui a contraparte filosófica da
reivindicação do poeta de ser inspirado pelas Musas, e a reivindicação do vidente de
ser possuído por Apolo. O filósofo é entheos [tomado pelo divino] em um sentido
prosaico e literal: sua mente é uma parte destacada da mente divina na Natureza.
Além de Heráclito28, vemos um aderente tardio da filosofia jônica, Anaxágoras, postular
uma Mente divina (νους) como governante de todas as coisas através das moções do
pensamento, e porções da qual habitam cada ser vivo. Diógenes de Apolônia, em seguida,
identifica a Mente de Anaxágoras com o Ar de Anaxímenes, e afirma que porções deste Ar-
Mente onisciente habita em cada um de nós (ibid., pp. 152-153). Empédocles, na filosofia
itálica, escreve sua filosofia sob forma poética e explicitamente atribui-se o papel de profeta.
Ele diz que, assim como os elementos materiais em nossos órgãos dos sentidos nos permite
perceber os elementos da natureza (ar, água, terra, fogo), assim também nós percebemos os
princípios cosmológicos últimos, o Amor e a Discórdia, através do amor e da discórdia em nós
(ibid., pp. 151-152). O Amor, ele diz, é uma mente sagrada e super-humana, que só pode ser
contemplado com o pensamento, pois mesmo que ele esteja implantado em nossos membros e
nos inspira pensamentos e atos eróticos, não podemos vê-lo em meio aos elementos corporais.
Neste sentido, este mundo órfico-pitagórico parece ser uma ponte que liga, de um lado,
Epimênides, o vidente cretense da era arcaica e representante por excelência do arquétipo do
poeta-profeta sábio; e do outro, Parmênides, o filósofo de Eléia, já próximo do princípio do
período clássico. Aquele primeiro, em retiro na gruta de Zeus Dikaios teria caído em um sono
incubatório profundo. Neste, o tempo lhe foi abolido e ele foi levado à presença da deusa
Alêtheia em pessoa, acompanhada da deusa Díke, e ali gozou do privilégio de com elas
conversar. Por fim, retornou ao mundo humano, acreditando que apenas um momento havia

28
Heráclito, apesar de jônico, possui mais parentesco com os filósofos itálicos do que com seus conterrâneos.
51
passado na companhia das deusas, até que por fim descobriu, depois de retornar à cidade, que
quase seis décadas haviam passado. Dotado do dom da adivinhação desde sua experiência,
passou o resto da sua vida como uma espécie de conselheiro espiritual para as cidades por onde
passava. Dizia que havia tido muitas outras encarnações, e na posteridade, os cretenses
sacrificavam a ele como se fosse um deus, devido ao conhecimento super-humano que
demonstrou em vida29. Segundo Detienne (2013, pp. 139-141):
A experiência de Epimênides situa-se no mesmo plano social e mental que as seitas
filosófico-religiosas: o ambiente é o dos magos, dos inspirados, dos indivíduos com
comportamentos excepcionais, dos homens à margem do grupo social organizado na
Pólis30; o nível do pensamento é o do movimento extático dos especialistas da alma.
[...] Como todos os inspirados de sua espécie, está sujeito a sonos catalépticos: sua alma
escapa do corpo à vontade. Trata-se de um tipo de experiência que prolonga
incontestavelmente procedimentos de mântica incubatória. O sono é o momento
privilegiado em que a alma, ‘trançada ao corpo’ durante o dia, depois de libertada de
seu serviço, pode contemplar a pura Alêtheia: pode ‘lembrar-se do passado, discernir o
presente, prever o futuro’. No caso de Epimênides, a conversa com Alêtheia, além de
traduzir um dom de vidência análogo ao do adivinho, também coroa uma mélete que
visa a escapar o tempo e atingir um plano do real que se define essencialmente pela
oposição a Lêthe. Quando entra em contato com Alêtheia, Epimênides tem acesso à
familiaridade com os deuses, que é rigorosamente semelhante ao status divino do
iniciado das ‘tábulas de ouro’, quando pode saborear a água fresca do lago Memória. O
plano de Alêtheia é o plano do divino: caracteriza-se pela intemporalidade e pela
estabilidade. É o plano do Ser, imutável, permanente, que se opõe ao da existência
humana, submetida à geração e à morte, corroída pelo Esquecimento. (Minha ênfase)
A proximidade da experiência incubatória de Epimênides e o tratado de Parmênides é
evidente. Todo o relato do prólogo do poema parmenídico está permeado do vocabulário, as
atitudes e a visão de mundo dos adivinhos, poetas e iniciados; como observou Lebedev (2017,
p. 505), a busca pelo conhecimento divino aparece como uma viagem de consulta (theoría) ao
oráculo celestial, cuja Puthia não é uma mulher mortal, mas a própria Verdade. Parmênides
viaja da Noite para o Dia, do mundo mortal humano para um além divino, onde a ele é
concedida a visão direta da Deusa, quem lhe revela a Alêtheia, o Ser verdadeiro que está
presente apenas à inteligência, mas não para os sentidos. Segundo Detienne (2013, p. 149),
“Parmênides apresenta-se com a máscara do Eleito, do homem excepcional: ele é aquele que

29
Tal qual descrito por Diógenes Laercio (Vidas dos Filósofos Eminentes, 109-114).
30
Ora, figuras como Epimênides mostram uma independência em relação à pólis, mas não uma indiferença. De
fato, Epimênides teria ajudado Sólon e outros governantes através dos seus dons. Talvez possa-se ver aqui uma
primeira versão daquilo que será o lugar ambíguo do filósofo na cidade: independente, inadequado, mas ao mesmo
tempo o líder por direito.
52
sabe. Alêtheia é seu privilégio. ‘Mestre da verdade’, ele se distingue dos ‘que nada sabem’, ‘os
homens de duas cabeças, surdos e cegos’”.
Porém, todas estas metáforas advindas do mundo das práticas adivinhatórias e
incubatórias possuem, aqui, o significado da transcendência da própria mente filosófica, que se
liberta do corpo em pensamento e tem a obscuridade removida de seus olhos, de forma a
perceber a realidade claramente. E tal transformação do entendimento retém a conotação
propriamente escatológica do pensamento órfico-pitagórico: o filósofo passa por uma apoteose,
é levado do reino da escuridão, da falsidade e do sofrimento para o reino da luz, da verdade, da
bem-aventurança (LEBEDEV, 2017, pp. 507-509).
De fato, o filósofo, enquanto aquele que vê o Ser, é aqui herdeiro direto do arquétipo do
poeta-profeta-sábio, do iniciado nos Mistérios, aquele que tem o privilégio divino da visão de
Alêtheia, a qual se oculta dos olhos profanos, que só veem as ambiguidades da doxa. A
simplicidade de Alêtheia e a ambiguidade de Peithô, as potências míticas do discurso arcaico,
inspiram a metafísica de Parmênides:
Toda a filosofia de Parmênides é como que fascinada pelo Ser [...]. No Ser
parmenidiano, todas as aspirações ao Uno, ao Permanente, ao Intemporal são satisfeitas
de uma vez. Em outra linguagem e num plano de pensamento diferente, o Ser de
Parmênides responde ao mesmo problema que o Khrónos dos órficos: como conciliar o
Uno e o Múltiplo. Para Parmênides, como para toda uma tradição que não se inspira
diretamente em sua filosofia, Alétheia é definida como o ‘simples’ em oposição ao
‘duplo’: tudo o que é ambíguo, ‘com duas cabeças’. [...] tal como o universo das seitas
filosófico-religiosas, o mundo de Parmênides é um mundo de escolha. A afirmação da
Deusa no prólogo é clara: há dois caminhos, o de Alétheia, o das Dóxai. É Aléthe ou
Apáte (DETIENNE, 2013, pp. 152-153).
O Ser se exprime por uma única palavra, que significa, portanto, algo Uno e simples,
que abole em si a diversidade de predicados. O universo das doxai é uma pluralidade de nomes;
o plano da complexidade e da contradição (DETIENNE, 2013, pp. 152 e 154). Por trás dessa
oposição, nos lembra Lebedev (2017, p. 499), está conceitualmente presente, como no mundo
do pensamento órfico-pitagórico em geral, a dicotomia entre a Unidade e a Multiplicidade, entre
a imobilidade (imutabilidade) e o movimento (mutabilidade), assim como entre o espiritual e o
corpóreo.
Assim como Xenófanes e Empédocles, filósofos-poetas da filosofia itálica, Parmênides
conceberá a unidade do Ser como uma “esfera de divina luz pensante” (ibid., p. 517); enquanto
isso, a dualidade central que constitui o reino da dóxa, entre a luz e a escuridão, o dia e a luz,
corresponderia ao erro de supor que a noite (matéria) seja tão real quanto a luz (mente) (ibid.,

53
p. 511). Na medida em que esse erro é abandonado, a intuição intelectual pura (noein) é capaz
de elevar-se para a compreensão da unidade do Ser, que não contém em si nenhum traço de
não-ser ou materialidade (ibid.), nem de multiplicidade ou complexidade.
Lebedev (2013, p.30) insiste, ainda, na dimensão ética do pensamento de Parmênides.
A esfera divina e auto idêntica da luz inteligível do Ser aparece como paradigma de
imutabilidade, de tranquilidade da alma, de contemplação; um precursor, portanto, da ética da
imperturbabilidade31. A rejeição da realidade do mundo das dóxai, da pluralidade dos entes e
da corporealidade, também apresentam consequências éticas e políticas consideráveis: a
subordinação dos indivíduos (multiplicidade) à comunidade (unidade), e a superação do medo
da morte em batalha – uma vez que o corpo é uma não-entidade32. Hölscher (apud ALBERT,
2011, p. 19) chega a colocar esta temática no centro da reflexão parmenídica:
O problema abordado por Parmênides não era o problema da contradição: como o ente
pode devir? Seu problema era o perecer da vida, a morte. Toda sua ontologia parece
voltada a essa questão. Dela se nutre a paixão contida da linguagem, que em lugar
algum salta vitoriosa a partir da forma arcaica como quando, no fim de sua longa
argumentação silogística, ele anuncia: “Assim o surgir esmoreceu e o aniquilar-se
desapareceu”.33
Se ele tem razão, este fato apenas reafirmaria a pertença de Parmênides ao mundo do
pensamento órfico-pitagórico. E de fato, pode ser que a filosofia eleática seja nada mais que
um ramo do pitagorismo que substituiu, como fundamento de seu pensamento, os métodos e o
simbolismo matemático pela lógica (LEBEDEV, 2013, p. 29).
De qualquer maneira, fica claro a herança do arquétipo do poeta-profeta-sábio, os
‘mestres da verdade’, que constitui a figura e o ofício do filósofo, assim como o caráter piedoso
do pensar. Essa herança, como no caso de outros filósofos, é possível na medida em que há algo
divino no homem que é da mesma natureza que o divino em si, e que, portanto, pelo princípio
do ‘semelhante conhece semelhante’, uma identidade entre eles seja possível. Neste contexto,
a proclamação parmenídica da identidade entre o Ser (einai) e o Pensar (noein) ganha sentido,
ainda mais quando se considera a afinidade entre esta identidade e a noção arcaica da verdade
como discurso-realidade. Além disso, o verbo em questão, noein, faz referência ao nous ou

31
“A imutabilidade do Ser eterno não tem nada a ver com teorias físicas da mudança e do repouso, é um paradigma
para a tranquillitas animi: ataraxia and harmonia” (ibid.).
32
Desta forma, aponta Lebedev (2017, p. 523), torna-se compreensível o papel de legislador que Parmênides teve
em Eléia, assim como o fato de seu sucessor, Zeno, ser lembrado pela tradição biográfica como um herói
indiferente à dor e ao medo da morte, e também o fato do terceiro filósofo eleata, Melisso, ser um militar de
profissão.
33
Há que se notar, porém, que se Hölscher tem razão nesse ponto, certamente a imortalidade parmenídica não
seria pessoal, uma vez que a unicidade do Ser não admite a multiplicidade de almas.
54
intelecto, que, em boa parte da filosofia posterior será entendido como aquela forma de
pensamento superior que é capaz de apreender algo repentinamente e em sua totalidade, e
portanto, distinto da razão discursiva, cuja apreensão se dá através de uma sucessão
fragmentada e incapaz de apreender a unidade. De fato, é à intelecção da totalidade e da unidade
do Ser que o pensamento de Parmênides aspira, pois essa é a natureza do intelecto.
Cornford (1952, p. 154) assim resume esta passagem do pensamento mágico-religioso
ao filosófico:
... o filósofo retém seu caráter profético. Ele depende, para sua visão da divindade e da
natureza real das coisas, na identidade assegurada entre sua própria razão com uma
porção da consciência cósmica. O poder do pensamento discerne imediatamente uma
realidade aparentada a si mesmo, que é occulta aos sentidos. A razão intuitiva (νους)
repõe a faculdade supernormal que havia sido ativa anteriormente em sonhos e visões
proféticas; o supernatural se torna o metafísico.
Estamos, neste ponto, bem próximos do Platonismo. Mas entre a filosofia itálica e
Platão, há uma passagem muito importante: os sofistas e Sócrates. A esses nos voltamos agora.

1.3 O Sofismo e o impulso Socrático à Filosofia

Paralelo ao discurso-realidade dos “mestres da verdade”, que, advinda da religiosidade


arcaica, informa a primeira filosofia, emerge uma outra forma de discurso, que deriva das
assembleias militares. Nestas, os guerreiros se reuniam em um círculo no centro do qual era
posto aquilo que era comum ao grupo: os bens que não eram objetos de apropriação individual.
E era também a este centro que devia se dirigir aquele que desejava tomar a palavra, o que
significa que no momento em que ele fala desde ali, sua palavra é comum a todos, diz respeito
aos interesses comuns. É nesta publicidade e comunidade que esta forma de logos encontra sua
característica principal (DETIENNE, 2013, pp. 98-99). O discurso, em um contexto como esse,
não deriva sua força de uma efetividade mágica, o poder arcaico de alêtheia que estabelece a
realidade através da palavra, mas trata-se de um logos que tem força apenas na medida em que
ele é capaz de persuadir, convencer e, portanto, conquistar o assentimento do outro.
Contrariamente à efetividade do discurso-realidade, este logos precede a ação, e, portanto, se
insere na temporalidade humana (ibid., p. 101). Detienne caracteriza-o como um discurso-
diálogo (ibid., p. 87).
A Peithô também aparece aqui como potência fundamental do discurso, como a palavra
que conquista a adesão. Ao contrário da ação coercitiva de um mestre sobre um escravo, o

55
discurso-diálogo tem o misterioso poder de submeter as pessoas através do seu próprio
consentimento (ibid., p. 110-111n). Nessas assembleias militares, já estamos diante de um
discurso que possui a natureza da retórica, um logos que é ação e dominação sobre o outro
(ibid., p. 102). É nelas que se formaram o vocabulário e os preceitos fundamentais das futuras
assembleias políticas, que passariam a predominar com a emergência das cidades-estados.
Neste sentido, o discurso-diálogo se torna o discurso político por excelência, e é nesta função
política que o logos ganha consciência de si como uma realidade independente, um instrumento
de ação com suas próprias regras, diante do qual as questões sobre o real e o ser perdem
primazia.
A mudança cultural que essa emergência do logos político traz, a laicização do discurso
e o declínio de Alêtheia, é visível mesmo na poesia. Detienne cita o poeta Simonides, que será
o primeiro a quebrar com a tradição do poeta inspirado e introduz uma nova forma de atividade
poética laicizada, para a qual a memória é uma mera técnica profana e situada no tempo
humano. Ao invés de uma atividade inspirada e verdadeira, a poesia será para ele uma mera
arte de ilusão, um ofício remunerado, que privilegia a dóxa – termo técnico da decisão política
– sobre a Alêtheia. Esta escolha por um vocabulário político sobre a antiga terminologia
religiosa, aponta Detienne (2013, p. 126), é uma proclamação da sua intenção de secularizar a
poesia. “A revelação poética”, ele diz, “cedeu lugar a uma técnica de fascinação. Ao fazer da
memória uma técnica laicizada, Simonides condena a Alêtheia, dedica-se à Apáte. [...] [um]
testemunho de uma corrente de pensamento que privilegia a Apáte. [...] Simonides prenuncia o
sofista” (ibid., p. 128). De fato, é no contexto dessas transformações que surgem os sofistas, os
técnicos do logos, aqueles que refletem sobre a ambiguidade do discurso e atuam nessa mesma
esfera de ambiguidade. Isto é, se voltam ao plano da mera contingência, “um plano de
pensamento que se situa no extremo oposto daquele que o filósofo reivindicava como seu bem
próprio” (ibid., p. 129).
Trata-se de um rompimento significativo com a distinção arcaica entre o saber humano
e o saber divino (LEBEDEV, 2017, p. 529). Enquanto no pensamento arcaico se destacavam as
figuras dos “mestres da verdade”, aqueles que tinham acesso a uma forma divina de saber,
superior ao saber meramente humano, os sofistas anulam a possibilidade do saber divino e faz
todo o conhecimento ser exclusivamente humano. O que diferencia o sofismo da filosofia é,
precisamente, este caráter laico. Ao eliminar o saber divino, o pensamento tornou-se impiedoso.
Não por acaso, é só entre os sofistas que surge pela primeira vez o ateísmo e o agnosticismo
teóricos (BURKERT, 1985, p. 319).

56
Os sofistas, portanto, colocam o logos fora da esfera de Alêtheia: não se perguntam por
ela, e se interessam apenas pelas coisas humanas e as relações sociais. Anteriormente, Alêtheia
estava em relação de oposição e complementaridade com Peithô, a força da persuasão. Esta
última era positiva ou negativa na medida em que ela conferia efetividade a Alêtheia ou apenas
enganava. No sofismo, por outro lado, o discurso será pura Peithô sem nenhuma Alêtheia; mera
força de atuação sobre o outro. Nesta abordagem técnica, fica caracterizado o logos como mero
instrumento de poder. A questão sobre o Real está eliminada, e, portanto, o sofismo será o solo
onde florescerá o relativismo moral e epistemológico, uma espécie de pensamento
“desontologizado”, para o qual o logos é puramente humano e não está inscrito na natureza das
coisas; ou seja, seus objetos, todo o domínio da verdade e dos valores, não é mais que convenção
arbitrária. “O homem é a medida de todas as coisas”, diz o sofista Protágoras; e a consequência
disso é que não há nenhuma medida supraindividual a partir da qual se possa julgar a verdade
e falsidade do pensamento, ou a justiça e a injustiça dos valores 34. Eis a crise espiritual que o
sofismo representará no mundo Antigo. Como o coloca Detienne (2013, p. 131), para o sofista
o discurso
... é um instrumento, certo, mas de modo nenhum um instrumento de conhecimento do
real. O logos é uma realidade em si, mas nunca é um significante que tenda para um
significado. [...] Para Górgias, que chega às últimas consequências dessa concepção, o
discurso não só não revela as coisas às quais se refere, como também nada tem para
comunicar; mais que isso: ele não pode ser comunicação com outrem.
É neste contexto que emerge a figura ambígua de Sócrates. Por um lado, é, como o
sofista, um “feiticeiro da palavra”, cujos discursos seduzem, encantam, instauram perplexidade
na medida em que faz seus interlocutores perderem o senso de realidade e mergulhar no estupor.
Ele se dirige aos demais segundo a forma e as regras do discurso-diálogo secular, buscando o
consentimento através da demonstração e do argumento. Ele é aquele que está sempre a declarar
sua ignorância, e que está sempre questionando os supostos saberes dos demais, explicitando
suas contradições e precipitando-os em aporia. Um método por vezes muito próximo do
ceticismo e do relativismo epistemológico sofista, que fariam com que muitos de seus
contemporâneos o identificasse com aqueles. Este Sócrates nós conhecemos bem, e sua
continuidade temática e metodológica com o sofismo é clara.
Mas por outro lado, ele também parece ser, por vezes, como um daqueles homens
divinos carismáticos do mundo dos cultos dos mistérios: a voz sobrenatural de um daimon é
seu guia; divindades lhe aparecem em sonho para lhe revelar o futuro (Críton, 44a-b) ou

34
Conforme a interpretação que Platão deu a este dito no Teeteto (152a).
57
conduzí-lo a escrever poesia devocional aos deuses (Fédon, 60e-61b); ele experiencia estados
de êxtase. Como o coloca Festugière (1975, p. 69): “Sócrates orava. Sócrates tinha êxtases.
Sócrates seguramente fez a figura de um contemplativo. Todo um dia e toda uma noite,
insensível ao frio, à fome, nós o vemos concentrado em si mesmo, imóvel, de pé ”. Além disso,
sua atividade em meio aos cidadãos atenienses, sob a forma de questionamentos e diálogo, é
levada a cabo por ele como uma missão divina a ele atribuída pelo deus do Oráculo de Delphi
(Apologia, 29d).
Não por acaso, ele é também aquele que reivindica para si, à parte de suas confissões de
ignorância, um domínio de saber: a erótica, a educação do desejo que conduz à contemplação
(Banquete, 177d-e). É possível vê-lo em meio a uma mudança repentina de tonalidade, quando
Sócrates diz que está falando como que tomado por algo divino, de forma a deixar de lado o
discurso dialético e adotar um tom profético (Fedro, 238c-d) – fazendo-o herdeiro dos
adivinhos arcaicos. Com o olho da alma voltado à suprema beleza, ele a comunica a seus
companheiros, não como um homem, mas como algo “mais que humano” (Banquete, 221d).
Quem é Sócrates, portanto? Um sofista ou uma espécie de “xamã” (como o querem
alguns)? Estudando a figura de Sócrates que Platão construiu em seus diálogos, à luz do
contexto religioso de Atenas, Morgan (1990) sugere que é possível identificar nos diálogos um
Sócrates familiarizado com os novos ritos e cultos extáticos35, essa nova religiosidade mistérica
que visava a assimilação da alma ao divino, e cuja doutrina da imortalidade se traduz como um
comprometimento com a centralidade da alma na vida humana (ibid., p.29). E, ainda que não
seja o caso, é inegável o parentesco entre eles no que diz respeito à concepção da alma como o
próprio núcleo da pessoa, bem como a centralidade do seu cuidado numa vida verdadeiramente
piedosa. Além disso, Sócrates também teria assimilado a influência do pensamento sofista e a
prática da investigação racional. Porém, ele não se identifica com nenhum dos dois, e dá forma
a uma piedade filosófica própria que é, ao mesmo tempo, racional e extática (ibid., p. 30).
Certamente, qualquer que seja nossa concepção de Sócrates, ele é o paradigma mesmo
da filosofia e do logos. Sócrates representa uma virada metodológica na filosofia, introduzindo
uma forma pensar que é predominantemente reflexiva. Isto é, é a si mesmo, à própria alma
pensante, que a investigação filosófica se dirige. Neste sentido, ele representa uma continuidade
em relação aos sofistas na medida em que o homem continua sendo o objeto principal da

35
Morgan argumenta (1990, pp.23-29), seguindo Dodds, que Platão parece crer que Sócrates se familiarizou com
os ritos Coribânticos no período em que esteve fora da Grécia como soldado. Os ritos Coribânticos seriam afiliados
ao ritual dionisíaco (ibid., 29).
58
investigação. Ao mesmo tempo, porém, ele também é herdeiro dos mistérios na medida em que
identificará na alma a verdadeira identidade do homem, o seu verdadeiro si.
Voltar-se à alma significa voltar-se às forças que a movem, ao dinamismo que a dirige.
E o universo da alma, pelo qual ela se move e no qual ela vive, é o universo dos valores. Este
olhar revela que a alma é desejo, uma aspiração insaciável por aquilo que não deixaria mais
nada a ser desejado, e que é idêntico ao valor último. Aquilo a que tende a alma é sempre esse
valor absoluto, do qual todos os outros emanam. Essa tendência ou aspiração ao valor absoluto
é o próprio cerne da alma (GRIMALDI, 2006, pp. 12-13). E onde está este Bem do homem?
Ora, se ele é alma, é no bem da alma que Sócrates identificará o verdadeiro bem do homem,
contra aqueles valores externos aos quais o homem irrefletido se dedica. Aquele que possui o
princípio do Bem na interioridade da própria alma é o homem autárquico: livre e autossuficiente
em relação às contingências da vida, o homem que possui autodomínio. Esse amor pelo bem,
portanto, é um fator fundamental do legado Socrático, como o coloca Hadot (1999, pp. 62-63):
Parece que Sócrates admitiu implicitamente existir em todos os homens um desejo inato
do bem. É também nesse sentido que se apresentava como um simples parteiro, cujo
papel limitava-se a fazer que seus interlocutores descobrissem suas possibilidades
interiores. Compreende-se melhor, então, a significação do paradoxo socrático:
ninguém erra voluntariamente, ou ainda: a virtude é saber; ele quer dizer que, se o
homem comete o mal moral, é porque crê encontrar o bem, e se ele é virtuoso é que
sabe com toda a sua alma e todo seu ser onde está o verdadeiro bem. O papel do filósofo
consistirá em permitir a seu interlocutor ‘realizar’, no sentido mais forte da palavra, o
verdadeiro bem, o verdadeiro valor. No fundo do saber socrático, há amor do bem.
Para Sócrates, o exercício sedutor do logos também é, como para o sofista, uma ação
sobre o outro; mas contrário àquele, o fim dessa ação não é o mero poder, mas a therapeia
(GRIMALDI, 2006, p.8). Pois Sócrates é um curandeiro, que cura os males da alma através dos
seus discursos encantadores. E que é o mal que precisa ser curado, senão a ignorância? A
ignorância não sobre qualquer coisa em particular, mas sobre aquilo que é o fim a que toda a
alma tende, o Bem. E a alma é logos; conhecer-se a si mesmo, este ato reflexivo da filosofia,
também significa o logos se tornar objeto para si mesmo e cuidar de si. Como o coloca Grinaldi
(2006, p. 11), “essa inerência da verdade ao pensamento é a própria reflexão. É essa reflexão,
essa manifestação do pensamento a si mesmo, que Platão chama de logos e que nós traduzimos
por razão”. Ou seja, a lógica também será uma parte dessa disciplina socrática. No próprio logos
está imanente a verdade que ele procura em suas investigações. Não é outro o significado das
definições socráticas: uma investigação em que o objeto está no próprio logos.

59
Remover a ignorância, fazer brilhar na alma a luz da verdade, é algo capaz de
transformar uma pessoa por completo. A filosofia é, portanto, conversão. Naquele que se
converte para a filosofia ela se torna una consigo, de forma que o filósofo ensina não apenas
pela palavra mas também pela sua vida. Para Sócrates a virtude é saber, e saber é virtude. Ser
sábio e ser justo é a mesma coisa. Pois o que move a alma é sua tendência ao bem, e a distância
entre o vício e a virtude é a distância entre aquele que dirige o desejo pela opinião do que
aparentemente é o bem, e aquele que o dirige pelo conhecimento do que realmente é o bem. E
como não enxergar nessa identidade de virtude e saber o retorno à figura da antiga Alétheia, a
Verdade eficaz que é inseparável da Justiça, o discurso que é ação?
Conhece-te a ti mesmo e cuidado da alma são, portanto, os lemas da filosofia em
Sócrates. O primeiro indica esse caminho reflexivo do pensamento, e o cuidado de si significa
este exercício de tender ao bem da alma. E é nesse exercício contínuo que se dará o verdadeiro
filosofar:
[Em Sócrates está] a filosofia ininterrupta que se vê exercer a cada dia de uma maneira
perfeitamente igual a si mesma [...] Sócrates não prepara degraus para os ouvintes, não
se firma sobre uma tribuna professoral; ele não tem horário fixo para discutir ou para
passear com seus discípulos. Mas é algumas vezes gracejando com aqueles, ou bebendo
ou indo à guerra ou à ágora com esses, e finalmente indo para a prisão e bebendo o
veneno, que ele filosofou. Ele foi o primeiro a mostrar que, em todos os tempos e em
todos os lugares, em tudo o que nos chega e em tudo o que fazemos, a vida cotidiana dá
a possibilidade de filosofar. (PLUTARCO, apud Hadot, 1999, p. 68).
É a partir desta perspectiva, este resgate da arcaica Verdade como eficácia (nesse caso, a
virtude), em meio a um logos dialógico argumentativo, que o impulso dado à filosofia por
Sócrates precisa ser considerado. Pierre Hadot (1999, p. 20), em seus estudos sobre o período
helenístico da filosofia antiga, aponta que, depois de Sócrates, a opção existencial da escolha
da vida filosófica se situa no princípio, e não no fim, do discurso filosófico. Isto é, a filosofia
tem sua origem em uma tal escolha, e não o contrário. Implicado nesta opção de vida, há uma
visão de mundo que caberá ao pensamento filosófico revelar, desenvolver e justificar, de tal
forma que a razão conceba e realize um ideal de vida36.
O significado disto é que é preciso reconhecer na aspiração humana, que se dirige ao
bem como alguma concepção do seu fim último ou felicidade, o coração e a dinâmica de todo
o pensamento e a vida do filósofo. Uma filosofia precisa ser entendida a partir da aspiração que

36
Poder-se-ia, quiçá justificadamente, criticar a tese de Hadot como sendo demasiada abrangente e generalizante.
É melhor toma-la como um reconhecimento de características que certas escolas e filósofos socráticos
apresentavam. Mas não necessariamente todos: é questionável, por exemplo, em que medida Aristóteles e os
peripatéticos se encaixavam nessa tese.
60
a anima; ela não é apenas o edifício teórico que ela constrói em sua tentativa de compreender
seu mundo. Antes, ela é aquela disciplina do saber que examina e revela a aspiração
fundamental do homem, buscando situá-la no todo, e este é o ponto de partida do seu
pensamento.
Uma vez que tal opção é feita, emerge a realidade da filosofia em sua dupla constituição:
ela é, inseparavelmente, discurso37 e modo de vida. Nas palavras de Hadot (1999, p. 251), “não
há discurso que mereça ser denominado filosófico se está separado da vida filosófica; não há
vida filosófica se não está estreitamente vinculada ao discurso filosófico”. E não se trata, aqui,
de separar discurso e modo de vida, como se um fosse externo ao outro, criando uma dicotomia
entre o teórico e o prático. O discurso é constituinte do modo de vida, e o modo de vida toma,
frequentemente, a forma de uma vida teorética ou contemplativa.
Em um primeiro momento, o discurso filosófico parece emanar da necessidade de
fundar racionalmente uma escolha de vida. Ele aparece, portanto, como um esforço de
conceitualização, no qual são articulados os pressupostos, as implicações, as consequências e
os fundamentos teóricos desta atitude existencial. É preciso investigar o lugar do homem no
mundo, do qual depende sua atitude em relação a este, e assim fundar uma física. É preciso
investigar o homem em suas disposições à ação, suas relações com seus semelhantes, e pensar
uma ética. É preciso investigar as regras do raciocínio, a fim de estabelecer sua
comensurabilidade (ou falta de) ao Ser, e assim aprender a pensar corretamente de acordo com
uma lógica e teoria do conhecimento, para que o discurso seja assim fundado na verdade. Mas
isso não é tudo.
O discurso filosófico também é um meio de ação sobre si mesmo e sobre o outro, dotado
do poder de produzir um efeito educador, terapêutico; em suma, ele é um poder transformador.
Como o colocou Plutarco: “o discurso filosófico não esculpe estátuas imóveis, mas tudo o que
toca, ele o quer tornar ativo, eficaz e vivo, ele inspira impulsos motores, juízos geradores de
atos úteis, escolhas em favor do bem...” (apud Hadot, 1999, p. 254). O discurso não é nunca
apenas representação da realidade, existindo à parte da vida. Ele é uma força psukhagógica,
uma arte de guiar as almas pelo melhor caminho.
Por fim, o discurso filosófico não pode ser entendido como meras fórmulas recebidas
de uma vez por todas. Antes, trata-se de um discurso que precisa ser continuamente revisitado,
reformulado para si, em um constante exercício de lembrar-se e de colocar-se diante da razão,

37
Sobre isso, Hadot (1999, p.20) clarifica: “Para ser claro, devo especificar que entendo a palavra ‘discurso’ no
sentido filosófico de ‘pensamento discursivo’ expresso na linguagem escrita ou oral, e não no sentido disseminado
em nossos dias, de ‘maneira de falar que revela uma atitude’ (‘discurso racista’, por exemplo) ”.
61
da verdade e do bem. O discurso filosófico constitui, em si mesmo, um dos exercícios que
compõem o modo de vida filosófico. Nesta perspectiva, evidencia-se o caráter vivo e
transformador das disciplinas teóricas da filosofia. No estoicismo, por exemplo, a lógica emerge
como uma disciplina dos nossos juízos diante da vida; a ética, como uma disciplina das nossas
tendências à ação diante da comunidade de seres racionais; a física como uma disciplina dos
nossos desejos e aversões – o que implica uma certa compreensão da ordem do mundo e do
lugar do homem nesta.
Aqui encontramos um conceito fundamental da apresentação da Filosofia Antiga na
obra de Hadot: os exercícios espirituais (askesis). É preciso ressaltar a origem do termo em
questão: o uso da palavra askesis na filosofia, segundo Hadot (1999, p. 272), advém do ideal
do atletismo e da prática habitual da cultura física nos ginásios. A analogia é clara: assim como
através dos repetidos exercícios físicos nos ginásios os atletas desenvolviam, fortaleciam e
davam forma a seus corpos, assim também o constante exercício da filosofia fortalece a alma e
transforma o eu. Hadot assim define os exercícios espirituais que constituiriam a filosofia:
Designo por esse termo as práticas, que podem ser de ordem física, como o regime
alimentar; discursiva, como o diálogo e a meditação; ou intuitiva, como a contemplação,
mas que são todas destinadas a operar modificação e transformação no sujeito que as
pratica. O discurso do professor de filosofia pode, ademais, tomar a forma de um
exercício espiritual, à medida que esse discurso se apresente sob uma forma tal que o
discípulo, do mesmo modo que o ouvinte, o leitor ou o interlocutor, possa progredir
espiritualmente e transformar-se interiormente (HADOT, 1999, p. 21).
É exatamente sob esta concepção que se unificarão as diferentes dimensões da filosofia.
Ou seja, em sua dimensão discursiva ou no modo de vida, filosofia é exercício espiritual. Aqui,
a teoria e a prática são ambos exercícios, que se diferenciam entre si apenas segundo seu grau
de sutileza, sendo apenas dois estágios de um mesmo exercício contínuo. Evidencia-se assim,
nesta inseparabilidade, que o modo de vida não é meramente a adoção de um comportamento
específico, mas é um exercício de efetivação em si, no pensamento e na vida, da verdade
filosófica: o esforço de encarnar a filosofia no ser do filósofo. E é só por esta razão que a
filosofia pode clamar para si alguma participação na sabedoria – que é exatamente o
rompimento da cisão entre o saber teórico e o saber prático, no sentido mais amplo.

62
2 A FILOSOFIA EM PLATÃO COMO CONDUÇÃO DA ALMA (PSUKHAGOGIA)
AO DIVINO

Se estas características até aqui exploradas são verdadeiras para a filosofia depois de
Sócrates em geral, que Hadot identifica com o impulso que ele imprimiu sobre a filosofia, quais
são as características próprias a Platão e a tradição platônica que dele emana, e que
fundamentarão sua paideia filosófica, seus exercícios espirituais e modo de vida?

2.1 A herança socrática

No diálogo Alcibíades I38, Platão nos apresenta um jovem Alcibíades bastante orgulhoso
de si, devido à sua riqueza, suas influentes relações, sua beleza física. Tomado deste orgulho,
ele se dirige à ágora onde ele pretende ascender ao poder político, graças a seus dotes
extraordinários, e desta forma alcançar grande influência e fama. Enquanto ele caminhava,
Sócrates se aproxima dele e inicia um diálogo. Ao longo deste, Sócrates começa a demonstrar
que, para que o jovem pudesse realizar essas ambições, seria necessário possuir o conhecimento
daquilo que faz um bom governante: a justiça e a injustiça – um conhecimento que o jovem
ignorava, como Sócrates, através de seus questionamentos, lhe evidencia. Uma vez que o jovem
começa a ficar consciente de sua própria ignorância, fica bastante desconcertado e desorientado:
“pelos deuses, Sócrates, já não sei o que falo; encontro-me numa situação esquisita; quando me
interrogas, ora sou de uma opinião, ora de outra” (Alcibíades I, 116e), e ainda, “é bem possível
que eu esteja já há muito tempo nesse estado de ignorância, sem aperceber-me disso”
(Alcibíades I, 127d). Ele já não sabe mais o que pensar, encontra-se em estado de estupor.
Neste momento, Sócrates lhe introduz o tema do cuidado de si. Cuidar de algo significa
atuar sobre este algo de forma a torná-lo melhor, ou, como diz Sócrates no Eutifron (13b), é
“ter como objetivo o bem daquilo que é cuidado”; é necessário que Alcibíades cuide de si
mesmo, se ele quer encontrar a realização de suas ambições. E como é possível cuidar de si,
quando não se conhece a este si do qual se deve cuidar? A ignorância de quem nós realmente
somos torna este cuidado impossível. Frequentemente acreditamos estar cuidando de si quando

38
Alguns estudiosos modernos questionam a autenticidade da atribuição da autoria deste diálogo a Platão. Porém,
esta dúvida não ocorreu aos antigos, o que torna o diálogo autenticamente platônico ao menos segundo a
efetividade de sua influência histórica.
63
na verdade cuidamos apenas daquilo que nos pertence, pois quem nós somos e aquilo que nos
pertence são coisas distintas. Percebe-se, portanto, Sócrates demolindo em Alcibíades o seu
pretenso conhecimento de si e o que lhe causava orgulho, ao reorientar o seu senso de
identidade, uma vez que não somos aquilo que possuímos. E assim, se mesmo o nosso corpo é
apenas algo que possuímos e que usamos como instrumento, e não nós mesmos, quem somos?
Sócrates rejeita a tese de que somos o conjunto de corpo e alma, e afirma que somos a alma
apenas – que é nossa verdadeira identidade. Conhecer-nos como alma é o que nos permite o
verdadeiro cuidado de si. Dessa forma Sócrates conduz Alcibíades a uma iniciação na filosofia,
isto é, ao conhecimento de si e ao cuidado de si.
A mensagem socrática do diálogo é inegável: “Aquele que conhece a si mesmo coloca
os bens da alma acima dos bens do corpo. Aquele que possui esse conhecimento é temperante,
pois é mestre de seus desejos e de suas paixões” (EUZEBIO e AFONSO, 2017, p. 95).
Conhecimento de si é o caminho da reversão da alma sobre si mesma, e é também o caminho
do domínio de si (sophrosúne). Moralmente, isso significa buscar a felicidade, a coincidência
com o Bem, em si mesma, na sua essência que se realiza como virtude; pois onde está o nosso
ser, lá deve estar o nosso bem-ser. A busca da alma pelo bem-ser é voltada desde os bens
externos, e os valores a eles atrelados, à interioridade, em uma profunda reversão dos valores.
Intelectualmente, voltar-se sobre si, para Platão, também significa a reminiscência, a busca do
verdadeiro saber que é aquele presente à essência da alma.
Sócrates apresenta ainda uma importante metáfora (132d-e) a fim de explicar como é
possível o autoconhecimento: se disséssemos a um olho que conhecesse a si mesmo, a maneira
pela qual ele poderia fazê-lo seria dirigindo-se a algum objeto que exiba o seu reflexo, e assim,
através do reflexo, ele poderia identificar-se. Sócrates então diz que a pupila do olho de uma
outra pessoa, que é o locus por excelência da virtude da visão, funciona como um espelho, em
cujo reflexo o olho se vê. De forma análoga, se a alma quiser conhecer a si mesma, o caminho
é olhar para a alma de um outro, especificamente na parte em que reside a virtude específica da
alma, a que mais se aparenta ao divino, isto é, a inteligência (133b-c). É preciso que a alma
consiga se reconhecer na parte divina da alma do outro39, vendo nela a si mesmo como um
reflexo. Aquele que percebe o divino na inteligência, a “divindade da melhor parte de nossa
alma” que “é mais pura e mais luminosa”, esse alcança o verdadeiro autoconhecimento, que é
a sabedoria (Alcibíades I, 133b-c). Mais além, Sócrates (133c8-17)40 sugere que um refletor

39
Este ponto diz respeito à importante relação de mestre e discípulo, que retomaremos adiante.
40
Este trecho é muitas vezes omitido em várias edições do diálogo, como se fosse uma interpolação posterior, mas
sigo aqui Guthrie (1971, p. 154n) que defende a sua validade.
64
ainda mais claro, puro e brilhante do que a parte divina de outra alma é a própria Divindade:
voltar o olho da alma ao espelho do Divino é o meio mais perfeito de conhecer-se a si mesma.
A dimensão piedosa do diálogo se evidencia aqui: “Conhecer-se significa conhecer a alma e,
na alma, o deus” (EUZEBIO e AFONSO, 2017, p. 101).
Também no Fedro encontramos esta mesma questão do autoconhecimento. Em um
momento em que o jovem Fedro pergunta a Sócrates sua opinião sobre a veracidade de certas
figuras míticas, ele lhe responde que aceita a opinião comum sobre o assunto, mas não volta
sua atenção a elas, pois:
... até agora não fui capaz de conhecer-me a mim mesmo, conforme aquilo do oráculo
de Delfos, donde parecer-me ridículo estudar coisas estranhas antes de saber o que sou.
Por isso, [...] em lugar de investigar essas coisas, cuido apenas de examinar-me. Quero
saber se sou algum monstro mais complexo e cheio de fumo do que Tífon, ou algum ser
delicado e simples, que, por natureza, participe de um destino de algum modo mais
divino e sem fumos de qualquer espécie (Fedro, 229e-230a).
O que aqui se evidencia, tendo em luz as discussões anteriores sobre a religiosidade
mistérica, é a questão órfica da dualidade titã-deus que emerge como fundamental para o
autoconhecimento socrático. Ser um monstro complexo, neste contexto, aparece claramente
associado à compreensão órfico-pitagórica do corpo como descendente dos titãs, de natureza
material, ou seja, complexa; a alternativa, aqui, parece indicar a alma, cuja natureza é espiritual
(simples), e miticamente associada a Dionísio. Em outras palavras, Sócrates se pergunta se ele
é corpo ou alma, a mesma pergunta que também havia sido feita no Alcibíades I.
Também a dimensão piedosa se sugere aqui. Fedro perguntava a Sócrates a respeito de
entidades monstruosas e divinas da mitologia, e Sócrates diz não se preocupar com elas, mas
com o autoconhecimento, através do qual ele procura distinguir as naturezas titânica e divina
tal como elas emergem em si mesmo. Conhecer o divino (e o titânico) em si é a verdadeira via
para conhecer a deus (e os titãs).
Em ambos os diálogos, o conhecimento de si aparece associado com um cuidado de si,
uma ascese filosófica que consiste em voltar-se para si e descobrir-se distinto daquilo que se
pensava ser, encontrar o verdadeiro eu. Este processo, em ambos os casos, está alinhado
intimamente com o domínio de si: o movimento fundamental é o poder de desligar-se dos
desejos, apetites, objetos de cobiça e superar o estado de identificação com esses. É recusar se
confundir com eles, elevar-se do ponto de vista parcial ao universal.
Não por acaso, Platão definiu a filosofia como um exercício para a morte (Fédon, 64a),
pois esta é a separação da alma e do corpo (Fédon, 64c), isto é, do eu espiritual verdadeiro de

65
tudo aquilo que lhe é acrescido desde a contingência exterior – como na imagem de Glauco, o
deus marinho cuja natureza verdadeira está coberta de conchas, algas e seixos (República,
611d). Como diz Platão, para conhecer o que a alma é de verdade, “não devemos examiná-la
deteriorada pela união com o corpo e outros males, que é como atualmente a vemos, mas tal
como ela fica depois de purificada, é assim que devemos observá-la cuidadosamente pela razão,
e então acharemos que ela é muito mais bela” (ibid.). Pensar-se na morte é pensar-se na
atemporalidade do Ser, a verdade nativa de quem somos. E ao assim fazer, descobrimos que a
alma:
... é aparentada com o divino, o imortal e o eterno, e para aquilo em que se tornaria, se
se voltasse toda para coisas dessa natureza, e se, arrebatada por esse impulso, saísse do
mar em que se encontra atualmente, arrancando seixos e conchas – as numerosas e
selvagens excrescências de terra e pedra que, em consequência destes festins bem-
aventurados, como lhes chamam, nasceram em volta dela no seu estado atual, porque é
de terra que ela se banqueteia. Então ver-se-ia a sua verdadeira natureza... (República,
611e).
Este exercício de atenção a si mesmo (prosokhé) parte da “tomada de consciência do
estado de alienação, de dispersão, de infelicidade, no qual alguém se encontra antes de
converter-se à filosofia” (HADOT, 1999, p. 285). Por esta razão, este conhecimento de si é
existencial e também ético, pois transforma a maneira de ser daquele que o cultiva. Ele informa
toda uma maneira de vida, o que viria a tomar diferentes formas no período helenístico: práticas
que, nas diferentes escolas, vão desde a renúncia aos prazeres dos sentidos e a adoção de certos
regimes alimentares, a atitude de encarar com equanimidade e resistência as privações da vida,
a retificação dos juízos dos objetos de experiência ou mesmo a suspensão de todo o juízo, até a
limitação dos desejos a fim de se chegar ao prazer puro de existir.
De qualquer maneira, é importante notar como as palavras de Sócrates no Fedro inserem
o diálogo neste contexto dos exercícios de concentração sobre si e a consideração da sua
natureza divina originária. É considerando a alma como ela é à parte da sua união com o corpo
que este exercício pode se realizar, e é isso que o mito do Fedro considerará ao descrever a
existência pré-natal da alma. De fato, é perguntando-se sobre a natureza da alma que Sócrates
iniciará a narrativa mítica do diálogo, introduzindo-a ao dizer que “o que, realmente, ela [a
alma] é, é assunto de todo o modo divino, que exigiria largas explanações; mas irá bem uma
imagem em nosso linguajar humano e de recursos limitados” (246a).
Desta forma, Sócrates realiza o seu exercício de pensa-la em sua condição originária
através de um discurso “que atinge as raias da poesia” (257a). A alma, ele diz, é como um carro
dotado de dois cavalos alados e um cocheiro, e que viaja pelas revoluções celestes ao lado dos
66
deuses e dos daimons, de tempos em tempos elevando-se até o topo e limite do céu, de onde o
intelecto puro é capaz de contemplar a Planície de Alêtheia, a realidade que está além do céu,
o “mundo das ideias”41. Esta percepção da realidade é o banquete dos deuses, os quais se nutrem
“com delícias da contemplação da verdade” (247d), e também nós nutrimos a porção mais nobre
e as asas de nossa alma com inteligência e conhecimento a partir desta visão supraceleste. A
realidade, “sem cor e sem forma, impalpável”, que não pode ser descrita nem pela linguagem
da filosofia nem pela poesia; contemplando-a, éramos os verdadeiros iniciados nos Mistérios,
pois:
... gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com
toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da
perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar
sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos
deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos
aprisionados como a ostra em sua casca (250b-c).
Porém, nossos cavalos alados não são da mesma qualidade que aqueles dos deuses, e
frequentemente o cocheiro encontra dificuldades em elevar sua carruagem àquela contemplação
supraceleste. Por esta razão, algumas almas contemplam a Planície de Alêtheia mais do que
outras, e algumas nem sequer conseguem contemplá-la de maneira alguma. Estas últimas,
acabam por alimentar-se somente da opinião (doxa), fazendo com que as asas da alma murchem
e pereçam, e, sendo tomadas de esquecimento, caem no chão e se apossam de um corpo de
terra. Não mais essas almas existem em si mesmas, imortais e celestes, mas como uma
composição psicossomática (de corpo e alma) que é um animal mortal (246c). A alma caída é
como um prisioneiro acorrentado no fundo de uma caverna, e só vê sombras ou aparências do
Real (República, 514a-c); esta vida mortal é, propriamente, uma outra Planície, a de Lêthe42,
onde tomamos da água do esquecimento (República, 621a). A íntima associação de estados
escatológicos e os estados cognitivos de Memória e Esquecimento, que já havíamos visto no
contexto órfico-pitagórico, se mantém aqui:
Na teoria platônica do conhecimento, a oposição entre Planície de Alêtheia e
Planície de Lêthe traduz no plano mítico a oposição entre o ato de anámnesis,
que é a evasão para fora do tempo, a revelação do Ser imutável e eterno, e a
culpa de Lêthe, que é a ignorância humana e o esquecimento das verdades
eternas. (DETIENNE, 2013, pp. 136-137).

41
É preciso ressaltar o caráter metafórico desta expressão, e lembrar o leitor que Platão não a cunhou. “Mundo das
ideias” (kosmos noetos) é uma expressão originada posteriormente por Fílon de Alexandria.
42
Esta caracterização da Planície de Lêthe, em oposição à Planície de Alêtheia, foi sugerida por Proclo (In Remp.,
XVI, 346).
67
Temos no mito do Fedro, portanto, uma clara alusão à distinção arcaica entre o saber
divino e o saber humano. A contemplação da Planície de Alêtheia é o saber divino por
excelência, a visão da qual assegura aos próprios deuses a sua divindade (Fedro, 249c). Do
outro lado está o saber humano, a doxa, o esquecimento, que corresponde a um domínio
metafísico distinto. De fato, a proximidade deste mito ao prelúdio do poema de Parmênides é
notável, já a partir da utilização, em ambos, da imagem do carro celeste que conduz a alma ao
mundo onde habitam os deuses. Assim como Parmênides delineou o caráter sagrado e divino
do recinto celeste de Alétheia, onde fora iniciado no conhecimento do Ser, também Platão
identificou um domínio sagrado do Ser, exclusivo aos iniciados e restrito aos profanos, “uma
espécie de hieros kai theios topos philosophikos, o paraíso perdido do ser, pelo qual as almas
puras, boas e sábias lutam por voltar a contemplar” (BORDOY, 2016, p. 17). Como o poema
de Parmênides, o mito do Fedro delineia a distinção metafísica entre o domínio divino do Ser e
da Alêtheia contra o domínio humano e mortal da doxa: a ambiguidade de peithô, que é “alêthes
e pseudês” (Teeteto, 194b), o mundo da contingência, das coisas que nascem e perecem.
Logo, esta queda da alma ao mundo mortal constitui uma jornada escatológica por
excelência, movida pelo desejo de retornar à sua morada celeste, a “pungente saudade do
passado” que nos leva a esse exercício de devanear sobre a nossa existência pré-natal (Fedro,
250d). O mito supõe um ciclo de transmigrações a que a alma caída é submetida, de duração de
dez mil anos, no qual ela toma corpos terrenos diversas vezes, passando por existências
infernais ou celestiais intermediárias entre uma encarnação e outra (249a-b)43. A qualidade e a
natureza da existência da alma, em suas diversas encarnações e nos períodos intermediários,
dependem da sua virtude e sabedoria, a prática da justiça e da injustiça (248d-e). Aquelas almas,
porém, que são mais agraciadas com a lembrança da sua contemplação do Ser, essas são
tomadas pelo amor e o desejo do retorno à morada originária, e assim, começam a filosofar,
isto é, se absorvem no pensamento do Ser e esquecem tudo sobre o mundo terreno do devir:
“Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas divinas, geralmente passa por
louco, pois o vulgo não percebe que ele é inspirado” (Fedro, 248c-d).

43
Apesar de expressa de forma mítica, a crença platônica na metempsukhosis não é meramente literária e constitui
uma dimensão importante do seu pensamento. Segundo Rogue (2005, p. 66-n): “Longe de ser um ponto de doutrina
anedótico, a metempsicose atesta, ao contrário, a força do idealismo de Platão: só o inteligível possui o ser em
grau supremo, e a alma, que lhe é aparentada, deve unir-se à sua perfeição purificando-se, sem cessar, mais no
curso de sua carreira imortal. [...] é possível, através da sucessão de vidas, aproximar-se sempre mais do logos
verdadeiro, ajustar sempre mais a sua alma à ordem natural”. Bussanich (2013, p. 243) diz que a metempsicose é
um aspecto indispensável da imortalidade da alma, que, junto à teoria das ideias, constitui os “pilares gêmeos do
Platonismo”; além disso, ele menciona que nenhum platonista pagão na Antiguidade a rejeitou.
68
A filosofia, portanto, é uma atividade “salvífica”, que tem por fim conduzir-nos de volta
ao banquete dos deuses na Planície de Alêtheia – o que significa tanto um estado cognitivo, a
contemplação do Ser, quanto um estado metafísico e escatológico. É nestes termos que o médio-
platônico Plutarco (apud DETIENNE, 2013, p. 135) descreverá a razão de ser da filosofia, em
sua descrição da Planície de Alêtheia:
É lá que jazem, imóveis, princípios, formas, modelos do que foi e de tudo o que será.
Em torno desses tipos está a eternidade da qual o tempo escapa como um fluxo,
dirigindo-se para os mundos. Tudo isso pode ser visto e contemplado uma vez a cada
dez mil anos pelas almas humanas que tenham vivido bem; e as melhores iniciações
desta terra nada mais são que reflexo daquela iniciação e daquela revelação. Os
colóquios filosóficos têm por razão trazer-nos de volta à memória os belos espetáculos
de lá, ou então de nada servem.
O ponto central aqui é que a filosofia precisa dirigir o olhar da alma ao autenticamente
real, pois ela é um olho que assume a natureza do objeto a que se volta:
E a alma é como o olho: quando ela se fixa naquilo que é iluminado pela verdade e pelo
Ser, ela percebe e entende e está radiante com a inteligência; mas quando se volta àquilo
no qual se misturam as trevas, que nasce e morre, então ela só tem opiniões, vê mal,
alterando o seu parecer de alto a baixo, e parece já não ter inteligência. (República,
508d)
Retomando a metáfora do conhecimento de si como o olho que vê a si mesmo no reflexo
do espelho, poder-se-ia compreender o drama da alma no Fedro como um drama intimamente
aparentado ao do autoconhecimento (ou falta dele): aquela alma que continua a fixar o seu olhar
no Ser, segue incorpórea, voando pelos céus e banqueteando junto com os deuses, pois vê a sua
verdadeira divindade refletida no seu objeto supremo de contemplação e assim possui
verdadeiro autoconhecimento; enquanto que aquela cujo olhar se desvia dali em direção ao
domínio do contingente, passaria a possuir uma apreensão errônea de sua própria natureza, e
assim se precipitaria à existência corpórea.
Através da metáfora do olho e do reflexo de si, é possível conciliar dois métodos
filosóficos e dois caminhos de exercícios espirituais da filosofia antiga. Por um lado, a via
reflexiva, cujo exercício consiste na concentração sobre o eu, o exercício da morte e a
consciência de si; por outro, a visão a partir do alto, a expansão de si no todo, no cosmos e na
cidade. Estas duas vias não são, portanto, rivais, pois uma sempre termina por se encontrar na
outra. Voltar o olhar da alma para o verdadeiro fora de si é reconhecer o verdadeiro em si, por
reflexo; voltar-se ao verdadeiro em si nos permite conhecer o verdadeiro fora, através da
máxima epistemológica de que “o semelhante conhece o semelhante”.

69
Uma importante passagem do Timeu (90b-d) exemplifica esta unidade, onde Platão
indica que o aprendizado acerca das harmonias e revoluções do universo (astronomia?) corrige
as revoluções da nossa própria inteligência, restaurando-a à sua condição harmônica originária;
assim, cultivando na alma pensamentos que apreendem a verdade, a parte divina e imortal da
alma é alimentada. É desta forma que a alma pode participar, na medida do possível, da
imortalidade, e portanto ser sumamente feliz, tendo “finalmente alcançado aquele propósito da
vida que é estabelecida pelos deuses aos seres humanos como a mais excelente”.
Assim, a filosofia platônica abarca tanto a via reflexiva, socrática, quanto a via
expansiva pré-socrática, adotando também o exercício filosófico da expansão do eu na
totalidade do mundo e da natureza, que consiste, como o colocou Platão, no ato de a alma
“tender incessantemente a abraçar, em seu conjunto e em sua totalidade, as coisas divinas e as
humanas”, “contemplar a totalidade do tempo e a totalidade do Ser” (República, 486a). Para
este fim, esta aspiração à visão do todo, também se dirigia o olhar contemplativo do filósofo.
Ele se expandia pelo todo, ou percebia esse todo presente a ele intimamente em cada momento.
Em suma, este caminho de exercício filosófico consiste em elevar a alma à visão do alto, a partir
da qual ele pode enxergar cada coisa em sua correta relação com o todo, de tal modo a chegar
a um perfeito acordo da alma com o mundo e a sabedoria que o rege. Tais exercícios libertam
a alma de toda mesquinhez e do apego às coisas daqui debaixo (Teeteto, 173e), nos elevam da
terra à presença dos deuses, de cuja ambrosia nos fartamos” (PTOLOMEU, apud Hadot, 1999,
p. 294). Mas, como é importante aqui ressaltar, também conduz ao autoconhecimento, uma vez
que a contemplação da ordem divina do todo nos permite ver o reflexo da própria ordem divina
da alma, e assim alcançar o autoconhecimento verdadeiro, o conhecimento da parte divina de
nós mesmos.
De fato, a própria aspiração platônica da contemplação do Ser inteligível (movimento
expansivo) também parte de uma consideração sobre a natureza do logos (movimento
reflexivo). A presença, na alma imersa no mundo sensível, de uma tal estrutura
intencionalmente voltada ao Verdadeiro, só pode ser explicada como possuindo uma origem
transcendente (LIMA VAZ, 2011, pp. 24-25). De fato, além de afirmar-se conhecedor das artes
eróticas (Banquete, 177d-e), a única outra afirmação de certeza de Sócrates é que a opinião é
diferente do conhecimento (Meno, 98b), e este conhecimento de si nos leva a compreender a
natureza dos objetos transcendentes do verdadeiro conhecimento:
Se inteligência e opinião são dois gêneros diversos, então existem verdadeiramente
essas realidades em si, formas que não podemos captar com os sentidos, mas só com a
inteligência. [...] Se assim é, é necessário admitir que há uma forma de realidade que
70
sempre é da mesma maneira, que não nasce nem perece, que não recebe em si algo
vindo de fora nem ela mesma passa para outra coisa, invisível nem podendo ser captada
com outro sentido. E foi essa realidade que coube à inteligência contemplar. E também
é preciso admitir que, homônima e semelhante a essa realidade há uma outra sensível,
que nasce e continuamente se move, que se origina num lugar e dali mesmo desaparece.
Ela é apreendida pela opinião acompanhada de sensação. (Timeu, 51b-52a)
Contudo, a alma não é apenas inteligência. O primeiro grande mistério que o olhar
reflexivo sobre si revela é a nossa condição de profunda alienação, a ânsia profunda por algo
que não podemos nomear e que é como uma sede insaciável. Como o coloca Grimaldi (2006,
p.12), “O primeiro paradoxo da alma humana é, com efeito, o de que ela se conhece como
desejo sem saber o que deseja” (GRIMALDI, 2006, p.12). Estamos, aqui, diante do mistério do
eros. De fato, o Fedro descreverá a natureza da alma como autokínesis, aquilo que move a si
mesma ao invés de ser movida por algo outro44. Só a alma é capaz de mover a si mesma, e
portanto mover todas as outras coisas, e como diz Cornford (1952, p. 80), esta definição, dentro
do contexto do diálogo, parece implicar que “a força motora da alma é o desejo”.
É importante ressaltar aqui que eros não se confunde com epithumia (apetite), uma vez
que esta última é uma afecção, algo de natureza passiva e que é privada, exatamente, de
movimento próprio (Timeu 77b-c); isto é, ela é movida desde o exterior, pelos objetos dos
sentidos (cores, formas, sons, cheiros, etc). O eros, por outro lado, representa uma potência
mais profunda, ativa ao invés de passiva, e cujo objeto não é meramente sensível: ele é a
aspiração existencial fundamental da alma. A que, portanto, ele se dirige? Em uma passagem
muito significativa do Banquete (192c-d), Platão indica o caráter indeterminado do desejo
erótico:
Os [amantes] que passam a vida inteira juntos [...] não sabem nem ao menos
dizer o que desejam obter um do outro. De fato, não seria pelo prazer do amor
que os amantes ficariam juntos com um apego tão grande. Mas é evidente que
a alma de cada um deseja algo que não sabe definir, e contudo pressagia aquilo
que quer e o diz por enigmas. (Minha ênfase)
É notável, aqui, a maneira como este desejo da alma é descrito com uma linguagem
emprestada do vocabulário dos adivinhos, isto é, o desejo aparece como uma espécie de
adivinhação. O eros é capaz de pressagiar e dizer por enigmas algo que escapa ao conhecimento
da alma. Aristófanes, a personagem de Platão responsável por estas palavras, sugere, então, que
aquilo que a alma realmente deseja, mesmo sem sabê-lo, é unir-se eternamente à sua outra

44
Este é um conceito importantíssimo para este trabalho, que será retomado e aprofundado no quarto capítulo.
71
metade, a sua alma gêmea – pois a condição originária da alma, segundo ele, é um estado em
que essas duas almas-metade não existem separadas. É relevante que Aristófanes já atribua ao
eros um impulso pela condição originária da alma, mas a sua orientação ainda permanece
horizontal. Posteriormente no diálogo (205e-206a), a sacerdotisa Diotima reinterpreta o objeto
último do eros, dirigindo-o a um eixo vertical que nos liga à transcendência: não é a alma-
metade que amamos ou desejamos fundamentalmente, não é a uma totalidade que resulta da
junção de partes a que aspiramos; estaríamos dispostos mesmo a cortar nossos pés e mãos fora
se eles nos parecessem maus, pois a única coisa que amamos realmente é ao Bem. Ele é o valor
último a que tudo aspira, pois “tudo aquilo que possui dele alguma noção o busca, o deseja,
quer apanhá-lo e dele apossar-se e não tem nenhum interesse em nada em que o bem não esteja
presente” (Filebo, 20d); ele é “aquilo por cuja causa tudo é feito; deve ser considerado, assim,
o fim de todas as nossas ações” (LIMA VAZ, 2012, p. 201). O que a alma realmente deseja é
que o Bem lhe pertença para sempre – o que implica que desejamos a imortalidade (Banquete,
207a).
O significado desta passagem foi bem capturado por Grimaldi (2006, p.12), que diz que
“a alma possui sua verdade no desejo e como o desejo possui sua verdade naquilo-que-não-
deixaria-mais-nada-a-ser-desejado, pode-se pressentir que a alma possui sua verdade para além
de toda temporalidade, para além deste mundo, em uma aspiração e em uma destinação
metafísicas”. O eros é uma espécie de oráculo interno que profetiza o Bem, a finalidade última,
e nos dirige a ele. Mesmo no mais profundo estado de esquecimento em que nossa existência
encarnada se move, há sempre presente este oráculo sagrado – essa profunda nostalgia pelas
origens, que nos impede de esquecer completamente, e que eventualmente nos despertará a
Memória.
O que é, porém, esse Bem ao qual o eros nos dirige? Seria ele idêntico àquilo que a alma
contemplava, através do intelecto, na Planície de Alêtheia antes da sua queda no corpo?
Segundo o princípio de “semelhante conhece semelhante”, o fato de que o intelecto
contemplava o Ser ali significa que o Ser é da mesma natureza do intelecto; ao contrário de
Parmênides, porém, o Ser platônico não é uma unidade pura, mas um uno-múltiplo que implica
em si uma pluralidade de formas ou Ideias. E quando o olho da alma se volta a esta Planície de
Alêtheia, é só acima de todas as Ideias, no limite do cognoscível, a muito custo, que se vê a
ideia do Bem (República, 517 b-c), “e uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a
causa de quanto há de justo e belo; que ela produz tanto a luz quanto a sua causa [o Sol] no
mundo visível; e que, no mundo inteligível [a Planície de Alêtheia] é ela que concede verdade

72
e inteligência, das quais é senhora”, ela é que transmite a verdade aos objetos cognoscíveis [as
Ideas] e o poder de conhecer ao sujeito (508e), e, mais ainda, lhes concede a própria essência,
“apesar de o Bem não ser uma essência, mas estar acima e para além da essência, pela sua
dignidade e poder” (509b). Pois, como Platão indicou no Fédon (99b-d), a inteligência é
estruturalmente ordenada ao melhor; é no Bem que ela encontra sua razão de ser.
A alma se dirige à contemplação da Planície de Alêtheia com muito desejo e nostalgia,
mas o Bem é ainda mais belo que o saber e a verdade que ali encontra (República, 508e). Pois,
de fato, é só pela sua conexão com o Bem que a Justiça e tudo o mais [as Ideias] se tornam
valiosas, desejáveis, de forma que se a tudo conhecêssemos mas não conhecêssemos o Bem, de
nada nos serviria (505a). É, portanto, na medida em que as Ideias são “boniformes”
(agathoeides) que elas são desejadas. Desta forma, a República intima que não é ao Ser
inteligível que o eros da alma se dirige, mas ao Bem, o qual “toda alma procura, e por causa do
qual faz tudo, adivinhando-lhe o valor, embora ficando na incerteza e sendo incapaz de
apreender ao certo o que é” (505e – minha ênfase).
Novamente, nesta última passagem, vemos Platão tratar o eros como uma potência
adivinhatória, e como vimos, é o Bem que ele profetiza, aquilo que há de mais supremo. Vê-se
com clareza agora por que, no Fedro, Platão caracteriza o eros como uma loucura divina, dádiva
dos deuses da qual provém nossos maiores bens, e que é da mesma natureza daquelas que
inspiravam as sacerdotisas de Apolo em Delfos, os poetas e os ritos iniciáticos dionisíacos
(244a-245b). O eros, em especial, é a forma de inspiração divina que está no fundamento da
atividade filosófica, pois a filosofia é o ato de voltar o olho da inteligência às Ideias, e é só na
medida em que nosso eros se dirige a elas, graças à natureza boniforme que as constitui, que
nos tornamos amantes da sabedoria (philosophos). O eros é o motor do pensamento filosófico,
a sua força a-racional nos é mais fundamental mesmo que a razão, pois é ela que secretamente
determina o objeto último do pensamento (SHAW, 1992, pp. 59-60).
Observa-se, no próprio percurso que aqui foi percorrido, que é a partir do olhar reflexivo
sobre a própria alma, ao conhecer-se como desejo, que emerge toda esta reflexão acerca do
Bem, da sua natureza e mesmo de seu status metafísico superior ao inteligível. Novamente nos
encontramos com a metáfora do olho e do espelho, a unidade das vias reflexiva e expansiva: o
olhar reflexivo sobre a presença do eros no fundamento da atividade da inteligência nos revela
o Bem; o olhar expansivo que contempla o Bem através da ordem do mundo e da cidade, ou
mesmo no mundo inteligível, serve como espelho no qual se revela nosso eros – isto é, ver uma

73
imagem do Bem fora de nós desperta nosso desejo, nos provoca uma excitação erótica, que o
revela na interioridade.
Não por acaso, o Fedro tratará o fenômeno da excitação erótica como sendo de grande
importância para a atividade filosófica. Neste diálogo, Platão discorre acerca do fato de que,
dentre todas as Ideias, só ao Belo foi conferido um privilégio especial de reluzir no mundo
sensível: “vimo-la refulgir entre aquelas realidades, e de volta para a terra apreendemo-la em
todo o seu resplendor por meio do nosso mais brilhante sentido [a vista]. [...] Somente a Beleza
recebeu o privilégio de ser a um tempo encantadora e de brilho incomparável” (250d). Ainda
mais: “o poder do Bem se refugiou na natureza do Belo” (Filebo, 64e), isto é, é na beleza que
o Bem pode ser encontrado. Assim, quando a alma encarnada, vivendo no esquecimento de
alienamento de si e de suas origens, vê uma beleza terrena (como a de um belo jovem), sua
lembrança da verdadeira beleza inteligível se desperta, e assim sua nostalgia e desejo pela
origem (249d), fazendo com que as “asas da alma” se irriguem novamente e se inflamem pelos
“eflúvios da beleza” que penetram e tocam a alma através dos olhos (251b). A alma que é
tomada pelo delírio do eros, move-se a si mesma, põe em ação a sua reminiscência (anamnesis),
o poder da Memória pelo qual a alma acessa novamente aquelas verdades eternas que
contemplava antes de nascer.
Nem todas as almas, porém, possuem a mesma capacidade de reminiscência, apesar de
todas possuírem o eros da mesma maneira. Aquelas que preservam uma lembrança maior,
sempre que veem no mundo uma imagem de alguma forma transcendente, conseguem
reconhecer nelas o gênero do modelo original, e assim são tomadas de entusiasmo (250b). Isto
é, aquela alma que foi iniciada na filosofia, quando diante da excitação erótica provocada pela
visão do belo, é levada do particular ao universal; o logos não permite que a alma se fixe, em
seu desejo, àquela forma particular do belo jovem, mas por reminiscência o conduz à memória
das Ideias. Emerge aqui a importante dialética do eros e do logos, que Platão tratará no Timeu
(71a-72b) como a relação de um adivinho e o intérprete da adivinhação: assim como no Oráculo
de Delphos a puthia recebia mensagens inspiradas do deus Apolo em um estado de êxtase, e
suas mensagens eram posteriormente interpretadas pelo sacerdote, assim também a razão
precisa julgar e interpretar a potência adivinhatória da alma que é seu eros.
A alma cultivada desta forma, segundo o eros e o logos, é virtuosa: ela possui
autodomínio (sophrosúne) – o que não significa uma espécie de tirania da razão sobre os
impulsos, mas aquele estado da alma no qual o logos empresta sua luz ao eros e lhe revela qual
é o seu verdadeiro objeto. A alma filosófica, quando apaixonada, sabe que o que ela realmente

74
deseja não é o jovem em si, mas uma luz transcendente que reluz sobre ele, e a essa luz o seu
desejo se dirige; isto é, como na metáfora do olho e do espelho, ela reconhece o objeto a que
deseja como algo que está em si mesma, enquanto memória.
Contrária à alma iniciada na filosofia, a alma profana, diante do belo jovem, acredita
que aquilo que a move e lhe inspira desejo é o próprio jovem – ela se fixa ao particular e não
faz o caminho reflexivo de conhecimento de si pelo qual é possível elevar-se ao universal. Sua
reminiscência é fraca, e ela não tem, portanto, domínio de si: será precipitada de maneira
luxuriosa sobre o jovem, acreditando ser capaz de satisfazer seu eros pelos sentidos. O profano
“também ama, porém não sabe a quem ama e é incapaz de explicar o que se passa [...] por não
perceber que ela se vê no seu amante como num espelho” (Fedro, 255d). O que diferencia uma
alma da outra, portanto, é o autoconhecimento, que permite à alma virtuosa identificar-se
reflexivamente no seu objeto de desejo.
A maneira como Platão descreve a diferença destas duas almas diante da vista da pessoa
bela é muito interessante devido à natureza sagrada que ele atribui a esta experiência. A alma
“profana”, diz ele, é incapaz de dirigir-se a uma visão da Beleza em si quando vê sua imagem
em uma beleza terrena, e por isso:
... em vez de venerá-la quando a encontra, deixa-se dominar pelo prazer e, procedendo
como verdadeiro animal, procura maculá-la e engravidá-la, sem nada temer no seu
atrevimento nem correr-se de desejar um prazer contra a natureza. O iniciado de pouco,
pelo contrário, que tantas coisas belas já contemplou no céu, quando enxerga alguma
feição de aspecto divino, feliz imitação da Beleza, ou nalgum corpo a sua forma ideal,
de início sente calafrios, por notar que no seu íntimo entram de agitar-se antigos
temores. De seguida, fixando a vista no objeto, venera-o como a uma divindade, e se
não temesse passar por louco varrido, ofereceria sacrifícios ao seu amado, como o
faria a uma imagem sagrada ou a algum dos deuses (250e-251a).
A diferença entre as duas almas se insere, portanto, no domínio do piedoso: a alma
profana é aquela que vê a beleza como a um ídolo, opaco, que se encerra em si mesmo; a alma
iniciada, por outro lado, vê a beleza como a um ícone, uma janela transparente que a permite
fitar o transcendente45. O iniciado, portanto, compreende a verdadeira natureza da Beleza
enquanto revelação terrena da supraceleste Planície de Alêtheia, de forma que a experiência
estética-erótica diante do belo se revela como uma experiência hierofânica por excelência:

45
O emprego deste vocabulário cristão (ídolo x ícone) neste contexto não é tão anacrônico quanto possa parecer,
uma vez que levemos em consideração o fato de que a teologia da iconografia cristã se desenvolveu em solo falante
do grego, onde foi muito influenciada pela cultura artística helênica e, em especial, pelo pensamento estético
neoplatônico. Ver o estudo de Aphrodite Alexandrakis (2002), “Neoplatonic Influences on Eastern Iconography:
a Greek-rooted Tradition”.
75
A experiência do belo é uma experiência divinatória da qual apenas o realismo
inteligível fornece a chave. É o objeto belo, de fato, que nos oferece um ponto de vista
a partir do qual o mundo se revela como uma via de passage mem direção ao totalmente
Outro […]. O belo, tal qual um enigma oracular, […] apenas faz ver que há um invisível
tornando possível o visível, mas não podendo ser apresentado exaustivamente por este
último. A coisa bela sugere o outro-mundo sem especificar seu conteúdo. De fato, o que
me acontece, segundo Platão, quando eu encontro qualquer coisa bela? Tenho o
sentimento de possuir um intercâmbio com o sagrado, com todas as proibições e
separações que o designam como tal. Tenho o sentimento de que a coisa é habitada
desde o interior por uma potência que a ultrapassa e cuja fonte está alhures.
(PINCHARD, 2009, p. 10)
Não apenas a experiência estética diante da beleza possui essa natureza sagrada, mas
também a relação amorosa entre os amantes se torna piedosa. Platão descreve, no Fedro, que
quando a alma habitava aquela região celeste antes de sua queda, onde os deuses faziam suas
revoluções em suas carruagens divinas, ela pertencia ao séquito de um deus ou outro, o qual
seguia ao longo de seu percurso celeste (252c). Assim, quando a alma cai e toma para si um
corpo terreno, ela não preserva apenas a memória das Ideias que contemplou na região
supraceleste, mas também a memória do deus a cujo séquito pertencia. Então ela passa toda sua
existência terrena influenciada por essa memória latente, de forma que ela está sempre tentando
imitar a divindade a que pertencia, tentando reproduzir seu modo de ser e características aqui
na terra, afim de tornar-se semelhante a ela: “é como todos procedem, de acordo com a
divindade a quem serviram de coreuta e durante a vida cultuam e procuram imitar na medida
do possível” (252d), “alçando-a pela memória e tomados de entusiasmo, adotam seus costumes
e ocupações, na medida em que é possível a um homem participar do divino” (253a).
As relações amorosas também possuem essa dimensão cúltica, uma vez que a alma
apaixonada não se apaixona apenas pela luz da Beleza que resplandece no amado, mas também
pela semelhança que ele apresenta com aquela divindade a quem ama. Escolhemos nosso amado
como uma estátua sagrada pela qual cultuamos o deus:
Cada um escolhe entre os belos moços o objeto de sua predileção: é sua divindade,
imagem sagrada que ele erige no imo peito e colga de festões, para venerá-la e celebrá-
la nos mistérios. Os acompanhantes de Zeus procuram um amado de alma igual a Zeus;
verificam se é de natureza filosófica e apta para o mando, e quando chegam a apaixonar-
se, tudo fazem para cultivar neles as mesmas qualidades. (Fedro, 252d-e)
A relação entre os amantes, desta forma, passa a ser uma forma de cuidado de si e do
outro, um cultivo recíproco das qualidades e características do deus: “imitam a divindade e

76
concitam o amado a fazer o mesmo, para ficar em consonância, tanto quanto possível, com o
caráter e a ideia do deus” (253b).
Uma dimensão escatológica também não está ausente. Um par que saiba assim
corretamente se amar, fazendo prevalecer o que há de mais nobre na alma, dedicando-se à
filosofia com autodomínio, no término da vida se tornará alado novamente e vitoriosos dessa
luta olímpica que é a jornada transmigratória (256a-b). Os que, embora se amassem
verdadeiramente, não atingiram este mesmo autodomínio filosófico em sua relação, e que
portanto consumaram carnalmente o seu amor, não recuperam suas asas ao fim da vida; porém,
por terem se esforçado no amor, não lhes é possível baixar para as trevas e para os caminhos
subterrâneos no pós-morte, mas aguarda-os “uma vida em plena luz”, e depois, em encarnações
posteriores, perseguirão o mesmo caminho juntos até receberem suas asas, finalmente, como
recompensa pelo amor (256c-e). Porém, aqueles que se tornam íntimos sem o eros, dados
apenas à sabedoria mortal que só se ocupa de coisas perecíveis e sem valor, estes só cultivarão
a mesquinhez um no outro, graças à qual a alma passará “nove mil anos em torno da terra, para
acabar embaixo da terra como sombra privada de razão”. (257a-b)
Ora, estas são ideias dotadas de muita beleza poética e religiosa, e que muito inspiraram
o imaginário ocidental acerca do amor e do romance. Mais especificamente, o contexto erótico
aqui implícito, do qual o Fedro deriva suas imagens, se remete a uma prática específica do
mundo grego: o costume social no qual homens maduros cortejavam jovens adolescentes e
assim estabeleciam com eles uma relação erótica, que possuía também um caráter educativo,
uma vez que o homem maduro seria para o mais jovem uma espécie de tutor. Segundo Gordon
(2015, p. 17): “Socialmente, essas relações pederastas serviam como introduções ao mundo
homossocial grego mais amplo da política, economia, educação, produção cultural, guerra e
competição física. O mundo erótico de Platão é criado dentro desse contexto”.
De fato, Platão representa Sócrates como um desses homens maduros, a sair por Atenas
cortejando jovens e seduzindo-os à filosofia através de seus diálogos e questionamentos. Há,
porém, algumas especificidades na maneira como Platão representa Sócrates em sua posição de
amante. No diálogo Alcibíades I, Sócrates diz que, se é verdade que o homem é a alma e o corpo
não lhe é mais que um pertence, então é verdade que aquele que se apaixona pelo corpo de
alguém não o ama realmente; só aquele que ama a sua alma verdadeiramente ama. Só o amante
da alma nunca abandona o amado, quando o corpo daquele começa a perder o frescor da
juventude, e o próprio Sócrates é tal amante (131c-132a). No Banquete, depois que todos os
convidados fizeram seu discurso de louvor ao deus Eros, o jovem Alcibíades entra no recinto e

77
faz seu discurso de louvor ao próprio Sócrates – uma estratégia literária pela qual Platão parece
identificar Sócrates e Eros. Alcibíades a ele se refere em profundo estupor e confusão, incapaz
de compreender a maneira pela qual Sócrates o seduziu, abocanhando sua alma através de seus
discursos filosóficos mas, depois, desdenhou seus avanços sexuais (216d-218d). Sócrates lhe
diz, em resposta, que a beleza de Alcibíades é meramente externa (física), enquanto ele próprio
está dotado de uma estupenda beleza interna, que é o seu poder de tornar as pessoas melhores;
trocar uma beleza por outra seria como trocar ouro por bronze. Por fim, lhe lembra Sócrates, “a
visão do intelecto só começa a se tornar aguda quando a visão [do corpo] começa a diminuir”
(291a).
Sócrates, enquanto figura literária de Platão, parece encarnar o próprio poder de Peithô,
a sedução do logos filosófico, capaz de transformar e converter as pessoas à vida filosófica.
Nele encontramos uma espiritualização do contexto pedagógico homossocial grego, que, ao
longo da história posterior do pensamento antigo, se tornou o modelo por excelência do mestre
espiritual das escolas filosóficas, aquele que ama e cuida da alma de seus pupilos através da
educação filosófica, desempenhando para eles o papel de um diretor de consciência (HADOT,
1999, p.18). Ele é aquele que conhece e cuida de si, e assim cuida dos outros, cultivando neles
a imagem da divindade. E esta relação amorosa entre mestre e discípulo se dará não através de
relações carnais, mas do logos.
E isto, por sua vez, nos leva à questão do poder do logos de educar e conduzir as almas,
que ocupa a segunda parte do Fedro, em que é posta a questão do discurso – falado e escrito.
Segundo Sócrates, a arte do discurso (a retórica) é uma psukhagogia, uma arte de conduzir
almas pela palavra (Fedro 261b). Vemos aqui uma expressão da ambiguidade do logos, pois a
retórica se supõe uma arte de domínio das regras do discurso, que garantem ao orador a
capacidade de conduzir almas com maior efetividade; porém, a persuasão retórica nunca se
dirige à razão, ela “só se interessa pelas coisas sensíveis e só se dirige à parte mais baixa da
alma, à parte desejante (epithumia), que só reage ao prazer e à dor” (BRISSON, apud Perine,
2014, p. 90), de forma que o orador pode persuadir sem nenhum conhecimento da verdade e do
bem, conduzindo as almas ao erro através de discursos pautados apenas pela aparência: “quem
quiser ser orador não precisa saber o que é, de fato, justo, mas apenas o que sobre isso opina a
maioria, que é, no fim das contas, de quem depende o julgamento, nem o que é, realmente, bom
e belo, mas apenas o que parece ser” (Fedro, 260a).
Por outro lado, Sócrates defende que a verdade, sem a arte da retórica, não é capaz de
efetividade pois não é capaz de persuadir (260d); assim, surpreendentemente, Sócrates irá

78
procurar pensar um lugar digno para a retórica, distinguindo entre uma retórica falsa, aquela
dos sofistas, e que não constituem uma verdadeira arte (tekhné), uma vez que o orador
desconhece a verdade e o bem e, portanto, não é capaz de conduzir corretamente as almas; e
uma verdadeira, que será a retórica filosófica. A retórica verdadeira é aquela que passa pelo
crivo de três requerimentos: a exigência do conhecimento da verdade (269d-270d), o
conhecimento da natureza da alma do ouvinte (270d-271c), e a adequação do discurso aos
diferentes tipos de alma (271c-272b). Esta retórica verdadeira, portanto, será aquela que dá
persuasão, ou poder de efetividade, à verdade.
Ora, por que Sócrates precisa defender a necessidade de a verdade ser persuasiva? Não
poderíamos sustentar que a verdade não precisa de persuasão? Talvez a chave desta questão é
lembrar que Sócrates lida, aqui, com o logos como cuidado de si e cuidado do outro. Ele está,
em outras palavras, delineando o modus operandi do mestre espiritual, cuja arte é uma
psukhagogia que conduz as almas à verdade e ao bem, e que, portanto, precisa partir de um
conhecimento da verdade e do bem. Sob esta luz, os outros dois requerimentos da retórica
verdadeira, conhecer a alma do ouvinte e adaptar o discurso a ele, aparecem como a dimensão
erótica, no sentido platônico, da verdadeira retórica; isto é, a demanda do discurso estar pautado
sobre um eros, no qual a atenção do mestre se volta à alma do ouvinte e adapta o discurso à sua
natureza para que ela possa ser “seduzida” pela verdade, e, assim, em uma verdadeira
psukhagogia, ser conduzida ao Bem. O eros gera e instiga “o discurso que promoverá o
aprimoramento dos jovens” (Banquete, 210c). É exatamente esta psukhagogia filosófica que a
figura de Sócrates, o sedutor do logos, encarna.
Neste contexto a necessidade da persuasão se esclarece. Pois a verdadeira psukhagogia
precisa fazer a alma voltar-se por inteira à luz do Bem, e isso não é possível se o discurso se
dirige apenas à razão: é necessário, também, persuadir a parte apetitiva da alma, para que esta
se volte por inteira à verdade. E não só o discurso filosófico é uma ação psukhagógica sobre o
outro, mas também sobre nós mesmos. Não só o mestre espiritual precisa de persuasão para
atuar sobre o outro, mas nós mesmos, em nossa própria educação filosófica, precisamos
persuadir nossa faculdade apetitiva para que nossa alma se volte por inteira à luz que à razão é
dado pensar. Esta é, por sinal, exatamente a atividade propriamente erótica do Intelecto
demiúrgico no Timeu (48a): persuadindo a Necessidade, e a Necessidade cedendo a ele, o
mundo é ordenado ao Bem46.

46
Gordon (2015, p. 45) nota, a respeito desta passagem no Timeu: “Timeu atribui à peithô uma espécie de causa
cosmológica de movimento; peithô, ao lado de nous, é responsável, assim a passagem parece indicar, por qualquer
inteligibilidade que exista no mundo visível. A inteligibilidade entra no mundo da causação necessária por meio
79
Estamos aqui diante de uma importante retomada daquelas figuras míticas arcaicas do
discurso: Peithô, que podia ser tanto a persuasão positiva que dá força de efetividade (e,
portanto, realidade) a Alétheia, associada à deusa Afrodite; quanto aquela peithô obscura que
era mera arte do engodo, associada ao deus Hermes. E a defesa de uma retórica verdadeira por
Sócrates, associando verdade e persuasão, é como um resgate da figura arcaica de Alêtheia, o
discurso-efetivo que não apenas expressa mas também instaura o Real – e o lócus desta
efetivação, aqui, é a própria alma.

2.2 A Via da Dialética Ascendente

Como é, porém, que o primeiro requerimento, o conhecimento da verdade, pode ser


cumprido? Nesta segunda parte do diálogo, pela primeira vez na obra de Platão, aparece uma
definição do procedimento da arte dialética (Fedro, 265c-266c), a ciência filosófica que
descobre o verdadeiro, e sobre a qual a retórica filosófica, em seu requerimento de conhecer a
verdade, precisa estar pautada. Platão define a dialética como “a aptidão de dirigir a vista para
a unidade e a multiplicidade naturais” (Fedro, 266b), que se dá através de um procedimento
composto de duas etapas:
...sunagoge consiste em perceber conjuntamente (sunhorônta) e reunir ‘numa única
forma’ (eis mian idean) as coisas multiplamente dispersas (ta pollachê diesparmena),
para com isso fornecer uma definição, determinar claramente o objeto sobre o qual se
deseja obter informação. Dihairesis é o trinchar (diatemnein) em formas segundo a
divisão natural delas (kat’ arthra hê pephkyken), sem que se tente quebrar uma parte
como um mau cozinheiro. (SCHÄFER, 2012, p. 97)
Esta será, como pretendo argumentar, uma ciência ao mesmo tempo discursiva e
intuitiva, que se relaciona tanto ao logos quanto à contemplação. Podemos entender estes dois
movimentos como sendo ascendente (unificação) e descendente (divisão). Do ponto de vista do
movimento ascendente, o mais importante é uma capacidade de sinopse, a capacidade de ver
“todas as coisas unidas num todo compreensivo” (SCHINDLER, 2008, p. 321), isto é, a
capacidade de ver a unidade subjacente a uma multiplicidade de coisas. Essa é, segundo Platão
(República, 537c), “a melhor prova para saber se uma natureza é dialética ou não, porque quem
for capaz de ter uma vista de conjunto é dialético; quem o não for, não é”. Num primeiro
momento, esta dialética ascendente procurará unificar a multiplicidade de coisas sensíveis em

da persuasão ou sedução por parte do nous e pela cedência por parte da necessidade. [...] Tanto a persuasão exercida
pelo nous como a cedência (ήττωμένης) a essa persuasão por parte da necessidade indicam eventos eróticos”.
80
uma Forma na qual elas participam, por exemplo: unificar as várias coisas belas sob a Beleza-
em-si, ou todas as coisas circulares sob o Círculo-em-si. Porém, como é possível essa sinopse,
se nunca percebemos a unidade da Forma na própria experiência empírica no mundo sensível?
De fato, há na alma uma faculdade de intuição intelectual capaz de atingir a visão da
Ideia, o nous pelo qual a alma contemplava a Planície de Alêtheia antes de nascer, uma theoría
(contemplação) perfeita que é “o primeiro momento da vida cognitiva da alma” (LIMA VAZ,
2012, p. 96); mas, ao contrário da nossa existência contemplativa celeste, uma vez que caímos
no mundo do devir nós não mais possuímos plena claridade noética, nossa inteligência se torna
obscurecida, essa contemplação perfeita só nos está presente de forma tácita, e assim o
raciocínio se torna necessário para nós. Como o coloca Griswold (apud Gordon, 2015, p. 174):
“O nous não distorcido é o domínio dos deuses; [...]. Homens são dotados de uma visão noética
parcial e possivelmente desfocada da Verdade que foi digerida e remodelada pela dianoia em
forma linguística”. Toda atividade dianoética, isto é, do pensamento discursivo e linguístico, é
como um conhecimento imperfeito que tende sem cessar àquela visão noética perfeita, sem a
qual ele nem sequer seria inteligível (LIMA VAZ, 2012, p. 96).
Uma importante elucidação do processo da ascensão racional da alma a seu objeto na
sua Sétima Carta. Ali, tomando o exemplo do círculo, e sugerindo que pensemos todos os
objetos analogamente a ele, nos explica que o conhecimento do ser de qualquer coisa depende
de três elementos, que formam como degraus da ascensão: o nome (onoma), a definição (logos),
a imagem (eidolon), que neste caso seriam: a própria palavra “círculo”, a sua definição como
“aquilo que é em todo lugar equidistante das extremidades com referência ao centro”, e sua
imagem seria aquilo que “retratamos e apagamos, e que é torneado e que é destruído” (342b-
c). Além dessas três, em quarto lugar, está o próprio conhecimento da coisa, “o qual é
inexistente na articulação da voz ou nas formas corpóreas, existindo apenas nas almas, do que
se infere que evidentemente distingue-se, tanto da natureza do próprio círculo quanto dos três
anteriormente indicados” (342c). Este é, portanto, da natureza do conceito, que é imanente à
alma, o conceito acerca da Ideia, e que, por esta razão, é distinto da Ideia em si47. Este é como
a memória que a alma possui da sua “contemplação supraceleste”, e que é desvelado por sua
reminiscência. Todos esses quatro são acerca da Ideia, mas não são a Ideia. Mas além desses
meios que habitam a alma, está o próprio objeto cognoscível e verdadeiro (342b), a essência48.
No exemplo de Platão, o próprio Círculo-em-si.

47
Por exemplo: tenho um conceito sobre a Justiça, e uma outra pessoa tem um conceito distinto sobre a Justiça.
Mas a Ideia da Justiça não se identifica com nenhum dos conceitos, ela é o objeto sobre o qual conceituamos.
48
Usaremos os termos essência e Ideia como sinônimos.
81
Ora, o ser de alguma coisa e as qualidades pelas quais a coisa se manifesta são distintas,
e são apenas as qualidades que nos são apresentadas pelos quatro primeiros estágios da ascensão
(nome, definição, imagem, conceito); todas estas formas de saber são possuídas como nossas,
circunscritas nos limites da perspectividade, e, portanto, distintas do ser essencial do objeto
verdadeiro a que aspira a razão (343c). Só as qualidades do objeto (tò poión ti) podem ser postas
em linguagem, enquanto o seu ser (tò ón) não o pode (343b-c)49. Em outras palavras, “as
qualidades de um objeto é tudo o que pode ser ditto a seu respeito, enquanto o ser é a unidade
da coisa que transcende a pluralidade de atributos, a essência que pode ser conhecida mas não
expressada enquanto é conhecida” (SCHINDLER, 2008, p. 232). Todos esses quatro níveis
circulam ao redor da natureza essencial da Ideia, mas não a apreendem em sua unicidade. O
acesso ao quinto estágio, o próprio ser essencial do objeto, na sua radical transcendência em
relação à alma, teria que ser uma espécie de êxtase da razão, um conhecimento imediato no
qual ela se põe fora de si mesma, em comunhão direta com o cognoscível (ibid., pp. 231-234).
Como é possível à alma elevar-se a este quinto estágio? É necessário, diz Platão, que a
alma possua verdadeira virtude, isto é, partilhe da natureza boniforme da Ideia que é seu objeto.
Mera aptidão para aprendizado e poder de memorização não são suficientes: é preciso essa
afinidade de natureza e bondade com o objeto, pois esse conhecimento verdadeiro “não germina
em natureza estranha” (Sétima Carta, 343e-344a)50, pois “não é permitido ao impuro entrar em
contato com o puro” (Fédon, 67b). Portanto, para a alma encarnada, a aspiração à visão da

49
A qualidade “inefável” da essência, na Sétima Carta, foi interpretada por Festugière (1975) como uma alusão à
mística da contemplação do Bem supraessencial. Ele entendeu o noeton (a Ideia inteligível) como aquilo que é
plenamente compreensível, e portanto só a passagem para além do inteligível pode possuir essa característica de
inefabilidade. Mas esta interpretação é problemática, pois o exemplo que Platão dá aqui é um noeton, o Círculo.
Se o noeton é o objeto plenamente inteligível/compreensível, então o ato perfeito de intelecção, conforme descrito
na Carta, já constitui uma espécie de cognição ‘extraordinária’, uma intuição pura que não se confunde com as
quatro formas relativas de conhecimento. Isto é, a Ideia é o objeto perfeito a que se refere as quatro: o nome, a
definição, a imagem, o conceito; e também é o que as permite ter algum fundamento real. Mas a Ideia em si as
transcende, é inteligida apenas em uma intuição pura. Esta é também a interpretação neoplatônica, que não supõe
que a Sétima Carta aponta para o conhecimento do Bem (c.f. PROCLO, In Parm., VII, 60k.28-62k.12).
50
Sobre isto, Schindler (2008, p. 244) observa: “Platão insiste que a alma deve ser aparentada a seus objetos para
ser unida a eles no conhecimento, o que ele especifica dizendo que ela deve possuir a justiça e as outras excelências.
Àquilo que nós normalmente tomamos como sendo simplesmente virtudes morais, Platão atribui uma significação
epistemológica e metafísica”. Este ponto possui grande relevância, pois indica a inseparabilidade da verdade e da
virtude, isto é, do pensamento filosófico e o exercício espiritual de cuidado de si. É exatamente o abandono desse
princípio que distingue a filosofia moderna da antiga. Para Foucault, o único filósofo antigo que parece antecipar
o modo moderno de filosofar foi Aristóteles: “durante toda a Antiguidade (nos pitagóricos, em Platão, nos estoicos,
nos cínicos, nos epicuristas, nos neoplatônicos etc), jamais o tema da filosofia (como ter acesso à verdade?) e a
questão da espiritualidade (quais são as transformações no próprio ser do sujeito necessárias para ele ter acesso à
verdade?), jamais essas duas questões foram separadas. A maior e mais importante exceção: a que é constituída
por aquele que nós denominamos ‘o’ filósofo, dado que ele foi na Antiguidade, sem dúvida, o único filósofo dentre
todos os demais para o qual a questão da espiritualidade foi a menos importante. Aquele no qual nós reconhecemos
o próprio fundador da filosofia no sentido moderno do termo, Aristóteles. Mas, como todos sabem, Aristóteles não
representa o ápice da Antiguidade, mas a exceção” (apud PUENTE, 2013, p. 117n).
82
verdade requer o esforço de abstrair-se do corpo e da multiplicidade sensível, “por ser o corpo
fator de perturbação para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que
a ele se associa” (66a), e permanecer “concentrada ao máximo em si mesma” (65c), atentando
ao logos que a habita; uma verdadeira ascese, um verdadeiro exercício de separação da alma e
do corpo, de forma a restaurar à alma sua natureza noética, congênita à Ideia. Este amante da
sabedoria, “que tem afinidade com o assunto e é digno dele, pois detentor de um dom divino,
pensa que lhe foi indicada uma senda maravilhosa e que deve imediatamente começar a trilhá-
la com todo o empenho, sem o que a vida não merece mais ser vivida” (Sétima Carta, 340c), e
desta forma se dedica ao estudo da coisa em questão através dos quatro primeiros estágios, em
prolongada aplicação conjunta de mestre e discípulo (341c-d), examinando-as “no cotejamento
delas entre si, testando-as de boa vontade e formulando questões e respostas isentas de
maledicência” (344b). Graças a esses meios, por fim, irrompe em sua alma “a luz da inteligência
e do saber” (344b), “gerada na alma de súbito, como a luz que cintila quando uma fogueira é
acesa, alimentando em seguida a si mesma” (341c-d).
Este é o momento em que a alma encarnada, no momento chave do pensamento
dialético, é aberta a um vislumbre da pura intuição intelectual (noesis), o “olho da alma”
(República, 527e; 533d) ou “luz radiante da alma” (República, 540a) que é o estado
contemplativo originário da alma, “esse momento da inteligência (nous) que não mais comporta
percurso, nem tempo, nem esforço – que, portanto, seria visão simples, instantânea, em pleno
repouso” (RICOEUR, 2014, p. 48), uma intuição que “está além do discurso, como um repouso
do espírito na visão, para além do movimento articulado do pensamento” (ibid., p. 61). Nesta,
somos momentaneamente elevados a um vislumbre da Planície de Alêtheia, fazendo-nos
“espectadores de inteiras, simples, quietamente estáveis e abençoadas visões, residentes em
pura luz” (Fedro, 250d). Este momento de abertura à noesis alcança a intuição sinóptica que
unifica as coisas multiplamente dispersas sob a unidade da Ideia. E não se trata, há que se
ressaltar, de adquirir uma visão que nos é estrangeira, pois já a temos (República, 518d); apenas
removemos a obscuridade que a envolvia, e num instante ela brilha em sua verdadeira luz. Essa
intuição filosófica51 revela algo livre, que não pode ser causado à vontade por nenhum meio
inferior a ela mesma52, uma verdadeira epifania que desvela um saber superior ao mortal, um

51
Em nossa experiência corriqueira, algo como isso nos ocorre quando, diante de um assunto que resiste à nossa
compreensão mesmo depois de repetidos exames, um insight o ilumina e, repentinamente, tudo faz sentido, como
“uma nova articulação de partes formando todos” (MORAVCSIK, 2006, pp. 30-31).
52
Os quatro meios inferiores de conhecimento são necessários, porém não suficientes, para a intuição, o que quer
dizer que eles não o causam.
83
acesso momentâneo ao Intelecto divino53, digna de fazer do filósofo um “mestre da verdade”,
e da filosofia uma descendente da Memória arquetípica do poeta-profeta-sábio.
Estamos aqui diante de um ato cognitivo que transcende qualquer forma de
conhecimento semântico ou proposicional, que é da natureza de uma cognição direta distinta
da sua expressão em palavras e pensamentos, para si mesmo ou para outros (GERSON, 2013,
p.118), de forma que ele se insere em uma dimensão supradiscursiva e supralinguística. Por
esta razão, enquanto os outros quatro estágios do saber são todos disputáveis e refutáveis
(Sétima Carta, 343c-d), como se todos os níveis inferiores ao conhecimento verdadeiro
tivessem algo de falso em si (TULLI, apud Schindler, 2008, p. 232n), este quinto estágio está
além de qualquer disputa ou refutação – o que também significa dizer que ele é indefensível.
Ele é uma intuitiva sinóptica da unidade da essência, que a constata sem dar razão. Schindler
(2008, p. 237) identifica aqui um modelo não-possessivo do saber:
Ir além das condiçções relativas de sua compreensão e assim atingir uma perspectiva
‘absoluta’ significa renunciar a possessão que se possui de um objeto e, portanto, a
habilidade que se possui de argumentar de uma maneira plenamente adequada a seu
respeito. […] o modo de conhecimento que Platão indica aqui é genuinamente absoluto:
ele não é posse de alguma coisa por parte da alma, e portanto não é um conteúdo
conceitual que possa ser verbalmente formulado, mas antes é a habitação da alma com
o ser da própria coisa, uma relação que, precisamente porque transcende formulação
verbal, provê de fato a única base genuína para suas palavras. 54
É desta forma, Schindler entende, que a douta ignorância de Sócrates se torna
compreensível, pois seu reconhecimento de sua própria ignorância não é meramente um
ceticismo, mas a atitude de alguém que mantém suas mãos vazias “em gratidão constante por
aquilo que é maior do que pode conter”, pois “a verdade não jaz nele, mas antes ele jaz na
verdade” (ibid., pp. 278-279). Essa atitude se funda sobre o maravilhamento, que Platão diz ser
a origem da filosofia (Teeteto, 155e), e que representa um estado de “abertura àquilo que é
maior que si mesmo” (ibid., p. 240n).
De qualquer forma, porém, até aqui nossa intuição só se elevou à apreensão de uma
Ideia – no exemplo que temos seguido, dado por Platão na Sétima Carta, a essência do Círculo.
Mas esta é, ainda, uma intuição ou sinopse imperfeita, que só revelou um aspecto particular do
mundo inteligível. Seria possível dedicar-se ao estudo de alguma outra essência, e o resultado

53
O Intelecto divino seria, como o coloca Lonergan (1978, p. 684), “o ato irrestrito do entendimento, o rapto eterno
vislumbrado em cada grito arquimediano de Eureka”.
54
A maneira pela qual essa cognição supradiscursiva é a base do discurso genuíno só será clarificada mais adiante,
quando falarmos da dialética descendente.
84
seria uma apreensão sucessiva de uma Ideia por vez, como se nos dirigíssemos a um mundo
inteligível caótico no qual cada essência é um solitário absoluto independente dos outros.
É preciso, pois, ascender a uma sinopse cada vez mais abrangente, caminhando de
intuição a intuição, inteligindo as Ideias mais gerais e que unificam em si a multiplicidade de
Ideias inferiores. Transcendemos a visão de “numerosas formas absolutamente solitárias”, para
ver uma “forma única que se estende em todos os sentidos através de uma pluralidade de formas,
cada uma das quais permanece distinta” (RICOEUR, 2014, p. 65) 55, que é exatamente a Ideia
do Ser, a essência da qual todas as outras participam e que, portanto, funciona como
“‘intermediário’ que fundamenta precisamente a possibilidade de comunidade [...] entre as
Ideias” (LIMA VAZ, 2012, p. 175).
Mas a ascensão dialética não termina no Ser, pois o seu elã interno, o motor de todo este
movimento de ascensão, é o eros, cujo desejo último é o Bem – em razão do qual as Ideias nos
são desejáveis. Apenas este é o termo último daquele desejo que nos conduziu à theoría e à
vida filosófica. No ápice do mundo inteligível, a alma ascende à mais elevada sinopse, a do
Bem, que se revela como a Unidade última e absolutamente Incondicionada, superior ao Ser
em dignidade e poder (República, 509b), o Princípio "que permanece por si mesmo e do qual o
restante depende" (LIMA VAZ, 2012, p.207), "que confere unidade total e última ao mundo
ideal" (ibid., p.175), "termo ou causa final" (ibid., p.209), "Absoluto, Sumo Bem pelo qual os
outros bens são ditos tais” (ibid., p.214), "por cuja causa tudo é feito" (ibid., p. 201). Sob este
Princípio, toda a multiplicidade inteligível se unifica – da mesma forma como, no estágio
anterior, a Ideia unifica os sensíveis particulares.
O Sol do mundo sensível “não é vista, mas a sua causa” (República, 508b), e
proporciona às coisas visíveis “a sua gênese, crescimento e alimentação, sem que seja ele
mesmo a gênese” (ibid., 509b); da mesma forma, o Bem é o Sol do mundo inteligível, e dele
provém a luz que dá inteligência ao sujeito e inteligibilidade às Ideias, mesmo que ele esteja
além da inteligência (ibid., 508a-e); e dá ser e essência às Ideias, mesmo que ele esteja além da
essência (ibid.). Dar essência às Ideias significa dar-lhes determinação, a identidade pela qual
elas são uma coisa e não outra, e que as permite serem conhecidas; o que significa dizer que o
Bem, “medida perfeitíssima de todas as coisas”, apesar de fonte de toda determinação, é ele
próprio indeterminado, e, portanto, inefável (ROGUE, 2005, p. 106).
Se o objeto a que se dirige a inteligência é a essência, e o Bem não é uma essência, seria
impossível apreendê-lo; mas, por outro lado, o Bem é, antes de tudo, revelado no começo da

55
Cito esses trechos como Ricoeur os sintetizou à partir de Sofista 253d-e, mas com liberdade adaptativa.
85
jornada filosófica como o sentido de uma finalidade última (télos), o objeto único de todo
desejo, que a alma intui ao voltar-se a si mesma e conhecer-se eros. Como havíamos visto, é o
eros em nós, tal qual um delírio divino, que pressente o Bem. Por extensão, é razoável supor
que, assim como na dialética ascendente o termo último do logos é a Ideia, à qual ele aspira
sem cessar, assim também o termo último do eros é o Bem, na identidade com o qual a alma
encontra felicidade última, pois o Bem é o absolutamente autossuficiente, “o mais feliz dos
seres” (República, 526e), cuja natureza é tal que “todo o ser vivo que se conservar sempre
possuidor do Bem, por completo e de todas as maneiras, de nada mais necessita, sendo
perfeitamente autossuficiente” (Filebo, 60c).
Há uma passagem de grande beleza na obra de Platão que descreve a ascensão da alma
à visão da Beleza divina. Vários intérpretes entendem que, aqui, a Beleza é idêntica ao Bem 56:
segundo Festugière (ibid., p. 231), “o Belo Soberano do Banquete é a mesma coisa que o Uno-
Bem dos diálogos posteriores: ele é o primeiro e supremo Princípio” ; Lima Vaz (2012, p. 231)
aponta que o Belo aparece unificando “diversas ordens de realidade, na medida em que é objeto
do desejo ou amor que leva precisamente àquelas diversas realidades”, e vê nessa identidade
entre eles “aquela tendência grega específica de tomar o Belo e o Bem como um só” (ibid.). Na
passagem platônica em questão, após vários degraus ascendentes na contemplação da Beleza,
partindo dos belos corpos às belas almas, das belas almas a “uma esfera de beleza” que consiste
em uma multiplicidade de ciências, “o vasto mar do belo” (a totalidade do mundo inteligível?),
a alma se aproxima do fim último do amor:
...munido da força e crescimento aí conquistados ele discerne um certo conhecimento
singular que está associado a uma beleza ainda por ser revelada. [...] à medida que
aproximar-se da meta das coisas do amor, terá a si revelado uma visão extraordinária,
bela em sua natureza; [...] sendo em primeiro lugar sempre existente e insuscetível do
vir a ser e do perecimento; tampouco cresce ou míngua; em segundo lugar, não é belo
num aspecto e disforme em outro, nem belo numa ocasião e disforme em outra, e
tampouco belo relativamente a uma certa coisa e disforme relativamente a uma outra;
tampouco é aqui belo, ao passo que lá é disforme, como seria o caso se fosse belo para
uns e disforme para outros. Tampouco o belo se apresentará a ele sob a forma de um
rosto, mãos ou qualquer outra parte do corpo; também não lhe surgirá como um discurso
ou um conhecimento; nem como existindo em algum lugar numa coisa distinta, digamos
num ser vivo, na Terra ou no céu, ou em qualquer outra coisa, mas existindo sempre

56
Particularmente, nós não concordo que o Belo aqui seja idêntico ao Bem; mas certamente é uma Ideia
privilegiada entre as demais. No Filebo (64c), é dito que “o poder do Bem se refugiou na natureza do Belo”.
Portanto, a ascensão à visão sinóptica da Ideia do Belo é uma via privilegiada pela qual o Bem se revela, e que
será um modelo na posteridade do Platonismo para compreender a ascensão ao Bem.
86
numa forma única, a qual é independente e por si, enquanto todas as coisas belas dele
participam de um tal modo que, enquanto todas estão submetidas ao processo do vir a
ser e ao perecimento, ele não se torna maior ou menor, não sofrendo a ação de nada.
[...] solicito que me digas: qual seria o efeito [...] se um de vós tivesse a sorte de
contemplar o belo em si na sua integridade, puro e sem mistura, não contaminado pela
carne e as cores humanas, além de tanta tolice associada à mortalidade? Qual o efeito
se pudesse contemplar a própria beleza divina, sob sua forma única? Pensarias ser uma
vida deficiente para um ser humano viver, ou seja, assim olhando, experimentando tal
visão pelo meio apropriado, sempre acompanhado por ela? Apenas considera [...] que
tão-só nessa vida, quando ele olhar o belo do único modo que o belo pode ser visto,
somente então lhe será possibilitado gerar não imagens de virtude, mas a verdadeira
virtude, uma vez que seu contato não é com a imagem, mas com a verdade.
Consequentemente, quando ele houver gerado uma virtude verdadeira e a houver
nutrido, estará fadado a se tornar caro aos deuses. Ele, acima de todo ser humano, é
imortal. (Banquete, 210d-212a)
Nessa ascensão a uma vez desejosa e intelectual, se dá uma intuição pura que “é expressa
em termos religiosos de cunho iniciático” (RICOEUR, 2014, pp. 50-51), uma contemplação
que é apresentada como algo súbito, expresso numa linguagem de contato (“tocar o objetivo”),
e “enunciada na linguagem de uma mística negativa: em vinte linhas há vinte negações” (ibid.).
Nesse contato, nessa união, o eros encontra o seu objeto derradeiro, no Uno-Bem-Belo em toda
sua inefabilidade: não o discernimos ou definimos, mas o sentimos, vemos, contemplamos
(FESTUGIÈRE, 1975, pp.234-235). A conclusão da passagem, que proclama a divinização e
imortalidade do iniciado nessa “divina epoptia”57, parece indicar a realização plena daquele que
ficou conhecido, em tempos posteriores, como o fim último da paideia filosófica platônica:
“devemos empenhar todos os nossos esforços na tentativa de escapar da terra para o céu o mais
rápido possível; e [esse] escapar requer assemelhar-se à Divindade, na medida em que isso for
possível” (Teeteto, 176b). Tem-se aqui, de fato, a linguagem que doravante informará toda a
mística ocidental, pagã ou cristã58.
É diante da absolutez do Bem que o caráter de Sócrates se clarifica, pois em meio às
suas confissões de ignorância, ele afirma que a arte do amor (tà erotiká) é a única coisa que ele
diz entender (Banquete, 177d-e), e a única coisa que ele jamais questiona, em qualquer diálogo,
é o valor e a realidade absoluta do bem:
Sócrates é livre para renunciar a toda reivindicação ‘possessiva’ ao conhecimento
precisamente por causa de uma convicção absoluta a respeito do bem. […] Sócrates é

57
A visão final da iniciação nos Grandes Mistérios de Elêusis.
58
Se o próprio Platão a entendia misticamente, por outro lado, é debatível: vide o debate entre Festugière (1975)
e Lima Vaz (2012) a este respeito. Até mesmo a questão fundamental acerca do que é “mística” é de difícil resposta.
87
mais completamente ciente da relatividade de seus próprios pensamentos do que
qualquer cético – porque ele sabe aquilo em relação ao qual eles são relativos.
(SCHINDLER, 2008, pp. 281-282. Minha ênfase).
É aqui também que a alma encontra o mais perfeito autoconhecimento. Seguindo a
metáfora do olho e do espelho do Alcibíades I, assumimos que o olho (que é a divina
inteligência na alma) não é capaz de olhar a si mesmo, e precisa de um espelho no qual vê a si
mesmo como reflexo, e assim se reconhece; mas, nesta epoptia suprema, o olho por fim é capaz
de ver-se a si mesmo sem precisar de um espelho. Contemplando as essências, a alma “vê
apenas seres que participam da luz, não a própria luz” (ROGUE, 2005, p. 109), mas quando se
volta ao Bem para contemplá-lo, olha “para a própria fonte da luz”, momento em que “a visão
vê o que a torna possível: intuição onde a alma não se distingue mais de seu objeto, visto que
nele ela reconhece a potência ilimitada de onde ela mesma saiu” (ibid. Minha ênfase). O olho
da alma só vê a si mesmo verdadeiramente quando se volta à luz pela qual ele vê. O mais
elevado autoconhecimento e o mais alto conhecimento do Divino se fundem.

2.3 A Via da Dialética Descendente

Até aqui, o filósofo na via da dialética ascendente já realizou metade do percurso


proposto pela Alegoria da Caverna (República, 514a-517c). Nesta, o homem começa em uma
condição de escuridão, atado por correntes no fundo de uma caverna, onde vê no muro sombras
(aparências) do mundo verdadeiro que jaz fora da Caverna, e as pensa ser esta a verdadeira
realidade, de modo que sua vida é uma ilusão, um mero jogo de sombras. Eventualmente ele é
libertado de suas correntes e levado ao exterior da Caverna, onde pode ver a realidade que ali é
iluminada pela luz solar (o mundo inteligível), e pouco a pouco, à medida em que seus olhos se
acostumam com a claridade, se torna capaz de, por fim, dirigir seus olhos à visão do Sol (o
Bem), e aí compreende que ele é a causa de tudo.
Isto, porém, não é tudo. Depois da visão do Sol, indaga Sócrates (República, 516d-e),
como este homem, agora iluminado por esta contemplação, sentiria ao lembrar-se de seus
antigos companheiros de prisão, que ainda jazem na escuridão da Caverna, e daquilo que
passava por sabedoria ali?
- ...não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros? [...] parece-te
que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que haviam entre eles, ou que
experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo
‘servir junto de um homem pobre, como servo da gleba’, e antes sofrer tudo do que
regressar àquelas ilusões e viver daquele modo? - Suponho que seria assim – respondeu
88
–, que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira. - Imagina ainda o
seguinte – prossegui – Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu
antigo posto, [...] acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao
mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem
tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o
matariam? - Matariam, sem dúvida – confirmou ele. [...] - Concorda ainda comigo, sem
te admirares pelo fato de que os que ascenderam àquele ponto não quererem tratar dos
assuntos dos homens, antes se esforçarem sempre por manter a sua alma nas alturas. É
natural que seja assim, de acordo com a imagem que delineamos. - É natural –
confirmou ele. (República, 516c-517d) [Estes] jamais serão capazes de administrar
satisfatoriamente a cidade [...] porque não exercerão voluntariamente essa atividade,
supondo-se transladados, ainda em vida, para as Ilhas dos Bem-Aventurados...
(República, 519b)
A problemática do retorno à Caverna, uma verdadeira convertio ad phantasmata
(retorno às aparências), poderia ser compreendida em diferentes sentidos: o retorno ao mundo
sensível (sentido metafísico), o retorno à vida ativa na comunidade organizada na cidade
(sentido ético/político), e, também, o retorno às formas inferiores e relativas de conhecimento
(sentido epistemológico). Parece-nos que todos estes três sentidos se interpenetram e
apresentam um problema comum: apontam para a dificuldade em justificar um retorno a todos
aqueles níveis relativos de ser, conhecer e viver dos quais a alma se abstraiu na ascese
ascendente que a levou à contemplação do Bem.
Do ponto de vista do sentido epistemológico e ético, Schindler (ibid., pp. 240-242)
aponta, a grande tragédia seria: se não é possível pôr o essencial em palavras, a contemplação
do filósofo teria uma significação puramente privada, o que o isolaria dos demais; e se a verdade
é assim incomunicável, na ausência de um ponto comum de referência59 não haveria nenhuma
base sólida para a comunicação, de forma que o acordo entre as pessoas seria impossível e
seríamos forçados a reconhecer a vitória do sofismo.
Este problema parece ter sido reconhecido por Platão, que, depois de apresentar a
dificuldade da alma iluminada em retornar à “caverna”, diz ser necessário forçá-la a fazer essa
descida a fim de “cuidar dos outros e guardá-los” (República, 520a):
- É nossa função, portanto, forçar os habitantes mais bem dotados a voltar-se para a
ciência que anteriormente dissemos ser a maior, a ver o Bem e a empreender aquela
ascensão e, uma vez que a tenham realizado e contemplado suficientemente o Bem, não
lhes autorizar o que agora é autorizado. - O quê? - Permanecer lá e não querer descer

59
“Bem, Cálicles, se os seres humanos não compartilhassem experiências comuns, alguns partilhando uma, outros
partilhando outras, e um de nós tivesse alguma experiência única não partilhada pelos outros, não seria fácil para
ele comunicar o que experienciou a outro” (Gorgias, 4881c-d).
89
novamente para junto daqueles prisioneiros nem partilhar dos trabalhos e honrarias que
entre eles existem, quer sejam modestos, quer elevados. - Quê? Vamos cometer contra
eles a injustiça de os fazer levar uma vida inferior, quando lhes era possível ter uma
melhor? - Esqueceste-te novamente, meu amigo, que à lei não importa que uma classe
qualquer da cidade passe excepcionalmente bem, mas procura que isso aconteça à
totalidade dos cidadãos, [...] fazendo com que partilhem uns com os outros do auxílio
que cada um deles possa prestar à comunidade [...]. Diremos, pois [...]: nós formamo-
vos, para vosso bem e do resto da cidade, para serdes como os chefes e os reis nos
enxames de abelhas, depois de vos termos dado uma educação melhor e mais completa
do que a deles [...]. Deve, portanto, cada um por sua vez descer à habitação comum dos
outros e habituar-se a observar as trevas. (República, 519d-520c. Minha ênfase.)
A descida da contemplação do Bem às trevas da caverna aparece aqui como uma espécie
de imperativo ético, que acaba por se tornar político, uma vez que a alma iluminada será em
seguida encarregada de gerir a cidade. Mas o mais essencial nesta questão é que essa
generosidade da alma iluminada não é um mero acidente, algo acrescentado à sua natureza
apesar do seu excelso estado contemplativo. Há, aqui, na verdade, um profundo segredo: o ato
de generosidade que retorna às aparências não é uma mera queda, mas um “movimento interno
de completude” (SCHINDLER, 2008, p. 318) da contemplação do Bem.
Para compreendermos este ponto, é preciso meditar mais a fundo sobre a natureza do
Bem. Retomemos uma discussão do segundo livro da República (357a-358a), no qual Glauco
apresenta para Sócrates três formas pelas quais uma coisa pode ser considerada boa: 1) “uma
espécie de bem, que gostaríamos de possuir, não por desejarmos as suas consequências, mas
por o estimarmos por si mesmo”, isto é, algo que desejamos possuir por ser intrinsicamente
bom; 2) “aquele bem que gostamos por si mesmo e pelas suas consequências”; e 3) uma terceira
espécie de bem [...] que são penosos, mais úteis, e não aceitaríamos a sua posse por amor a eles,
mas sim ao salário e a outras consequências que deles derivam”, isto é, algo que desejamos
possuir apenas por ser instrumentalmente bom. Por fim, Glauco pergunta a Sócrates em qual
categoria ele incluiria a justiça, ao que Sócrates responde: “acho que na mais bela, a que deve
estimar por si mesma e pelas suas consequências quem quiser ser feliz”. Ora, levando esta
reflexão à esfera ontológica, encontraríamos que a natureza do Bem é ser bom, isto é, desejável,
tanto em si mesmo quanto em suas consequências, isto é, nos efeitos que dele derivam. A
conclusão seria, portanto, que, “Bondade em sua forma mais verdadeira é tanto absoluta quanto
relativa. Se amor, por definição, deseja a totalidade de algo ao invés de um aspecto, ele buscará
esta forma mais inclusiva” (SCHINDLER, 2008, p. 101).

90
É neste ponto que descobrimos o Bem em sua natureza enquanto Causa: a bondade é
isenta de ciúmes, e por isso quer que tudo se torne tão semelhante a ela quanto possível (Timeu,
29d-e)60. Ciúmes, diz Schindler (2008, p. 302), “significa uma recusa de partilhar bondade”; o
Bem, desprovido de tal recusa, é absoluta partilha-de-si – o que torna a sua analogia com o Sol
muito apropriada. Esta é a natureza da causalidade do Bem, que, sendo Unidade absoluta e
autossuficiente, dá origem à multiplicidade, à alteridade e, portanto, à relatividade, num ato
eterno de partilha-de-si. Amá-lo plenamente, consequentemente, necessariamente envolverá
amá-lo tanto em si mesmo quanto em tudo o que ele causa – que também constitui um aspecto
integral da sua Bondade.
A magnitude do significado desta descoberta acerca do Bem se evidencia quando
comparamos Platão a Parmênides. Este último, quando fez do Ser inteligível, em sua unicidade
e eternidade, o princípio último, condenou ao puro nada toda a alteridade, a multiplicidade e o
devir (ibid., p. 303). Se o Ser inteligível e o contato que a alma ascendente pode ter com ele
fossem idênticos ao Bem e o termo último do nosso desejo, aponta Schindler (ibid., pp. 300-
301), não haveria justificativa alguma para qualquer outra coisa que não a contemplação
transcendente. Tudo aquilo do qual a alma tem que se abstrair na ascese de ascensão ao
inteligível teria que ser rejeitado definitivamente como indesejáveis: o corpo e suas paixões, a
percepção sensória e seus objetos, imagens, opinião, nomes, definições, discurso, a escrita, e
até mesmo as relações humanas (na medida em que estas nos são uma distração). Tudo o que é
da ordem da imanência e da relatividade seria nada mais que erros, obstáculos a serem
removidos em nossa busca do verdadeiro, pois tudo o que estivesse fora do Ser inteligível
estaria também removido do escopo do Bem. Em tal quadro, não haveria nenhuma razão para
o retorno à Caverna. Mas se o Bem é transcendente ao Ser “em dignidade e poder”, aquilo que
está fora do âmbito do inteligível ainda poderia estar inserido no escopo do Bem (ibid., p. 302),
de forma que “a transcendência da bondade demanda tanto o movimento (contemplativo) para
fora da caverna quanto o retorno (imaginativo/ativo) a ela” (ibid., p. 322).
De fato, esta é a conclusão do Filebo (67a): ao descobrir que nem o entendimento (a
vida voltada ao inteligível) nem o prazer (a vida voltada ao sensível) são o Bem em si, mas que
o Bem transcende a ambos, então tanto entendimento quanto prazer terão um lugar legítimo em
uma vida boa; embora o entendimento seja mais próximo e afim à natureza do Bem que o

60
Este trecho do Timeu, na verdade, diz respeito não ao Bem mas ao Demiurgo. Somos da opinião, assim como
muitos intérpretes, de que os dois não se identificam. Sobre o Demiurgo, mais depois. Por hora, apenas justifico o
uso desta passagem no seguinte sentido: apesar de o Demiurgo não ser o Bem, a passagem ilustra a natureza
daquilo que é bom, e, portanto, nos dá uma imagem da natureza causal do Bem.
91
prazer, aquele também terá uma parte no Bem61. É este aspecto da radical transcendência do
Bem que permitirá a Platão “salvar as aparências”, e fazer do caminho descendente de volta à
Caverna uma segunda metade do percurso do filósofo tão importante quanto a primeira
(ascendente), sem o qual nosso amor e conhecimento do Bem não é completo.
Assim como na via sinóptica ascendente o filósofo encontrou no Bem a unidade que
reunia em si toda a multiplicidade das Ideias, após compreender o Bem em sua natureza causal
o filósofo é capaz de discernir, no seio dessa Unidade suprema, a presença de toda a
multiplicidade das Ideias em estado potencial ou causal. Desta forma, a alma gradualmente
retorna da Unidade do Bem ao mundo inteligível, de maneira dedutiva, mas agora o que ela vê
é a presença do Bem nas Ideia: “nós vimos o Uno. Nós vemos agora as múltiplas idéias no Uno
e o Uno nessas múltiplas. Mas esta apreensão não é mais apenas, como na ascensão, o
discernimento de uma essência, ela é em verdade a percepção do Uno, do Bem [...] nesses
múltiplos ” (FESTUGIÈRE, 1975, p. 232).
No caminho ascendente apreendíamos a Ideia de maneira sinóptica e intuitiva, o que se
nos apresentava era uma visão da pura unidade da Ideia, de maneira disjuntiva (uma por vez),
subindo a Ideias cada vez mais gerais, até alcançarmos a suprema unidade no Bem. Agora nesse
caminho da dialética descendente, cuja figura lógica é a dihairesis ou divisão, lidamos não com
cada Ideia em sua unidade mas com a multiplicidade do mundo ideal unificado à luz da intuição
do Bem, uma verdadeira unidade-na-multiplicidade. É nesse momento que se torna possível
compreender o mundo ideal de maneira ordenada: “...é à diaíresis e não à sunagogé que está
ligada uma concepção articulada das Ideias, ou ainda, uma multiplicidade regulada das Ideias”
(RICOEUR, 2014, p. 65).
É esta interface entre unidade e multiplicidade que torna possível um conhecimento
científico, isto é, racional, do inteligível. Desta forma, a dialética descendente será um
movimento lógico dotado de valor ontológico, num âmbito em que os entes (tà ónta), as Ideias,
se revelam no logos (LIMA VAZ, 2012, p. 168), quando reconstruímos sistematicamente o
mundo ideal em todas as suas articulações. Desta forma, o logos dialético é capaz de discursar
e dar razão (lógon didónai) à Ideia – não em si mesma, mas em suas relações e nexos com as
demais Ideias, pois a essência em si, enquanto unidade, não é justificável; e tampouco o é a

61
O prazer só pode ter parte no Bem, no entanto, na medida em que distingamos duas formas de prazer: puro e
impuro. Os prazeres impuros são aqueles que não existem sem estarem misturados à dor, e que são julgados mais
prazerosos por serem mais intensos, isto é, quantitativamente. Os prazeres puros, por outro lado, não estão
misturados à dor, e são julgados segundo sua qualidade, de forma que mesmo uma pequena parcela deste prazer é
mais agradável e genuína que a outra. Em outras palavras, é só no reconhecimento da transcendência do Bem em
relação ao prazer, que este é reconhecido em sua natureza relativa, e assim é possível discernir entre bons e maus
prazeres – o que não seria possível se o Bem e o prazer se confundissem.
92
multiplicidade pura. É só na interface entre a unidade e a multiplicidade, peras e apeiron, que
é possível dar razões, pois agora cada particular se insere num sistema de relações, num todo 62.
Através da dihairesis descendente, na medida em que os nexos e liames entre as essências
começam a se desvelar no logos dialético, a hierarquia do mundo inteligível se apresenta como
uma verdadeira comunidade (koinonia) de essências, um “ser vivo inteligível” (Timeu, 30c), de
forma que “quem possuísse, de um só objeto, Ciência total, saberia todo o sistema do universo”
(FESTUGIÈRE, 1975, p. 183), isto é, cada Ideia é apreendida não em si mesma mas como uma
perspectiva através da qual vemos o todo63. Nesta combinação entre a dialética ascendente e
descendente, alcançamos o entendimento da unidade na multiplicidade e da multiplicidade na
unidade do mundo ideal, de forma que o múltiplo se torna compreensível à luz do uno.
Mas a dialética descendente não cessa na ciência racional das Ideias, no discurso lógico
acerca de seus nexos e liames: ela precisa descer ainda mais, ao próprio mundo sensível. No
Filebo (62a-b), Sócrates imagina um ser humano dotado de uma compreensão capaz de
argumentar e dar razões, possibilitada pelo saber (intuitivo/sinóptico), acerca da Justiça-em-si
e todas as outras coisas (ideais). Então pergunta: seria suficiente a este ser humano um tal
conhecimento acerca “do círculo divino e da própria esfera” (ideais), mas “ignorante da esfera
humana e dos círculos humanos” (sensíveis)? Ao que, Protarco responde: “Estaríamos numa
posição ridícula, Sócrates, se estivéssemos completamente restritos ao conhecimento das coisas
divinas”. Ora, é próprio da alma filosófica almejar alcançar “a totalidade e a universalidade do
divino e do humano” (República, 486a-b). É preciso, também, retornar ao conhecimento que
pertence ao mundo sensível.
Ora, a dialética descendente, seja quando estabelece uma ciência racional a respeito das
Ideias ou quando retorna às formas de conhecimento que pertencem ao mundo sensível, é
também uma descida à Caverna das quatro formas relativas de conhecimento – nome, definição,
imagem, conceito. Enquanto o caminho da ascensão era um movimento do discurso em direção
à intuição que o superava, o caminho da descida nos aparece, ao inverso, como um movimento

62
A interação entre a unidade e a multiplicidade puras forma um número determinado, isto é, uma unidade
particular. Essa é a estrutura arithmos do mundo ideal razão, a multiplicidade ordenada.
63
O filósofo alemão Schelling nos fornece uma ilustração de como essa ciência se dá. Intuir o Absoluto (o Uno)
sob a figura de uma Ideia particular, sem que o absoluto seja suprimido (SCHELLING, 2010, p. 32), é o caminho
de cada ramo do saber filosófico. Assim, por exemplo, o objeto da filosofia da arte é ver a Ideia da Arte, partindo
da intuição da presença do Uno que nela está, e discursar a seu respeito de acordo com todos os seus nexos com
as demais ideias. Em suas palavras, “na filosofia da arte construo, antes de mais nada, não a arte como arte, como
este particular, mas construo o universo na figura da arte, e filosofia da arte é ciência do todo na forma ou
potência da arte” (ibid., p. 30). Desta forma, todos os ramos do saber filosófico são aplicações da ontologia geral
a seus objetos particulares, e se unificam sob aquela ontologia geral. É desta forma que a dialética é a ciência que
unifica todas as demais.
93
da intuição ao discurso. Agora, aquilo que foi compreendido intuitivamente busca meios de
expressão para si. Desta forma, a contemplação intuitiva ascendente resultará não como a
abolição do discurso mas “seu fundamento mais além do discurso: a intuição será então o
princípio de um novo discurso” (RICOEUR, 2014, p. 49). O imperativo moral dessa descida é
claro: o logos é aquilo que é comum a todos, sem retornar a ele não há comunhão/comunicação
possível com a comunidade estabelecida na cidade. Mas do ponto de vista epistemológico, não
seria esse retorno ao logos uma espécie de obscurecimento, um retorno à prisão dos níveis
imperfeitos e refutáveis do saber?
Eis aqui o grande segredo da via da dialética descendente: o retorno à Caverna das
formas relativas de conhecimento, após a visão do Bem, é o que nos permite ver a Caverna em
sua verdadeira natureza. Enquanto desconhecíamos a essência segundo a intuição, os níveis
relativos de conhecimento nos quais nos movíamos – que só expressavam as qualidades pelas
quais a essência se manifesta mas não a essência ela mesma – eram opacos, véus que ocultavam
o real. Mas uma vez que o real nos aparece em sua nudez, e sabemos a relatividade do relativo
em sua relação com o real, o relativo deixa de ser um véu e passa a ser o esplendor da verdade:
a linguagem sabe sua limitação e fala de alguma coisa que ela reconhece estar além de si, e esta
autoconsciência da sua própria relatividade a purga de sua opacidade, de sua natureza de ídolo,
fazendo dela um ícone, janela transparente através da qual podemos fitar algo que a
transcende64. Ela se faz linguagem simbólica, veículo de reminiscência. Nas palavras de
Schindler (2008, p. 243), “dizer que o essencial não pode ser posto em palavras em sua forma
essencial não significa dizer que seja simplesmente incomunicável. É possível [...] que palavras
e imagens mediem uma relação imediata com o essencial, isto é, comuniquem mais do que elas
contêm” (minha ênfase).
Compreende-se, assim, o grande paradoxo de Platão: aquele que condena a imperfeição
da escrita mas escreve livros. Exatamente graças à sua consciência da relatividade e da
imperfeição da escrita, os seus livros dizem mais do que eles mesmos, sempre apontando para
além de si. Não é outra a razão da inesgotável fertilidade de seus diálogos ao longo dos séculos.
Schindler (2008, p. 335):
Escrever é tomar o risco de encarnar algo verdadeiro numa forma relativa e portanto
essencialmente indefensável. […] É, paradoxicamente, a destituição de qualquer
significação última à escrita por parte de Platão que outorga a sua obra tanto peso. Sua
‘transcendência’ dos diálogos, isto é, sua invisibilidade como autor, faz sua presença

64
Mesmo o conceito deve estar ciente de sua limitação e relatividade, para que possa de fato expressar o real.
94
palpável do começo ao fim. […] A imperfeição da escrita, tomando emprestado do
poeta Leonard Cohen, é a fenda através da qual a luz entra.
Da mesma forma, nas mãos daquele que não contemplou a verdade e para quem a
linguagem ainda é um véu opaco incapaz de veicular mais do que contém em si, a retórica é um
mero instrumento do engodo e da aparência, que só atua sobre a faculdade apetitiva da alma;
mas aquele que realizou o percurso filosófico da dialética ascendente e descendente é o mestre
espiritual, detentor da verdadeira arte retórica e, portanto, capaz de, através do discurso,
escrever na alma do pupilo uma verdade viva (Fedro, 276a), isto é, despertar no pupilo sua
reminiscência daquela verdade que transcende o discurso e à qual ele alude. Esta retórica é tanto
verdadeira quanto persuasiva ou efetiva, boa em si mesma (verdadeira) e em seus efeitos
(efetividade), atuando tanto sobre a faculdade racional quanto sobre a faculdade apetitiva da
alma e assim forjando uma coincidência entre elas.
A mesma lógica se aplica à arte. É conhecido que no X livro da República Platão bane
os poetas de sua cidade, e com eles os pintores e todos as artes imitativas, segundo os seguintes
juízos: o artista imitativo não conhece a verdade, e sua obra não é mais que uma imitação das
aparências do mundo fenomênico, três vezes removida da verdade65; além disso, sua arte só age
sobre as potências irracionais da alma – como a faculdade apetitiva que sente prazer e dor, ou
a faculdade irascível que sente orgulho, humilhação e raiva. O artista, assim como o orador
sofista, não conhece o bem e o mal relativo àquilo que retrata, de forma que suas imitações têm
por fim apenas agradar à multidão segundo o que lhe parece belo (602b); sua arte só se dirige
ao prazer e à dor, e por isso é despida de valor real. A única poesia que tem lugar na cidade são
os hinos aos deuses e os elogios aos homens virtuosos (607a).
Isso, porém, não é tudo. Que esta não é a posição final de Platão é evidente pelo fato de
que, ao fim de sua crítica, ele admite que se a arte imitativa se justificar, “mostrando como não
só é prazerosa, mas também benéfica, para as constituições e a vida humana”, seria justo deixá-
la regressar à cidade (607c-e). Assim como no caso da retórica, não basta que a arte seja
persuasiva e prazerosa, é preciso também que ela tenha parte no Bem e na Verdade. Assim, se
“alguém diz que a música é julgada pelo critério de prazer, deveríamos rejeitar seu argumento
[...]. A música que devemos cultivar é do tipo que possui semelhança com o seu modelo, o
belo” (Leis, 668b).
O problema, portanto, não é a prática imitativa em si, mas o modelo que se imita. Aquele
que não tem o conhecimento das verdades eternas, que nunca dirigiu o olho da sua alma à

65
O exemplo de Platão (597a-e): a cama verdadeira é a cama divina ou ideal; o artesão que constrói uma cama, o
faz imitando a cama ideal; e, por fim, o pintor imita a cama do artesão em sua pintura.
95
contemplação dos modelos divinos ideais, só é capaz de opinião, e, portanto, só pode produzir
imitações das aparências. É preciso “procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza
habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito” (República, 401c), que
contemplaram um modelo divino e, assim, estão habilitados a retornar à “caverna” da expressão
artística e produzir uma obra que, consciente da relatividade de seu meio de expressão, pode
dizer mais do que ela mesma. Nas palavras de Coomaraswamy (2007, pp. 12-13):
É a base da crítica de Platão aos poetas naturalistas e pintores que eles não sabem nada
da realidade mas apenas as aparências das coisas, pelas quais sua visão é
demasiadamente interessada; suas imitações não são dos divinos originais, mas são
apenas cópias de cópias. E considerando que Deus apenas é realmente belo, e toda outra
beleza é por participação, é apenas uma obra de arte que foi forjada, em seu tipo (idea)
e significação (dunamis), conforme um modelo eterno, que pode ser chamada de bela.
E uma vez que os modelos eternos e inteligíveis são suprassensuais e invisíveis, é
evidentemente “não pela observação”, mas pela contemplação que eles devem ser
conhecidos. Dois atos, portanto, um de contemplação e um de operação, são necessários
para a produção de qualquer obra de arte.
A arte, assim como a dialética, depende de um momento de ascensão (contemplação) e
um momento de descida (operação), sem os quais ela, assim como o discurso retórico, é incapaz
de purgar a sua matéria da opacidade que oculta a luz. A verdadeira arte, por outro lado, é,
enquanto simbolismo adequado a um paradigma inteligível, um veículo de reminiscência que
conduz a alma à Verdade e ao Bem66. Não para o prazer irracional, mas para “restaurar a ordem
à revolução na alma que tenha perdido sua harmonia, restituindo-lhe a concórdia consigo
mesma” é que a vista e a audição nos foram dadas (Timeu, 47d). Enquanto diante de uma arte
as potências irracionais da alma se regozijam nas cores e sons a cuja natureza são afins, a
inteligência espiritual se banqueteia daquilo de que lhe é afim: a forma inteligível que dá
harmonia e significado àquela arte; ela apreende e saboreia, ao intuir por detrás da
multiplicidade sensível uma unidade ideal que a sintetiza, “‘a pintura que não está em cores’,
or ‘a música inaudível’, não um formato sensível mas uma forma inteligível”
(COOMARASWAMY, 2007, p. 6). Assim, a verdadeira arte é tanto prazerosa quanto boa e
verdadeira, de forma que proporciona “prazer aos destituídos de inteligência e aos dotados de

66
Schindler (2008, p. 318) argumenta que “longe de criar uma comunidade hostil à poesia, a filosofia, como Platão
a concebe, abre um espaço para ela que a concede uma nova dignidade, na medida em que mostra como imagens
podem ser portadoras de uma realidade maior que elas mesmas”. Essa é o próprio entendimento que garante à arte
imitativa de Platão (pois seus diálogos são dramas e seus mitos são poesia) um estatuto superior àquele dos poetas
e dramaturgos que ele critica.
96
inteligência aquele júbilo intelectual produzido pela imitação da harmonia divina que é
manifestada nos movimentos mortais [da música]” (Timeu, 80b).
Não há em Platão, todavia, um sentido pós-renascentista de “belas artes” ou “finas
artes”, que se opõem às “artes aplicadas”. A palavra tekhné, neste contexto, ainda não distingue
os dois sentidos em que será traduzida nas línguas modernas: arte e técnica. Sob a categoria de
artista (artifex) Platão inclui não apenas aqueles que produzem poesia, pinturas e música, mas
também aqueles cuja arte é a arquearia, a bordadura, a cerâmica, a escultura, a lavoura, a
medicina, a tecelagem, e mesmo a política (COOMARASWAMY, 2007, p. 4). Toda arte,
portanto, é uma técnica, uma perícia, um saber-fazer; mas um saber-fazer que é sábio e bom, e
não meramente laborioso ou industrioso (ibid). Assim, o juízo completo da arte requere tanto
que a sua produção seja verdadeira quanto bem feita (ibid., p. 14), o que significa que ela deve
ser adequada tanto quanto à forma como quanto ao uso, significativa e útil, realizando
necessidades materiais e espirituais67. Em outras palavras, a verdadeira arte é boa em si mesma
e em seus efeitos. Neste casamento de teoria e prática, a tekhné autêntica se torna o paradigma
da ação excelente, um ideal da educação filosófica que assume “não que o artista seja um tipo
especial de homem mas que todo homem é um tipo especial de artista” (ibid., p. 18n).
De fato, o artista ideal de Platão é um artesão, que toma o barro da matéria informe do
mundo e o ordena, fazendo dele um Cosmos vivo e dotado de Alma. E a questão acerca da
atividade artística desse divino artesão (Demiurgo) é que modelo ele imitou para construir o
mundo ordenado: o modelo inteligível, eterno e imutável, ou o modelo fenomênico, mutável e
corruptível? De fato, é nisso que depende a validade de uma arte, como vimos. E, para Platão,
a beleza do mundo e a bondade do Demiurgo são evidências de que foi sobre o modelo
(paradeigma) eterno que ele fixou seu olhar (Timeu, 28c-29a). Não só é verdade que no Timeu
Platão “introduz a nós o artista competente, inteligente e bom” (TOFIGHIAN, 2009, p. 32),
mas também ele nos apresenta o mundo sensível em uma luz diferente do que havia feito até
então em seus diálogos: uma verdadeira obra de arte.
Não se trata, porém, de uma obra de arte qualquer, num sentido meramente estético e
secular. Em uma passagem muito significativa, o Timeu (37c) descreve o cosmos como “um
santuário aos deuses eternos” (tôn aidíon theôn gegonòs ágalma), vendo o qual o Demiurgo se
regozija (ágamai). O termo em questão, ágalma, é derivado do vocabulário do ritual votivo, no

67
Não deixa de ser uma concepção digna de reflexão sobre a contemporaneidade: uma tal concepção de arte que
reúna em si tanto o significado (verdade, bondade, beleza) quanto o uso na vida (utilidade), nos salva do divórcio
moderno entre “finas artes” removidas da vida e da utilidade, de um lado, e a manufatura massificada e
mecanizada, desprovida de sentido, do outro.
97
qual significa uma estátua dos deuses, que é um objeto de culto e adoração a ser consagrado
(oferecido) aos deuses no interior de um santuário para que eles se façam presentes ali 68, e
graças ao qual os homens devotos e os deuses se alegram ou regozijam (ágamai).
Metaforicamente, no Timeu, “o mundo está sendo oferecido, qual estátua num templo” e “é
causa da alegria dos deuses, assim como do deus artesão. Ele é como uma oferenda sagrada,
criadora de um vínculo divino” (OLIVEIRA, 2016, pp. 87 e 89). O cosmos do Timeu é, além
disso, não só um santuário, mas também um ritual, um movimento do devir ordenado segundo
o número (37e) 69. Isto é, uma ação (movimento) simbolicamente ordenada segundo a “liturgia”
do paradigma inteligível (o número), e através do qual a presença dos deuses é invocada a se
manifestar no interior deste santuário. 70
O Demiurgo ordena o mundo sensível segundo o modelo eterno que sua inteligência
contempla, assim revelando a beleza e a bondade do paradigma no mundo, tal como um divino
dialético, que “é suficientemente sábio e poderoso para combinar o múltiplo com o uno e
decompor, inversamente, o uno no múltiplo” (Timeu, 68d). Isto é, ele é aquele que vê a
multiplicidade (sensível) na unidade (da Ideia), e a unidade na multiplicidade. Também o

68
“É verdade que θεων αγάλματα é uma frase comum para ‘imagens dos deuses’, estátuas rituais; mas a palavra
em si mesma tem dois sentidos principais: (1) objeto de adoração, e (2) algo no qual se tem deleite. ‘Imagem’
sugere aos nossos ouvidos uma similitude; ‘estátua’, uma efígie sólida e desinteressante num parquet. Nós não
pensamos numa estátua como consagrada pelo espírito de um general ou politico defunto. Ela não é nunca um
objeto de adoração e raramente uma causa de deleite. […] Para o antigo a estátua ritual era algo que ele adorava e
no qual se deleitava porque a imagem visível indicava a presença da divindade no santuário. Ela estava ali
estabelecida para que o deus pudesse vir e habitá-la” (CORNFORD, 1997, pp. 99-100).
69
Isso não está evidente, porém, em Platão; no máximo, a presença do vocabulário votivo torna essa leitura
possível. De qualquer maneira, mesmo que Platão não houvesse pensado nisso, não é impossível que seja uma
influência tácita da religiosidade votiva. É uma interpretação um tanto “livre”, portanto, que só receberá atenção
no Neoplatonismo tardio.
70
No texto do Timeu, os deuses a que fazemos referência aqui são os “deuses jovens”, deuses astrais visíveis no
céu estrelado, criados pelo Intelecto Demiúrgico, o “deus metafísico” dos filósofos. Ora, esta menção não é
fortuita, pois representa, no contexto da via descendente, a restauração da religiosidade Olímpica, que havia sido
criticada por Platão na via ascendente. Não por acaso, diálogos tardios de Platão, como o próprio Timeu e as Leis,
representam uma retomada daquela religiosidade. A filosofia, mais próxima da religiosidade mistérica, torna-se
como a dimensão “esotérica”, diante de uma dimensão “exotérica” da religiosidade olímpica da pólis, cujos deuses
e práticas serão aceitas por Platão nestes diálogos tardios como o fundamento da sua teologia natural e da sua pólis
– assim como a comunidade pitagórica era dividida entre os acousmatikoi e os mathematikoi. Segundo Morgan
(1992): “Na pólis apenas um pequeno número de cidadãos serão competentes para alcançar o nível mais rico de
transcendência extática e piedade filosófica retratada no Fédon, República, e Fedro. […] Nas Leis Platão deixa
claro que nem todos cidadãos são igualmente equipados para se tornar filósofos […]. Práticas religiosas gregas
conhecidas, portanto, são requeridas para aqueles incapazes de um entendimento correto do divino” (pp. 241 e
243). Desta maneira a pólis “prove um meio institucional e cultural em que tanto a Piedade filosófica quanto a
religiosidade cívica não-filosófica florescem e funcionam. Um regime de sacrifícios, festivais, e celebrações para
os cidadãos ordinários, preenchidos com expressões de louvor e gratidão, servem para engrandecer a vida política
e para possibilitar a boa vida a florescer para todos. […] O filósofo também ‘segue na companhia do divino’, mas
ele o faz através de uma vida de aspirações racionais e estudo, e servindo à pólis, desse modo se tornando como
um deus. Destas formas, portanto, tanto a piedade filosófica quanto a não-filosófica podem coexistir no Estado, e
cada uma, à sua maneira, conduzir a uma vida com os deuses” (p. 244). Esta aceitação da religiosidade olímpica,
ainda que submetida à religiosidade mistérica da filosofia, se manifesta também no fato de que “a Academia de
Platão era ela mesma um santuário das Musas” (BURKERT, 1985, p. 337).
98
filósofo é chamado a esta dialética perfeita, a realização da unidade-na-multiplicidade, que lhe
permitirá ver o mundo à luz de seu paradigma.
Assim como a compreensão da natureza causal do Bem nos permitiu encontrar latente,
em sua suprema Unidade, toda a multiplicidade inteligível, assim também nos movemos à
compreensão da natureza causal da Ideia. A alma compreende que o “mundo do inteligível
incorpóreo transcende o sensível, não no sentido de uma absurda ‘separação’ e sim no sentido
da causa metaempírica (isto é, da ‘causa verdadeira’), a verdadeira razão de ser do sensível”
(REALE, 2014, p. 78). O filósofo discerne, no seio da unidade inteligível da Ideia, a
multiplicidade sensível que dela participa, nela presente causalmente ou potencialmente. A
Ideia se revela, portanto, um uno-múltiplo. O Círculo-em-si compreende, de maneira seminal,
tudo o que é circular. Desta forma abre-se o caminho para retornar, pelo processo dedutivo da
divisão (dihairesis), da unidade pura da Ideia à multiplicidade sensível. Agora a alma é capaz
de compreender esta multiplicidade à luz do inteligível, por exemplo, ver a presença (parousia)
do Círculo-em-si nas coisas circulares71, “na medida em que a causa está no causado, o princípio
no principiado, a condição no condicionado” (ibid., p. 81). O mundo se revela diante dos olhos
do dialético como um espetáculo inteligível se desdobrando sobre a tela do tempo e do espaço,
e assim descobre a beleza e a bondade do mundo, que lhe aparece agora como um santuário
sagrado dos deuses, uma teofania abençoada. Nas palavras de Rogue (2015, pp. 145-146), “o
pensamento não apreende mais a disjunção [...] do ser e da aparência, mas os caminhos de uma
epifania onde a aparência é ser, porque rebento que este procriou para dar-se a nós”. Até mesmo
a corporeidade, que na via da ascensão era vista como uma prisão ou túmulo no qual a alma se
encontra enterrada, agora poderá ser vista como um sinal da presença desse algo que a
transcende 72.
Não apenas do ponto de vista epistemológico, mas também do ponto de vista
metafísico, portanto, encontraremos que o valor do mundo sensível, antes condenável como
mera sombra do real, será agora redimido. De fato, o mundo sensível nunca foi ilusório, mas
apenas nossa ignorância que, ao não sabê-lo relativo a um real inteligível, removidos da visão
da sua verdadeira natureza sub specie aeternitatis, o víamos de maneira falsa:
- Ora, quem acreditar que há coisas belas, mas não acreditar que existe a Beleza-em-si
nem for capaz de seguir alguém que o conduzisse no caminho do seu conhecimento,
parece-te que vive em sonho ou na realidade? Repara bem. Por ventura sonhar não é

71
Leitura baseada em Festugière (1975, p. 182n).
72
Górgias (493a), Crátilo (400c). Trata-se de um jogo semântico, uma vez que a palavra grega σῆμα pode
significar tanto túmulo quanto sinal. Mais uma expressão da ambiguidade de Peithô.
99
quando uma pessoa, quer durante o sono, quer desperta, julgar que um objeto
semelhante a outro não é semelhança, mas o próprio objeto com que se parece? - Eu,
por mim, chamaria sem dúvida sonhar a uma coisa dessas. - Pois bem! Aquele que, ao
contrário deste, entende que existe o Belo-em-si e é capaz de o contemplar, na sua
essência e nas coisas que nela tem participação, e sabe que as coisas não se identificam
com ele, nem ele com as coisas, uma pessoa assim parece-te viver em sonho ou na
realidade? - Claro que na realidade. (República, 476c-d. Minha ênfase).
De fato, aos filósofos que contemplaram o Bem e o mundo inteligível e retornaram às
trevas da Caverna, Sócrates diz:
Uma vez habituados [à escuridão da caverna], sereis mil vezes melhores do que os que
lá estão e reconhecereis cada imagem, o que ela é e o que representa, devido a terdes
contemplado a verdade relativa ao belo, ao justo e ao bom. E assim teremos uma cidade
para nós e para vós, que é uma realidade, e não um sonho. [...] Pensas que, ao ouvir
isto, os nossos educandos não ficarão convencidos, e não quererão participar nos
trabalhos da cidade, cada um por sua vez, embora passem a maior parte do tempo uns
com os outros na região pura73? (República, 520d-e. Minha ênfase)
Completa-se agora a famosa Alegoria de Platão. O filósofo que se elevou até à
contemplação do Sol do Bem, retorna à Caverna como o Rei-filósofo, que dirigirá a cidade e a
comunidade, isto é, cuidará do outro e atuará no mundo de forma ordenante. De fato, este é o
ideal da educação filosófica platônica, que é ao mesmo tempo um resgate da figura arcaica do
rei justiceiro micênico, o qual possuía um conhecimento mântico e que, através de um logos ao
mesmo tempo verdadeiro e persuasivo, efetivava a verdade e a justiça na vida comum da cidade.
Assim também o é o rei-filósofo de Platão: mas é a contemplação filosófica, e não as práticas
mânticas, que lhe garantem o privilégio de mestre da verdade. Ele será muito mais capacitado
que os demais para o governo, porque só ele viu o Bem e, portanto, conhece a finalidade “em
vista da qual devam executar todos os seus atos, particulares e públicos” (República, 519b).
Não é segundo o modelo da cidade existente que ele se pauta, mas, contemplando o modelo de
cidade que há no céu, “é pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautará o
seu comportamento” (592b). Como o coloca A. E. Taylor (apud Reale, 2014c, p. 96), “É em
virtude de tal contemplação que deuses e homens executam a tarefa prática de estabelecer e
manter a ordem natural e moral no reino da mutabilidade e do devir. Como Moisés, eles fazem
todas as coisas segundo o modelo que viram ‘na montanha’”. O Rei-filósofo é a mais perfeita
imitação, na cidade, daquilo que o Demiurgo faz no cosmos: ordenar o mundo ao Bem e à
Verdade através de sua contemplação e de sua efusão de generosidade.

73
A “Ilha dos Bem-Aventurados”.
100
Eis a sua mais perfeita homoiosis theo, assimilação a deus, o fim último do esforço
filosófico e sua perfeição (Teeteto, 176b). Ao final de sua vida, retorna à sua condição originária
perfeita e alada, e “percorrendo a totalidade do universo”, “caminha nas alturas e governa o
mundo em universal” (Fedro, 246c).

2.4 O Filósofo Platônico

Mas este é meramente um horizonte, o ideal ao qual o filósofo aspira74. Não está claro
em nenhum lugar que Platão considerava esse ideal plenamente alcançável em vida, e está
sempre a qualificar suas exortações à deificação da alma com um “na medida em que é
humanamente possível”. De fato, o Sócrates idealizado dos diálogos platônicos rejeita a alcunha
de sábio (sóphos) – a qual ele diz só caber ao divino – e modestamente se define apenas como
amigo da sabedoria, philo-sóphos (Fedro, 278d).
No Banquete, Sócrates argumenta que se o amor é um desejo por algo que não se possui,
e o se o amor é desejo pela beleza e o bem, então há que se concluir que o amor é desprovido
de beleza e bondade. Logo, Eros não pode ser um deus. Tampouco pode ele ser meramente um
mortal, pois o seu estado de desejo pelo divino faz dele algo mais que mortal. A sacerdotisa
Diotima, cujo discurso Sócrates reproduz, diz que entre a sabedoria e a ignorância há um estado
intermediário que é capaz de dar uma opinião verdadeira – o que não constitui verdadeira
sabedoria, pois não é capaz de dar razão de si, nem ignorância, por ter algum comércio com a
verdade (Banquete, 202a). Assim também, Eros não é bom nem belo, mas tampouco mau e
feio; ele é um daimon, ser intermediário entre as esferas do divino e do mortal. Deuses não
desejam ser sábios, pois já o são; e tampouco os mortais ignorantes o desejam, pois este
contentamento com a ausência da sabedoria é o que caracteriza a ignorância (204a). Eros, apesar
de não possuir a sabedoria divina, também não se contenta com a sua ausência, e portanto ele é
“amor direcionado para aquilo que é belo e nobre; a conclusão é que Eros tem que ser filósofo,
ficando assim entre o sábio e o ignorante” (204b).
Hadot (1999) interpreta o sentido de “filósofo” à luz dessa passagem. Ele argumenta
que o texto platônico, aqui, estabeleceu uma oposição de contradição radical entre o divino e o

74
Mesmo o percurso da dialética ascendente e descendente, como fizemos aqui, como se fossem dois movimentos
completamente independentes, é apenas uma descrição pedagógica, porque de fato os dois movimentos se
entrelaçam a todo o tempo, o filósofo se move constantemente entre os dois, assim aprendendo “a falar e a pensar”
(Fedro, 266b).
101
mortal, entre o sábio e o não-sábio, que é intransponível (ibid., p. 77). Assim, o filósofo “está
votado a jamais alcançar a sabedoria” (ibid., p. 78), de forma que o seu status de “entre” deve
ser entendido como se na esfera dos não-sábios Diotima houvesse introduzido uma divisão: “há
os que são inconscientes de sua não sabedoria, e estes são propriamente os ignorantes, e há os
que são conscientes de sua não sabedoria, e estes são os filósofos” (ibid.). O resultado disso é
que Platão instaura uma “distância insuperável entre a filosofia e a sabedoria” (ibid., p. 79), de
forma que não só Eros é desvalorizado, passando de deus a daimon, mas também o filósofo
(ibid., p. 80), pois, apesar de sempre aspirar à sabedoria, ele nunca a alcança. Ele pode até
progredir nessa busca, mas “sempre para o interior da não sabedoria. Ele tende para a sabedoria,
mas de maneira assinótica, sem jamais poder atingi-la” (ibid., p. 82).
De fato, esta é a interpretação mais corrente do sentido platônico de “filosofia”. Ela ecoa
a perspectiva de uma teologia/antropologia olímpica, que parte de uma separação radical das
províncias do humano e do divino, como se ao mortal fosse proibido a realização de sua
aspiração ou desejo (eros) de ser em um estado divino – o que significaria dizer que a filosofia
é meramente uma atividade humana, removida da esfera do divino e da sabedoria que lhe é
própria, restrita ao âmbito humano, um anelo sem fim que está sempre “a caminho” para algo
inalcançável. Tanto a filosofia quanto o sofismo são discursos puramente humanos, e a única
coisa que os diferencia é que o filósofo é um não-sábio que está consciente da sua ignorância,
enquanto o sofista é um não-sábio que não tem consciência de sua ignorância.
Mas é impossível que o filósofo seja um mero “não-sábio” que, consciente dessa sua
limitação, deseja a sabedoria sem jamais poder ter a esperança de alcançá-la. Pois: como ele
pode desejar algo que não conhece? E onde é que viu a sabedoria para que possa julgar,
relativamente a ela, a sua própria ignorância?
De fato, no Filebo (34e-36a), Platão avança uma compreensão distinta do significado
de “entre”. Ele diz que a pessoa com sede está vazia de bebida, e por isso sofre, e a sede é um
desejo para ser enchida pela bebida, do qual deriva prazer; mas, supondo alguém que
experimenta sede pela primeira vez, como poderia desejar a plenitude a que a sede aspira, se
nunca a conheceu? Isso só é possível, ele diz, na medida em que “uma porção daquele que está
com sede é capaz de compreender a plenitude” (35b), e esta porção deve ser a memória que se
localiza na alma e não no corpo. A sua conclusão é que não há tal coisa como um desejo
corpóreo, pois “o empenho de todo ser vivo é sempre no sentido do oposto daquilo que
efetivamente experimenta”, “e o impulso que conduz para o oposto daquilo que se experimenta
indica que existe uma memória do oposto daquilo que se experimenta”. É, portanto, a memória

102
“que nos conduz para os objetos de desejo”, de forma que “todo impulso, desejo e princípio
que atuam em todo ser vivo são da alma”, isto é, o corpo, apesar de experimentar a carência, é
incapaz de, por si, experimentar o desejo pela plenitude, como a sede, fome e etc (35d). É na
interface entre a alma que conhece a plenitude e o corpo que experimenta a carência que esse
desejo se dá. Mais adiante, ele supõe uma posição intermediária entre o prazer e a dor, um
estado no qual alguém sofre devido ao vazio em que o corpo se encontra, mas tem prazer,
simultaneamente, graças à lembrança (por parte da alma) da plenitude que lhe faz ter esperança
de ser enchido (36a-b).
Observa-se que o estado intermediário entre prazer e dor significa um estado em que se
experimenta ambos simultaneamente, e isto é possível devido à duplicidade de corpo e alma
em uma mesma natureza. Similarmente, podemos entender que o estado intermediário entre a
ignorância e a sabedoria que constitui o filósofo significa que ele possui ambos em si,
simultaneamente, devido à duplicidade de sua natureza. É preciso, portanto, compreender o
philosóphos a partir de uma teologia/antropologia mistérica, segundo a qual o homem é parte
dionisíaco e parte titânico, parte divino/celeste/imortal/sábio e parte terreno/mortal/ignorante.
A alma é, de acordo com o Timeu (35b), uma mistura entre a essência, o círculo do Mesmo e o
círculo do Diferente; isto é, ela possui em si aquela atividade que lhe permite afinidade à
unidade inteligível (círculo do Mesmo), e aquela atividade que lhe permite afinidade à
multiplicidade sensível (círculo do Diferente) – ambas simultaneamente presentes em si75.
É esta duplicidade que faz do filósofo um entre: não é puramente mortal nem divino,
mas aquele que, possuindo ambos em si, não é nenhum dos dois, e portanto intermedeia os dois
mundos. E assim como no exemplo da sede, que só é possível devido à memória de plenitude
que está na alma somada ao vazio que está no corpo, é só à luz da sabedoria divina da parte
divina de si somada à ignorância da parte mortal que o desejo pela sabedoria é possível. Nesse
sentido, o termo philo-sóphos, tal como o usou Platão, é expressão de uma visão antropológica
que entende o homem como sendo fundamentalmente paradoxal: “um daimon, amálgama de
divindade e humanidade; mas um amálgama não existe por si, ele é necessariamente ligado a
uma estranheza, quase a um desequilíbrio, a uma dissonância interna” (HADOT, 1999, pp. 81-
2).

75
Esta passagem do Timeu é significativa pois aponta que esse caráter paradoxal do homem é levado ao interior
da própria alma. Isto é, já não se trata mais de uma dualidade entre corpo e alma, mas uma duplicidade interna à
própria alma. É só graças ao “círculo do diferente” em si mesma que ela é capaz de qualquer associação com o
corpo e o mundo corpóreo. É a concepção platônica mais madura do paradoxo antropológico mistérico.
103
Também no Banquete, “Eros-filósofo” tem sua origem mítica explicada da seguinte
maneira: ele é filho de Póros, personificação do recurso e da riqueza, e de Pênia, personificação
da pobreza e da penúria. Ora, como filho, ele participa da natureza de ambos pais – assim como
a alma órfica é dita filha da Terra e do Céu –, o que caracteriza sua natureza paradoxal:
... num mesmo dia, estando repleto de recursos, viceja e pulsa de vida, para depois, num
outro momento, ficar moribundo e morrer, revivendo mais tarde por força de sua
natureza paterna; os recursos, porém, de que se apossa sempre não tardam a lhe escapar,
minguando, de maneira que Eros jamais é propriamente pobre ou rico (Banquete, 203e).
Quando Platão diferencia o sábio do filósofo, e põe o filósofo na categoria de
intermediário entre a sabedoria divina e a ignorância humana, ele tem em mente o modelo dos
daimons. Vejamos como o Banquete (202e-203a) descreve a função e o modo de ser da ordem
daimonica dos seres:
... interpretar e transportar [ἑρμηνεῦον καὶ διαπορθμεῦον] coisas humanas aos deuses e
coisas divinas aos seres humanos; súplicas e sacrifícios que partem daqui para o alto e
ordens e dádivas que procedem do alto para cá. Estando a meio caminho, ele promove
a suplementação recíproca, resultando em que o todo se combina em um. Ele é o veículo
de toda atividade divinatória e toda sacerdotal no que respeita aos sacrifícios, rituais de
iniciação, encantamentos, e toda profecia e magia. Deuses não se misturam com seres
humanos, mas o daimônico é o meio de toda associação e diálogo de seres humanos
com deuses e de deuses com seres humanos, estejam estes despertos ou adormecidos.
Albert (2011, p. 35) chama atenção para os dois primeiros verbos usados para definir a
função daimonica: interpretar e transportar, o que faz do daimon um intérprete e um barqueiro.
Ora, um intérprete é aquele que conhece os dois idiomas das duas pessoas que se comunicam,
e assim pode traduzir suas palavras de um para o outro; e o barqueiro é aquele que conduz os
viajantes de uma margem à outra do rio. Estes e outros exemplos apontam para uma concepção
mais dinâmica do significado do “entre” que caracteriza o filósofo, e que apresentam
continuidade com a compreensão paradoxal da sua natureza. Albert (ibid.) o explica:
Na medida em que corresponde à comparação feita com o intérprete e o barqueiro, o
pensamento filosófico tem de ser um movimento de ida e volta entre o divino e o
humano, e quiçá de tal modo que esse movimento atinge tanto um ponto quanto o outro.
O barqueiro, que se move entre uma margem e outra, conhece portanto as duas
margens, mas não pode deter-se nelas. Isso corresponde com precisão também ao
conhecimento do filósofo: por um lado, ele se encontra no âmbito do conhecimento
divino; não pode, porém, ali manter-se permanentemente, mas como mediador do

104
âmbito do divino deve deslocar-se para o âmbito do conhecimento humano. 76 (Minhas
ênfases)
Também uma análise filológica do termo philosóphos não sustenta aquela ideia de anelo
inalcançável. Como Albert (2011, p. 33) aponta, termos gregos como philositos e philoksenos
significam, respectivamente, alguém que é aficionado à comida e que gosta de receber visitas.
Eles não significam que essas pessoas somente desejam eternamente a comida sem jamais
comê-la, ou anelam constantemente a receber visitas sem jamais fazê-lo. Similarmente, philo-
sophos é aquele que “está às voltas com o trato constante e vivo com a sabedoria, sophia, e não
simplesmente anela por ela” (ibid.). Pela via da dialética ascendente a alma humana se eleva à
luz da intuição (a “margem do divino”), pela via da dialética descendente ela retorna da intuição
ao discurso (a “margem do humano”), e é nesta passagem constante de uma margem à outra
que se constitui a vida filosófica.
A filosofia, portanto, não é uma atividade puramente humana – pois, neste caso, ela
seria o sofismo, e o seu logos seria meramente uma falsa retórica, incapaz de verdade, e o
máximo que poderia alcançar, se reconhecer sua ignorância é tudo o que lhe cabe, é um
ceticismo irrestrito; nem, tampouco, é ela uma atividade puramente divina. Ela é, antes, uma
atividade do divino no homem, do imortal no mortal, do “infinito” no “finito”, e é esse
paradoxo que faz do filósofo um “entre”. Sem o conhecimento do divino que habita em si
mesmo, o verdadeiro autoconhecimento, e o cuidado de si que o atualiza, não há filosofia. É só
quando alguém conhece o divino e a sabedoria que habita em si, é que ele é capaz de reconhecer
sua ignorância mortal enquanto tal, e assim ser um entre, um philo-sóphos, barqueiro daimonico
que navega constantemente entre as duas margens, de forma que “estando a meio caminho, ele
promove a suplementação recíproca, resultando em que o todo se combina em um” (Banquete,
202e).

76
Ora, deslocar-se ao âmbito do conhecimento humano, após se encontrar no âmbito do conhecimento divino,
aparece aqui como um dever, enquanto na página anterior, a citação do Banquete (203e) acerca da natureza
paradoxal do filho de Póros e Pênia indica que ele é incapaz de manter os recursos que alcança, que sempre lhe
escapam, forçando-o a cair novamente em pobreza, e assim sucessivamente oscilando entre os opostos. Trata-se,
aqui, do tema do retorno do filósofo à Caverna depois de haver contemplado o Sol do Bem: seria este retorno um
dever, como havíamos tratado a questão anteriormente, ou uma incapacidade de permanecer na contemplação
transcendente, sendo sempre forçado, devido à sua imperfeição, a uma “queda” naquela escuridão indesejada? De
fato, essa é a ambiguidade da encarnação humana, que aparece no Fedro como sendo uma queda da contemplação
celeste devido à imperfeição da carruagem da alma, e que aparece no Timeu como uma missão atribuída à alma
humana pelo Demiurgo, para que ela descenda ao mundo do devir e complete a sua perfeição. Certos pensadores
neoplatônicos eram bastante conscientes desta ambiguidade, como o discute Shaw (2014). A resposta para essa
ambiguidade, se poderia conjecturar seguindo a interpretação até aqui desenvolvida, é que a descida à Caverna é
uma imperfeição ou dever, movida pela necessidade ou pela liberdade, dependendo da compreensão que
possuímos da natureza do Bem: para aquele que conhece a irrestrita partilha-de-si que o constitui, descer à
escuridão é uma completude da Bondade que é o princípio de tudo, portanto um ato livre; para aquele que não
conhece essa sua natureza, descer à escuridão é uma queda, um ato “necessário” (no sentido trágico da palavra).
105
3 PLOTINO E O CONHECIMENTO DE SI EM RESPOSTA AO CETICISMO

3.1 A virada Neoplatônica ao Sujeito77 em resposta às objeções céticas

O princípio epistemológico dos filósofos pré-socráticos, que se estende ao período


clássico e adiante, como tivemos a ocasião de dizer em diferentes passagens do capítulo
anterior, era baseado na asserção da conaturalidade daquele que percebe e o seu objeto de
percepção: os sentidos percebem os elementos sensíveis (terra, água, fogo, ar) porque possuem
a mesma natureza, como se o olho só percebesse a luz porque ele também é constituído de
luminosidade. Por extensão, no platonismo a inteligência, compreendida como se fosse uma
forma de percepção, é aquela que “percebe” as ideias, porque ambas possuem a mesma
natureza. Cada faculdade cognitiva, portanto, existe em uma relação necessária apenas com o
seu próprio objeto, de forma que não é possível que os sentidos percebam o pensamento ou que
o pensamento perceba objetos sensíveis. Além disso, neste contexto a verdade não é entendida
como sendo um atributo daquele que percebe, ou mesmo da percepção, e sim do objeto
percebido:
Quando a alma se foca no domínio da verdade e da realidade, ela apreende (’ενοησε)
essas coisas, e ‘parece possuir inteligência’ (nous: 508D). Quando, por outro lado, ela
foca nas regiões inferiors, ela só é capaz de atingir a opinião, e ‘parece não possuir
inteligência (nous)’. O poder de conhecer resulta não dos esforços do indivíduo, nem
da qualidade de seu intelecto, nem de alguma outra habilidade interna, mas dos objetos
externos eles mesmos. […] A eficácia do nous não é portanto uma questão de
aguçamento dos instrumentos intelectuais, ou do aperfeiçoamento de nossos ataques aos
problemas do intelecto, mas emerge dos seus objetos. A realidade é a causa do
conhecimento e da verdade, e ela de alguma maneira ativa as faculdades do saber pela
sua presença. (MOURTLEY, 1986, pp. 72-73)
Assim, quando no livro VI da República Platão lista quatro níveis de faculdades
cognitivas e as faz corresponder a quatro níveis ontológicos de objetos de conhecimento, ele
tem em mente a noção de que “essas faculdades possuem claridade na medida em que seus

77
Naturalmente, não há um termo grego para “sujeito”, que é um vocábulo moderno. Falo aqui de uma ‘virada
neoplatônica ao sujeito’ seguindo Hankey (2005b), que assim denominou um movimento importante do
pensamento Neoplatônico Tardio, o qual possui similaridades mas também diferenças em relação à problemática
do sujeito na modernidade. Ainda, há que se ressaltar que este movimento só tem sua plenitude no período tardio
do Neoplatonismo; em Plotino ele ainda não está assentado, embora talvez suas bases o estejam. Abro aqui esta
questão, que só será concluída no próximo capítulo, quando o pensamento de Proclo será tratado. Mas este 3º
capítulo acerca de Plotino é fundamental como base para a discussão do tema em Proclo.
106
objetos possuem verdade” (ibid., p. 74), de forma que ele “atribui verdade aos objetos do
conhecimento, e não às faculdades, nem ao discurso acerca da realidade que possa emergir
delas” (ibid.). Desta forma, a educação filosófica ali proposta por Platão não é entendida como
um treinamento da capacidade cognitiva do sujeito, mas da sua aplicação e familiaridade com
um nível de realidade ou outro. Isto é, trata-se de uma reorientação da sua atenção, como o
coloca Taylor (1997, pp. 165-166):
... a passagem da ilusão para a sabedoria é como se voltássemos o olho da alma para a
direção certa. [...] Para Platão, a questão-chave é para o que a alma se dirige. É por isso
que ele quer formular sua posição em termos de oposições corporal/imaterial,
mutável/eterno, pois estas definem as direções possíveis de nossa consciência e de nosso
desejo. [...] a questão crucial é para quais objetos a alma está voltada e deles se alimenta.
A alma imaterial e eterna deve voltar-se para o que é imaterial e eterno. O que importa
não é o que acontece dentro dela, mas para onde ela está se voltando na paisagem
metafísica. (Minhas ênfases)
Ora, em total contramão das características deste modelo objetivista de conhecimento,
vemos o cristão Boécio (480 – 524) dizer, como palavras da ‘Senhora Filosofia’, que não é
verdade que todas as coisas são conhecidas “pelo poder e a natureza dos objetos conhecidos.
Totalmente ao contrárior, pois tudo o que é conhecido é compreendido não de acordo com o
poder da coisa em si mas de acordo com a capacidade daqueles que a conhecem” (apud
HANKEY, 2005b, p. 19). Aparece aqui uma concepção radicalmente distinta, que põe o sujeito
no centro do conhecimento. Diante desta constatação, perguntamos: o que há entre a concepção
clássica centrada no objeto e essa apresentada por Boécio, que explique essa reversão?
Não raramente este intermediário “revolucionário” tem sido buscado no Cristianismo,
supondo neste o papel de fundador da subjetividade. Porém, esta perspectiva ignora os
intermediários interiores à própria filosofia grega. De fato, a ideia acima apresentada por Boécio
possui um passado significativo no Neoplatonismo pós-plotiniano, como esta passagem de
Proclo (412 – 485) o apresenta, de maneira já amadurecida e explícita:
Não é o caso que todas as coisas que agem, agem de acordo com seu próprio poder e
natureza, e, de acordo com a categoria que possui na escala do ser, tal é sua ação, de
acordo com sua própria categoria? Por exemplo, a Natureza age no nível natural, o
Intelecto num [nível] intellectual, e Alma num nível psíquico […]. E se é assim, e tudo
que age, age de acordo com sua propria natureza e categoria, uma divinamente e numa
maneira superior à natureza, outra de acordo com a natureza, e alguma outra coisa de
alguma outra maneira, é óbvio, certamente, que também aquilo que sabe, sabe de
acordo com sua natureza. Então não será o caso que porque aquilo que é conhecido é
um e o mesmo, por esta razão aqueles que o conhecem devem estar relacionados a seu

107
objeto de conhecimento exatamente da mesma forma; pois, afinal, uma coisa branca é
conhecida pela percepção sensível e pela opinião, e pelo nosso intelecto, mas não da
mesma maneira; pois a percepção sensível não consegue conhecer a natureza essencial
(to ti en einai) do branco; nem a opinião compreende seus próprios objetos de
conhecimento da mesma maneira que o intelecto o faz; pois o intelecto conhece também
a causa, enquanto a opinião conhece apenas o fato; [...] Portanto, o conhecimento varia
de acordo com a natureza do agente do conhecimento. Não é o caso que é de acordo
com a natureza do objeto conhecido que ele é conhecido por todos, mas é conhecido de
uma maneira superior por agentes superiores, e numa maneira inferior por aqueles
mais inadequados. (In. Parm. IV, 956.12 - 957.15. Minha ênfase)
Aqui já estão presentes todos os elementos daquela reversão: a noção de que é o sujeito,
não o objeto, que determina a cognição, o que se apresenta como uma noção de perspectiva, ou
seja, que o mesmo objeto pode ser conhecido de maneiras distintas por diferentes faculdades
ou segundo as capacidades cognitivas de sujeitos distintos. E notamos que, embora em Proclo
esta concepção já esteja assim estabelecida, suas sementes já apareciam em Porfírio (234 – 305)
e Jâmblico (245 – 325), conforme notou Hankey (2005b, p. 20). Ele diz ainda que, ao contrário
do que pensava Heidegger, para quem essa passagem do foco na substância ao foco no sujeito
era um movimento próprio à modernidade, esta reversão já estava em pleno curso no
Neoplatonismo Tardio, para o qual “o recentramento do conhecimento e da criatividade na
natureza do sujeito e sua perspectiva” (ibid., p. 21) é um fator central.
No entanto, é no Ceticismo grego que devemos buscar a origem desta reversão. De fato,
é em debate com e como resposta aos desafios postos pela filosofia cética que o Neoplatonismo
desenvolveu sua própria versão da ‘virada ao sujeito’, cujo propósito era salvar a possibilidade
do conhecimento verdadeiro (e consequentemente toda a herança filosófica grega) das objeções
representadas pelo Ceticismo. E o caminho pelo qual o Neoplatonismo realizou isto foi,
precisamente, um aprofundamento e expansão do escopo do ‘conhece-te a ti mesmo’ clássico,
que passaria a cada vez mais determinar tanto o método quanto o conteúdo do seu filosofar,
uma vez que “as escolas céticas só são respondidas pelos Neoplatônicos na medida em que
procedem a Deus e ao mundo a partir do interior de si” (ibid., p. 18). A importância desta
contextualização do pensamento neoplatônico, especialmente em sua fase tardia, é tal que,
como o coloca Hankey (ibid.), ele se torna ininteligível “quando falhamos em atentar à sua
origem na e radicalização da virada Cética ao sujeito”. Vejamos, portanto, do que se tratava o
desafio cético ao qual o Neoplatonismo precisou responder.
O primeiro desafio posto pelo Ceticismo é em relação ao próprio elã que move o
pensamento em direção a algum tipo de verdade. Como bons socráticos, os pirrônicos

108
compreendiam que o fundamento do filosofar é o desejo pelo bem, que eles compreendiam ser
a quietude (ataraxia). Isto é, todo ato de filosofar é uma aspiração pela quietude, e filósofos
como Platão e Aristóteles (aqui chamados de “dogmáticos”) investigavam a verdade na
esperança de encontrar a quietude em tal conhecimento. Ora, para o Pirronismo, ao contrário,
é no abandono do desejo pela verdade que a quietude pode realmente ser encontrada. Qualquer
teoria a respeito da verdadeira natureza das coisas é falsa, e nossos falsos juízos (isto é, todos
eles) são a causa de nossa perturbação. Por outro lado, aquele que se recusa a aceitar ou assentir
a qualquer juízo encontra a tão desejada quietude. O abandono do desejo pela verdade é o
fundamento da ascese do filósofo cético; e ele não o faz porque tal abandono esteja de acordo
com alguma verdade, mas tão somente pelo elã que o move em direção ao bem, que é a palavra
máxima da filosofia, por ele concebido como sendo uma quietude desprovida de juízos. Desta
forma, “um Pirrônico … vive pelas aparências, não porque elas são (supostamente) semblantes
da verdade, nem porque ele acredita que elas são tudo o que jaz ao nosso alcance; ele não tem
nenhum uso para a noção de ‘verdade’ dos filósofos em absoluto, e portanto a desconsidera
completamente” (WAGNER, 2002, p. 314).
O raciocínio apresentado pela filosofia pirrônica será, por conseguinte, não uma forma
de discurso que se supõe verdadeiro, mas tão somente uma espécie de raciocínio instrumental
“purificatório”, que visa descartar toda possibilidade de conhecimento e assim operar o
abandono do desejo pela verdade. A primeira reivindicação de verdade, aquela que supõe a
confiança nos sentidos, é logo colocada em cheque, e com ela, toda a noção de conhecimento
representativo:
... a interrogação cética dirá que a sensação é um processo pelo qual nós adquirimos
imagens ‘representando’ objetos, sendo que não podemos [...] estar seguros quanto à
verdade dessas imagens. As imagens podem refletir aspectos de nossos órgãos
sensoriais muito mais do que possibilitar uma ‘representação apreensiva’ das coisas,
trata-se apenas de uma ‘representação do que aparece’ (phantasía). [...] o bloco
perceptivo ‘vento frio’ diz respeito à minha sensação, não ao que é o vento em si mesmo.
Não podemos, portanto, verificar a verdade das imagens perceptivas [...]. Não é senão
de nossas afecções (pathê) que falamos ao nos referirmos às coisas. (MARSOLA,
2007, pp. 5-6. Minha ênfase)
De uma vez, o raciocínio cético elimina qualquer suposição de verdade a respeito
daquilo que é outro em relação ao sujeito e que, portanto, requer algum tipo de conhecimento
mediato. Todo conhecimento representativo é, precisamente, tal mediação, e, portanto, é
impossível, uma vez que toda representação não é mais que uma aparência formada a partir de
nossas ‘afecções’. Temos aqui o princípio de uma epistemologia subjetivista, que sujeita toda
109
cognição humana à pura aparência, e condena toda reivindicação de acesso a alguma “coisa-
em-si” externa àquele que conhece. Ao falarmos de qualquer coisa, na verdade só falamos de
nós mesmos. Tampouco tal “falha dos sentidos” pode ser remediada por um conhecimento de
ordem racional, que se dirija ao inteligível ao invés do sensível, pois os objetos de tal
conhecimento seriam igualmente representativos e, além disso, dependeriam da postulação de
coisas não-evidentes – o que os pirrônicos consideram como o erro do dogmatismo.
Tudo o que é externo ao sujeito, portanto, não pode ser conhecido pois demanda alguma
forma de mediação representativa, e representação é sempre uma afecção do próprio sujeito que
nada diz sobre o objeto em si. Suporíamos, então, que alguma forma de conhecimento de si
possa ser considerada como conhecimento autêntico, uma vez que seria de natureza imediata?
Dessa forma, poder-se-ia propor como válida, talvez, uma forma de filosofia que ignorasse a
física e a metafísica, e que se centrasse na via introspectiva do “conhecimento de si”. Para os
pirrônicos, este tampouco é o caso, pois não há nenhum conhecimento imediato de si mesmo.
Eis a objeção feita por Sexto Empírico ao conhecimento de si (apud LORTIE, 2015, p. 170):
Se o intelecto apreende a si mesmo, quer que ele se conheça por inteiro, quer não por
inteiro, mas utilizando para isso uma parte de si mesmo. Porque se ele apreende a si
mesmo por inteiro, ele será inteiramente ato de apreensão e sujeito que apreende e,
porque ele é inteiramente sujeito que apreende, o objeto será reduzido a nada; ora, é
totalmente absurdo que haja de um lado o sujeito que conhece sem que haja do outro o
objeto do qual tem apreensão. E certamente o intelecto não pode tampouco utilizar para
isso uma parte. Porque como a parte apreenderá ela mesma ? Pois se for inteiramente,
o objeto investigado se reduzirá a nada, e se é por uma parte, esta parte por sua vez,
como ela se conhecerá a si mesma? E assim por diante ao infinito.
Trata-se, aqui, de duas objeções distintas, ambas as quais negam a possibilidade de
conhecimento de si por torná-lo mediato, isto é, dotado de divisão. A primeira objeção, a do
conhecimento “do todo pelo todo”, implica uma divisão gnoseológica entre sujeito e objeto no
conhecimento de si: se o todo se faz sujeito do conhecimento, não sobra nada a ser conhecido
enquanto objeto. A segunda, a do conhecimento de uma parte por outra parte, supõe uma
fragmentação ontológica entre sujeito e objeto, como se fossem coisas distintas, de forma que
“sempre haverá uma dualidade entre cognoscente e conhecido, jamais podendo haver um
conhecimento de si enquanto tal. Nunca alguém conhece a si mesmo, pois há sempre uma parte
de seu ser que conhece e outra conhecida” (MARSOLA, 2007, p. 9). Essa divisão significa,

110
portanto, alteridade e conhecimento mediato, o que, como já vimos acima, o cético argumenta
ser impossível78.
O ceticismo desafia também, portanto, qualquer modelo apriorístico da filosofia. Já
havendo negado a possibilidade de conhecimento do mundo, a negação cética do conhecimento
de si seria, ao fim, uma negação de todo o saber e de todo o empreendimento filosófico. Todo
o conhecimento e verdade sendo impossíveis, o pensamento é tornado supérfluo e assim o juízo
pode ser suspendido, resultando em tranquilidade (ataraxía). Ora, para os filósofos herdeiros
de Platão e Aristóteles, “demonstrar a possibilidade do conhecimento de si não representava
para eles um simples exercício dialético” (LORTIE, 2015, pp. 170), mas uma questão vital para
a sobrevivência da filosofia tal como a entendiam. Mas isso não significa que é possível que
estes filósofos “salvem” a filosofia clássica sem se engajar com as críticas céticas.
De fato, Plotino aceita a objeção cética ao conhecimento enquanto mediação e
representação, e não faz nenhum esforço para salvar o conhecimento sensível da sua crítica.
Sobre este último ele diz (apud MARSOLA, 2007, p. 6), ecoando os pirrônicos: “Mesmo
admitindo que as coisas que a sensação nos faz perceber são reais, o que é conhecido pelos
sentidos não é senão uma imagem ou espécie da coisa, e os sentidos não apreendem a coisa em
si mesma, ela permanece externa”; os órgãos sensoriais são afetados pelo objeto da percepção,
e é essa afecção sensorial que é transmitida à alma, de forma que esta a recebe já desprovida de
matéria e massa (EMILSSON, 2017, p. 257) 79. E mesmo quando os sentidos apreendem o
próprio corpo e o seu interior, esta segue sendo uma apreensão de algo externo à alma (tr. 49
[V.3], 2, 1-7). E esta “lacuna representativa que ele admite no caso da percepção”, é estendida
“a todos os modos de representação mental” (RAPPE, 2017, p. 298), pois a alma “é diversa de
seu objeto, e tem uma forma de apreensão discursiva que vê como se uma coisa estivesse
olhando para outra” (tr. 30 [III.8], 6, 23).
No que concerne ao autoconhecimento da alma, portanto, Plotino parece acatar a
objeção cética e aceita que ela, ou a faculdade racional que lhe é própria, não possui
conhecimento de si mesma, pois todos seus raciocínios dizem respeito ou àquilo que ela recebe

78
Está implicado, aqui, uma concepção de conhecimento como algo pleno, uma apreensão do que é: isso é o que
aqui se considera impossível. Uma forma de apreensão que não possua essas características não pode, segundo o
paradigma clássico da filosofia grega, ser chamada de “conhecimento”.
79
Porém, como discutiremos com detalhes mais adiante, isso não é tudo o que Plotino tem a dizer a respeito da
percepção sensível. Uma correta compreensão da sua teoria da percepção depende de uma investigação acerca de
que ele considerava por “coisa em si”. Além disso, como veremos, quando aliada a faculdades superiores, o valor
epistemológico da percepção é resgatado, segundo Plotino, tornando a nossa apreensão do mundo razoável – ainda
que permaneça sendo verdade que esta não constitui conhecimento no sentido pleno da palavra. Pois, “intelecto e
razão são necessários como juízes” (tr. 32 [V.5], 1, 12-19) da percepção.
111
“de baixo” (das sensações) ou “de cima” (do Intelecto), isto é, o seu conhecimento também é
de coisas que lhe são “outras”, portanto um conhecimento mediato, representativo e que não
diz respeito a si mesma diretamente (tr. 49 [V.3], 2, 1-7). Além disso, a própria natureza da
atividade racional que lhe pertence é caracterizada por uma vida discursiva, temporal, gradual
de pensar, isto é, “parte por parte”. Ora, isso significa que “toda atividade discursiva da mente
[...] introduz um lapso representacional entre o cognoscente e o objeto conhecido” (RAPPE,
2017, p. 294), de tal forma que a alma só poderia conhecer-se a si mesma “parte por parte”,
representando o “eu” a si mesma conceitualmente enquanto um objeto distinto. Para Plotino,
porém, “jamais qualquer representação conceitual do eu ou do sujeito da consciência pode ser
completa e jamais pode transferir o eu que pretende representar” (ibid., p. 295). Plotino,
portanto, parece acolher a objeção cética ao autoconhecimento enquanto ‘partes por partes’ no
que diz respeito à alma, para a qual aquela objeção se aplica perfeitamente. O pensante, qua
pensante, não é autotransparente (c.f. ibid., p. 298). Será necessário conceber,
consequentemente, uma atividade cognitiva que seja não-discursiva e não-representativa para
poder salvar a possibilidade de autoconhecimento.
É isso o que Plotino faz em sua concepção do Intelecto, o centro da sua metafísica e do
seu filosofar. É no Intelecto que Plotino encontrará a saída para os impasses céticos em relação
à possibilidade da verdade, uma vez que é apenas nele que o conhecimento mediato e
representativo é superado, uma vez que a exterioridade entre cognoscente e cognoscível é
superada. Do que se trata, porém, esse Intelecto? No capítulo anterior, o termo grego
equivalente (nous) foi tratado, em Platão, como se referindo à faculdade da inteligência pura, o
“olho da alma” e “órgão da contemplação”, pelo qual o filósofo adquire uma compreensão
sinóptica ou insight da unidade que subjaz a multiplicidade. Mais do que uma faculdade, porém,
Platão parece havê-la hipostasiado sob a forma do Demiurgo, que é o Nous que ordena o cosmos
através da sua contemplação do “ser vivente” (o conjunto das Ideias eternas). Nos diálogos
platônicos, porém, a relação entre a faculdade sinóptica da alma, o Demiurgo e as Ideias é
bastante inconclusiva, de forma que será através da concepção aristotélica do Intelecto que
Plotino buscará ler essas questões no contexto dos diálogos platônicos80.

80
Vale a pena ser observado que vários estudiosos contemporâneos têm defendido que Plotino estava realmente
correto em interpretar Platão à luz de Aristóteles neste respeito, uma vez que o entendimento de ambos acerca da
natureza do Intelecto estaria realmente em continuidade. Cito aqui a conclusão de um desses autores que defendem
esta hermenêutica neoplatônica, e segundo o qual o reconhecimento da continuidade entre Platão, Aristóteles e
Plotino na interpretação da natureza do Intelecto “contribui à salutar “mudança de paradigma” que está atualmente
ocorrendo no estudo da filosofia antiga”. Pois, “Por tempo demasiado, a narrative padrão, didática, colocou
Aristóteles em oposição a Platão, e dispensou o Neoplatonismo como um desenvolvimento marginal ou mesmo
aberrante. Em vez disso, a respeito desta doutrina [do Intelecto] assim como de muitas outras, nós estamos agora
112
3.2 A Metafísica do Intelecto e do Uno

Para Aristóteles, o Intelecto será a Inteligência divina, que, para sê-lo, deverá ter como
objeto de seu pensamento aquilo que é mais divino e excelente. Ora, não havendo nada externo
a si que a supere em divindade e excelência, ela mesma será o objeto de seu pensamento: “Se,
pois, a Inteligência divina é o que há de mais excelente, ela pensa a si mesma, e o seu
pensamento é pensamento de pensamento [νόησις νοήσεως]” (Metafísica, Λ 9, 1074b) 81.
Assim, neste movimento autorreflexivo da Inteligência que pensa a si mesma, o cognoscente e
o cognoscível formarão uma identidade: “A inteligência pensa a si mesma, captando-se como
inteligível: de fato, ela se torna inteligível intuindo e pensando a si, de modo a coincidirem
inteligência e inteligível” (Λ 7, 1072b). E a experiência contemplativa, bem como o
maravilhamento e felicidade que a acompanham, que só nos são concedidos em raros
momentos, o Intelecto divino possui permanentemente:
...o seu modo de viver é o mais excelente: é o modo de viver que nos é concedido só
por breve tempo. E naquele estado ele é sempre. [...] Se, pois, nessa feliz condição na
qual nos encontramos, às vezes, Deus se encontra perenemente, é maravilhoso; [...] E
ele também é Vida, porque a atividade da inteligência é Vida, e ele é, justamente, aquela
atividade. E a sua atividade, que subsiste por si, é vida ótima e eterna. Dizemos, com
efeito, que Deus é vivente, eterno e ótimo; de modo que a Deus pertence uma vida
perenemente contínua e eterna: esse, pois, é Deus. (Metafísica, Λ 9, 1072b)
Ora, aparecem aqui elementos centrais para Plotino, como a identidade da inteligência
e do inteligível, e a concepção do Intelecto como sendo vida ou o ato contemplativo em si. O
vemos retomar estes temas importantes no tratado 49 ([V.3], 5, 24-27), no qual funda sua
concepção de verdade na identidade entre Intelecto e inteligível. Se estes
...não são uma mesma coisa, não haverá verdade, pois aquele que possui as coisas que
são não possuirá mais que uma impressão, diferente das coisas que são, e isso não é a
verdade. A verdade não deve se portar a alguma outra coisa, mas deve ser precisamente

passando a ver uma linha contínua de pensamento levando de Platão através de Aristóteles a Plotino e os
Neoplatônicos. Essa mudança de perspectiva não apenas oferece uma compreensão mais autêntica de Aristóteles
em sua relação com Platão, mas também nos permite ver o Neoplatonismo não como um galho bizarro mas o
tronco principal da tradição clássica, e em verdade como seu florescimento mais completo” (PERL, 2014, pp. 158-
159).
81
Ressaltamos algo que está implícito aqui: que essa atividade pensante da Inteligência divina é movida segundo
seu desejo por aquilo que é mais divino e excelente, e que é por encontrá-lo como sendo ela mesma que ela se
dirige a si mesma ou pensa a si mesma. Isto é, em termos platônicos, o elã ou eros pelo Bem é que move a
inteligência, e ela contempla a si mesma porque ela própria é o Bem em mais alto nível. Como veremos, este
mesmo raciocínio aparecerá em Plotino, porém com a diferença que este último fará uma distinção entre o Intelecto
e o Bem, seguindo Platão, que faz da Ideia do Bem a fonte de, e superior à, inteligibilidade e inteligência
(República, 508e).
113
aquilo que ela diz. Assim, o Intelecto e o inteligível, como aquilo que é, são uma e a
mesma coisa, a qual é o ser primeiro e naturalmente o Intelecto primeiro, que possui as
coisas que são, ou antes que é ele próprio idêntico às coisas que são. (Minhas ênfases)
De tal modo que, o Intelecto
... não tem necessidade nem de demonstração nem de prova que ele seja assim
– pois ele é assim e ele é evidente a si mesmo […]. Dessa maneira, a verdade
que existe realmente, porque ela está em acordo não com outra coisa mas
consigo mesma, não fala de nada outro que ela mesma: o que ela diz, ela é, e o
que ela é, é isso que ela diz82. (tratado 32, [V.5], 2, 15-20)
Tomando a liberdade de pôr os termos plotinianos em um vocabulário distinto,
compreenderíamos o trecho acima da seguinte forma: se o cognoscente e o cognoscível, sujeito
e objeto, não são idênticos, então o que o sujeito diz a respeito do objeto não pode ser verdade,
pois seria apenas uma impressão ou representação de um objeto que lhe é externo, fora de seu
alcance direto – e que é onde a verdade se encontraria. A verdade verdadeiramente existente,
por outro lado, precisa concordar consigo mesma e não com algo outro; precisa ser o que diz e
dizer o que é, pura autoevidência de si para si. A necessidade lógica desta autoevidência é posta
por Plotino com um argumento de reductio ad absurdum: se o Intelecto “não pode garantir que
conhece, então temos que supor outro intelecto para verificar o primeiro, e assim por diante”
(RAPPE, 2017, p. 301). Toda progressão dialética, portanto, necessita encontrar sua culminação
na autoevidência da consciência, que é o Intelecto. Plotino rejeita, portanto, a noção da verdade
como representação e, por consequência, rejeita também a noção da verdade enquanto
“adequação do pensamento à coisa”. Só quando o significante é o próprio significado, quando
a verdade diz respeito a si mesma e não a alguma outra coisa, é que uma apreensão direta, não-
mediada, autoevidente, tem lugar. A verdade se dá, portanto, na identidade de sujeito e objeto,
quando o sujeito possui o objeto interno a si, ou ainda, quando o sujeito é o próprio objeto.
Trata-se, portanto, do conhecimento por presença (parousia) imediata dos objetos de
pensamento ao próprio pensamento, “apreensão imediata, intuitiva e compreensiva”
(BUSSANICH, 2017, p. 56), “constituindo-se como unidade entre nous, noêsis e noêta, de
modo que o conhecimento seria dado como auto-evidência. [...] não há dualidade no modo de
conhecimento suprassensível que é a parousia” (MARSOLA, 2007, p.7). Esta característica faz
com que o Intelecto plotiniano se adeque a todos os critérios de um pensamento não-discursivo,
quais são: a) identidade de sujeito e objeto do pensamento; b) pensamento intuitivo, não
baseado no raciocínio, uma vez que o raciocínio é desnecessário à inteligência para a qual não

82
Ou como Emilsson (2017, p. 279) traduz esta sentença, a verdade “é o que diz e diz o que é”.
114
há obscuridade em relação ao objeto de pensamento; c) não proposicional, cuja apreensão do
todo é de modo simultâneo, totum simul, de forma que sua não-sucessividade faz com que
Plotino associe o pensamento à visão, capaz de “ver muitos fatos ao mesmo tempo num único
olhar sem enquadrar em nossas mentes as correspondentes proposições numa sucessão
temporal” (EMILSSON, 2017, pp. 284-285). E nessa presença simultânea de si para si, a
impossibilidade do autoconhecimento entendido como “parte por parte”, anunciada por Sexto
Empírico, é superada, pois ao contrário do modo sucessivo e discursivo do pensamento racional
da alma, que volta sua atenção a um pensamento depois do outro, cindindo sujeito e objeto, o
Intelecto é uma presença total e simultânea de si para si, de todos os seus objetos inteligíveis
ao ato intelectivo.
Todas as outras formas de cognição, inferiores a essa parousia que é o Intelecto, se
revelam incapazes de verdade e autoconhecimento plenos, uma vez que “na medida em que
sujeito e objeto coincidem apenas na cognição do Intelecto dos inteligíveis, qualquer outra
forma de cognição é de imagens” (EMILSSON, 2017, p. 268). Ou ainda, nas palavras de
Plotino, “é a sensação, ou se preferirmos, o pensamento discursivo e a opinião, mas não o
Intelecto, que apreende as coisas exteriores” (tr. 49 [V.3], 1, 20). A verdade só é resgatada das
objeções céticas se a forma não-discursiva e não-representativa de cognição-de-si, que é o
Intelecto, é posta, uma vez que “a objeção cética à possibilidade de um conhecimento de si
segue o modelo do pensamento discursivo progressivo e não concerne portanto, de qualquer
modo, ao pensamento absoluto e isento de temporalidade do Noûs” (BEIWERWALTES, apud
Lortie, 2015, p. 171).
E os objetos deste pensamento-de-si, os inteligíveis, são necessariamente “os seres
ontologicamente primeiros como opostos a meras imagens ou representações” (EMILSSON,
2017, p. 277), uma vez que o “inteligível”, nessa concepção platônica, é aquilo que é, o Ser;
pois “o que é uma coisa é o que é inteligível acerca dela” (ibid., p. 290). Trata-se, portanto, de
uma concepção da verdade que faz jus à Alêtheia mítica dos tempos arcaicos, em sua efetividade
constituidora de realidade. Como reflete Emilsson (ibid., p. 280):
O termo grego usual para “verdade”, alêtheia, pode também significar “realidade”,
talvez não surpreendesse ser esse o sentido aqui empregado. Certamente é verdade que
a realidade não pode concordar com algo diferente de si e seria completamente próprio
que Plotino afirmasse que o Intelecto contém a realidade. Nesse sentido, a noção de
alêtheia que Plotino deseja atribuir ao Intelecto é em parte aquela de realidade: essa
“verdade” não é meramente suposta ao se dizer algo, mas ao ser algo. Contudo, há
algo mais na noção de alêtheia que Plotino aqui emprega. Para dizê-lo de modo simples:
a verdade no Intelecto não é meramente suposta como ser, mas também como “dizer”.
115
Essa é a característica que a verdade no Intelecto tem em comum com a verdade em
sentido ordinário e sugere que alêtheia no Intelecto não pertence meramente à ordem
da realidade, mas também à da significação ou do sentido.
A noção plotiniana é aqui a noção de algo no qual realidade e significação convergem:
o real é o conteúdo dos pensamentos no Intelecto. Esses pensamentos não são
pensamentos de algo diverso, nem são verdade porque concordam com algo diferente
da realidade em relação à qual devem ser testados. Ao contrário, constituem a realidade.
Logo, não são verdade no sentido ordinário de correspondência entre uma proposição
ou pensamento e realidade. [...] os pensamentos no Intelecto são autoconscientes.
A verdade aqui não é, portanto, meramente semântica; ela é também ontológica. Ela
não apenas diz, ela também é. Esta unidade do ser e do dizer é a versão plotiniana da identidade
do Ser e do Pensar parmenídica83: o Ser, ou o Real, não é um objeto cuja realidade é
independente do pensamento a seu respeito, mas a própria auto-afirmação do Pensamento que
diz-se a si mesmo e assim constitui sua própria realidade. Isto constitui um modelo de verdade
que é autorreflexivo: a verdade é autoconsciência; o conhecimento-de-si paradigmático é, ao
mesmo tempo, o Ser paradigmático e a Verdade paradigmática, a identidade da ordem do real
e da ordem do sentido – e isto é o Intelecto. E nesta identificação do inteligível como o
ontologicamente primeiro, encontramos a natureza do idealismo neoplatônico.
O Intelecto será entendido fundamentalmente, portanto, como o próprio ato de
intelecção (que é auto-intelecção), uma “intelecção-que-é” – e não há Ser aparte desta, pois o
Ser é o “Si” que é, naturalmente, o objeto de uma intelecção-de-si84. Este puro ato
autorreflexivo da Inteligência é a sua Vida, e une em si o agente da intelecção e o seu objeto,
que são um só enquanto ato (c.f. tr. 49 [V.3], 5, 30-50). Esta concepção está no cerne da resposta
ao ceticismo, como transparece nas palavras de Plotino: “vendo as coisas que são, ele vê a si
mesmo, e vendo ele está em ato, e o ato, é ele próprio, pois o Intelecto e a intelecção são uma
e a mesma coisa, e ele se pensa inteiro totalmente, e não é uma parte dele que pensa por meio
de outra” (tr. 49 [V.3], 6, 5-7. Minha ênfase). Isto é, se compreendermos o Intelecto como ato,
“o Intelecto será múltiplo apenas enquanto supõe uma estrutura dupla em seus atos, mas o

83
Vale ser ressaltado que uma certa identidade entre o ser e o pensar é suposta mesmo em uma teoria empirista de
conhecimento, pois também para aquela, “uma determinada sensação [...] é suposto ao mesmo tempo como sendo
algo, digamos, verde e uma consciência de ou conhecimento de algo verde. [...] a mesma coisa é F e nossa
consciência direta de F.” (EMILSSON, 2017, p. 286). Assim também, para Plotino, o inteligível “é ao mesmo
tempo algo (por exemplo, beleza) e o pensamento do (consciência do) que ele é” (ibid). O mesmo princípio é
aplicado em ambos os casos, porém Plotino consideraria um erro supor que a sensação é capaz de tal identidade,
uma vez que ela é uma apreensão de algo externo e outro que si mesma, de tal forma que o objeto existe
independentemente da nossa percepção. Só a Inteligência divina é capaz de tal identidade, uma vez que, nesse
nível, a existência do objeto de pensamento é inseparável do próprio ato de pensamento.
84
Esta concepção do Ser como um Si será relevante quando tratarmos da ascensão contemplativa da alma.
116
objeto inteligível e o Intelecto são o mesmo, apenas havendo alteração na perspectiva enquanto
identidade e enquanto diferença, mas o ato puro do Intelecto é uno” (MARSOLA, 2007, pp.
10-11).
E esta interpretação não consiste, para Plotino, numa mera leitura aristotelizante do
pensamento de Platão, pois ele encontra suporte para tal no diálogo Sofista, lembra Emilsson
(2017, p. 281n). Trata-se de uma passagem em que Platão começa por dizer, na boca do
Estrangeiro de Eléia:
... por Zeus, será que nos deixaremos ser facilmente convencidos de que é verdade que
o movimento, a vida, a alma e a inteligência não estão realmente presentes naquilo que
absolutamente é [toi pantelôs onti], que o ser nem vive nem pensa, mas solene e sagrado,
destituído de inteligência, é fixo e imóvel? (Sofista, 248e-249a)
Perl (2014, pp. 136-139) comenta que esta passagem distingue radicalmente a
interpretação do pensamento platônico feito na modernidade e aquela feita na Antiguidade
Tardia, pois a interpretação mais corrente em nosso tempo é que, nesta passagem, Platão
começa a reconhecer que a realidade não pode ser constituída apenas de Formas imóveis, mas
também deve incluir seres móveis diferentes das Formas. Subjacente a esta concepção, está a
interpretação óptica de que as Formas são meramente objetos imóveis do pensamento,
independentes do e externos ao ato pensante. Ora, para Plotino, a intenção de Platão no Sofista
não é expandir o conceito de realidade para além das Formas assim concebidas; antes, trata-se
da sua mais profunda reflexão a respeito da natureza das próprias Formas, que, corretamente
entendidas, não são objetos imóveis mas atividades pensantes, dotadas de vida e inteligência.
Plotino vê neste diálogo, continua Perl, uma clara declaração “de sua propria doutrina da
unidade-na-dualidade do intelecto e o ser, ou as formas. Plotino argumento que uma vez que o
intelecto em sua pureza é apenas o ato da apreensão intellectual, ele tem o ser como seu próprio
conteúdo, e portanto ‘é ele próprio as coisas que ele pensa’ (V.9, 5-7)”. As Ideias ou Formas,
nesta leitura de Plotino, “tornam-se ‘forças’ ou ‘potências inteligentes’ (νοηταί δυνάμεις) e,
portanto, vivem, ou seja, são ‘Espíritos’ ou ‘Intelectos’” (REALE, 2014b, p. 67).
Parece emergir aqui a insinuação de uma multiplicidade no seio daquela unidade ou
identidade que fora atribuída ao Intelecto: uma pluralidade de inteligíveis que, por sua vez, é
também uma pluralidade de intelectos. Ou ainda, uma espécie de diferença ou dualidade entre
o Intelecto, por um lado, e os intelectos/inteligíveis do outro.
Plotino categorizará essa hipóstase intelectual como sendo uma estrutura uno-múltipla
(hén-pollá). No que concerne a própria relação de identidade entre inteligência e inteligível, ou
cognoscente e cognoscível, a estrutura uno-múltipla aqui referida é entendida como sendo a

117
simultaneidade da identidade e da alteridade do Intelecto consigo mesmo, o que significa que
mesmo diante da afirmação de identidade ontológica da inteligência e do inteligível enquanto
um ato autorreflexivo único, há ainda uma distinção gnosiológica no Intelecto (c.f. LORTIE,
2015, p. 171), na qual sujeito e objeto aparecem distintos, ainda que simultâneos, enquanto os
dois pólos daquele ato. A pluralidade de inteligíveis significa que a identidade que é o Intelecto
não é uma completa abolição da alteridade, pois deve haver diferença para que um inteligível
se distinga do outro. Antes, há uma presença (parousía) da própria alteridade na identidade do
Ser, ou a coexistência simultânea de ambas como pertencentes ao Ser, o que é possível devido
à natureza não-discursiva ou sucessiva do pensamento intelectual que o constitui85, e também
pelo fato de que alteridade pertence ao próprio Ser, uma vez que não pode, evidentemente,
pertencer ao não-ser (tratado 22 [VI.4], 11, 17). O Intelecto é, simultaneamente, identidade e
alteridade consigo mesmo, uma “variedade simples e multiplicidade una” (ibid., 16).
O desdobramento aqui é compreensível ao levar em conta que a alteridade, no
pensamento neoplatônico, implica multiplicidade. Se segundo o aspecto de identidade,
enquanto cognoscente, este ato intelectivo é uno (a inteligência), segundo o aspecto de
alteridade, enquanto cognoscível, ele é múltiplo (os vários inteligíveis ou Ideias platônicas) 86.
Retomando a metáfora do olho e do espelho que encontramos no Alcibíades I de Platão no
último capítulo, é como se a inteligência divina fosse um olho que precisasse ver-se a si mesma
através do reflexo de si no espelho, sendo que o reflexo, devido a sua alteridade e
multiplicidade, é a pluralidade das formas inteligíveis – exceto que aqui o espelho e o reflexo
são internos, não externos, ao próprio olho. Uma metáfora mais apropriada, portanto, é dada
pelo próprio Plotino, que diz ser como uma luz que se vê a si mesma através das suas cores, ou
“o Intelecto apreende assim a conhecer a si mesmo na medida em que é um olho que comporta
a variedade e vê cores variadas” (tr. 49 [V.3.], 10, 30-31). Assim, o autoconhecimento que o
Intelecto possui de si mesmo não é sujeito ou é objeto mas a simultaneidade de ambos, razão

85
Isto é, no plano da discursividade, na qual um pensamento se segue ao outro, é preciso deixar de pensar em um
oposto para pensar no outro: primeiro pensa-se em “acima” depois “abaixo”, ou “esquerda” e depois “direita”, etc.
Mas em um pensamento não-discursivo, por sua vez, os opostos são pensados simultaneamente. Assim também o
Intelecto, pensando-se a si mesmo, pensa simultaneamente a identidade e a diferença consigo.
86
Salvaguardar a multiplicidade dos inteligíveis na unidade do Intelecto (que é Deus) também significa, para os
neoplatônicos, salvaguardar a sua capacidade de exercer Providência ao mundo sensível. Uma vez que a
multiplicidade do mundo fenomênico é uma imagem cujo paradigma é a pluralidade de Formas, esta multiplicidade
inteligível do Intelecto é o que o permite conhecer todas as coisas ao conhecer-se a si mesmo, como se ele
conhecesse até mesmo o mundo fenomênico, mas sub specie aeternitatis, conforme à maneira como as coisas são
nele ou idênticas a ele, e esse seu conhecimento é a sua providência a todas as coisas, ou sua maneira de dirigir
sua atenção a elas. Esta não deixa de ser uma crítica a Aristóteles, que aparentemente fez do Intelecto desconectado
de tudo o mais, relacionando-se com o mundo apenas enquanto causa final ou o finalidade do desejo e a aspiração
dos seres.
118
pela qual ele é do tipo “eu sou isto”, no qual o “isto”, a objetividade – que é a totalidade dos
inteligíveis –, não é algo outro que ele próprio, mas é ele mesmo feito objeto para si (ibid., 35-
36); ou então, é do tipo “eu sou aquilo que é”, o que é dito “como se ele houvesse feito uma
descoberta”, pois “aquilo que é é múltiplo” (tr. 49 [V.3.], 13, 24-25. Minha ênfase).
De fato, cada Ideia ou Forma platônica será um pensamento-de-si, que é e diz o que é,
como por exemplo, poderíamos dizer que a Ideia da Beleza é “o pensamento que possui a beleza
em geral como seu conteúdo” (EMILSSON, 2017, p. 281). Porém, esse pensamento não é outro
que uma atividade autopensante do próprio Intelecto, o que significa que o objeto do seu
pensamento é o próprio Ser intelectivo em sua unidade. Trata-se, portanto, de um
autopensamento do Ser acerca do Ser enquanto Beleza; enquanto a Ideia da Justiça será um
autopensamento do Ser acerca do Ser enquanto Justiça, e assim por diante. Desta forma, falar
da pluralidade de Ideias é falar de singularidades ou intuições particulares do Ser, assim como
falar da pluralidade de intelectos é falar de singularidades do Intelecto:
Se, pois, o ato de pensar tem por objeto o conteúdo do Intelecto, então esse conteúdo é
a forma; e é também a ideia. Que é, pois, essa forma? É o Intelecto e a essência
inteligível: cada ideia singular não é diversa do Intelecto, mas é, cada uma, Intelecto. E
o Intelecto na sua totalidade é a totalidade das formas; a forma, porém, na sua
singularidade, é o Intelecto enquanto singular, assim como a ciência total é a totalidade
dos seus teoremas, mas cada teorema é uma parte da ciência inteira, não como se dela
se separasse localmente, mas na medida em que, como singular, tem sua validez
somente no todo. (tr. 5 [V.9], 8, 1-7)87
Ou ainda:
... ao mesmo tempo em que são múltiplos, os inteligíveis são unos, e, ao mesmo tempo
em que são unos, eles são múltiplos em virtude de sua natureza ilimitada; o múltiplo
está no uno, o uno sobre o múltiplo, e todos os inteligíveis estão unidos. Todos estão
em ato como um todo em relação ao todo; e ainda, eles estão em ato como um todo em
relação à parte. (tr. 23 [VI.5], 6, 1-4)
Temos um quadro no qual a identidade ontológica coexiste com a distinção
epistemológica. Eis a razão pela qual o Intelecto ou ato intelectivo precisa ser compreendido
como uno-múltiplo, segundo Plotino, e não uma pura unidade, como pensava Aristóteles: “há
conhecimento de si (crítica aos céticos...), mas há desdobramento (crítica a Aristóteles...)”
(MARSOLA, 2007, p. 11).
Que o Intelecto não seja pura unidade, para Plotino, significa que ele possui ainda algum
traço de incompletude. Como havíamos visto, para Platão toda atividade é movida por um elã

87
Tradução de Reale (2014b, p. 65)
119
ou desejo pelo Bem – mesmo a atividade que é o pensamento –, e isto é uma descoberta da
alma que conhece a si mesma como sendo fundamentalmente desejo. O Bem, por outro lado, é
por definição aquele que não pode desejar ou carecer de coisa alguma, pois ele já é aquilo a que
todo desejo aspira. Ora, também para Plotino é preciso compreender o movimento do ato
intelectivo como sendo movido pelo desejo (eros) do Bem. O próprio ato autorreflexivo que é
a sua forma de conhecer implica um desejo pelo conhecimento-de-si. O que isso significa é que
o Intelecto não pode ser o que há de mais divino e excelente, como pensava Aristóteles, pois
seu movimento intelectivo é movido por desejo, o que faz dele distinto do Bem, que nada
deseja; ou como o coloca Plotino, “aquilo que é totalmente simples e que é suficiente realmente
a si mesmo, não tem carência de nada. Aquilo que não é suficiente a si mesmo senão num
sentido secondário, porque tem necessidade de si mesmo, tem necessidade do pensamento de
si mesmo ” (tr. 49 [V.3], 13, 16-18). Ou seja, na medida em que o Intelecto é identidade consigo,
ele está consigo; mas na medida em que é alteridade, ele se ignora e precisa conhecer-se, de
forma que ele não poderia ser posse plena de si, porque o próprio desejo de conhecer-se a si
mesmo implica que, em alguma medida, não se possui a si mesmo, “pois o conhecimento é uma
espécie de nostalgia e de descoberta para aquele que indaga” (ibid., 10, 49-50).
O Bem, por outro lado, em completa superioridade a qualquer carência, é, por esta razão,
unidade simples (o “Uno”), uma vez que:
… é necessário que [o Bem] seja a coisa mais independente, a mais autárquica e a mais
desprovida de carência. Tudo aquilo que é múltiplo permanece na carência […]. Mas
o Uno não tem necessidade de si mesmo, pois ele é ele mesmo. […] De fato, ele não
busca alguma coisa que o permita ser, nem alguma coisa que o permita bem-ser, nem
alguma coisa que o permita ser ali estabelecido. […] quanto ao seu bem-ser, como
poderia este se encontrar fora dele? Seu bem-ser não o pertence portanto por acidente,
pois coincide com ele. (tr. 9 [VI.9], 6, 17-18 ; 21 ; 27-29)
Se há complexidade inerente à autorreflexividade que constitui o Intelecto, que é visão
de si mesmo, o Bem será aquilo que, permanecendo em si mesmo absolutamente88, não tem
necessidade de ver-se. Tal simplicidade, anterior à identidade e à alteridade, não pensa nem
conhece: “se uma coisa não se dirige a outra, ela permanece imóvel; na medida em que está na
imobilidade absoluta, ela não pensa” (tr. 49 [V.3], 10, 22-23). Nele, “o silêncio é uma
compreensão ”, “aquilo que ele é o pertence de fato antes mesmo de pensar” (ibid., 46-49). O
Bem é, portanto, interioridade perfeita e silenciosa, além mesmo da necessidade de conhecer-

88
Como o próprio Plotino ressalta neste mesmo capítulo, mesmo esta expressão (permanecer em si mesmo) não é
mais que alusiva, pois não há neste caso a exterioridade que implicaria um “permanecer em outro”, contrário ao
qual se poderia dizer que ele “permanece em si”.
120
se, uma vez que é perfeito toque ou contato consigo (ibid., 42-43). Tampouco esta superioridade
ao conhecimento-de-si implica uma ignorância de si, pois:
… que poderia ele pensar ? Ele mesmo ? Antes de pensar, ele seria portanto ignorante,
e ele teria assim necessidade de intelecção para conhecer-se a si mesmo, ele que, no
entanto, é suficiente a si mesmo. Não é por não se conhecer e não se pensar que haverá
nele ignorância; porque para que ele fosse ignorante, seria necessário que houvesse um
outro ser, e que um ignorasse o outro. Ao contrário, aquele que é só não se conhece, e
não há nada que ele ignore, mas, sendo um e unido a si mesmo, não tem necessidade de
se conhecer a si mesmo. (tr. 9 [VI.9], 6, 44-49)
Contrariamente ao Intelecto, que na sua necessidade de mediação para ver-se precisa
fazer-se objeto para si, o Bem não necessita fazer-se um “isto” para si mesmo a fim de possuir-
se. Uma vez que não precisa ver-se como um olho vê seu reflexo objetivo no espelho, o Bem
não diria algo como “eu sou isto”, tal qual o Intelecto, mas só pronunciaria sobre si mesmo
alguma tautologia como “sou sou, eu eu” (eimi eimi, ego ego – tr. 49 [V.3], 10, 37), isto é, trata-
se de uma “absoluta ou infinita consciência sem objeto, uma consciência não relacional
desprovida de intencionalidade e composição” (BUSSANICH, 2017, p. 85) – mesmo a
intencionalidade que se dirige ao objeto que é o reflexo objetivo de si mesmo.
A diferenciação entre os modos de consciência que são o Intelecto e o Uno,
intencional/com objeto (ainda que seja si-próprio) e não-intencional/sem objeto (nem mesmo o
si-próprio), se espelha numa diferenciação ontológica realizada no Neoplatonismo e que é de
grande relevância na história da filosofia: entre ser-infinitivo (εϊναι) e ser-particípio (όν), ou,
posteriormente na tradição neoplatônica, existência (‘ύπαρξις) e essência (ουσία)89, conforme
Hadot (2010, p. 72). A existência é o que afirmamos de algo ao dizer simplesmente que ele “é”,
pondo o verbo no infinitivo, intransitivo; enquanto a sua essência é quando afirmamos a
maneira determinada pela qual ele “é”, isto é, supondo um conteúdo inteligível transitivo do
tipo “ele é x”, em que “x” significa qualquer predicado atribuível. A existência será, portanto,
“o ser puro, que não é nem sujeito, nem predicado”, “o ser originalmente absolutamente
universal e indeterminado”, enquanto a essência será o ser determinado “pela adição de
determinações ou qualidades cada vez mais particulares” (ibid., pp. 57-58).

89
Este segundo par foi traduzido ao latim no século IV, por Mario Victorinus, como “exsistentia” e “substantia”
(HADOT, 2010, p. 81). Optamos por manter o primeiro como “existência”, mas, a fim de evitar confusões,
traduziremos o segundo por “essência”. Ademais, há que se observar que este par não possui, neste contexto, a
significação que viria a ter em períodos posteriores, na filosofia escolástica. Hadot (ibid., p. 71) se refere ainda a
um terceiro par de conceitos, que seria equivalente a estes, mas derivados do pensamento de Heidegger: “ser” e
“ente”, respectivamente. Também este uso será evitado, a fim de evitar a confusão com o uso de “Ser”, que
utilizamos no contexto do pensamento neoplatônico como sinônimo de essência. E por fim, apesar de que a
distinção que aparece em Plotino é aquela pertencente ao primeiro par (εϊναι e όν), privilegiaremos a terminologia
da tradição posterior com fins de clareza conceitual.
121
O Intelecto é uma forma de consciência que possui a essência (ousía) como Ser:
contemplando-se a si próprio ele conhece-se como a totalidade unificada de todas as essências,
que são os seres ontologicamente realíssimos, as Ideias ou Formas inteligíveis. Mas é à pura
existência que corresponde a “absoluta consciência desprovida de intencionalidade” que é o
Uno. De fato, é esta sua superioridade a toda forma de determinação essencial que faz do
Princípio o absolutamente simples, a Unidade plena. Desprovida de toda diferenciação,
atributos e predicados, a pura e simples existência é incognoscível – pois todo conhecimento,
mesmo o mais elevado conhecimento intuitivo que é o Intelecto, é conhecimento de alguma
coisa, mas a existência pura não é coisa alguma (“no-thing”), de forma que a ela não se pode
acrescentar nenhum conteúdo ao simples “é” – que, em seu vazio de conteúdo inteligível, não
é oposto ao “não é”. Isso também significa que ela não possui limitação alguma: dizer que algo
é uma essência “x” é dizer que este algo é submisso à necessidade de ser “x” e à necessidade,
portanto, de não ser qualquer “não-x”. O Uno, portanto, “é como ‘ele quer ser’ e, na medida em
que não é escravo de nenhuma substância, nem mesmo a sua própria, é ‘pura liberdade’”
(NARBONNE, 2014, p. 36). Não sendo limitado a ser qualquer coisa em particular, ele é nada
e tudo ao mesmo tempo.
Neste sentido, uma aproximação com a reflexão hegeliana acerca do Ser e do Nada
poderia se provar enriquecedora. Em sua Ciência da Lógica, Hegel inicia sua reflexão acerca
do Ser “a partir do que ele toma como o primeiro pensamento, o eu=eu, ou pura autoidentidade”
(DIAMOND, 2000, p. 185), que resulta num puro ser (no infinitivo), indeterminado, que apenas
é, e ao qual nenhum predicado pode ser atribuído, uma vez que qualquer determinação que se
possa atribuir a ele o removeria desta simples autoidentidade, faria dele “ser + algo”. Ele diz:
Ser, puro ser, – sem nenhuma determinação ulterior. Em sua imediatidade
indeterminada, ele é igual apenas a si mesmo e também não desigual frente a outro; não
tem diversidade alguma dentro de si nem para fora. Através de uma determinação ou
um conteúdo qualquer que seria nele diferenciado ou por meio do qual ele seria posto
como diferente de um outro, ele não seria fixado em sua pureza. Ele é a indeterminidade
e o vazio puros. – Não há nada a intuir nele, caso aqui se possa falar de intuir; ou ele é
apenas este mesmo intuir puro, vazio. Tampouco há algo nele que se possa pensar ou
ele é, igualmente, apenas este pensar vazio. O ser, o imediato indeterminado, é, de fato,
nada e nem mais e nem menos do que nada.
Nada, o puro nada; ele é igualdade simples consigo mesma, perfeita vacuidade,
ausência de determinação e conteúdo; indiferencialidade nele mesmo. – Na medida em
que intuir ou pensar podem ser aqui mencionados, então vale como uma diferença se
algo ou nada é intuído ou pensado. Intuir ou pensar nada tem, então, um significado;
ambos são diferenciados, então nada é (existe) em nosso intuir ou pensar; ou, antes, ele
122
é o próprio intuir ou pensar vazios e é o mesmo intuir e pensar vazios que o ser puro. –
Nada é, com isso, a mesma determinação ou, antes, ausência de determinação e, com
isso, em geral, o mesmo que o ser puro é. (HEGEL, 2016, p. 85)
Como observa Diamond (2000, p. 186), Hegel toca aqui naquilo que não pode ser
mediado ao pensamento, tal qual o Uno neoplatônico; porém, ao contrário de Plotino, Hegel
vê, nesta simplicidade pura além do pensamento (ou o próprio pensamento vazio), uma
inadequação, uma “mera abstração”. Tomar esta pura autoidentidade como o Princípio
Absoluto seria tornar possível tanto uma posição piedosa quanto uma niilista, pois esta
identidade do Ser e do Nada pode ser tomada tanto como pura presença imediata ou como pura
ausência (ibid., p. 187). Para Hegel é necessário, portanto, que Ser Indeterminado e Nada,
devido à sua inadequação, tenham suas posições dialeticamente postas enquanto tese e antítese,
o que culmina numa síntese no ser determinado, no qual o pensamento se torna possível
(TAYLOR, 2014, p. 261), e assim o mundo se torna possível.
Porém, ao invés de ver essa absoluta autoidentidade como mera abstração, os
neoplatônicos “veem o Ser indeterminado como uma plenitude incompreensível” (DIAMOND,
2000, p. 193). Em sua perspectiva, toda determinação ou adição ao puro ser indeterminado é
uma forma de diminuição, de negação, pois “a plenitude do ser é infinita”, uma “potência
infinita de ser” (HADOT, 2002, p. 243). Diante da eliminação de toda determinação ao
Princípio, portanto, não é um mero vazio que contemplamos, mas somos tomados pelo
maravilhamento (tr. 30 [III.8], 10, 28-32), diante de uma positividade absoluta que não tem
nenhuma restrição. Esta via apofática, de negação de todos atributos, ao invés de levar a uma
infinita diminuição, conduz a uma infinita plenitude. Este fato impede que o Princípio seja
concebido como mera ausência, pois sua positividade indica também sua natureza enquanto
fonte de todas as coisas. Assim, “ao afirmar a ‘nadidade’ do Uno, Plotino não está afirmando
que o Uno seja um ‘nada absoluto’”, e sim está a indicar sua inefabilidade, compreendida “como
unidade-absoluta superior a toda predicação e multiplicidade” (BEZERRA, 2006, pp. 68-69).
Proclo comenta, a este respeito, que “asserções [afirmações] apresentam algo definido,
enquanto negações têm um campo indefinido de referência; pois o conceito ‘não-homem’ é de
uma natureza mais indefinida que ‘homem’. Portanto, é mais apropriado revelar a causa
incompreensível e indefinida que é o Uno através de negações”, uma vez que afirmações
limitam, enquanto negações libertam de toda definição e distinção, conduzindo àquilo que é
incircunscrito por qualquer limitação (In. Parm., VI, 1074, 1-7). Neste sentido, ele precisa
ainda, pode-se considerar três tipos distintos de Não-Ser: um que é superior ao Ser, um que está

123
no mesmo nível do Ser, e outro que é mera privação de Ser90; da mesma forma, há um tipo de
negação que é superior à afirmação, um tipo de negação que está no mesmo nível da afirmação,
e um tipo que é inferior (ibid., 1073, 2-5). Assim, negar que o Uno tenha formato não é a mesma
coisa que negar que a matéria tenha formato, pois a negação a respeito da matéria é indicação
de uma privação, a negação no contexto do Uno é indicação de transcendência: enquanto a
matéria é incapaz de formato, o Uno transcende o formato, mas é “aquilo que gera e produz a
ordem que envolve formato” (ibid., 1076, 1-4). Desta forma, “é pelo Não-Ser que nós
conhecemos o Uno, o que é equivalente a dizer que é pela negação que o conhecemos”, mas
ainda que ele seja “Não-Ser certamente, ainda assim ele não é um nada” (ibid., 1081, 11-12;
1082, 6).
Isto vai de encontro com outra faceta da crítica hegeliana ao puro ser indeterminado
tomado como Princípio: um Princípio assim completamente indiferenciado, que não contém
em si o princípio da alteridade do mundo, só poderia permanecer em si mesmo de maneira que
nada viesse a dele emergir, o que significaria impossibilitar sua criatividade (DIAMOND, 2000,
p. 190). Porém, enquanto liberdade absoluta, o Princípio não é apenas livre da limitação de ser
qualquer coisa em particular, mas é também livre para originar todas as coisas a partir de si –
uma vez que as negações a seu respeito não constituem mera privação. Esta concepção dupla
da liberdade do Princípio emerge da compreensão da sua natureza enquanto autossuficiente,
que, como observa Olimpiodoro (In. Alc., 42.19-43.2), não é a mesma coisa que ser “pleno”
(teleion), pois “plenitude é apenas não necessitar nada de algum outro, enquanto suficiência
(hikanon) é uma questão não apenas de não ter necessidades, mas também de ser capaz de doar
livremente a outros”. Desta maneira, não por necessidade lógica, mas por autossuficiência, a
unidade indistinta da pura existência ou puro ser indeterminado é a fonte da Essência, ou a
totalidade do ser determinado que é o Intelecto, bem como sua condição de possibilidade e
fundamento.
Ora, como é possível pensar a relação causal pela qual a essência determinada emerge
da pura Unidade indiferenciada do Princípio? Para Plotino, só podemos pensar o Primeiro
Princípio enquanto causa, em sua divina autossuficiência e simplicidade, a partir da
fundamental distinção entre atividade (energeia) interna e externa. A atividade interna de cada
coisa é, para Plotino, a sua realidade em si, o que ela realmente é; a sua atividade externa ou
derivada é a sua consequência necessária; ou então, sua imagem e representação, a ser entendida

90
O Não-Ser que é inferior ao Ser corresponde à matéria, a khôra platônica; o Não-Ser que está no mesmo nível
do Ser é o princípio inteligível da alteridade, pelo qual um inteligível se distingue do outro, isso é, um não é o
outro em alguma medida; e o supremo Não-Ser é a pura existência indeterminada.
124
aqui ontologicamente, isto é, enquanto atividade pela qual a coisa produz seu próprio aparecer
para o outro segundo aquilo que ela é internamente (c.f. EMILSSON, 2017, p. 264). Nesta
passagem, Plotino explica esta distinção através do exemplo do calor interno que constitui o
fogo e o calor externo que dele provém, sem que o fogo se diminua:
Em cada coisa, há um ato que pertence à realidade e um ato que provém da realidade; o
ato que pertence à realidade é a coisa ela mesma, e o ato que provém da realidade deve
ser, em todos os aspectos, a sua consequência necessária, ao mesmo tempo em que é
diferente da coisa ela mesma. Assim é com o fogo, pelo qual há o calor que constitui
sua realidade, e um outro calor que nasce do primeiro depois que o fogo exerce o ato é
naturalmente inerente à sua realidade, e ao mesmo tempo permanecendo fogo. (tr. 7
[V.4], 2, 27-32)
Ou, ainda, com o exemplo da luz que emana de um corpo luminoso:
... a atividade que se encontra em um corpo luminoso é de dois tipos: um que é, por
assim dizer, a vida superabundante deste corpo luminoso, de alguma forma o princípio
e a fonte de sua atividade; e outra que se encontra ao exterior dos limites do corpo em
questão, que é uma imagem daquele que está em seu interior, uma atividade secondária
que não é separada da primeira. […] A imagem que aparece num espelho deve ser de
fato qualificada como “atividade” do objeto refletido que age sobre o recipiente
potencial [o espelho], sem que o objeto saia de si mesmo [em direção ao espelho]. (tr.
29 [IV.5], 7, 13-16 ; 44-46)
No caso do Bem/Uno, sua atividade interna é totalmente autocontida (c.f. EMILSSON,
2017, p. 269), “uma simples concentração de atenção (epibolê) em si mesmo”91 (tr. 38 [VI.7],
39, 1-2), como um “ato primeiro sem substância” que é “por assim dizer, sua existência
(hupostasis)” (tr. 39 [VI.8], 16, 29), de forma que segundo sua atividade interna o Princípio é
transcendente a tudo o que é, pura liberdade (ibid., 20, 18), pois não é subjugado a nenhuma
determinação essencial (ousía). Sua atividade interna é, portanto, o princípio do Limite
(περας)92, sua unidade consigo, pela qual ele é chamado de Uno, e que significa, de fato, a plena
autoidentidade daquele que é plena interioridade93 e não precisa ver-se como reflexo no espelho

91
O que isso significa é que o Princípio “permanece em si”, e não é voltado para fora de si. O que é dito aqui,
como em todas outras afirmações positivas acerca do Princípio em si, de maneira analógica ou metafórica. Pois
não há, para o Princípio, nada que lhe seja outro para que lhe seja possível voltar-se para fora ou sair de si; portanto
tampouco faz sentido dizer que ele permanece em si. Nem significa que ele volta a sua atenção a si mesmo como
se fosse um objeto de sua atenção, pois o Princípio é uma consciência não-intencional e sem objetos, como já
vimos.
92
Que o Princípio não seja de nenhuma forma limitado não significa que ele seja o Ilimitado; antes, ele é o Limite,
mas o princípio do Limite não é ele mesmo limitado, ainda que seja fonte de limitação/determinação para os
demais.
93
Já que a multiplicidade significa, para Plotino, a alteridade e exterioridade a si mesmo: “...cada coisa é múltipla
quando, incapaz de se inclinar a si mesma, ela se espalha e se dispersa. Se ela é totalmente privada da unidade em
seu fluxo, ela se torna uma multiplicidade, pois não há mais nada que une uma de suas partes à outra”. (tr. 34
[VI.6], 1, 4-7).
125
da objetividade. Sua atividade externa, por sua vez, é o princípio do Ilimitado (απειρον)94, sua
potência geradora95. Esta será compreendida como o transbordar da inefável autossuficiência
daquele que nada possui e nada busca, sua superabundante potência (dunamis) produtiva (c.f.
BUSSANICH, 2017, p. 68).
Que o Bem/Uno seja assim capaz de potência criativa e doação de si através de sua
atividade externa, não é uma negação da sua simplicidade ou unidade mas uma constatação de
que ele de alguma forma contém em si, de maneira pré-existente, todas as coisas. A este respeito
Plotino se pergunta: como é possível que o Uno contenha em si todas as coisas, sem que isso o
faça ser múltiplo? Sua resposta é que “ele possui todas as coisas sem que elas sejam distintas:
as distinções têm lugar naquilo que se encontra no segundo nível [o Intelecto]” (tr. 49 [V.3],
15, 27-31. Minha ênfase). De fato, a unidade do Princípio não é uma unidade numérica ou
exclusiva, mas a unidade inclusiva da indistinção (BUSSANICH, 2017, p. 61). Ele não é coisa
alguma porque, em sua pura existência (huparxis), nele tudo é indistinto; mas também é tudo,
porque de sua unidade indistinta toda distinção determinativa (ousía) é passível de emergência,
de forma que todos os seres (ta onta) existam no Uno virtualmente mas não eminentemente
(ibid., p. 81). É isso que permitiria Damáscio, num período posterior da tradição neoplatônica,
afirmar que o Uno é “Tudo antes de todas as coisas, não de uma maneira irrealizada, como se
fosse tudo em potência, nem segundo a causa, como se não possuísse ainda o Tudo, mas será o
Tudo segundo a existência (κατα ‘ύπαρξιν), essa que é indiferenciada ... [compreendendo tudo]
por sua própria simplicidade”96 (apud I. HADOT, 2004, p. 116).
Enquanto em sua atividade interna o Bem é a pura liberdade e permanência em si da
autoidentidade, através da sua atividade externa o Princípio não apenas produz, mas é imanente
a tudo o que é. Desta forma se pode falar de uma superabundante doação de si sem diminuição,
de forma que “todas essas coisas são o Uno e não são o Uno: são porque dele provêm; não são
porque os gerou permanecendo em si mesmo” (tr. 11 [V.2], 2, 24-25)97, isto é, sem ser
diminuído ou transformado. Só podemos nos referir ao Bem/Uno enquanto causa segundo a sua

94
Esta capacidade de falar do Princípio tanto como o Limite quanto como o Ilimitado faria Proclo, num momento
posterior da tradição neoplatônica, dizer que o Uno está além do par Limite-Ilimitado, e que este par são as duas
primeiras figuras pelas quais Ele é visto e participado pelos seres, e cuja dinâmica bipolar constituirá a realidade
em cada um de seus níveis.
95
“Não enquanto grandeza que ela é ilimitada, pois onde poderia ela se expandir ou com que que propósito o faria,
uma vez que nada lhe falta? Não, é enquanto poder que ela possui o ilimitado… ” (tr. 32 [V.5], 10, 20-22).
96
Damáscio faz uma distinção entre o Uno enquanto pura Inefabilidade, e o Uno enquanto esse “Tudo antes de
todas as coisas”, que é menos transcendente que o primeiro (I. HADOT, 2004, p. 116). Essa distinção não está
presente em Plotino, ou ao menos não com a mesma ênfase. Retomaremos este ponto no último capítulo.
97
Tradução de Bussanich (2017, p. 70).
126
atividade externa, pois em sua atividade interna ele está além de toda relação causal. Neste caso,
diz Bussanich (2017, p. 64):
O Uno é uma causa em dois sentidos: como origem causal da realidade e como o objeto
de desejo universal, que é tomado como causa eficiente e causa final: ‘a fonte do ser e
a razão do ser que são dadas de modo conjunto’ (VI.8.14.31-32). A causalidade
eficiente ocorre na processão (proodos) das realidades inferiores, a segunda diz respeito
à sua reversão (epistrophé) de volta ao Uno. (Minha ênfase)
O Bem, portanto, é a fonte do ser enquanto causa eficiente que emana a realidade; e a
razão do ser enquanto causa final, que faz com que toda a realidade a ele se volte desejosamente.
Ambas funções causais estão em atuação na emanação ou geração do Intelecto, que é “o caso
primário da causalidade do Uno” (ibid., p. 65), e que é descrito por Plotino da seguinte forma98:
... nada possuindo e nada buscando em sua perfeição, o Uno transbordou e sua
superabundância produziu algo diverso dele mesmo. O que foi produzido voltou-se de
novo para a sua origem e, contemplando-a e sendo por ela preenchido, tornou-se a
Inteligência. O ato de ter-se detido e se voltado para o Uno deu origem ao Ser; o ato de
ter contemplado o Uno deu origem à Inteligência. O ato de ter-se detido e se voltado
para o Uno a fim de contemplá-lo tornou-o simultaneamente Ser e Inteligência. (tr. 11
[V.2], 1, 8-13)99
A superabundância que transbordou do Uno, como causalidade eficiente, é o seu próprio
poder (dunamis) produtivo, o Ilimitado, que é uma indefinida potencialidade de ser todas as
coisas, mas ainda não atualizada, e a qual Plotino chama de “pré-Intelecto”, “díade indefinida”,
ou “matéria inteligível”, entre outros nomes (BUSSANICH, 2017, p. 71). Sua natureza
indeterminada significa que não é, ainda, um ente propriamente existente, mas uma pura
potencialidade criativa, enquanto que sua alteridade em relação ao Princípio a faz ser puro
desejo (eros). Segundo sua causalidade final, o Bem, objeto de seu desejo, move esta potência
indefinida a voltar-se até Ele e contemplá-lo, e assim a preenche de si mesmo e a define, isto é,
a faz ser todas as coisas de fato ou em ato: eis o Intelecto, o resultado da confluência simultânea
das duas causalidades do Bem/Uno, eficiente e final.
Essa determinação da potência indefinida pelo Uno é melhor compreendida em analogia
com a teoria aristotélica da percepção e do pensamento. Nesta, a faculdade da visão é todas as
formas visíveis em potência, assim como a faculdade da inteligência é todas as formas

98
Há que se ter em mente que esta é uma descrição sucessiva/temporal, como se a geração do Intelecto fosse um
processo que ocorreu no tempo. Para Plotino, porém, esse discurso precisa ser lido como uma metáfora temporal
ou processual de uma atividade atemporal e não-processual, eterna. O Intelecto, assim como o Ser inteligível uno-
múltiplo, é eterno, além de toda existência temporal. Como o coloca Bussanich (2017, p. 71), “os estágios da
geração são logicamente, mas não temporalmente, distintos”.
99
Tradução de Sommerman (2000, pp. 63-64).
127
inteligíveis em potência, mas é só quando diante de um objeto de percepção ou de pensamento,
e movido pelo desejo por estes, que essas faculdades atualizam a forma visível ou inteligível
do objeto percebido, tornando em ato perceptivo ou intelectivo as formas que já estavam
anteriormente presentes potencialmente (BUSSANICH, 2017, p. 72). Da mesma forma, o pré-
Intelecto ou potência indefinida é movido pelo Bem a desejá-lo, e então, segundo esse desejo,
volta-se para ele e o contempla, e, assim, quando diante de seu objeto, tem sua potência de ser
todas as coisas, ou de inteligir todas as coisas, convertida em ato. O Bem “fez mover em sua
direção aquilo que veio a ser: aquele, sendo movido, viu. E eis o que é inteligir: um movimento
que se dirige ao Bem ao desejá-lo. Pois o desejo engendrou a intelecção e a fez existir consigo”
(tr. 24 [V.6], 5, 7-10).
Ora, um problema se põe aqui: enquanto anteriormente tratamos o Intelecto como sendo
um movimento de autorreflexão, um pensamento que tinha a si mesmo como objeto, a unidade
do Ser (objeto) e do Pensar (sujeito) no ato intelectivo; agora, por outro lado, é dito que ele é
na verdade um movimento em direção ao Bem, e que, ao contrário de Aristóteles, o Bem não é
o próprio Intelecto mas um Princípio que lhe é superior. O ato intelectivo é dirigido a si mesmo
ou a um princípio superior? Como conciliar esta aparente contradição? Se o movimento da
autorreflexividade da consciência-de-Si, que é o Intelecto, é movido pelo desejo cujo objeto é
o Bem, isto só faz sentido se, de alguma forma, o Intelecto se volta ao Bem ao voltar-se a si
mesmo, como se o Princípio habitasse o seu cerne como o fator que determina a direção do seu
movimento pensante-desejante a si mesmo.
A compreensão deste ponto está no cerne do idealismo plotiniano: que “não é o Uno
que atualiza a visão (ou capacidade de pensar) do Pré-intelecto, mas o Uno como visto (ou
pensado) pelo Pré-intelecto” (LLOYD apud Bussanich, 2017, p. 74). Aquilo que o Intelecto vê
quando volta sua atenção ao Bem não é o Bem em si mesmo, em sua atividade interna; antes,
ele vê apenas a sua imagem ou representação, que é sua atividade externa. Ora, segundo um
importante princípio posto por Plotino de que “o recipiente modifica o que ele recebe” (ibid.),
o Intelecto só poderia receber o Bem em si de maneira apropriada à sua natureza intelectiva,
isto é, enquanto objeto de visão ou intelecção. Assim, para que o Intelecto possa possuí-lo pela
visão intelectiva, o Princípio, que em si mesmo está além de toda intelecção, lhe conferiu um
traço de si mesmo (c.f. tr. 30 [III.8], 11, 16-23), a “forma do Bem” (agathoeides), pelo qual o
Bem aparece para o Intelecto enquanto objeto inteligível, e este é o Ser: “o Ser é um traço do
Uno” (tr. 32 [V.5], 5, 13). O Intelecto é, na verdade, nada mais que a contemplação desejosa do
Bem na qual este último, que não é Ser ou está acima do Ser, é feito Ser inteligível ou objeto

128
de intelecção (tr. 11 [V.2], 1, 7-13) – e é enquanto tal, sob esta forma intelectiva, que o Intelecto
o possui. A atividade externa do Uno é a própria atividade interna do Intelecto, de forma que
“é contemplando o Bem que o Intelecto se conhece a si mesmo”, diz Plotino, e, completa
Emilsson (2017, p. 271), “se o Intelecto conhece o Uno como conhecendo uma imagem do Uno
que nele existe, [...] contemplar o Uno e conhecer-se a si mesmo são o mesmo”. O movimento
autorreflexivo ou o conhecimento-de-si do Intelecto é, portanto, um contemplar-se a si mesmo
enquanto imagem ou traço do Princípio.
A visão que o Intelecto tem de si mesmo como imagem do Bem, devido ao princípio de
que “o recipiente modifica o que ele recebe”, faz com que a perfeita unidade e simplicidade do
Uno seja vista de maneira múltipla, pois o Intelecto já possui um princípio de alteridade e
multiplicidade em sua natureza. Ou seja, a multiplicidade das Formas inteligíveis, que fazem
do Ser uno-múltiplo, como já vimos, é também uma perspectiva múltipla do Princípio. Cada
Forma é, portanto, uma perspectiva particular pela qual o Uno/Bem, em sua imagem ou seu
aparecer para o Intelecto, é intuído enquanto Ser ou Si.100 Assim, a Essência que, em sua uni-
pluralidade, preexistia virtualmente na unidade indiferenciada do Princípio, dele emerge e
atinge eminência no Intelecto. Segundo Reale (2014, p. 64), as Ideias platônicas possuem a
característica de “perseidade”, do latim “per se”, o que significa que elas são “em si e por si”,
ou unas consigo mesmas. O termo grego utilizado por Platão é αυτος, que também significa
“si”, uma indicação de autoidentidade. Podemos tomar o vocábulo emprestado: se as Ideias são
caracterizadas pela perseidade, fazendo delas “Justiça-em-si” e “Beleza-em-si” etc, o Uno/Bem
é a própria fonte da perseidade, o puro “Em-Si”, a pura autoidentidade, que precede toda
determinação e essência, e que é a fonte que dispensa perseidade a toda essência.
Para que cada ente seja o que ele é e não outra coisa, ele precisa ser esta determinação
particular de si – o que chamamos essência (ousía); mas, antes, precisa ser “si” ou uno. O “Uno
dispensa unidade como o Sol dispensa claridade”, diz Trouillard (1972, p. 118); ou seja, o puro
“Em-si” distribui perseidade aos entes e lhes confere um “si”, uma unidade consigo ou
autoidentidade, a partir da qual eles podem ser aquilo que são. O Bem/Uno não é nenhuma
coisa em particular, mas é o que permite aos entes serem unos consigo mesmo, e assim lhes
permite ser segundo sua essência. Diz Plotino:

100
Isto não significa, porém, que esse estatuto de ser imagem do Uno reduz sua densidade ontológica. De fato, diz
Emilsson (2017, p. 276), “com relação ao Uno, o conhecimento do Intelecto é de fato conhecimento de uma
imagem, como Plotino claramente afirma. Isso não retira de tal cognição o conhecimento das coisas em si mesmas
porque as coisas que Plotino chama de reais ou seres ontologicamente primários (ta onta) – os paradigmas de todas
as outras existências – primeiro existem no estágio do Intelecto. A cognição do Intelecto é cognição de tais objetos
em si mesmos”.
129
É em virtude da unidade que todos os seres são seres, tanto aqueles que são seres no
sentido primeiro do termo, quanto todos que são ditos seres de qualquer maneira entre
os seres. De fato, o que poderia ser, sem ser uno? Pois, desprovidos da unidade que se
diz delas, as coisas aqui não são: seguramente, não há exército, se ele não é uno, não há
coral ou tropa, se não são unos. Mas tampouco há casa ou navio se eles não têm unidade,
porque a casa é una e o navio é uno, e se eles perdem a unidade, a casa não será mais
casa nem o navio será navio. […] E a saúde se produz quando o corpo é coordenado na
unidade; a beleza quando a unidade mantém unida suas partes; e só há a virtude para a
alma, quando, se orientando à unidade num acordo único, ela se encontra unificada. […]
as coisas também são, cada uma, porque são unas, mas a unidade permanece distinta
delas: de fato, o corpo e a unidade não são a mesma coisa, mas o corpo participa da
unidade. (tr. 9 [VI.9], 1, 1-7 ; 14-16 ; 36-38)
E ainda:
… [tudo] é salvaguardado pelo Uno, e é em sua virtude que ele é […]. Se nós
podemos dizer de cada coisa aquilo que ela é, nós o dizemos porque cada uma
delas é una, e é em virtude dela [da unidade] que ela é. (tr. 49 [V.3], 15, 12-15)
Plotino delineia com clareza na primeira citação que é da participação do ente na
unidade que ele tem sua possibilidade de essência, e, ainda, que dessa mesma participação na
unidade depende sua virtude, sua beleza e sua harmonia (que aparece como saúde, no exemplo
dado). Na segunda, o Uno aparece como a Medida que determina não apenas a unidade
ontológica de cada ente, como também sua unidade gnosiológica pela qual sua essência é
conhecível ou dizível, de maneira que tanto seu ser quanto seu ser-conhecido aparecem como
duas facetas da sua participação na unidade. “O Uno dispensa unidade como o Sol dispensa
claridade”: e nessa dispensação ele estabelece o ente, o belo, o verdadeiro, o virtuoso, o
harmonioso101.
O Intelecto possuindo a imagem do Bem em seu cerne, este seu estatuto boniforme lhe
garante estabilidade e permanência em si (tr. 49 [V.3], 16, 17-22), e faz dele uma natureza
autossuficiente (autárquica) na medida em que ele recebe e assimila o Bem segundo a sua
maneira intelectiva de ser, de forma que também é graças ao Bem que ele é dotado de
movimento inteligente dirigido a si mesmo (autorreflexão), que, como já havíamos visto, é a
sua capacidade de autoconstituição pela qual ele dá a si mesmo o seu Ser. O Intelecto, portanto,
é causa sui, “define seu ser por si mesmo por meio da potência que provém do Uno” (tr. 10,

101
Krämer aproxima a concepção equivalente a esta, tal qual encontrada nas chamadas “doutrinas não escritas de
Platão” e pela mediação do conceito aristotélico de medida, à doutrina escolástica dos transcendentais: “A medida
determina o que é e, portanto, o que é verdadeiro. [...] Nesse sentido, pode-se dizer que Platão antecipou a doutrina
dos transcendentais. Todas as coisas são, são verdadeiras, e são boas na medida em que possuem uma unidade,
que as determina e define do ponto de vista ontológico”. (apud PERINE, 2014, p. 186)
130
[V.1], 7, 13-14). O Intelecto será, portanto, um movimento eterno (atemporal) tendendo ao seu
próprio centro, como uma circunferência tende ao centro do círculo. Vejamos uma instância de
como Plotino introduz a imagem do círculo como desejo e da autorreflexividade, que terá longa
posteridade na tradição neoplatônica:
... num círculo, o centro permanece naturalmente imóvel, enquanto que a circunferência
exterior, se ela permanece imóvel, se torna um centro imenso. É mais provável portanto
que ela se mova ao redor do centro, como o faz um corpo que vive e se comporta
também seguindo sua natureza. Assim, o fogo 102 se inclinará também em direção ao
centro sem com ele se coincidir, pois isso destruiria o círculo. Mas porque isso não é
possível, ele gira ao seu redor desta maneira. É apenas assim, de fato, que ele irá
satisfazer seu desejo. […] – O quê? Ele nunca o alcançará? – Ao contrário, ele o alcança
sempre. Mas é antes a alma que, porque ela o dirige a si mesma, o dirigindo assim sem
fim, o move sempre. […] não conduzindo o fogo em linha reta mas em círculo ... (tr. 14
[II.2], 1, 32-37, 44-48. Minha ênfase.)
O movimento circular do Intelecto será a inteligência voltando-se a si mesma, ao seu
próprio centro, sem coincidir com ele. É desta forma que sua natureza é desejo: se a
circunferência da inteligência coincidisse com o centro, o círculo e o movimento circular
deixariam de ser, isto é, não haveria mais desejo a ser realizado, e o uno-múltiplo que é o
círculo/Intelecto dissolveria na unidade indistinta do Uno, na qual não há nem centro nem
circunferência. Por outro lado, se o movimento da inteligência não se dirigisse ao centro e o
tocasse, o desejo não teria satisfação alguma, e sua existência seria o inferno de uma sede que
nunca se sacia; além disso, seu movimento não teria delimitação alguma, de forma que se
perderia na pura multiplicidade, o “mar da dessemelhança”. Ou seja, o eros, que sempre atinge
seu objetivo sem deixar de desejá-lo nunca, é a vida do movimento circular da Inteligência
divina: ele a move em direção ao seu centro, e assim os une; e ele, ao mesmo tempo, mantém
centro e circunferência distintos, para que o movimento não desapareça. O desejo, portanto, é
o pai e a sustentação da intelecção (que é intelecção-de-si).
A circunferência do círculo é a Inteligência; o centro do círculo ao redor do qual ela se
move e ao qual ela se volta, diz Plotino (tr. 54 [I.7], 1, 21-24), é o Bem; mas o centro só existe
em relação à circunferência, de forma que deve ser entendido como o Bem-feito-objeto-de-
intelecção, o Ser; e os raios que os conectam é a Vida ou o ato intelectivo, que gera a

102
O trecho que citamos provém de um tratado no qual Plotino lida com questões de Física; ele fala, portanto, do
círculo que o fogo cósmico faz ao redor da Alma-do-mundo. A utilização deste trecho para compreender a natureza
do Intelecto se justifica devido à comparação feita pelo próprio Plotino, ainda que em sentido reverso, no início
do tratado: “Por quê o céu se move num círculo? Porque ele imita o Intelecto” (tr. 14 [II.2], 1, 1). Isto é, o círculo
do movimento temporal do fogo celeste ao redor da Alma-do-mundo é uma imagem do círculo do movimento
atemporal do Intelecto ao redor do Bem.
131
multiplicidade de perspectivas acerca do centro. Cada um dos pontos da circunferência, ligados
a um raio, são várias perspectivas a respeito do ponto central: são os inteligíveis ou Ideias
platônicas, de maneira que as Ideias serão intelecções ou formas particulares pela qual a
Inteligência intui a unidade do seu próprio Ser. Isto é, as Ideias são agathoeides, formas pelas
quais o Bem é contemplado ou intuído enquanto Ser. Proclo assim o resume:
O círculo é a imagem do intelecto. De fato, ele permanece em repouso quanto a seu
centro, ele procede segundo suas potências generativas e ele retorna si mesmo segundo
o conhecimento que o envolve igualmente de todos os lados. O centro do círculo é a
imagem do ser inteligível, indivisível, desejável, que está no intelecto; as linhas egressas
do centro são as imagens das potências infinitas do intelecto graças às quais ele produz
toda a multiplicidade de inteligíveis que há nele; a circunferência, pela qual ele se curva
novamente ao se contrair em direção ao centro e abraçando-o de todos os lados,
assemelha-se às intelecções que se revertem em direção ao Uno e ao Inteligível. (In.
Remp., XIII, 46.18 – 27)
A intelecção é fundada no Bem que se instala em seu interior, o próprio ato de acolher
o Bem, que se doa a ela e assim a forma. Este modelo metafísico implica, do ponto de vista da
vida filosófica, que é na contemplação do Bem que o verdadeiro fim da filosofia é alcançado:
a tranquilidade, a ataraxía que os céticos buscavam na suspensão do juízo.
Ao mesmo tempo, portanto, a superioridade do Bem/Uno sobre o Intelecto em Plotino
pode também ser tomada como uma formulação metafísica da constatação fenomenológica da
primazia do eros sobre o conhecer, que deriva de Sócrates. De fato, o ideal que Sócrates encarna
é o da autossuficiência do Bem, o objeto supremo do desejo, e não o do conhecimento perfeito.
Postular a superioridade do Bem sobre o Intelecto também significa dizer algo, portanto, sobre
a natureza da felicidade (eudaimonia): a vida teorética é em função não de si mesma mas da
perfeita autossuficiência do Bem, que é o verdadeiro fim, aquele que é em função de si. Ele é a
pura luminosidade que é o objeto de amor de todos os seres, de maneira que até as Formas
inteligíveis só são amáveis porque a sua luz as colore (tr. 38 [VI.7], 22, 2-6).
Em resumo, Plotino estabelece as bases metafísicas para uma concepção de Verdade
que está assentada na autorreflexividade e autoconhecimento perfeito do Intelecto que pensa-
se a si mesmo de modo intuitivo, superando a alteridade e exterioridade de um modelo
representativo de conhecimento. O Intelecto, por sua vez, é movido pelo desejo de conhecer o
Bem, o qual, em sua perfeita unidade, é o Absoluto, a fonte do ente e de sua inteligibilidade.
Desta forma, a constatação socrática da aspiração pelo valor absoluto como sendo o cerne da
alma se torna o modelo metafísico que funda a própria possibilidade de ser da Inteligência
divina.
132
Resta ainda, porém, um importante ponto de aproximação de Plotino ao ceticismo neste
respeito. Embora a ascensão contemplativa ao Uno passe pela mediação da contemplação
intelectual, como veremos mais adiante, há também um fato a ser observado: o Intelecto só vê
a imagem do Uno produzida por sua atividade externa, por seu aparecer, mas permanece
removido da visão da atividade interna do Princípio, que é sua verdadeira natureza, que por ser
tão simples e desprovida de objetividade não pode ser objeto da visão intelectiva. Neste sentido,
embora o Intelecto seja o próprio Ser ou o Real, e a própria Verdade, diante d’Aquilo que é a
fonte do Real o Intelecto permanece em uma posição tão precária quanto aquela que os céticos
postulavam entre a razão diante de uma verdade que lhe é inalcançável. Assim como a razão,
para o cético, só via a aparência das coisas, e só falava de si mesma ou de suas afecções (pathe),
assim também o Intelecto só vê a aparência do Princípio e só pensa as “afecções” que possui
dele (c.f. tr. 9 [VI.9], 3, 49-55103). A suprema inefabilidade do Bem é preservada desta forma,
e se torna um fator essencial da ascensão contemplativa da alma. Em que sentido isso constitui
um “metaceticismo”, ou apenas uma assimilação do argumento cético numa direção distinta,
teria que ser averiguado.
Além disso, por mais sofisticada que essa metafísica do Intelecto e do Uno possa se
mostrar, por si só ainda não responde aos problemas apontados pelos céticos, pois mesmo se é
possível pensar, no nível do Intelecto divino, em uma Verdade plena que não cai nas
contradições por eles apontadas, em que isso ajudaria ao filósofo em sua aspiração pelo
conhecimento verdadeiro, uma vez que ele não é a Inteligência divina mas apenas uma
inteligência humana e finita? Toda esta metafísica acerca do Intelecto só servirá como resposta
ao problema posto pelo ceticismo se a alma humana, de alguma forma, for partícipe da
Inteligência divina – na plenitude da Verdade que ela é, e também em seu autoconhecimento.
É preciso, portanto, investigar como é que, para Plotino, se dá a participação da alma humana
no Intelecto. E, mais além, é preciso investigar a relação da alma com o Uno, e assim verificar
em que sentido os argumentos céticos assimilados por Plotino em sua mística consistem ou não
em uma continuação do ceticismo.

103
Neste trecho citado, Plotino diz isso acerca da relação entre a alma e o Uno, que ainda não abordamos, mas que
consideramos igualmente válida a respeito da relação entre o Intelecto e o Uno.
133
3.3 O autoconhecimento como ascesso transcendente ao Intelecto e ao Uno/Bem

No pensamento aristotélico, encontramos na alma racional a atuação do nous (intelecto)


enquanto faculdade da apreensão intuitiva pura e imediata, que funda a ciência enquanto
discurso ou saber racional, isto é, que apreende a unidade dos princípios que subjazem e
permitem a ciência. Em Segundos Analíticos (B 19, 100b), Aristóteles diz que o conhecimento
científico, segundo seu caráter argumentativo e demonstrativo, supõe um princípio que não
pode ser demonstrado. Os princípios da ciência, portanto, não são objetos de conhecimento
científico, e só são conhecidos enquanto intuição intelectual simples. Tal qual na via da dialética
descendente em Platão, também no pensamento aristotélico “o conhecimento discursivo supõe
um conhecimento não discursivo, a possibilidade do saber mediado supõe, necessariamente,
um saber imediato” (REALE, 2015, pp. 156-157).
Em analogia com o ato perceptivo que recebe em si uma forma sensível, Aristóteles
compreenderá o ato intelectivo desta faculdade como a assimilação de uma forma inteligível.
Para tanto, a natureza da faculdade intelectiva deve ser tal que ela não possui nenhuma natureza
determinada, para que assim possa ser capaz de acolher a forma de seu objeto sem obstáculos;
acolhendo-a, a inteligência se torna como o seu objeto104, e o conhece por identidade. Isto é,
não sendo mais que potencialidade, ela é potencialmente capaz de assumir a forma ou natureza
de qualquer objeto de conhecimento inteligível. Todas as formas inteligíveis lhe são, portanto,
inerentes – mas apenas potencialmente. Quando o pensamento é posto em moção, esta
potencialidade se faz ato, isto é, conhecimento de fato; de forma que o sábio é aquele em quem
a inteligência “torna-se todas as coisas” (Da alma, Γ 4, 429a), ou seja, aquele em que o intelecto
se tornou ato puro. Além disso, ele diz que esse intelecto presente na alma é “separado,
impassível e não misturado, e intacto pela sua essência [...]. Separado, só ele, justamente, é o
que é, e só ele é imortal e eterno” (Da alma, Γ 5, 430a); e ainda, “o intelecto vem de fora e só
ele é divino” (A geração dos animais, Γ 3, 736b). Isto significa que se trata de uma atividade
de natureza divina, independente da natureza corpórea corruptível.
Ora, Aristóteles deixou, porém, várias perguntas sem resposta a este respeito. Por
exemplo: qual a relação deste intelecto-faculdade com o Intelecto divino, da Metafísica, aquele
que pensa a si mesmo e é a causa final de todas as coisas? Reale (2015, p. 90) ainda lista mais
algumas a este respeito:

104
Uma extensão do princípio epistemológico de que “semelhante conhece semelhante”.
134
Esse intelecto é individual? Como pode “vir de fora”? E que relação tem com a nossa
individualidade e com o nosso eu? E que relação tem com o nosso comportamento
moral? Está completamente subtraído a qualquer destino escatológico? E que sentido
tem a sua sobrevivência ao corpo?
Evitando suposições acerca de quais eram as respostas do próprio Aristóteles a estes
problemas, o fato é que o filósofo peripatético Alexandre de Afrodísia identifica o Intelecto
divino da Metafísica com o intelecto agente do Da Alma, e Plotino parece lhe seguir (c.f.
EMILSSON, 2017, p. 281). Desta forma, aceito este pressuposto, o intelecto aristotélico
poderia ser interpretado em continuidade com uma tendência, já presente no período pré-
socrático, de considerar o νους como “independente, sobre e além das demais faculdades
humanas, ‘mais que humano’”, como encontramos exemplificado no fragmento 101 8 de
Euripides, “que declara que ‘o nous em cada um de nós é Deus’” (MOURTLEY, 1986, p. 68.
Minha ênfase). Isso significaria dizer, à luz do percurso do primeiro capítulo, que o “intelecto-
faculdade” seja como uma atividade do Divino (o Intelecto da Metafísica) no homem, de forma
que a atividade filosófica seja entendida, tal qual sugeri no capítulo anterior, quando defini o
filósofo platônico. Fica aberta, assim, a possibilidade de pensar em uma união entre o nous que
atua no homem e o Nous divino, ainda que em Alexandre (ou no que dele nos restou) isso não
seja suficientemente explicado (c.f. SZLEZÁK, 2010, p. 343n).
No tratado 49 ([V.3], 3, 23-29), Plotino se pergunta: o intelecto pertence à alma, como
se fosse uma faculdade? Sim e não, ele diz. Não podemos contá-lo entre as partes da alma,
porque se trata de uma inteligência não-discursiva transcendente à natureza da alma, de forma
que podemos dizer que ele não é “nosso”; ou seja, trata-se de uma atividade supra-individual,
transcendente à alma, uma atividade do Intelecto divino. Mas, ao mesmo tempo, também é
verdade que podemos dizer que ele é “nosso” na medida em que somos capazes de usá-lo, o
que significa voltar-se a e pôr-se em acordo com Ele. E este acordo da alma com o Intelecto
divino, por sua vez, pode se dar de duas maneiras distintas, segundo Plotino: 1) “possuindo
aquele tipo de traços que são inscritos em nós como leis”, ou 2) “quando nós somos como que
preenchidos por ele ou que nós podemos vê-lo e perceber sua presença” (tr. 49 [V.3], 4, 2-4).
Nesta primeira forma de acordo com o Intelecto, Plotino aponta para a alma racional
como se fosse inscrita desde o interior por traços inteligíveis nela desenhados pelo Intelecto, os
quais são seus logoi ou suas formas racionais “a priori” – para tomar emprestado um termo da
filosofia moderna –, que constituem o critério pelo qual ela realiza seus juízos e as leis que
governam a sua atividade racional discursiva. Trata-se, portanto, de um acordo com o Intelecto
no qual a alma, voltada a estes traços inteligíveis que a constituem e que são como fulgurações

135
do Intelecto em si mesma, permanece em sua própria estação e atividade discursiva. A vida
ordinária da alma, diante do mundo sensível e nas suas atividades racionais, tem sua raiz e
fundamento nesta forma de participação intrínseca na luz intelectiva.
Uma instância importante deste fato é a maneira como Plotino entende a percepção
sensível: esta não alcança os objetos em si mesmos, que permanecem externos e inalcançáveis;
tudo o que ela pode apreender é uma imagem sensível do objeto (tr. 32 [V.5], 1, 17-19) – como
já mencionei atrás. Em uma passagem reminiscente da Sétima Carta (343c) de Platão, Plotino
distingue entre a essência e qualidade dos objetos:
[A assim chamada substância sensível] não é uma essência (ti), mas antes uma
qualidade; e o princípio formativo (logos), por exemplo, do fogo, indica antes a
essência, mas a imagem que ele produz é uma qualidade. E o princípio formativo é a
essência, mas seu produto na natureza do corpo, sendo uma imagem (eidôlon) da forma,
é uma qualidade. (tr. 44 [VI.3], 15, 27-31) 105
Associando esta distinção com a outra entre potência interna e externa, poder-se-ia dizer
que o objeto em sua potência interna ou essência é da natureza de um princípio ou forma
racional (logoi) inacessível aos sentidos, enquanto sua potência externa ou imagem é como um
reflexo dessa essência inteligível do objeto no espelho da matéria (EMILSSON, 2017, p. 267).
Na percepção sensível, os órgãos sensórios, sendo corpóreos, partilham da natureza sensível da
qualidade do objeto refletida na matéria, e assim podem ser por elas afetados, de maneira a
tomar eles próprios a forma daquela qualidade – “conservando algo do agente que o afeta, sem,
no entanto, se tornar idêntico a ele” (tr. 28 [IV.4], 23, 24) –, de maneira que apreendem “a
mesma qualidade sem a matéria ou a massa” (EMILSSON, 2017, p. 257). Por outro lado, os
órgãos sensórios também partilham da natureza da alma, uma vez que são infundidos por ela,
de maneira que o órgão “desempenha o papel de um médio proporcional que de algum modo
conecta os extremos [objeto e alma] um ao outro e que possui a capacidade de receber a forma
e a transmitir à alma, por ser apto a se tornar semelhante a um e a outro extremo” (tr. 28 [IV.4],
23, 27-28). Assim, “a afecção que sofre o órgão se torna uma forma na alma” (ibid., 32).
Mas a alma não recebe a afecção sensível de maneira passiva, como o órgão sensório o
faz, mas ativamente a molda segundo um juízo (krisis), a partir de suas próprias formas ou
princípios racionais (logoi) nela inscritas pelo Intelecto. Ela é sujeito não de uma afecção mas
de uma sensação, a qual consiste em “juízos (kriseis) e atos de conhecimento (gnôseis) dessas
afecções” (MACISAAC, 2014, p. 201). Segundo Plotino, pelo seu poder (par’hautês), a alma
faz com que os objetos sensíveis brilhem (eklampein poiei) e sejam produzidos aos seus

105
Tradução de Emilsson (2017, p. 262).
136
próprios olhos (tr. 41 [IV.6], 3, 16-19), o que MacIsaac (2014, p. 202) interpreta como
significando que atividade da alma não é exercida sobre a afecção ou o objeto externo, mas na
verdade é como uma atualização ou iluminação de si mesma, de suas próprias formas, a partir
de sua atenção ao objeto. Assim, o que a alma percebe não é meramente as afecções das
qualidades sensíveis refletidas na matéria, mas, através de seus próprios logoi, ela é capaz em
algum nível de pensar as formas racionais que são a essência ou potência interna dos objetos,
os paradigmas dos quais as qualidades sensíveis são imagens, o que nos permite “experienciar
sob um aspecto universal o mundo que os sentidos nos reportam como absolutamente
particular” (ibid., p. 197).
Ora, essa homologia entre os logoi da alma e os logoi que constituem os objetos é
possível devido ao fato de que é o Intelecto que inscreve os mesmos logoi tanto na alma
individual quanto na Alma universal106, de modo que “a alma está pensando o mundo sensível
através [...] dos mesmos logoi que a Alma usa para criar o mundo sensível” (ibid., p. 203). A
perspectiva de Plotino a este respeito é assim resumida por Emilsson (2017, pp. 282-283):
As imagens têm seu conteúdo inteligível, logo, sua identidade, inteiramente em virtude
de seus arquétipos. Em um nível puramente ontológico, isso significa ‘retire o arquétipo
e a imagem perecerá’ (III.6.13.37-38; VI.4.9.38-41). Em um nível epistemológico isso
significa que para uma mente sem acesso ao arquétipo tudo se tornará inteiramente
vazio de sentido. [...] O conhecimento de formas sensíveis depende de uma posse
anterior das formas na alma daquele que julga. [...] receber uma mera imagem dos
inteligíveis na ausência dos próprios inteligíveis seria como ouvir uma linguagem
estrangeira sem entendê-la.
Mas este modo de acordo da alma com o Intelecto através dos logoi nela inscritas não
se limita a sua percepção do mundo sensível, uma vez que há nela formas que são critérios de
juízo e pensamento acerca de realidades que transcendem a experiência sensível. Um exemplo
dado por Plotino (tr. 49 [V.3], 3, 1-12):
... a sensação vê um homem, e fornece uma impressão dele ao pensamento discursivo.
[...] [este último] se pergunta, dialogando consigo mesmo, quem é este homem, se já o
encontrou antes, e diz, tendo recurso à sua memória, que este é Sócrates. [...] se ela [a
alma] diz que Sócrates é bom, ela se pronuncia a partir daquilo que apreendeu pela
sensação. Mas isto que ela diz a seu respeito, ela tira já de si mesma porque ela tem em
si mesma um critério do bem. – E o bem, como pode ela o ter em si mesma? – Sem
dúvidas há que se dizer que ela possui ‘a forma do Bem’, e que ela foi reforçada na
percepção de uma tal realidade graças ao Intelecto que a ilumina, pois é esta a parte
pura da alma, que recebe os traços que o Intelecto nela deixou. (Minhas ênfases)

106
A Alma hipóstase, que será discutida mais adiante.
137
Enquanto as formas ordenadoras do mundo sensível são atualizadas na alma através de
sua atenção à representação sensível dos objetos, essas formas superiores são atualizadas pela
atividade do pensamento racional. As disciplinas matemáticas constituem um primeiro estágio
nesta atualização, pois o desvelar das formas matemáticas na alma acostumam-na a “apreender
o incorpóreo e a pôr nele sua confiança” (tr. 20 [I.3], 3, 6-7). Também neste contexto, a lógica
formal com seu estudo de proposições e silogismos, tal qual praticada pelos peripatéticos, têm
seu lugar. Porém, superior a esta forma de lógica, há uma forma superior – a dialética. Esta, ao
contrário da primeira, “não consiste em saberes que não têm relação alguma com a matéria,
nem em regras: mas diz respeito às realidades e sua matéria é, por assim dizer, os seres” (ibid.,
5, 10-12). Desta forma, a dialética, que é o próprio pensamento filosófico ou a parte mais nobre
da filosofia, discursa acerca do que cada coisa é, em que difere das outras e o que há em comum
entre elas, ou sobre o que é bom e o que não é bom, e ainda sobre o que é eterno e o que não o
é – e o faz como uma ciência e não uma opinião (ibid., 4, 2-8). E em todos esses casos “é o
Intelecto que fornece os princípios evidentes, à condição de que a alma os possa receber” (ibid.,
5, 2). O pensamento filosófico, portanto, procede a partir daquelas formas inscritas na alma
pelo Intelecto, que são fulgurações do mesmo; não é, portanto, uma atividade meramente
humana nem divina, mas uma atividade do Intelecto na alma, do divino no homem.
Se evidencia aqui que a alma é capaz de três orientações distintas, tal qual Plotino indica
no tratado 6 ([IV.8], 3, 25-27), quando diz que “enquanto olha o que vem antes dela, a Alma
pensa; enquanto olha a si mesma, ela se conserva; enquanto olha o que vem depois dela, ordena,
dirige e comanda essa realidade”107. De fato, há em nós, segundo Plotino, três gêneros de
homem, os quais correspondem a essas três orientações da alma:
Desde o nascimento, todos os homens têm recurso à sensação antes do intelecto, e
encontram primeiramente, necessariamente, as coisas sensíveis. Alguns aí permanecem
e pensam, durante suas vidas, que as coisas sensíveis são a realidade primeira e última;
eles consideram aquilo que nelas é penoso e aquilo que nelas é agradável como sendo
o mal e o bem – crendo que isso é suficiente – e eles passam suas vidas, nós o sabemos,
a perseguir um e evitar o outro. E aqueles dentre eles que têm uma pretensão à razão,
supõem que isto é o saber, como pássaros pesados que, depois de haver recolhido muitas
coisas na terra, são incapazes de voarem muito alto devido ao seu peso, mesmo que a
natureza lhes tenha provido asas.
Mas outros homens se elevam um pouco das coisas daqui de baixo, pois a melhor parte
da alma os atrai daquilo que é agradável em direção àquilo que tem uma beleza maior.
Mas eles são incapazes de ver aquilo que se encontra ali e não têm outro lugar onde se

107
Tradução de Reale (2014b, p. 78)
138
fixar: não possuindo da virtude senão o nome, eles caem novamente entre as ações e as
“escolhas” daqui de baixo, de onde eles haviam primeiramente tentado se erguer.
Há ainda um terceiro gênero de homens, divinos pela superioridade de sua potência e
pela penetração de sua visão, que vêm por sua vista penetrante o esplendor de lá e a ele
se elevam, como acima das nuvens e a obscuridade daqui de baixo; eles ali permanecem,
vendo de lá todas as coisas daqui de baixo e regojizando-se desse lugar de verdade que
lhes é familiar, como um homem que retorna, após uma longa errância, à sua bem
governada pátria. (tr. 5 [V.9], 1, 1-21)
Temos aqui um homem voltado à vida natural (sensível), um segundo voltado à vida da
razão, e um terceiro, por fim, voltado à vida da contemplação intelectiva. Como alguns
comentadores observaram (c.f. BAL, 2007, pp. 56-57), estes três homens parecem corresponder
a três posições filosóficas arquetípicas distintas, e que, no universo do pensamento helênico,
encontram seus representantes nos epicuristas, estoicos e platônicos, respectivamente108.
Tomados enquanto possíveis orientações da alma, temos que (aqui em ordem invertida): “o
‘primeiro homem’ não é mais que a alma considerada na sua tangência com o Espírito
[Intelecto] [...]; o ‘segundo homem’ é a alma ou o pensamento discursivo, que está no meio
entre o inteligível e o sensível, e o ‘terceiro homem’ é a alma que vivifica o corpo terreno”
(REALE, 2014b, p.105). De certa maneira, somos todos os três homens, mas alguns agem de
acordo com um deles ou outro, de maneira que “cada um é o homem segundo o qual ele age,
mesmo que cada um entre nós possui todos estes homens ao mesmo tempo em que não os
possui” (tr. 38 [VI.7], 6, 15-18). Isto é, dependendo do nosso cuidado de si, podemos conhecer-
nos a nós mesmos, pensar e agir segundo um ou outro desses homens que nos compõem, e desta
forma estabelecemos em qual desses níveis existiremos – tanto nessa vida quanto na próxima109.
De qualquer maneira, o importante a ser ressaltado, neste contexto, é que todas as
orientações da alma aqui discutidas são pensamento discursivo – voltado ao mundo sensível,
voltado ao próprio pensamento discursivo, ou voltado ao Intelecto – que têm sua atividade e
possibilidade a partir das formas inscritas na alma pela luz do Intelecto.
Isso, porém, não é tudo: o próprio ato do pensamento em si depende do Intelecto em
mais um sentido. Plotino diz:
Em geral, parece que o pensamento é uma espécie de consciência do conjunto
(sunaísthêsis), as partes múltiplas deste conjunto se reunindo na unidade quando

108
Obviamente, epicuristas e estoicos conforme entendidos pela lente do pensamento neoplatônico.
109
Para Plotino, o nível que predominou em nós durante a vida determina nossa existência pós-morte: aquele que
vive predominantemente no nível natural, renasce como um animal; o que vive no nível racional, renasce como
ser humano; e o que vive no nível intelectivo se torna um deus e não volta a nascer em um corpo.
139
um ser pensa a si mesmo; é nisso que consiste o pensamento no sentido próprio.
(tr. 49 [V.3], 13, 12-14)
O pensamento, no sentido próprio, não é apenas o pensamento de uma forma; é, em
primeiro lugar, o pensamento do pensamento. Isto é, é preciso não apenas saber, mas também
saber que sabe. Essa capacidade de cognição-de-si é a instância que testemunha o
conhecimento, que não é diferente ou externa ao próprio conhecimento, e, portanto, a garantia
última do mesmo. A apreensão de si mesmo por parte do pensamento é o fundamento de todo
o conhecer. Sem essa autoevidência, teríamos um reductio ad absurdum no qual haveria a
necessidade de postular infindáveis inteligências, cada uma das quais testemunhando a anterior
sem que a garantia de saber que sabe fosse alcançada (c.f. RAPPE, 2017, p. 301). O
conhecimento só existe no autoconhecimento daquele que conhece, o cognoscente.
Ao contrário de Descartes, porém, Plotino não considera que o “eu penso” do sujeito
finito ou alma seja o princípio dessa unidade e certeza. No nível da alma, como já vimos, ele
estava de acordo com o argumento cético de que não há possibilidade de autoconhecimento,
uma vez que na alma “toda atividade discursiva da mente, tal como pensamento ou percepção,
introduz um lapso representacional entre o cognoscente e o objeto conhecido” (RAPPE, 2017,
p. 294). Isto é, numa tentativa de cognição-de-si por parte da alma, o que se dá é uma espécie
de representação de si mesma enquanto objeto externo à própria cognição, de forma que “se a
mente consegue representar o eu para o eu, então está se situando em uma distância
epistemológica trazida pela distinção entre a mente como sujeito e qualquer um de seus objetos
possíveis” (ibid., p. 296). O tipo de autoevidência necessária para o cognoscente pensar-se a si
mesmo, no sentido aqui discutido, é impossível para um pensamento discursivo e representativo
tal qual o da alma.
É neste ponto que a segunda forma de adequação da alma ao Intelecto tem seu lugar. A
primeira forma, já discutida, era meramente a alma permanecendo em sua própria estação e
atividade discursiva, mas a partir dos logoi nela inscritos pelo Intelecto. A segunda forma de
adequação, por outro lado, é de uma natureza mais transcendente, pois nesta recebemos o
próprio Intelecto que inscreveu em nós os logoi, somos preenchidos por ele como se “ele
estivesse em nós e como se nós estivéssemos nele” (tr. 49 [V.3], 4, 23), e “vemos o Intelecto
por meio do Intelecto” (ibid., 30). O cognoscente finito transcende a si mesmo e se identifica
com o Intelecto, participa de seu conhecimento-de-si de tal forma que não pensa a si mesmo
enquanto homem, mas “enquanto tendo se tornado completamente outro” (ibid., 11-12), isto é,
o cognoscente “conhece-se a si mesmo conformemente ao Intelecto ao tornar-se Intelecto”
(ibid., 10). Não apenas a alma se volta às formas nela inscritas, mas também, nesta segunda
140
forma de adequação, à própria iluminação intelectiva que nela inscreve as formas. Sobre essa
luz intelectiva, Plotino diz:
Esta luz, ao resplandecer na alma, a iluminou; em outros termos, a tornou intelectiva, a
tornou similar a si mesma, à luz do alto. [...] essa luz, ao resplandecer, deu à alma uma
vida mais clara, uma vida que não é destinada à geração; ao contrário, ela faz com que
a alma seja voltada a si mesma e não a permite se dispersar, mas a faz rejubilar-se do
esplendor que há nela. [...] é graças a ela [a luz] que nós a percebemos. [...] nossa alma
também se eleva até ela, tomando-se como uma imagem que a ela se assemelha. Quando
pensa, [a alma] toma a forma da divindade, isto é, do Intelecto... (tr. 49 [V.3], 8, 23; 28-
32; 43; 47-49)
A luz do Intelecto resplandece e ilumina a alma, constituindo-a numa imagem de si.
Porque esta luz ilumina a alma, ela é capaz de transcendência em relação ao mundo fenomênico
e à vida da geração, de forma que a alma não seja pura dispersão no externo, mas seja capaz de
voltar-se a si mesma e se unir ao esplendor da luz que a habita. Isto é, graças a essa iluminação
do Intelecto a alma é capaz de autorreflexividade e autoconsciência, capaz de participação na
unidade que consiste em voltar-se a si, sem o que ela seria pura dispersão ou pura
multiplicidade. De fato, no tratado 34 ([VI.6], 1, 4-7), Plotino diz que “cada coisa é múltipla
quando, incapaz de inclinar-se a si mesma, se espalha e se estende ao se dispersar. Se ela é
totalmente privada da unidade em seu escoamento, ela se torna uma multiplicidade, porque não
há nada mais que une uma de suas partes à outra”. A dialética platônica do limite-ilimitado
passa a ser inserida num modelo de autorreflexividade, em que o limite é unidade consigo e o
ilimitado é a dispersão produtivo-ativa em direção ao exterior.
Não apenas a percepção e o pensamento discursivo da alma, portanto, têm no Intelecto
sua condição de possibilidade, mas até mesmo a sua capacidade de autorreflexão dele depende.
Por si só, a alma é incapaz de voltar-se a si mesma e se conhecer, pois em sua discursividade
ela só conhece parte por parte; seu conhecimento-de-si, portanto, é na verdade como uma
participação no próprio conhecimento-de-si do Intelecto. Neste sentido, quando ela se volta à
luz presente ao seu cerne e na qual ela é capaz de autoconhecimento ou autorreflexividade, o
que ela encontra é uma autotranscedência, uma coincidência com algo outro, com o Intelecto.
Nesta forma mais radical de participação, não é enquanto alma que ela se conhece, mas
enquanto Intelecto mesmo.
O acesso a essa autoconsciência intelectiva, porém, não é algo que se dá ordinariamente
para alma ocupada com a multiplicidade de objetos externos. É preciso uma espécie de
exercício de concentração para se tornar ciente dessa iluminação intelectiva que nos permite a
autorreflexão. Plotino assim descreve um tal exercício, no tr. 49 [V.3], 9, 3-10):
141
[é possível à alma se assemelhar ao Intelecto] da seguinte maneira: em primeiro lugar
subtraindo do homem, de ti mesmo certamente, o corpo, em seguida a alma que o dá
sua figura [a alma irracional, enteléquia do corpo], depois a sensação, totalmente, em
seguida os desejos, as paixões, e todas as outras ‘inépcias’ do mesmo gênero, pois elas
inclinam fortemente ao que é mortal. Certamente, o que resta da alma é aquilo que nós
dizemos ser uma imagem do Intelecto, e que conserva algo de sua luminosidade, como
o esplendor do sol que irradia de sua esfera imensa.
Trata-se, aqui, de um exercício contemplativo que consiste em recolher a multidão
interna em uma unidade, abstrair-se das dimensões mais externas da existência da alma, de
maneira que “nos tornamos cientes da nossa própria consciência” e paramos de “flutuar de um
objeto externo ao outro” (CLARK, 2016, p. 165), até que reste apenas nosso “si intelectivo”, a
imagem do Intelecto que é o raio de luz que dele emanou, e pelo qual ascendemos à verdadeira
contemplação e autoconhecimento. Ainda, vejamos outra meditação sugerida por Plotino no tr.
31 ([V.8], 9, 7-16):
Formes em tua alma, portanto, a representação luminosa de uma esfera que contém
todas as coisas, tanto aquelas que estão em movimento quanto aquelas que estão em
repouso [...]. Enquanto conservas esta representação, formai em ti mesmo uma outra da
qual subtraís a massa. Subtraias igualmente os lugares e a representação da matéria que
formaste em ti, sem que tentes apreender uma esfera menor que a precedente em massa,
mas invocando o deus que produziu a esfera da qual tens a representação, orai para que
ele venha. E possa ele vir aportando o mundo que é seu, junto a todos os deuses que aí
se encontram, esse deus que é único e que é todos os deuses ao mesmo tempo.
Trata-se de um exercício que almeja contemplar o próprio mundo inteligível, o deus
uno-múltiplo aqui invocado sendo o próprio Intelecto (que é Intelecto e intelectos, como já
vimos, ou Deus e deuses). Mais especificamente, o exercício sugere uma experiência
contemplativa na qual o conteúdo (a esfera e tudo o que ela contém) aparece como interno ao
próprio pensamento do pensante - o contrário da experiência ordinária em que tudo aparece
como externo ao cognoscente, dotado de massa, distância, exterioridade etc. Aqui, Plotino
sugere uma meditação em que o mundo objetivo se desfaz diante da mente, isto é, é percebido
como unificado ao próprio pensamento, de forma que essa unidade entre consciência e conteúdo
esteja ilustrada no simbolismo da esfera – uma vez que seu conteúdo tem apenas uma causa, o
próprio pensante (RAPPE, 2017, pp. 305, 306, 308-9, 311).
Ambos exercícios têm em comum o fato de que requerem uma forma de
desidentificação do cognoscente com o eu empírico, de maneira que este último passe a ser
visto como mero objeto ou conteúdo da consciência, enquanto “o eu autêntico emerge como

142
puro sujeito de consciência” (ibid., p. 315). A este respeito, Rappe (ibid., p. 312) diz, ainda
comentando sobre a meditação da esfera:
A pessoa, como cognoscente, ou sujeito de consciência, será identificada com a esfera,
mais do que com qualquer um de seus conteúdos. Imediatamente, as definições do eu
que são apropriadas para o cognoscente considerado como um ser sensível particular
não são mais apropriadas para a pessoa subjacente ao exercício. [...] A verdadeira
instância que é assumida se alguém se identifica, não com o conteúdo da consciência,
mas com a própria consciência separada de seus conteúdos, imediatamente começa a
erodir a identidade do cognoscente. O centro da consciência é infinitamente expansivo,
não incluindo em si qualquer identidade individual que o cognoscente possa possuir
como uma característica não observável da paisagem interior. Ou seja, todo elemento
cognoscível sobre a identidade do cognoscente como sujeito é convertida ao estatuto de
uma condição externa: corpo, personalidade, história de vida, paixões, e assim por
diante. Essa separação dos confins de uma subjetividade histórica, na medida em que
não consiste numa negação do eu empírico, permite à subjetividade ampliada da alma
emergir detrás do véu do domínio objetivo.
Ora, todo o esforço deste exercício, portanto, consiste numa aspiração de identificar-se
com o próprio Intelecto, assumir a posição deste cognoscente único universal, o que implica
assumir que “o intelecto em nós é o intelecto como tal, mas ainda não o reconhecemos” (ibid.,
p. 314). Tomando emprestado uma terminologia posterior, é como se o sujeito finito não fosse
um “si” para si mesmo, apenas o Sujeito divino é um si para si; ou que o Intelecto fosse o único
Cognoscente verdadeiro por trás de todos os cognoscentes, uma vez que toda cognição dele
depende – inclusive aquela que é cognição-de-si –, e é necessário reconhecer isso, portanto,
através destes exercícios de concentração filosófica.
Em uma de suas mais célebres passagens, Plotino nos oferta um relato de suas próprias
experiências a respeito do despertar no nível do Intelecto, acima da razão e do raciocínio
(logismos)110, momento em que partilhamos da vida contemplativa divina:
Frequentemente, quando me desperto de meu corpo a mim mesmo, e descartando todas
as outras coisas entro no interior de mim mesmo, vejo então uma beleza de uma força
admirável, e tenho então a plena confiança de pertencer ao mundo superior, exercendo

110
A razão pela qual o Intelecto e a intelecção estão além do raciocínio, e compõem uma forma não-raciocinante
de inteligência, é que o raciocínio lida com uma multiplicidade de objetos de pensamento, uma inteligência que
funciona na esfera da exterioridade e alteridade entre pensante e pensado. Por esta razão, o raciocínio é
necessariamente sucessivo, um pensamento após o outro, o que configura temporalidade. Já o Intelecto é a
inteligência na qual não há exterioridade e alteridade dos objetos de pensamento em relação ao pensante, como já
vimos; o que significa que todos os seus objetos de pensamento lhe estão simultaneamente presentes, e que esses
não são outros que si mesmo. Por esta razão, se trata de uma inteligência não-sucessiva (logo, atemporal), que
apreende a totalidade dos objetos de pensamento simultaneamente com a apreensão de si. Ou seja, uma inteligência
que, intuindo-se a si mesma de maneira total e instantânea, intui ou apreende todas as coisas.
143
a atividade que é própria à melhor vida, havendo me tornado idêntico ao divino e
estando nele fixado, estando permeado dessa atividade suprema ao estabelecer-me mais
além de todo o resto do inteligível. (tr. 6 [IV.8], 1, 1-6)
A alma do filósofo desperta a si mesma do sono do alheamento de sua verdadeira
natureza num “recolhimento íntimo e sublime” (FLAMAND, 2008, p. 13), o que, mais do que
a vida da razão, significa despertar para uma dimensão mais profunda, encontrando no “homem
intelectual” ou contemplativo seu verdadeiro si, no qual a alma se descobre unida ou
identificada ao intelecto divino111. A este respeito, comenta Hadot (1993, pp. 25 e 27) que, para
Plotino, o mundo espiritual não era um lugar supracósmico separado por um vasto espaço, mas
era, antes, o si em seu nível mais profundo, e que podia ser alcançado imediatamente ao voltar-
se ao interior de si mesmo. Desta forma, “durante certas experiências privilegiadas [...] nós
podemos nos identificar com ele. Nos tornamos então este si eterno, somos movidos por sua
beleza impronunciável”, e “nos identificamos com o próprio Pensamento divino” no qual este
si intelectivo se encontra. Desta maneira, participamos da identidade sujeito-objeto que é a
Verdade – além, portanto, da dimensão representacional em sua alteridade e exterioridade em
relação àquilo que busca conhecer, que é o modo de ser do pensamento discursivo da alma.
“Esta vida”, diz Plotino, “é sabedoria (sophía), sabedoria não adquirida pelos raciocínios,
porque ela está sempre lá inteiramente e sem nenhuma carência que faça com que seja
necessária alguma busca112” (tr. 31 [V.8], 4, 36-38).
Não se trata, porém, de se tornar idêntico ao próprio Intelecto: cada forma nesse mundo
espiritual é um intelecto, como já havíamos mencionado, e a alma é ali assimilada à sua própria
Forma-Intelecto (BUSSANICH, 1994, p. 5315), o que significa que segue sendo uma
‘perspectiva’ no mundo inteligível; apesar disso, não se trata de ver a totalidade dos inteligíveis
sob um ponto de vista meramente subjetivo, pois “cada ‘visão’ ou ‘perspectiva’ no mundo
inteligível é completamente objetiva e universal” (BUSSANICH, 1994, p. 5316). Isso se dá
pois no mundo espiritual “todas as coisas são de fato transparentes, e não encontramos nada de
obscuro ou resistente, [...] pois a luz é visível à luz”, de forma que cada intelecto, nesse mundo
inteligível, “possui tudo em si, e vê tudo em cada um dos outros, de maneira que tudo está em
tudo, que tudo é tudo, que cada coisa é tudo e que o esplendor seja sem limite” (tr. 31 [V.8], 4,
4-8). Ali, todas as coisas são “uma parte e o todo simultaneamente”, de forma que, apesar de
terem a aparência de uma parte, “um olhar penetrante vê nela o todo” (ibid., 21-23). Assim,

111
Esta passagem é frequentemente interpretada como um relato da união com o Uno, mas sigo Hadot (1993, p.
26n), que considera se tratar apenas de uma elevação dentro do mundo inteligível ou espiritual.
112
Isto é, ela não necessita do raciocínio para ‘buscar’ seu objeto de pensamento; mas precisa de ‘buscar’ ou
desejar o Bem, o qual simultaneamente alcança e não alcança, como foi visto.
144
sendo uma forma-intelecto, não apreendemos os inteligíveis como distintos de nós mesmos,
mas nós somos neles, ou ainda, “nós somos os inteligíveis”, somos “ao mesmo tempo todas as
coisas e uma só” (tr. 23 [VI.5], 7, 4-5; 8).
Porém, isto não é tudo. Como vimos no contexto metafísico, o Intelecto em seu ato
autorreflexivo é como uma circunferência que gira ao redor de um centro, aquilo a que seu
desejo se dirige, o “si” a ser apreendido na cognição-de-si, o qual é o Bem – ou a imagem do
Bem que o Intelecto possui em seu cerne. Em consonância com sua metafísica, portanto, esse
acesso ao Intelecto não é em razão de si próprio, mas em razão do Bem: é pelo Bem que o
autoconhecimento e a verdade são desejáveis. E se o Bem é o centro do círculo do Intelecto, e
a alma encontra o Intelecto no cerne de si mesma numa concentração sobre a própria
inteligência que a ilumina, temos que a alma constitui um segundo círculo ao redor daquele
primeiro, de tal modo que Intelecto e alma formem como um círculo concêntrico um ao outro,
e cujo centro comum é o Bem (tr. 28 [IV.4], 16, 24-26). Desta forma, na medida em que nossa
alma se separa do mundo externo e se volta sobre si, ela descobre que esses Princípios (o
Intelecto e o Bem) estão nela mesma (tr. 10 [V.1], 10, 5-10).
Assim, Plotino dirá que o movimento natural da alma é como aquele de um círculo, que
circula não ao redor de algo externo a si, mas ao redor de seu próprio centro, a partir do qual o
círculo tem sua origem. E esse se revela ser, para aquele que a ele se volta, não apenas o centro
da sua alma particular, mas o centro no qual coincidem todos os centros – assim como o centro
da esfera coincide com aqueles dos círculos por ela compreendida. E nessa coincidência, a alma
encontra seu fim e repouso (tr. 9 [VI.9], 8, 1-5; 12-22; 36-45). O divino Bem/Uno é o próprio
centro da alma ao redor do qual ela circula, e é ali que ela o encontra quando, desejosa de a ele
se unir, envolve-o em seu amor e mantem-se tanto quanto o possível em sua proximidade (tr.
14 [II.2], 12-15; 22-24). Este centro é “a fonte da vida, a fonte do Intelecto, o princípio daquilo
que é, a causa do bem, a raiz da alma” (tr. 9 [VI.9], 9, 1-3), e está sempre presente à alma desta
forma – pois caso contrário ela deixaria de ser –, mas a alma nem sempre se volta a ele. E
aqueles que a ele se voltam, são deuses, e é o próprio fato de voltarem-se ao Princípio que lhes
está presente é que lhes faz serem deuses; enquanto que aqueles que mantém seus olhares
distantes deste centro de todas as coisas são, por esta mesma razão, homens ou bestas (tr. 9
[VI.9], 8, 8-10; 36-45).
E como fazer para que este centro divino seja descoberto e contemplado, por aquele que
dele se olvidou? Plotino assim instrui o leitor no esforço de pensar sobre o que é o Princípio, o
pensamento se vê diante de algo que lhe escapa constantemente, e, através do método

145
aphairético de uma teologia negativa, termina por cair num estado de indeterminação. É a partir
desse estado indeterminado que deve-se contemplar o Uno:
E se, por ele não ser nenhuma dessas coisas, teu pensamento cai num estado de
indeterminação, mantém-se nesse estado e, a partir dele, contempla113! Mas contempla
sem projetar teu pensamento para o exterior! Pois ele não está em algum lugar, deixando
os outros lugares privados d’ele [...]. Quando se tem na alma a presença de outra coisa,
não é possível estar consciente da presença do Uno. Quando a alma está tomada por
algo, não pode acolher em si a presença do objeto contrário. Do mesmo modo que se
diz da matéria que ela deve estar livre de todas as qualidades para que possa acolher a
presença de todas as coisas, assim também a alma, e com mais razão ainda, deve estar
desprovida de qualquer forma, de qualquer obstáculo para que seja fecundada e
iluminada pela Natureza Primeira. Em suma, a alma deve retirar-se de todas as coisas
exteriores e voltar-se totalmente para o interior. Ela não deve tender para nenhuma das
coisas que estão no exterior, mas, ignorando todas as coisas (primeiro no que diz
respeito às sensações, mas agora também no que diz respeito às formas) e ignorando
inclusive a si esma, deve chegar a ser possuída pela contemplação d’ele. (tr. 9 [VI.9], 7,
1-3; 8-20)114
Neste exercício, não apenas o contemplante se abstrai do que o circunda e de sua
natureza sensível e passional, mas se abstrai até mesmo do próprio pensamento e da sua própria
individualidade, livre, portanto, de toda forma de determinação de si, de maneira a ascender à
natureza da infinita consciência sem objetos que foi atribuída ao Uno/Bem no subcapítulo
anterior. Assim o contemplante é uno, desprovido da agitação da paixão, do desejo, da razão,
da intelecção, nem é ele mesmo, mas “como que em deleite, ou, ainda, possuído pela
divindade”, tomado de solitude e calma perfeita (tr. 9 [VI.9], 11, 9-13). O contemplante se
aproxima do Princípio, portanto, vazio de toda alteridade em relação a ele, e desta forma “vê-
se a si mesmo como a própria luz, pura, sem gravidade, leve, pois nos tornamos deus, ou melhor,
somos deus” (tr. 9 [VI.9], 9, 57-58). Ou seja, o Princípio é contemplado pelo contemplante não
como sendo algo de outro ou externo, mas como sendo o seu verdadeiro si (BUSSANICH,
2017, p. 86), o que é tornado possível devido ao esvaziamento de todas as determinações de si
mesmo enquanto alma individual. Eis o sentido da via unitiva em Plotino.
Conhecer-se a si mesmo em seu si noético, portanto, não é o fim da jornada do gnothi
seauton: assim como o Intelecto contém em seu cerne uma imagem do Bem, assim também a

113
Como ressalta Hadot (2002, p. 251), a mística da via unitiva com o Princípio e o método negativo da aphairesis
não se confundem no pensamento de Plotino, uma vez que a aphairesis não é mais que um estudo preambular da
verdadeira contemplação. Em outras palavras, o raciocínio da teologia negativa apenas induz esse estado de
indeterminação, o qual não é o fim, mas o ponto a partir do qual a contemplação se realiza.
114
Tradução de Américo Sommerman (2007).
146
alma encontrará que o Bem é o centro do seu círculo, ao redor do qual ela “dança”. O Bem,
portanto, será acessado enquanto o seu si mais profundo – o qual também é o Si mais profundo
de todos, o centro de todos os círculos –, que não pode ser apreendido de maneira objetiva, mas
apenas como a simplicidade do “sou sou, eu eu” (tr. 49 [V.3], 10, 36). Nas palavras de Hankey
(2005a, p. 50), “o si que mais profundamente espelha a fonte absoluta, e encontra nela seu
repouso, não é aquele da reflexividade racional, mas daquilo que subjaz o pensamento e nos
move à união além do conhecimento”. Na plena coincidência com este, encontra-se a suprema
quietude, plenitude e beatitude que as diferentes escolas socráticas buscam, cada uma à sua
maneira, como sendo o fim da filosofia e da própria existência.
O olhar socrático fundamental sobre a natureza da alma é que ela é, fundamentalmente,
desejo; e não qualquer desejo, mas aquele que se dirige ao Bem, ao valor último. A
superioridade do Bem sobre o Intelecto, como argumentei no subcapítulo anterior, deriva da
percepção socrática de que o desejo pelo Bem é a potência mais fundamental da alma, anterior
mesmo ao pensamento, uma vez que é na medida em que são boas é que as Formas são
desejadas. Em Plotino, “a natureza infinita e indeterminada do Bem requer uma capacidade ou
atividade na parte da alma que é infinita e indefinida como tal para estar unida a ele”
(BUSSANICH, 2017, p. 78), e o amor-desejo pelo Bem é este incomensurável, pois assim como
o objeto deste amor é ilimitado, “assim também o amor por um tal objeto será ilimitado” (tr. 38
[VI.7], 32, 26-27). É naquele amor ou desejo imensurável pelo Bem, portanto, que esse
princípio divino em nós é encontrado, como sua contraparte ou imagem na fundação da vida da
alma. Este desejo é o motor de toda a meditação sobre o Bem. Movido por ele, a alma busca
subtrair-se de toda a exterioridade, de todo o pensamento e até de si mesma, até que, diante
dessa presença superior a todo conhecimento e que desperta nosso desejo mais profundo, se
torne esse puro eros infinito.
Neste ponto, uma aproximação ao pensamento da platonista moderna Simone Weil
talvez nos traga mais clareza. Assim como Plotino, Weil considera que “nós somos constituídos
por um movimento em direção ao bem” (VETÖ, 2014, p. 64), mas o homem, em sua finitude,
acaba por “aplicar continuamente seu desejo aos bens particulares” (ibid., p. 62), de forma a
perverter cegamente esse elã que o move, pois o desejo pelo bem absoluto ou soberano “está
além de todos os objetos particulares” (ibid., p. 61). É preciso, portanto, uma espécie de
purificação do desejo, um “esforço incessante em ultrapassar qualquer coisa particular como
objeto do desejo”, de tal forma que o desejo se generaliza continuamente “até o momento em
que tudo o que é particular estando transcendido, não resta outra coisa que o ‘desejo sem

147
objeto’” (ibid., p. 62). Esse desejo puro, que deixou de identificar o Bem com qualquer coisa
objetiva ou particular e se esvaziou assim de todos objetos, esse mesmo desejo puro se revela
como sendo o próprio Bem. Isto é, o Bem não se encontra em qualquer coisa em particular, mas
em nosso próprio movimento, o que revela sua suprema eficácia pois “nossa busca e nossa
procura do bem atinge o bem simplesmente ao desejá-lo”, pois “é para os falsos bens que o
desejo e a possessão são diferentes; para o verdadeiro bem, não há nenhuma diferença” (ibid.,
p. 64). A vontade do Bem se revela como o próprio absoluto em nós, de forma que “o bem puro
e inesgotável é apenas nesta vontade ela mesma” (ibid.). É como se descobríssemos que a
satisfação encontrada no desejo pelas coisas derivasse não das coisas, mas do próprio desejo;
porém atados à escravidão de desejar coisas finitas, estamos sujeitos a sua perecibilidade e
instabilidade, o que nos aporta insatisfação e sede. Mas o desejo infinito, liberado da escravidão
às coisas finitas, se revela ser beatitude infinita e a plena unidade consigo, uma vez que ele “de
nada mais necessita, sendo perfeitamente autossuficiente” (Filebo, 60c). O desejo infinito,
portanto, é como um não-desejo, uma vez que repousa em si mesmo, na sua liberdade e
transcendência em relação a todo objeto.
Esta leitura de Simone Weil se aproxima consideravelmente da reflexão que Plotino
realiza acerca da própria natureza do Princípio. O Bem, ele diz, é puro ato, e este ato é sua
vontade, e sua vontade é sua própria realidade: “sua vontade e sua realidade são idênticas”, e
ainda, “a natureza do Bem é realmente sua vontade” (tr. 39 [VI.8], 13, 5-7; 38). Ele é
inteiramente vontade, de modo que “não há nada nele que seja desprovido de vontade”, “ele é
portanto, ele mesmo, em primeiro lugar vontade” (ibid., 21, 13-16). O Bem, ele diz por fim, “é
ao mesmo tempo objeto de amor e ele mesmo amor, isto é, ele é amor-de-si (ibid., 15, 1. Minha
ênfase). Que fique claro, neste contexto, que ele não se faz um objeto desejável para si mesmo,
o que faria ele deixar de ser simples – ele que havíamos dito ser “infinita consciência sem
objeto”; antes, sua realidade mesma é desejo, livre de toda sujeição a objetos finitos ou
determinados, sensíveis ou inteligíveis. O Princípio é, ele próprio, o supremo amante que
“desejando a si mesmo, sendo o que quer ser, livremente gera o amor que os seres têm por ele,
assim como a graça que dele recebem” (HADOT, apud Bussanich, 2017, p. 84n). Na medida
em que os seres participam deste amor do Bem, eles possuem ser, pois “cada um deseja ser o
Bem mais que aquilo que são eles mesmos, e pensa que atinge o mais alto nível de ser quando
participa do Bem”, de forma que “cada ser escolhe ser na medida em que possui esse ser do
Bem” (tr. 39 [VI.8], 13, 12-16. Minhas ênfases).

148
Nesta via de ascensão ao Intelecto e depois ao Bem, o contemplante encontra um acesso
extra-ordinário à autoconsciência e à verdade, e depois encontra a união e a beatitude que são
os fins últimos da aspiração de todos os seres. Isso, porém, não é tudo, pois essa ascensão não
é permanente: o contemplante termina por retornar ao seu modo ordinário de ser, enquanto alma
encarnada. A experiência de ser estabelecido num modo de vida divino e superior é passageira,
como diz Plotino em sua descrição da descida involuntária do Intelecto à alma após a ascensão
contemplativa:
Após este repouso no divino, quando desço novamente do Intelecto ao raciocínio, com
perplexidade me pergunto como essa descida se deu, e como minha alma pode se
encontrar no interior de meu corpo, quando ela é em si mesma tal qual se havia
mostrado... (tr. 6 [IV.8], 1, 6-11)
Também a união com o Uno/Bem consiste num evento temporário, conforme seu
discípulo Porfírio nos testemunha, dizendo que, por quatro vezes durante o período em que com
ele esteve, seu mestre Plotino teria atingido, “num ato indizível”, esta finalidade suprema da
união com a divindade, enquanto ele próprio a teria atingido uma vez (Vita Plot., 23, 12-17).
Este caráter passageiro das experiências de ascensão contemplativa tornam muito importante,
na obra de Plotino, a pergunta: “por que, então, nós não permanecemos lá em cima?” (tr. 9
[VI.9], 10, 1). A resposta a esta questão, como o observou Hadot (1993, p. 64), é que “se nós
caímos de volta, deve ser porque nós não conseguimos mais suportar estar lá em cima”. Isto é,
mesmo capazes de tal ascensão, e de encontrar nela nossa verdadeira identidade, ainda somos
restritos na nossa capacidade de ali permanecer devido a certas limitações ontológicas – aquelas
mesmas que fazem de nós seres encarnados, e, portanto, humanos. Assim Plotino
compreenderia a qualificação “na medida do possível”, que Platão adiciona à declaração de que
nosso propósito é “escapar da terra para o céu” e “assemelhar-se à Divindade” (Teeteto, 176b).
Retornar ao modo de ser da alma também significa a necessidade de falar ou pensar a
respeito daquilo que havia sido visto na ascensão contemplativa. Há, porém, um lapso entre a
experiência unitiva e o pensamento sobre a mesma, pois “no momento do contato, aquele que
toca não tem absolutamente nem a possibilidade nem o tempo de dizer qualquer coisa: é apenas
após que lhe é possível raciocinar sobre o contato” (tr. 49 [V.3], 17, 25-27). Esse raciocínio está
fadado ao fracasso diante daquela verdade unitiva, pois é próprio ao pensamento discursivo
apreender uma coisa após a outra, de maneira que a alma, apesar de haver contato com a verdade
naquela, se encontra em falta dela quando se esforça a enunciá-la ou pensá-la. As intuições
simples do Intelecto, desta forma, são enunciadas como discursos múltiplos da dialética, de
forma que deixam de ser intuições intelectivas simples. E apesar de que é possível possuir o

149
Uno/Bem na experiência unitiva, não é possível possuí-lo no discurso: não se pode nem dizer
que ele é “assim” nem que ele não é “assim”, porque ao fazê-lo, alguém estaria a “determiná-
lo, fazendo dele qualquer coisa de particular”, “colocando-o entre os seres aos quais o termo
‘assim’ se aplica” (tr. 39 [VI.8], 9, 39-42). Não é possível dizer o que ele é, apenas o que ele
não é. Ou ainda, só podemos falar do Princípio analogicamente, a partir daquilo que procede
dele, isto é, seus efeitos (tr. 49 [V.3], 14, 4-7). Como a alma é, ela própria, um efeito do
Princípio, é a partir de si mesma que ela fala a seu respeito. Assim como o Intelecto intelige o
“traço do Bem” que o habita e assim se volta ao Princípio e o pensa à sua maneira, segundo sua
própria capacidade de recepção, assim também a alma possui imagens ou traços do Uno/Bem
em si mesma, suas afecções, das quais fala ao enunciá-Lo. Dizê-lo ser causa, por exemplo, é
falar não de um atributo que a ele pertence, mas de nós mesmos enquanto causados (c.f. tr. 9
[VI.9], 3, 49-55). O Bem, em sua atividade interna, permanece inatingível por todo pensamento.
Portanto, apesar de sustentar a possibilidade de uma ascensão contemplativa ao Intelecto
e, mais ainda, um contato transcendente e silencioso com o Bem, Plotino parece manter o
discurso da alma sujeito à mesma estrutura do discurso cético ao dizer que só falamos de nossas
próprias afecções. A este respeito, comenta Marsola (2007, pp. 12-13):
Falamos de nós mesmos ao falarmos do Uno: mas tal expressão do Uno em nós nos
remeteria a ele? [...] Plotino encontra, igualmente, a ideia segundo a qual apenas falamos
de nossas afecções em Sexto Empírico: ‘Mas o essencial é que, enunciando tais
expressões, ele diz aquilo que lhe aparece e se relaciona com seu próprio afeto, sem
sustentar opiniões, nada assegurando acerca do que lhe é exterior’. O cético não
pretende dizer as coisas enquanto tais, mas limita-se a falar daquilo que aparece. O que
causa a afecção permanece além (epekeina) da possibilidade de conhecimento. A
estrutura do discurso cético parece fornecer a Plotino uma solução que lhe permite
preservar a negatividade radical do conhecimento do Uno, que permanece inefável. [...]
Assim, Plotino procura evitar a contradição, sustentando que o Uno é inefável, e
afirmando diversas coisas do Uno.
Embora Plotino assim assimile a estrutura do discurso cético a fim de preservar a
inefabilidade do Princípio, podemos dizer que o faz numa direção distinta. Marsola (ibid., pp.
13-14) cita uma distinção feita por O’Meara acerca de “falar das coisas e falar das coisas como
modo de falar do Uno, em um sentido, portanto, indicativo”, o que nos permitiria distinguir “o
falar de nós mesmos e o falar de nós mesmos como modo de falar do Uno”. Isto é, o discurso
acerca do Princípio, mesmo que esteja fora do alcance da nossa discursividade, não é
completamente removido do seu objeto, mas mantém uma relação indicativa em relação a ele,
assim como, no capítulo anterior, observamos que a via da dialética descendente permite que o

150
discurso fale mais do que ele contém, na medida em que é consciente da sua própria relatividade
em relação à essência inteligível de que busca falar.
Além disso, é importante observar que o Uno é epekeina, como uma “coisa-em-si” que
está além de todo conhecimento; porém não é uma “coisa-em-si” externa ao sujeito,
incognoscível devido à sua distância e dualidade em relação a ele. Não é epekeina por lhe estar
ausente, inacessível, mas por estar tão presente que torna o conhecimento supérfluo. É, na
verdade, o próprio cerne interno da alma ou sujeito cognoscente, o centro de seu círculo (e que
é o centro de todos os círculos), de forma que a alma se remove desse centro interno ao distrair-
se com a exterioridade e a multiplicidade. É como se diante da voz de muitas pessoas cantando
simultaneamente, o canto sutil de um pássaro ali presente se tornasse indistinguível: o seu canto
não está ausente, mas não o percebemos, em sua simplicidade, devido à multiplicidade na qual
estamos imersos; ou, ainda, como a luz da abóbada estrelada se torna invisível a nós que
estamos circundados pelas luzes da cidade. Assim também, a vida do pensamento discursivo
da alma é uma multiplicidade que a distrai da simplicidade profunda do Bem que a habita, e é
por isso que seu discurso está dele removido e, portanto, limitado a dele falar apenas
analogicamente: “Isso que nós instruímos a seu respeito”, diz Plotino, “são, portanto, analogias
e negações...” (tr. 38 [VI.7], 36, 6-7).
E este discurso acerca do Princípio, apesar de não possuí-lo, pode exercer um papel
psukhagógico. Aquele que se põe a tarefa deste discurso é aquele que exerce o papel de mestre
espiritual, o condutor de almas, como o coloca Plotino:
É por isso que Platão diz que a seu propósito não podemos nem ‘falar’ nem ‘escrever’,
mas que, se nós falamos e escrevemos a seu respeito, é por conduzir a ele e por despertar
a contemplação a partir desses discursos, como se nós indicássemos o caminho àquele
que deseja alcançar a contemplação. (tr. 9 [VI.9], 4, 13-16)
Ora, em Platão, como havíamos visto, a via da dialética ascendente conduz da
multiplicidade a uma unidade cada vez mais abrangente, do discurso à intuição sinóptica,
conduzindo a alma da escuridão da caverna até à visão do Sol ou Bem; mas, em seguida, o
filósofo é chamado a retornar à caverna, da unidade à multiplicidade e da intuição ao discurso,
movimento pelo qual a ação política, o pensamento lógico e discursivo, e até a poiética têm seu
valor renovado, uma vez que são banhados pela luz visão por ele alcançada. A paideia filosófica
tem sua culminação no retorno transformado à caverna, e não na visão do Sol. E a caverna
significa, aqui, o lugar ambíguo da antiga peithô, cuja equivalência ontológica é a aparência e
a multiplicidade.

151
Em Plotino, a via ascendente assume a forma de uma via interiorizante, ligada ao
princípio do Limite ou autoidentidade, enquanto que a via descendente é assimilada ao princípio
do Ilimitado e sua dispersão ativa-produtiva. Do ponto de vista platônico, segundo a
interpretação que foi hipoteticamente avançada no capítulo anterior, este retorno ao discurso
após a ascensão contemplativa e unitiva representariam, precisamente, o retorno à caverna da
relatividade, o que constituiria a completude do movimento da alma. Em Plotino, por outro
lado, todas as atividades que dizem respeito à via da dialética descendente, como movimento
de desdobramento de si ou dispersão produtiva-ativa, são apenas imperfeições no caminho da
via ascendente, e às quais o filósofo retorna, após a experiência unitiva com o Bem, apenas por
uma incapacidade de permanecer “no alto”. Revela-se, assim, uma aspiração filosófica marcada
radicalmente pela mentalidade mistérica, para a qual transcender as províncias alocadas para
cada um segundo a ordem do todo é a intenção central – como quando um iniciado aspira a
transcender a condição humana para alcançar uma condição divina. Trata-se, principalmente,
de uma via filosófica de conversão, para a qual a processão possui um estatuto
fundamentalmente ambíguo.
Em Proclo, ao contrário de Plotino, me parece haver uma presença mais marcante da
via da dialética descendente, e todas as atividades a elas relacionadas, associada a uma avaliação
mais positiva do movimento da processão ou dispersão ativa-produtiva, bem como um
equilíbrio maior entre a dita mentalidade mistérica, por um lado, e a mentalidade olímpica de
outro, que se revela em uma preocupação maior em preservar a província que cada um possui
no cenário metafísico. Desta forma, enquanto o epicentro da filosofia em Plotino é o Intelecto,
o epicentro da filosofia em Proclo é a alma – que é a província a nós alocada na ordem
metafísica.
Isto não significa que não haja, em Proclo, a aspiração pela transcendência ou o acesso
àquilo que está acima da alma, mas que mesmo a ascensão àquilo que a transcende só encontra
completude no retorno. Estabelecer a alma como o epicentro da vida filosófica também
significa, portanto, estabelecer o ponto de equilíbrio entre as vias ascendente e descendente, e
trazer a reflexão neoplatônica para a nossa vida enquanto alma. Se em Plotino o foco é na
passagem da alma ao que a transcende, em Proclo encontraremos também, portanto, o foco na
consideração do desenrolar do transcendente na própria alma – o que constitui uma “via
dialética descendente”. Desta forma, a filosofia de Proclo se mostra como “uma análise da alma
desdobrando em si mesma a integralidade das potências do Uno” (TROUILLARD, 1972, p. 7).

152
Antes de adentrar na concepção proclina da alma, é preciso, porém, investigar as suas
bases no pensamento de Plotino acerca da relação da Alma hipóstase e a alma particular.

3.4 A Alma hipóstase e a alma particular em Plotino

Pôr-se a questão da alma, em certos círculos do pensamento contemporâneo, é pôr-se a


questão do self. Tomando os apontamentos de Christopher Gill (1946– ) a este respeito como
exemplar de uma das perspectivas mais correntes a este respeito, destaca-se a distinção
fundamental entre as concepções “subjetiva-individualista” e “objetiva-participativa” de
pessoa, a primeira que ele entende ser representativa do self moderno, pós-cartesiano e kantiano,
e a segunda como sendo representativa daquele que se fazia presente no mundo grego antigo.
A concepção “subjetiva-individualista”, que ele atribui à modernidade, teria como
principais características: i) percepção de si como centro unificado de pensamento e vontade;
ii) autonomia ética; iii) a capacidade para raciocínio moral desinteressado; iv) capacidade de
estabelecer sua própria posição ética ou autenticidade identitária; v) um sentido de identidade
pessoal (c.f. GERSON, 2003, p. 8). Em outras palavras, aponta para um self que é “determinado
pelas volições autônomas de um sujeito autoconsciente, independentemente de qualquer
raciocínio conforme aos padrões públicos (objetivos) de comportamento e identidade” (RIGGS,
2015, p. 179). Já a concepção “objetiva-participativa”, atribuída ao mundo grego, teria como
principais características: i) ação racional, mas sem ser necessariamente acompanhada de
consciência de que o é; ii) interação interpessoal ou comunal; iii) comportamento ético que é
formado pela interação interpessoal ou comunal e debate reflexivo; iv) capacidade de ação
racional com base na medida em que essas interações ocorrem; v) a identificação de si mesmo
como situado entre outros tipos de seres, como animais e deuses (c.f. GERSON, 2003, p. 8).
Ou seja, “uma concepção de self na qual o self é determinado conforme a raciocínios operando
dentro de um domínio de noções públicas (objetivas) de comportamento e identidade [...], de
maneira que autoconsciência e volição autônoma não sejam fatores decisivos à pessoalidade”
(RIGGS, 2015, p. 179).
Gerson, ao contrário de Gill, defende que tanto a concepção “subjetiva-individualista”
e a “objetiva-participativa” estão presentes já na concepção de pessoa que aparece nos diálogos
platônicos, nos quais ele identifica dois tipos distintos de self. Em sua interpretação, a
concepção ‘objetiva-participativa’ de pessoa apontada por Gill corresponderia à alma corpórea,
enquanto a concepção ‘subjetiva-individualista’ corresponderia à incorpórea, e desta forma
153
ambas co-existiriam em Platão, mas segundo uma hierarquia que privilegia a concepção
“subjetiva-individualista” ou alma incorpórea como o locus autêntico de identidade. Ainda
segundo Gerson, essa distinção em Platão não é, porém, como a cartesiana, entre a alma de um
lado e o corpo desprovido de alma do outro. Antes, é uma distinção entre dois tipos de alma,
“desencarnada” e “encarnada”; ou, segundo Blumenthal (2017, p. 109), “o ser individual não é
alma + matéria, mas alma 1 + alma 2 + matéria”, em que a primeira é racional, incorpórea ou
transcendente ao corpo, e a segunda é irracional, corpórea ou atrelada ao corpo. A relação entre
o ser humano ou alma corpórea, e a pessoa ou alma incorpórea, neste contexto, seria
aproximadamente como aquela entre as imagens sensíveis e seus paradigmas inteligíveis.
O ser humano ou ser vivente seria para Platão, segundo Gerson, a combinação de corpo
e alma (2), isto é, a alma corpórea.115 Como aponta Gerson (2003, p. 2), para Platão o corpo
(σωμα) é distinto de um cadáver (νεκρός), pois aquele pertence a uma alma (corpórea) viva,
que é sujeito tanto de seus estados físicos quanto os estados psíquicos; enquanto o último,
privado de alma, não é nada. Em outras palavras, a corporeidade não é matéria morta, mas um
composto psicofísico. Sem a alma, o corpo não teria a unidade necessária para que seja um
corpo, e seria meramente uma desagregação de partes116. Tanto a unidade quanto a vida do
corpo dependem da alma pois, nas palavras de Clark (2017, p. 322), “o que faz uma unidade
também a torna viva”. A pessoa, ou alma incorpórea, por outro lado, é a alma superior, sujeito
117
apenas do pensamento, autêntico self. Esta é a alma racional, que Gerson chama de

115
Como exemplo de fonte platônica tomada por Gerson (2003) para suas conclusões, ele cita Fedro 246c 5-6, em
que é dito que o composto de alma e corpo é nomeado ‘o ser vivente inteiro” (ζωον τό σύμπαν), o que ele entende
ser idêntico ao que o texto platônico chama de ‘ser humano’ mais adiante (cf. 249 B5), e que é o composto
considerado como ‘mortal’. Ele conclui: “se se verifica que nós somos imortais, a inferência direta é que nós não
somos seres humanos” (p. 2). Essa posição de que o self autêntico não é essencialmente um ‘ser humano’ me
parece justificável segundo a compreensão mistérica de alma, que, na sua rejeição da ‘distribuição de províncias’
da concepção olímpica de justiça cósmica, abriu espaço para pensar uma passagem muito mais fluida entre os tipos
de seres, admitindo a possibilidade da alma ‘humana’, em suas transmigrações, se tornar tanto um animal quanto
um deus. Ou seja, a alma em si não seria necessariamente humana, ela só “está” humana enquanto encarnada como
tal.
116
Ainda mais radical neste sentido, é o entendimento plotiniano de que “não pode haver qualquer corpo, nem
mesmo a menor unidade visível, sem alma” (CLARK, 2017, p. 324), pois, caso contrário, a corporeidade se
desmantelaria em infinitas partes, a multiplicidade pura que é o puro nada segundo o platonismo. Isto implica que
o universo sensível ou corpóreo em sua inteireza é perpassado por alma, como se não pudesse haver “qualquer
corpo que não seja informado e regulado por um princípio unificador” (ibid., p. 323). Voltarei a este ponto adiante.
117
Na verdade, Gerson sustenta que esta alma incorpórea seria apenas puro intelecto (νοϋς). Este ponto da
interpretação de Gerson nos parece questionável. A noção de Gerson de que a alma incorpórea é puro intelecto
(nous) é problemática, pois desfaz a diferença entre alma e Intelecto e assim obscurece a relação de participação
entre ambos. O problema em identificá-los desta forma é desprover o self autêntico de qualquer identidade pessoal,
aniquilando-a na impessoalidade do ‘sujeito puro de conhecimento universal’, que é conclusão que resulta da sua
interpretação. Como veremos mais adiante, em Proclo a alma racional (incorpórea) é explicitamente distinguida
tanto da alma irracional ou corpórea quanto do Intelecto, o que possui a óbvia vantagem de preservar a alma
racional em sua identidade pessoal daquela aniquilação no universal. E em nossa perspectiva, esta posição também
é genuinamente plotinianas, embora este tema seja mais passível de confusão nos escritos de Plotino devido ao
154
desencarnada devido à sua característica de ser incorpórea e impassível em relação a tudo o que
é corpóreo (devido à sua superioridade ontológica ao corpo), e, portanto, uma alma cuja
natureza é ser sem extensão, sem dimensão, e que não pode ser vista como se fosse um conteúdo
contido pelo receptáculo do corpo, isto é, como se ela fosse espacialmente presente no corpo.
Tampouco ela pode ser considerada divisível em partes, pois de tal forma “qualquer uma de
suas partes daria vida ao composto ‘alma’, que seria a alma real” (CLARK, 2017, p. 321). Isto
é, em outras palavras, ainda que possua uma relação com o corpo, ela é independente da
associação com ele, e livre de sua divisibilidade, sua extensão e suas afecções.
Esta interpretação de Gerson acerca da concepção de pessoa nos diálogos platônicos,
ainda que debatível no que diz respeito à sua aplicabilidade ao próprio Platão, é útil na
compreensão de Plotino, que no tratado 53 (I.1) realiza uma diferenciação é feita entre o
composto psicofísico ou “vivente”, por um lado, e a alma pura que é separável do composto e
que o utiliza, de outro. É essa alma incorpórea que aparece como o foco da educação filosófica,
uma vez que é ela que pode ou descer à geração ou se elevar ao inteligível, segundo a direção
da sua atenção. Também Proclo, tal qual reportado por Olimpiodoro (Ol. In Alc., 203.22 –
204.7), faz uma distinção entre o self (auto), o self-em-si (auto to auto), e cada-self (auto
hekaston). O self-em-si seria a alma racional, tomada em si mesma, independente do composto
psicofísico, “incorpórea”; o self seria a alma tomada em sua relação com o corpo, ou seja,
enquanto alma corpórea, a qual se identifica com a alma racional tomada em sua relação de
governante e governado com a alma irracional, a alma tripartida apresentada na República; por
fim, cada self seria o auto hekaston, o self tomado quantitativamente e como ipseidade, também
chamado por Olimpiodoro de atomon, o indivíduo118. Em suma, também em Proclo esta
distinção feita por Gerson entre a alma corpórea e a incorpórea, associadas às concepções
“objetiva-participativa” e “subjetiva-individualista” se aplica, como também o observa Riggs

seu menor nível de sistematicidade em relação a Proclo. A distinção entre a alma racional e o nous é desfeita na
interpretação dele, embora siga importante na nossa. A alma incorpórea, portanto, é a alma racional e não o nous.
Tomamos a liberdade de modificar a explanação da interpretação de Gerson no texto principal afim de evitar
confusões.
118
Segundo Griffins (2015, pp. 41-42), são as ações particulares em sua contingência que podem ser chamadas de
individuais (ta atoma), e a alma tomada enquanto agente dessas ações é que é chamada de “indivíduo” (atomon),
o ser humano entendido “um-por-um” (ton kath’ hekasta). O “indivíduo”, aqui, é aquele que está removido de
qualquer universalidade, envolvido que está em ações particulares e impressões particulares. Consequentemente,
o self e o self-em-si ainda detém universalidade: é possível discursar acerca deles de maneira universal, isto é,
dizer algo válido a todos os selfs, como Platão o faz na República e no Fédon, respectivamente. Além disso, é só
a alma tomada em si, independente do corpo e das ações, é que é imortal; o indivíduo é inseparável da sua
contingência. Mas isto não significa, como veremos posteriormente, que não haja uma singularidade na alma
racional ou incorpórea, que a distinga das demais, porque a fonte da diversidade que garante singularidade às almas
não é a contingência material, segundo Proclo.
155
(2015, p. 180): “A noção de Proclo acerca do self autêntico, desencarnado, é aquela de um
‘conhecedor’ que é um sujeito individual, autodeterminado”.
A metáfora que Plotino evoca para ilustrar a relação entre a alma racional e o corpo é
aquela entre a luz e o ar: o ar pode soprar a luz o quanto for, mas a luz permanece em si mesma,
intocada e imóvel; e ela estando a ele presente, o ar é por ela iluminado, enquanto que se o ar
dela se ausentar, ele deixará de ser iluminado mas não modificará a luz em nada. De tal forma,
diz Plotino, que não é a alma que está no corpo, mas, verdadeiramente, o corpo é que está na
alma; e, iluminado por ela, é dotado de unidade e vida, além da expressão dos poderes da alma
sob a forma de faculdades que tornam possíveis a sensação e a ação no corpo (tr. 27 [IV.3], 22,
1-20). A alma e suas potências, como a natureza da luz, não é dividida pelas partes do corpo
que assim ilumina, mas permanece indivisa, presente em sua totalidade em cada parte. Quando
atribuímos a certas partes do corpo o local onde tal ou tal potência da alma se manifesta – como
a visão nos olhos, a audição nas orelhas, o paladar na língua, o olfato no nariz, a sensação em
todo o corpo, e a raiz de toda a sensação e impulsão no cérebro –, se trata de fato da constatação
de que partes distintas do corpo participam de maneiras distintas na iluminação da alma, de
forma que certas partes do corpo são pontos de partida da atualização ou manifestação de certas
potências da alma. Mesmo a cabeça, muitas vezes dita como o centro da alma pelos antigos
filósofos, não é mais que um ponto de partida da atualização da potência da alma, que em si
mesma não depende de parte corpórea alguma. Todas estas são, na verdade, potências
pertencentes à alma, e que, junto com ela, estão presentes em toda e cada parte do corpo em sua
totalidade, indivisamente. (tr. 27 [IV.3], 23, 1-26). Em todos estes casos, a alma racional
permanece intocada pelo corpo, assim como a luz é intocada pelo ar, mesmo estando presente
a ele; ela permanece, em sua essência, sempre enraizada no mundo inteligível (c.f. tr. 31 [IV.8],
8, 1-6).
Mas há ainda um sentido em que se pode dizer que uma alma de algum tipo, de fato se
faz presente no corpo: sob a forma de sua vida vegetal que o anima, o nutre, o aquece, e que
circula por todo o corpo como vitalidade; ou, ainda, como alma animal que possui seus instintos,
irascibilidade, dores e prazeres, etc (c.f. EMILSSON, 2017b, p. 237). Trata-se da alma que
compõe o composto psicofísico junto ao corpo, sujeito da vida corpórea e da opinião, e que é
nada mais que a luz que emana da alma verdadeira ao corpo, um “traço” da verdadeira alma.
Enquanto Plotino compara a relação da alma racional e o corpo como aquela entre a luz e o ar,
a relação desta alma irracional e o corpo será como aquela entre o calor e o ar: o calor não
apenas aquece o ar, mas também lhe pertence como propriedade, de forma que é movido por

156
ele e o acompanha aonde quer que vá (c.f. tr. 28 [IV.4], 29). A fonte platônica para a concepção
neoplatônica da alma irracional é, entre outras, o Timeu (69d-e), onde encontramos uma
narrativa acerca da criação do homem: após o Demiurgo criar a nossa alma divina e imortal
(que seria, nesse caso, a alma racional ou incorpórea), ele delega aos deuses menores a tarefa
de “construir a gênese das coisas mortais”. Imitando o divino artífice, eles construíram um
corpo mortal em torno da alma imortal, e “dentro do corpo eles construíram também um outro
tipo de alma, ou seja, o tipo mortal, o qual encerra em seu interior aquelas paixões a uma vez
terríveis e necessárias”. Esta seria a alma irracional, que, também em Proclo, é entendida como
uma irradiação da própria alma racional, pela intermediação da qual ela pode estar presente ao
corpo, isto é, pela qual o corpo pode participar dela, que de outra maneira existe em si mesma,
independentemente de qualquer corpo sensível (c.f. CHLUP, 2012, p. 108).
A educação filosófica teria como propósito, neste contexto, a conquista deste self
autêntico, da verdadeira subjetividade racional, num processo de “reversão da posição objetiva-
participativa para a subjetiva-individualista” (RIGGS, 2015, p. 179). Um olhar sobre o
tratamento dado a este tema no Neoplatonismo evidencia que o seu esforço filosófico nesta
conquista é movido pelo elã da vertente mistérica da religiosidade helênica. No primeiro
capítulo citei Xenofonte, que, sob a influência daquela vertente, manifestava incredulidade
diante da concepção ordinária de que a alma é viva quando está num corpo mortal e morta
quando livre dele, sustentando, ao contrário, que é a alma que torna vivos os corpos insensíveis
e que lhes empresta alguma sensibilidade, enquanto a insensibilidade do corpo é um obstáculo
à consciência. Assim, operando uma reversão de perspectiva, o que chamamos de “morte” é a
verdadeira vida da alma, condição na qual ela é mais plenamente sensível, e o que chamamos
de “vida” é um estado mais próximo da morte e da insensibilidade do que o outro. Da mesma
forma, estar consciente e ativo através dos sentidos e do corpo é, ordinariamente, chamado de
vigília, enquanto se chama de sono àquele estado em que estes repousam. Mas na reversão de
perspectiva operada pela religiosidade mistérica, é o “sono” que será a verdadeira vigília da
alma, o momento em que se “revela com clareza a sua natureza divina, prevendo o futuro, sem
dúvida, porque então é quando se encontra mais livre” (Xenofonte, apud REALE, 2012, p. 179).
O sonho profético, um dos mais importantes fenômenos religiosos entre povos antigos,
seria consequentemente o modelo pelo qual a filosofia reivindicaria um acesso “mântico” à
verdade, na medida em que o filósofo é capaz de aceder a uma intuição intelectual sinóptica
(noesis), tornada possível por uma ascese pela qual a alma se purifica do seu contato com o
corpo e os sentidos, permanecendo “concentrada ao máximo em si mesma” (Fédon, 65c), e

157
assim fazendo com que a alma racional se aparte do sensível e, assumindo sua natureza
incorpórea em unidade com a Alma, se assemelhe à natureza intelectiva da qual a Alma
participa mais plenamente. Esta reversão, mais do que descritiva, é exortativa: ela convida a
uma transformação de si. Naturalmente, a alegoria da caverna de Platão também se insere neste
contexto como uma assimilação desta forma de reversão de perspectiva por parte da filosofia,
em que o mundo sensível e a vida a ele atrelada aparecem como meras sombras da verdadeira
realidade e luz. Conforme aponta Flamand (2008, p. 8), também aparece em Platão algo da
metáfora do sono e da vigília, de forma que a gula e a propensão ao sono aparecem em seus
diálogos como símbolos da complacência da alma cuja atenção se volta à vida sensível.
Mas é em Plotino que esta metáfora aparece com mais força, explicitamente
comparando a encarnação da alma no corpo a um sono, e os pensamentos representativos
baseados nas sensações que se dão nesse estado a um sonho. Reminiscente do Fédon (83d), no
qual Platão comparava os choques prazerosos e dolorosos dos sentidos a cravos que prendem a
alma ao corpo, fazendo-a acreditar em tudo o que as sensações dizem e adotando sua maneira
de ser, Plotino diz no tratado 26 ([III.6], 6, 65-75):
Nós dizemos tudo isso contra aqueles que fazem o ser residir dentro do corpo e que,
semelhantes a sonhadores, creem, se apoiando sobre o testemunho dos choques e sobre
as representações derivadas da sensação, que são evidentes aquelas coisas que eles vêm
ser, enquanto não se tratam senão de sonhos. Isso que é reportado pela sensação,
certamente, diz respeito à alma adormecida; ser num corpo, para a alma, é dormir. E a
vigília não é verdadeira senão ao verdadeiramente deixar o corpo, levantando-se sem
ele. Pois a vigília junto ao corpo não é outra coisa que a mudança de um sonho por outro
sonho, como nós passamos de uma cama à outra, enquanto que se despertar
verdadeiramente é deixar todos os corpos que têm uma natureza contrária à alma e
contrária à realidade.
Em uma outra passagem (tr. 32 [V.5], 11, 5-22), ele também compara aqueles que
acreditam que todas as coisas são sensíveis a pessoas que se ocupam em satisfazer sua gula com
a comida ofertada durante uma festa religiosa, totalmente alheias à visão da divindade que por
ali passa119, acreditando que a comida é mais real que o deus. São como pessoas que “havendo
dormido toda suas vidas, creem que as coisas que aparecem em seus sonhos são credíveis e
manifestas”, de maneira que se fossem despertadas de seu sonho, “eles permaneceriam
incrédulos face às coisas que eles veriam com seus olhos abertos, e eles se adormeceriam
novamente”. Por esta razão, é preciso, na educação filosófica, aprender a apreender o

119
Nos festivais públicos, fazia-se uma procissão com a imagem de um deus para que os cidadãos a fitassem. É
esse ato, denominado theoría ou visão do deus, que informou o vocabulário da contemplação filosófica.
158
incorpóreo pelo pensamento e nele pôr confiança (tr. 20 [I.3], 3, 5-7). Desta forma, através do
cultivo da vida da razão, a alma começa o seu despertar, ativando sua reminiscência das Ideias.
Este despertar só é possível através de uma exigente purificação moral e intelectual, aponta
Flamand (2008, p. 10), um “vasto processo de transformação de si que é também, para a alma,
um ato de conhecimento de si”. Esta transformação consiste em adquirir as virtudes
purificatórias120, pelas quais nos desidentificamos com o composto corpóreo, de modo que
despertar do sonho dos sentidos é conhecer-se a si mesmo enquanto alma racional ou
incorpórea, que é a conquista do self subjetivo-individual. Este, por sua vez, é a verdadeira base
a partir da qual nos é possível ascender à união com o Intelecto e com o Bem, como foi visto
no capítulo anterior, e também o “heliponto” seguro a que retornamos após a ascensão ter seu
término.
Porém, compreender este elã do pensamento neoplatônico à luz das categorias propostas
por Gill tem limitações importantes a serem consideradas, uma vez que aquelas não são capazes
de compreender certas características da alma neoplatônica que a distingue do sujeito moderno,
que é o modelo do tipo “subjetivo-individualista” do seu esquema. É preciso, portanto, apontar
os limites das categorias de Gill ao aplicá-las ao pensamento neoplatônico. Como Riggs (2015,
p. 180) comenta, a sua suposição de que a concepção cartesiana e kantiana de subjetividade são
os únicos modelos possíveis de uma concepção “subjetiva-individualista” de pessoa é
problemática. Esta suposição exclui da lista de suas possibilidades, precisamente, a concepção
neoplatônica, na qual “o objetivo e o subjetivo coincidem no sujeito que é tanto um conhecedor
individual com sua própria identidade autodeterminada quanto um participante numa
comunidade inteligível que informa sua participação, quando encarnado, numa comunidade
humana e no cosmos mais amplo” (ibid.). A passagem do self encarnado ao self autêntico
desencarnado não configura, no neoplatonismo, uma anulação da comum-idade intersubjetiva
característica da concepção “objetivo-participativa” de Gill, nem caracteriza-se pelo
“solipsismo” de um sujeito atomizado característico da concepção “subjetiva-participativa” que
tem no sujeito moderno o seu modelo.
Nisso consiste o “solipsismo” do sujeito moderno: que ele só participa e comunga com
o mundo “público” (e aqueles que nele estão) através do corpo e dos sentidos, enquanto que
quando se retira em sua alma e seus pensamentos ele se encontra em uma esfera completamente
privada e isolada. O “interno” é o privado, solitário, enquanto que é só no “externo” que a
interação é possível. Uma vez que o sujeito moderno é aquele que busca afirmar sua autonomia

120
Termo de Porfírio.
159
e autodeterminação, ou seja, sua determinação desde o interior, a partir da suposta
autotransparência do eu pensante, segue-se que será a partir da sua esfera interna de solidão que
ele se constituirá. Separar a alma do corpo, ou passar do self encarnado ao self desencarnado,
segundo tal perspectiva, significaria isolar-se de toda estrutura comum participativa. Deixar-se
determinar pelas circunstâncias externas seria o caminho da concepção “objetivo-participativa”
de pessoa, enquanto que determinar-se desde a solidão interna da alma, que se separou do corpo
e suas circunstâncias pelo pensamento, constituiria a concepção “subjetiva-participativa” – eis
o viés que subjaz ambas concepções de Gill: uma exterioridade partilhável e uma interioridade
isolada.
É preciso notar, em contramão, como a separação da alma do corpo em Plotino possui
um significado radicalmente distinto. Em seu pensamento, o mundo sensível “externo” não é o
único espaço onde a comunicação e a intersubjetividade se dão em uma estrutura participativa.
Consequentemente, a interioridade da alma não é o domínio do “privado”; antes, a interioridade
da alma é também a interioridade da Alma que tudo atravessa, e, portanto, também uma
dimensão “pública” num sentido mais profundo. Esta é a importante tese plotiniana de que a
Alma é una, unidade cuja expressão dinâmica é a sumpatheia, que já entre os estoicos é uma
espécie de princípio cósmico que conecta as coisas entre si e torna possível que elas se
influenciem mutuamente sem nenhum contato direto (EMILSSON, 2017b, pp. 161-163; RIST,
2017, p. 448). A respeito dessa sumpatheia, Plotino diz:
Naturalmente, a razão ensina, a partir de fatos contrários, que nós partilhamos nossas
afecções uns com os outros e que, ao nos ver, partilhamos nossas penas, somos
apaziguados e naturalmente conduzidos a nos amar. Mas se os encantamentos e de
maneira geral os procedimentos mágicos nos aproxima e nos faz partilhar afecções à
distância, se trata sem nenhuma dúvida do fato de uma alma única. Uma fórmula dita
em voz baixa exerce uma influência à distância, e faz que a escute aquele que se
121
encontra num lugar cuja distância é inconcebível. Tudo isso nos permite
compreender que todas as coisas são unas, porque a alma é una. (tr. 8 [IV.9], 3, 1-9)
Ora, do que se trata esta “Alma que tudo atravessa”, a unidade de toda a Alma que
explica esta sumpatheia universal? De um ponto de vista estoico, seria a alma-do-mundo,

121
Plotino aqui emprega os dois sentidos possíveis de simpatia enquanto sinais da unidade ou continuidade das
almas em uma Alma universal: a simpatia enquanto compaixão, e a simpatia enquanto princípio de transmissão de
forças mágicas. O português ainda preserva esses dois sentidos da palavra “simpatia”, que na mentalidade antiga
parecem estar intimamente entrelaçados, como se vê no trecho plotiniano citado. Vale lembrar ainda, como o faz
Emilsson (2017b, p. 161), que “crença em fenômenos ocultos como astrologia, divinação e mágica eram
extremamente difundidos na antiguidade”, e que para os estoicos, por exemplo, a sumpatheia era relevante não só
para entende as conexões entre fenômenos naturais como a lua e as marés, mas também os assim chamados
fenômenos ocultos (ibid., p. 163).
160
também mencionada por Platão no Timeu (35a-b; 41d-e). Está suposto em ambos os casos, diz
Emilsson (2017b, p. 155), um “modelo biológico de mundo”, no sentido de que o universo é
melhor entendido como um organismo. A sua natureza orgânica é tal que ele é ordenado como
se fora um todo vivo, com movimentos regulares e coordenados, e um arranjo excelente de suas
partes, e, como diz o Timeu (30c), capaz de conter em si a totalidade dos seres vivos em sua
unidade. Tal olhar diante do cosmos, diz ainda Emilsson (ibid), revela não apenas que o todo é
vivo como um organismo vivo, mas que ele é uma vida racional: uma alma.
Também Plotino admite que o mundo sensível seria animado por uma alma que o unifica
e dá vida, pois se tudo fosse corpóreo “não haveria uma alma que dirige o universo, mas
inumeráveis almas separadas umas das outras” (CLARK, 2017, p. 332). Aplicando ao corpo
cósmico o mesmo que ele argumentou acerca do corpo individual, ele defende ainda que “não
poderia haver mundo, cosmos, se não houvesse alma que o unifique”, de forma que “o universo
estende-se até onde a alma for” pois “sem um princípio unificador, incorpóreo, o Todo seria
completamente sem sentido, movendo-se a esmo” (ibid.). Desta forma, segundo Plotino,
... há que se afirmar que nosso mundo é um vivente único que envolve todos os
viventes que se encontram em seu interior, que há uma alma única que se
encontra em todas as partes, na medida em que cada coisa é uma parte dela. [..]
Essa unidade deriva do fato o universo é um todo em simpatia consigo mesmo
… (tr. 28 [IV.4], 32, 4-6; 13)
Este panteísmo estoico, que Plotino admite e assimila em um certo nível, poderia,
porém, justificadamente ser dito base para uma concepção objetiva-participativa de self,
segundo a concepção de Gill. Pois aqui a alma não é mais que uma parte do todo, determinada
segundo as influências simpáticas que dele recebe, de forma que “ ‘nós’, animais humanos, não
somos mais que seguimentos do cosmos, do todo bem ordenado, e da sabedoria que os realiza
de tal modo. Esse corpo-aqui faz apenas, e diz apenas, o que o todo decreta” (CLARK, 2017,
p. 332). Esta forma de panteísmo se aproximaria da concepção derivada da religiosidade
olímpica, segundo a qual não havia nada fora da ordem cósmica de Moira, e a submissão à qual
é a natureza da sabedoria.
Para Plotino, é verdade, em nossa alma inferior nós somos apenas uma parte
determinada pelas influências simpáticas do todo objetivo-participativo do cosmos, uma vez
que nossa alma corpórea é, para Plotino, a própria alma-do-mundo em sua ação mais inferior
vitalizando nosso corpo – o qual é uma parte do corpo cósmico. Porém, se isso for tudo,
teríamos que admitir que “não somos nós mesmos, e não há nenhuma ação que seja nossa. Não

161
é nos que raciocinamos, mas nossas decisões são o raciocínio de um outro” (tr.3 [III.1], 4, 21-
22). Porém, e é aqui que está a diferença entre Plotino e os estoicos, este não é o caso, pois:
… é necessário também que cada um permaneça distinto, que haja ações e
pensamentos nossos, e que as ações de cada um, belas ou feias, venham de fato
de cada um entre nós; não se deve em nenhum caso atribuir ao universo a
realização de ações feias. (tr. 3 [III.1], 4, 24-29)
Argumentando pela liberdade e responsabilidade do sujeito moral e pensante, Plotino
sugere que não podemos ser simplesmente partes do todo que é a alma-do-mundo. Nós temos
duas almas, ele diz, “aquela que nós qualificamos como ‘divina’, pela qual nós somos aquilo
que somos, e a outra, aquela que nos vem do universo” (tr. 27 [IV.3], 27, 1-3). Ora, segundo
nossa alma “divina”, nós transcendemos a ordem das influências simpáticas que constituem o
vasto organismo da alma-do-mundo. É preciso ascender a esta alma divina em nós, incorpórea
e racional, e que é independente da, e transcendente à, ordem cósmica imanente:
É por isso que é necessário ‘escapar daqui’, se separar daquilo que está adicionado a
nós e não ser este composto, um corpo dotado de alma [...]. É de fato a uma outra [alma],
aquela que permanece externa ao composto, que se eleva ao alto, em direção ao belo e
aquilo que é divino, às muitas coisas das quais nenhum homem é mestre: ou se trata de
se identificar com esta realidade e viver em conformidade com ela se retirando do
mundo, ou então, privado desta alma, viver submetido ao destino. [...] ele [o homem]
se torna, por assim dizer, uma parte do universo e depende do todo do qual é uma parte.
Pois cada homem é duplo: é um composto e é um eu. (tr. 52 [II.3], 9, 20-31)
É preciso elevar-nos, portanto, àquela alma racional pura, incorpórea, a qual é a chave
para nossa autêntica subjetividade e liberdade. A alma-do-mundo é de fato divina, de forma que
a disciplina de viver em conformidade com a sua ordem natural é também importante para
Plotino, no que concerne à educação da vida do composto psicofísico; mas, em relação à nossa
verdadeira alma, a alma-do-mundo não é a nossa mãe ou origem: ela é apenas nossa irmã, uma
divina e vasta alma irmã que dispôs e ordenou o cosmos sensível para que nós e outras almas o
habitássemos, mas que também é originada a partir de uma outra Alma, assim como a nossa
própria também o é (c.f. CLARK, 2017, pp. 333-334). O nosso corpo é totalmente parte do
corpo do universo, e somos partes da alma-do-mundo na medida em que dela participamos
(através da nossa alma encarnada); aquilo que só participa da alma-do-mundo é parte do
universo, mas “todos aqueles que participam também de uma outra Alma se encontram, por
esta razão, não sendo exclusivamente partes do universo” (tr. 28 [IV.4], 32, 10-12).
E do que se trata essa outra Alma, da qual tanto a alma-do-mundo como a nossa alma
procedem, e participando na qual não somos meramente partes do universo? Trata-se da Alma

162
hipóstase que, contrariamente a todas as outras almas (incluindo a alma-do-mundo), não é
individual, mas a universalidade, unidade ou mônada da Alma, da qual derivam todas as outras.
Sendo uma realidade supramundana, a última deusa ou realidade inteligível (c.f. REALE,
2014b, p. 80), é completamente transcendente ao mundo sensível, voltada ao Intelecto. De fato,
a Alma é, para Plotino, a terceira hipóstase: assim como o Uno é autocontido em sua atividade
interna, mas gera através de sua atividade externa uma imagem de si que pensa a si-mesma (o
Intelecto), assim também o Intelecto permanece na pura contemplação de si segundo sua
atividade interna, mas, segundo sua atividade externa, gera a imagem de si mesmo que é a
Alma. O antepassado platônico desta concepção está no Timeu, em que o Demiurgo parece estar
engajado em duas atividades distintas: por um lado, contempla as Formas; de outro, concebe o
mundo a partir daquela primeira contemplação, o que levou o medioplatônico Numênio de
Apaméia a distinguir duas formas distintas de pensamento no Demiurgo: “pura intelecção e
pensamento providencial acerca do mundo” (EMILSSON, 2017b, p. 147), de forma que a Alma
seja esse pensamento providencial. Nas palavras de Plotino,
A alma é […] uma atividade que procede do Intelecto. Quando ele é ativo em
si mesmo, os produtos de sua atividade são outros intelectos, enquanto que
quando ele age ao exterior de si mesmo, o produto é a alma. (tr. 43 [VI.2], 22,
25-27)
E ainda:
Assim como o discurso pronunciado é uma imagem da razão que se encontra
na alma, da mesma forma, alma é a razão do Intelecto, toda ela é atividade, a
vida que ele projeta para conceder uma existência ao resto. (tr. 10 [V.1], 3, 7-
9. Minha ênfase.)
Assim como o Intelecto volta-se ao Bem e por ele é determinado e preenchido, assim
também a Alma volta-se ao Intelecto em contemplação e dele recebe sua perfeição, pois é
através do Intelecto que ela vê o Bem e torna-se conforme a Ele (REALE, 2014b, p. 77). A
imagem ou atividade externa do Intelecto constitui sua essência, a qual é a ativada e
aperfeiçoada quando ela o contempla:
A existência [da Alma] lhe vem então do Intelecto, e sua razão está em ato
quando ela contempla o Intelecto. Pois cada vez que ela fixa seu olhar sobre o
Intelecto, ela tira de seu próprio interior as coisas que são a ele aparentadas e
que são objeto de seu pensamento e de sua atividade. (tr. 10 [V.1], 3, 15-17)
O pensamento da Alma, que é aparentado ao Intelecto e ativado quando diante de sua
contemplação, não é uma intelecção mas um logos, uma espécie de estrutura racional, que

163
explica ou desdobra o conteúdo intelectual inexprimido que são as Formas inteligíveis. Este
pensamento da Alma ou logos é “uma expressão em pensamento de um insight intellectual
unificado” (MACISAAC, 2001, p. 19n), ou “um ‘desdobramento’ (anaptyssein) ou um
desenrolar-se (exelittein, anelittein) na multiplicidade a partir de algo mais verdadeiramente si
mesmo – porque mais uno – no nível superior do Intelecto. [O logos] é sempre uma expressão
e uma explicação de uma contemplação mais elevada e unificada.” (GRAESER, apud ibid.).
Enquanto o Intelecto pensa a totalidade das Formas de maneira simultânea e total, com uma
vida eterna (atemporal) e sem intervalo, a Alma pensa a totalidade das Formas intelectivas de
maneira não-simultânea, de maneira sequencial, uma após a outra, parte por parte; de forma
que a Alma “temporalizou a si mesma, deixando que o tempo substituísse a eternidade” (tr. 45
[III.7], 11, 31), pois, em sua atividade fundamentalmente sequencial, “a expansão da sua vida
envolve tempo” (ibid., 41). Isto é, não se trata de dizer que a Alma está sujeita ao tempo, como
o mundo sensível o está; antes, o tempo é a própria vida da Alma, de maneira que seus
pensamentos sequenciais “não tanto pressupõem o tempo mas o criam pela ordem em que vêm:
eles são os primeiros fenômenos temporais e os determinantes dos movimentos pelos quais nós
medimos o tempo e determinamos o que vem antes do quê” (EMILSSON, 2017b, p. 172).
Esta dispersão temporal assinala uma instância de menor unidade e maior pluralidade
que o Intelecto, e já aponta para a outra característica marcante da Alma: enquanto potência
externa do Intelecto, a Alma não é autocontida, mas é dotada do impulso pela criação do mundo.
Seu pensamento sequencial é um logos; e seus logoi, imagens divididas das Formas inteligíveis,
serão como as sementes ou o modelo formal do mundo sensível. Diz MacIsaac (2001, p. 22):
Os logoi que a Alma possui não são apenas imagens do Nous, eles são também tais que
dão ordem ao que jaz abaixo deles. Portanto eles são comparados aos logoi em
sementes, que têm sua expressão nas plantas maduras. O logos na semente é pensando
ser o princípio da ordem de acordo com a qual a planta se desenvolve, e a própria planta
é uma imagem do logos imaterial presente como a forma da semente.
O pensamento da Alma não constitui, portanto, uma atividade puramente contemplativa,
mas é também uma atividade criativa e vivificante, que faz dela um “princípio criador e
vivificador de todas as coisas”, engajada em “produzir, gerar e dar vida a essas mesmas coisas”
(REALE, 2014b, p. 78). Seu pensamento é uma “única e todo-abrangente fórmula racional122”
(EMILSSON, 2017b, p. 157), cujo conteúdo é a ordem das almas, que dela emergem e têm por
missão explicitar essa fórmula e manifestá-la em seus detalhes (ibid., p. 151). As almas,

122
Fórmula racional seria, aqui, uma tradução de logos.
164
portanto, descem ao mundo sensível e tomam corpos123, e assim se fazem veículos do
pensamento providencial da Alma. As almas particulares que assim descendem são “como
‘sementes’ da Alma universal, que se assemelham a um oceano espiritual que banha a realidade
sensível” (BEZERRA, 2006, p. 85).
É a essa Alma que se refere quando Plotino afirma que “todas as almas são uma alma”
(c.f. tr. 8 [IV.9]), ou quando diz que “é necessário que haja ao mesmo tempo as almas e uma
alma única, e que da alma única advenha a multiplicidade das almas” (tr. 6 [IV.8], 3, 10-12)”.
Porém, as almas particulares dela derivadas não são como partes de um todo, mas antes
singularidades que são, cada uma, o próprio todo da Alma. É como se a Alma fosse um fogo
universal que acende tanto os pequenos quanto os grandes fogos, dependendo da magnitude
dos objetos que queimam, de tal maneira que a natureza de cada fogo continua sendo idêntica
àquela do fogo universal, embora não seja idênticos em atividade (tr. 6 [IV.8], 3, 19-21). O que
isso significa não é uma identidade estrita, do tipo que anularia a possibilidade de
singularidades; antes, Plotino
... deseja manter que minha alma é algo em seu próprio direito e diferente da sua. Ela é
ainda algo em seu próprio direito no nível inteligível. Ao mesmo tempo ele quer dizer
que a minha alma contém a totalidade da hipostase Alma, da mesma forma que a sua; e
a minha alma e a sua são, reciprocamente, ambas contidas na hipóstase. (EMILSSON,
2017b, pp. 153-154)
Quando a alma particular se retira em sua interioridade e autêntica subjetividade
racional, apartada do mundo objetivo e os seus objetos particulares de cuidado, bem como a
pluralidade de entes que a circunda, ela é mais universal, mais identificada com a própria Alma.
Enquanto singularidade que contém em si o Todo da Alma em potência, ela existe ainda em
uma íntima comunhão simpática com todas suas almas irmãs, ainda que seja, neste caso, um
princípio superior de simpatia que não é afecção passiva, mas princípio de comunicação, a
capacidade de transcender as barreiras de distância e exterioridade que a separa das outras almas
em condições ordinárias124. Ao contrário, no trecho a seguir, acerca da “queda” da alma

123
O que inclui, neste contexto, corpos celestes como os planetas e estrelas, e mesmo o corpo que é o mundo e que
é tomado pela alma-do-mundo.
124
Essa concepção de Plotino encontra eco na concepção de self de um importante filósofo contemporâneo,
Charles S. Peirce (1839 – 1914), cujos argumentos podem nos ajudar a melhor compreender o pensamento do
neoplatônico. Expressando sua contrariedade à noção de que a mente habita o corpo como uma coisa habita um
lugar no espaço, ele diz (apud COLAPIETRO, 2014, pp. 156-157): “Mas estamos encerrados em uma caixa de
carne e sangue? Quando eu comunico meus pensamentos e sentimentos a um amigo com o qual tenho profunda
empatia, tanto que meus sentimentos passam por ele e eu estou consciente do que ele sente, eu não vivo dentro de
seu cérebro assim como dentro do meu – mais literalmente? Verdade, minha vida animal não está lá; mas minha
alma, meu sentimento, pensamento, atenção, estão. [...] Há uma noção miserável materialista e bárbara, de acordo
com a qual um homem não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo; como se ele fosse uma coisa! [...] Cada
homem tem uma identidade que transcende em muito o simples animal; – uma essência, um significado sutil como
165
(incorpórea) no corpo, Plotino entende que é o self corpóreo, voltado que está ao corpo e ao
mundo sensível, que verdadeiramente se isola na esfera privada da sua particularidade,
enquanto que o self incorpóreo (“não-caído”) é o que verdadeiramente existe em comunhão e
unidade com os demais:
Mas as almas se afastam desse todo que forma a Alma para se tornarem uma parte e
seus próprios mestres, e, como que fatigados de estar um com o outro, elas se retiram
cada uma em si mesma. Quando a alma faz isso durante um certo tempo, fugindo da
totalidade e se espalhando para ser separada dela, e quando se abstém de voltar seu olhar
em direção ao inteligível, tornada uma parte, ela se isola, se enfraquece, se agita, volta
seu olhar à parte e, porque ela está separada da totalidade, ela se estabelece sobre um
elemento único [o corpo] e foge de todo o resto. Havendo chegado aqui e voltada a este
objeto único, que a mantém afastada da totalidade, governa com perplexidade seu objeto
particular, se apegando demasiadamente a ele, cuidando para que ele não sofra
agressões exteriores, permanecendo presente a ele e nele penetrando profundamente.
Aqui em baixo ela sofre também o que nós chamamos da perda das asas e a captividade
nas correntes do corpo, pois ela perdeu a imunidade própria ao governo da parte superior
que era sua quando ela estava próxima da Alma total. (tr. 6 [IV.8], 4, 10-24)
A queda da alma particular à encarnação coincide, portanto, com um processo de
isolamento em si mesma, sua separação do todo, a fragmentação diante dos outros e a
necessidade de se esforçar para não sofrer nos choques contra o que a circunda. O corpo aparece
como um objeto particular de cuidado, no qual a alma se vê cada vez mais absorvida na medida
em que cai da universalidade à particularidade. Há aqui, ao modo da religiosidade mistérica,
uma reversão de perspectiva: não é a exterioridade e o corpo onde o público e a comunhão com
o outro é possível; antes, a exterioridade é obstáculo à verdadeira comunhão, que é interna.
Revela-se aqui também a dimensão ascética do pensamento filosófico, entendido enquanto

deve ser. Ele pode não conhecer sua significância essencial; do seu olhar sou a olhadela. Mas o fato de ele
realmente possuir essa identidade expansível – tal como uma palavra possui – está na real e exata expressão do
fato da simpatia, sentimento de amizade – juntamente com todos os interesses não egoístas”. Essa sua concepção
de self é assim sintetizada por Colapietro (ibid., pp. 126-127): “A abordagem sinequista do self individual nega
qualquer ruptura entre o self e o outro. Ele o faz com uma amplitude, que selves em comunhão uns com os outros
formam, de alguma forma e em certo volume, um self de uma ordem mais alta. Ou seja, é sempre uma união viva
de selves integrados. Essa união de selves que constitui uma comunidade [...]. Para Peirce, então, o self individual
é, em seu ser mais íntimo, não uma esfera privada, mas um agente comunicativo. [...] o self não é aprisionado em
uma esfera de solidão, exceto através de suas próprias limitações cognitivas e, ainda mais importante, afetivas. O
self solitário é o self ilusório, um ser que tem sua base no egoísmo; o self comunicativo é o self autêntico, um ser
que tem suas raízes no ágape”. Assim, “sua principal preocupação era apresentar uma visão da mente que
explicasse a possibilidade de indivíduos numericamente distintos fundirem-se em um ser formalmente idêntico.
Consequentemente, Peirce audaciosamente afirma que: ‘duas mentes podem se comunicar somente à medida que
se tornam uma mente’. Obviamente, duas mentes distintas nunca se fundem completamente em uma mente
formalmente idêntica; não obstante, há momentos em que a barreira que separa uma consciência de outra
desaparece. Assim, não a insularidade, mas a interpenetrabilidade é a lei que mais verdadeiramente governa a
relação entre as mentes. Talvez não seja exagero dizer que Peirce desejava acima de tudo apresentar uma
explicação da mente que fizesse justiça à simpatia, nosso sentimento com relação ao outro” (ibid., p. 158).
166
descentramento da atenção da alma, que se recusa a se deixar absorver pelos condicionamentos
do seu isolamento particularizado, a busca por retornar à condição originária através da
reorientação da atenção que se esforça para abraçar a totalidade do divino e do humano em sua
universalidade, contemplar a totalidade do tempo e do Ser – como o propunha Platão
(República, 486a-b). Na medida em que o filósofo realiza este descentramento, ou essa
universalização do pensamento, ele volta a viver a vida de sua alma racional ou incorpórea, e
portanto passa a viver em unidade com aquela Alma universal cuja vida ou atenção está sempre
voltada ao Inteligível, e na qual todas as outras almas particulares têm sua verdadeira morada
íntima.
Na verdade, a alma particular nunca deixa de ser potencialmente una com esta Alma
universal, sendo sempre como uma atividade singular da mesma, como Plotino o exemplifica
(tr. 22 [VI.4], 16, 22-39), comparando a Alma universal ao saber de um erudito, e a alma
particular à aplicação do mesmo erudito a um objeto de estudo particular, sobre o qual ele pode
estar tão centrado ao ponto de esquecer o restante do seu saber momentaneamente. Ou então,
como um fogo que é capaz de tudo queimar (Alma universal) mas que se aplica a queimar
apenas uma coisa específica (o corpo ocupado pela alma particular), sem que sua potência
diminua por isso, de forma que a universalidade está sempre latente na particularidade, e a
particularidade, por sua vez, sempre latente na universalidade (ibid.).
Isto é, o indivíduo é apenas um estado “caído”, fragmentado, de forma que a unidade-
na-multiplicidade universal da Alma é a verdade mais fundamental; porém a identidade singular
de cada alma não é anulada ou dissolvida. É como se uma cidade tivesse uma Alma, diz Plotino
(tr. 6 [IV.8], 3, 15-25), que contivesse todas as almas de seus habitantes em si, sem que isso
impeça que essas existam. Ou ainda, o fato que a Alma seja una
… não faz tampouco com que desapareça a multiplicidade de almas, assim como o Ser
não elimina os seres; lá a pluralidade não combate a unidade, e não é necessário
preencher os corpos dos seres vivos com a pluralidade, assim como não se deve crer
que a pluralidade das almas é engendrada pela grandeza do corpo, mas a multiplicidade
das almas e a Alma única existiam antes dos corpos. Nesse todo, de fato, as múltiplas
almas já existem, não em potência, mas cada uma em ato, pois a Alma una e total não
impede que as almas múltiplas existam nela, e as almas múltiplas não impedem que a
Alma única exista. Pois elas se dissociam sem que sejam dissociadas, e são presentes
umas às outras, sem que por isso se tornarem outras que elas mesmas; elas não são
dividadas por limites, assim como não o são as múltiplas ciências em uma mesma alma.
E a Alma única é de uma tal natureza que ela possui em si mesma todas as almas: é
assim que essa natureza é ilimitada. (tr. 22 [VI.4], 4, 34-46)

167
Essa é a natureza una-e-múltipla da Alma125 em Plotino, segundo a qual a unidade da
Alma não impede a multiplicidade das almas singulares, e vice-versa, de forma que retirar-se
da exterioridade do corpo e concentrar-se na interioridade da alma não significa nem um
isolamento na individualidade nem a dissolução da singularidade num todo abstrato. Temos
aqui, portanto, uma compreensão da natureza da interioridade que funda o exercício de separar
a alma do corpo em uma concepção muito distinta de “público” e “privado” daquela que
encontramos no sujeito transcendental moderno.
Neste contexto, quando a alma racional desperta para si mesma do sono dos sentidos, e
permanece assim em seu próprio domínio ontológico enquanto alma racional – ao invés de
elevar-se por autotranscendência ao Intelecto e ao Um/Bem como visto no capítulo anterior –,
ela descobre sua própria essência como sendo uma plenitude de logoi, uma imagem múltipla
do Intelecto, a própria totalidade da hipóstase Alma em potência, e, assim desperta, sua vida
constituirá de um esforço por atualizar estes logoi na província a ela alocada no todo.

125
O que é um nível de unidade ainda mais imperfeito que aquele que Plotino atribuirá ao mundo inteligível, que
ele descreve como uno-múltiplo, o qual, por sua vez, tampouco possui a mesma unidade perfeita do Princípio, o
Bem.
168
4 A ALMA E O CAMINHO FILOSÓFICO DO CONHECIMENTO DE SI EM PROCLO

4.1 A autorreflexividade da alma automotriz

Se num primeiro olhar é verdade que Plotino só aceita o conhecimento-de-si no nível


do Intelecto, aceitando os argumentos céticos acerca da sua impossibilidade no nível da alma,
em outro sentido poder-se-ia pensar que é só no Intelecto que encontramos o conhecimento-de-
si no sentido pleno, paradigmático, sem que isso o impossibilite completamente em níveis
inferiores. Assim também, é a atividade intelectiva do Intelecto que constitui a contemplação
no sentido pleno, sem que ela seja negada a todo ente a ele inferior. Desta forma, uma vez que
a alma é partícipe do Intelecto, seria possível vermos mesmo no exercício mais trivial dos seus
poderes cognitivos “uma intimação do autêntico ideal” (GERSON, 1997, p. 19), de forma que
“toda atividade da alma é contemplação, embora uma mais fraca que a outra” (tr. 30 [III.8], 5,
20-21). Isto é, se o conhecimento-de-si do Intelecto é uma autocontemplação paradigmática,
toda cognição inferior, que nele participa em alguma medida, pode ser entendida como uma
imagem daquela, de forma que toda cognição será um tipo de conhecimento-de-si.
Através de sua atividade intelectiva o Intelecto é aquele que possui o Sumo Bem em
máximo nível, de forma que todos os entes aspiram a possuir o Bem em seu interior ao através
da participação nessa atividade contemplativa ideal, neste conhecimento-de-si ideal, segundo
suas próprias capacidades de participação. Vemos, neste contexto, Plotino afirmar, no tratado
30 ([III.8], 1, 2-3), que “todas as coisas aspiram à contemplação, e este é o fim ao qual todas
voltam seu olhar” – mesmo os entes não viventes –, de forma que “todos os entes [...] provêm
da contemplação e são contemplação” (ibid., 7, 1-2), ou ainda “toda vida é uma intelecção,
porém uma é mais obscura que a outra” (ibid., 8, 17). Nem todos possuem a mesma capacidade
de contemplar, pois aqueles que participam na contemplação com deficiência necessitam agir
e produzir para assim, mediados pelos produtos que deles procedem, possam contemplar sua
própria essência.
Mesmo a ação (práxis) e a produção (poiesis) aparecem pois, neste contexto, como
formas fracas de contemplação ou conhecimento-de-si, uma vez que “por toda parte
descobrimos que a produção e a ação são debilitações ou acompanhamentos da contemplação”
(ibid., 4, 40-41), pois incapazes de atingir a visão do que aspiram diretamente, “o atingem por
uma circunvolução” (ibid., 6, 4). E toda contemplação, ação, produção, têm por fim possuir um

169
bem, o qual se encontra no “logos silencioso” que habita a própria alma (ibid., 6, 10-11). “Toda
vida é uma intelecção” pode ser traduzido, portanto, como “toda vida é um conhecimento-de-
si”, através do qual todos possuem o Bem em maior ou menor grau, segundo sua capacidade.
Neste mesmo tratado, Plotino nos apresenta uma alma particular, a Natureza, engajada
numa atividade de contemplação do logos nela inscrito pela Alma hipóstase, através da qual
produz todos os formatos e a configuração do mundo natural. Ele diz a seu respeito:
E se alguém perguntasse à natureza por que produz, se ela consentisse em dar ouvidos
a quem perguntar e responder, diria: ‘Não devias perguntar, mas compreender também
tu em silêncio, como eu, que me calo e não costumo falar. Compreender o quê? Que o
que é gerado é o que vejo em silêncio, um objeto de contemplação que surge
naturalmente, e que me cabe, eu que nasci de uma contemplação desse mesmo tipo,
possuir uma natureza amante da visão. O meu contemplar produz um objeto de
contemplação, como os geômetras desenham contemplando; todavia eu não desenho,
mas contemplo, e as linhas dos corpos ganham existência como se elas tombassem de
mim [...]’ o que chamamos natureza é uma alma, produto de uma alma anterior de vida
mais poderosa, possuidora em si mesma de uma contemplação serena que não se dirige
nem para cima nem para baixo, e disposta no que é, em sua própria estabilidade e num
tipo de apercepção (sunaísthesis) [...]. A natureza descansa, contemplando seu objeto
de contemplação, originado por ela mesma, por permanecer em si e consigo e ser ela
mesma um objeto de contemplação: sua contemplação é silenciosa, porém obscura.
Existe uma outra contemplação, mais nítida em sua visão, e a natureza é a imagem dessa
contemplação. (tr. 30 [III.8], 4, 1-11; 15-19; 25-28)126
A natureza volta-se a si mesma numa contemplação silenciosa, apresentada como um
permanecer em si, uma apercepção ou consciência-de-si, sunaísthêsis, uma presença a si
mesma, uma percepção de si que “apreende igualmente, ao mesmo tempo, o princípio de si”,
isto é, que implica “uma forma de percepção daquilo que lhe é superior” (PRADEAU, 2006, p.
59), de forma que a natureza “sendo a manifestação da Alma, como esta o é do Intelecto, a
natureza vê em si, ainda que imperfeitamente, todas as formas inteligíveis, ou melhor, os logoi
dessas formas” (BARACAT Jr., 2008, p.121). Isto é, a natureza, enquanto alma particular,
descobre-se como uma plenitude das razões (logoi) da hipóstase Alma, a qual ela contém
inteiramente em si, assim como o fogo que pode tudo queimar está completamente presente no
ato de queimar um objeto particular.
Porém, a natureza não possui esse logos com a mesma clareza que a própria Alma, da
qual emana. Se o Intelecto realiza essa autocontemplação permanecendo em si mesmo além do
tempo (pois apreende a totalidade de si mesmo num único ato intelectivo), e a Alma realiza essa

126
Tradução de Baracat Jr. (2008), com pequenas modificações.
170
contemplação permanecendo no mundo inteligível como uma “única e todo-abarcante fórmula
racional” geradora do movimento temporal; uma alma particular divina como a natureza produz
além de contemplar; e as almas particulares precisam agir e produzir para que possam conhecer-
se a si mesmas. Pois não possuem completa autotransparência: sua essência lhes é obscura, eles
a carregam em si mas não a veem plenamente, de forma que necessitam um modo mediato de
autorreflexão. Para contemplar a si mesmas, necessitam agir ou produzir, para que desta forma
mediada possam alcançar a apercepção ou consciência de si. “Uma tal maneira de agir”, diz
Trouillard (1972, p. 93), “se encontra entre os seres cuja interioridade é imperfeita e que se
buscam a si mesmos através de suas realizações”.
Desta forma, em uma compreensão abrangente da natureza da contemplação e do desejo
que a move, Plotino unifica a theoría, a práxis e a poiesis, vendo-as como níveis distintos de
perfeição de um mesmo movimento. Ao mesmo tempo, mantém uma hierarquia clara de valor
entre estas, de forma que a vida ativa e a vida produtiva serão vistas como mais imperfeitas,
meros auxiliares à contemplação para aqueles incapazes dela diretamente: uma descrição que
também é uma exortação a superar a vida da ação e dedicar-se à verdadeira vida contemplativa,
uma vez que aqueles auxiliares são nada mais que degraus temporários a serem deixados de
lado uma vez que a contemplação pura é alcançada. Desta forma, não há, para o filósofo
contemplativo plotiniano, muita justificativa para a vida ativa.
A concepção da ação da alma particular apresentada neste tratado, bem como seus
demais fundamentos, se mostra ser bastante importante no Neoplatonismo tardio, que “a toma
e sistematiza na doutrina da projeção (probolê)” (CHLUP, 2012, p. 247). Incapaz de contemplar
sua própria essência de maneira imediata, mas apenas através da sua ação e produção (o que
inclui seus raciocínios, que são como produções internas), a alma projeta razões a partir de sua
essência, através de suas atividades e produções (internas e externas), para que possa ver-se a
si mesma nestes, como num reflexo de si no espelho. Nas palavras de MacIsaac (2005, p. 96):
... a alma não é imediatamente consciente de seus próprios logoi essenciais, e
os possui como uma respiração, ou como um pulsar do coração. Para que torne
esse oculto conteúdo de sua própria ousía explícito a si mesma, a alma deve
trazê-los adiante através do que Proclo chama de ‘projeção’.
Esta projeção é a versão proclina da anamnese, a reminiscência platônica, modo pelo
qual algo que é possuído “inconscientemente” é trazido à mente de forma a estar consciente
daquilo que já se sabia (ibid., p. 51n). Além disso, é uma continuação do modelo de ação
humana que vimos em Plotino, a distinção sendo apenas uma questão de nuance, pois Proclo
parece encontrar, nesta concepção da projeção, um caminho de valorização da vida ativa,
171
mesmo para o filósofo. Isto porque a exterioridade e a alteridade do mundo, nas quais essa
projeção é possível, têm sua relevância destacada, uma vez que o conhecimento da própria
essência será, neste contexto, visto como uma síntese do outro no eu. Esta necessidade da
mediação do outro, entendida como a natureza mesmo da atividade da alma, implica uma
atitude mais positiva em relação à vida política, bem como em relação à ação em geral, e mesmo
à atividade discursiva da razão, em suma, tudo aquilo que atribuí ao domínio da “via dialética
descendente” em Platão. Essas são as atividades propriamente pertencentes à alma, e é através
destas que ela pode realizar o Bem em seu nível próprio de existência e na província do todo
metafísico a ela alocada, assim como faz a natureza no tratado plotiniano127. Neste trecho, por
exemplo, ele considera as virtudes, que também são razões (logoi) essenciais da alma, do ponto
de vista da doutrina da projeção:
... uma vez que a virtude não é una e indivisível, mas multifacetada, nós devemos
entender que a providência sempre nos incita a diferentes projeções das nossas razões
(probolas logôn), de forma que a pessoa virtuosa possa realizar todos os modos
possíveis de virtude e provar a si mesma, aos organizadores [os deuses] das competições
das virtudes, como seu atleta genuíno.
Por esta razão a providência frequentemente faz com que os homens ativos repousem,
assim voltando seu intelecto a si mesmos, enquanto move à ação aqueles que apenas
olham para o interior, ensinando-os assim que forma tem a virtude e como ela possui
dois aspectos. [...] tornando a vida humana variada, desafia os virtuosos a atualizar suas
disposições de todas as maneiras possíveis... (De dec. Dub. 37.9-20)
Porém, há que se chamar a atenção, novamente, para o fato de que essa projeção das
próprias razões não se restringe à ação/produção externa, pois o próprio pensamento discursivo
é uma forma de projeção, ou ainda, é a projeção por excelência. Vemos Proclo ressaltando este
ponto quando diz, por exemplo, que “as projeções das razões essenciais são pensamentos, que
é a maneira pela qual entendemos que a alma é uma plenitude de todas as Formas (plêrôma esti
tôn eidôn)” (In. Parm. 899, 23-32); ou no contexto da matemática, no qual a dianoia ou
pensamento discursivo “possui as razões (logoi) mas, não sendo poderoso o suficiente para vê-
los quando estão embrulhados, os desdobram e expõem e os apresentam à imaginação [sob
formas geométricas]” (In. Eucl. 54.27 – 55.02); ou mesmo na dialética, quando considera o
método do Parmênides como uma forma de probole tôn ousiôdôn logôn (c.f. MACISAAC,

127
Certamente, assim como em Plotino, esse não é o único modo em que alma pode acessar o Bem: a ascensão
contemplativa da via unitiva também é possível e desejada no pensamento de Proclo. Há, apenas, uma ênfase
maior na consecução imanente do Bem na província metafísica alocada à alma.
172
2001, pp. 99). A projeção das razões é a própria natureza do pensamento discursivo, que é o
movimento da alma.
O problema central a ser tratado, neste contexto, é a capacidade autorreflexiva da
consciência, que aparece em Plotino em sua discussão a respeito da natureza do Intelecto, e que
é desenvolvida pelo Neoplatonismo Tardio em suas considerações a respeito da própria alma –
o que é tornado possível pela doutrina da projeção. Isto porque pensadores como Proclo
aprofundam a abordagem neoplatônica da alma à luz de sua natureza enquanto imagem do
Intelecto. Tal como aquele, ela é um movimento de autorreflexão, de pensamento de si, a
diferença estando no fato de que a alma, como diz Proclo, “possui uma essência eterna, mas
uma atividade temporal” (El. Th., prop. 119). Ou seja, apesar de ser em essência
eterno/atemporal tal qual o Intelecto, a atividade da autorreflexão sobre essa essência se dá
através de uma ação-produção, a projeção da essência da alma sob a forma de logoi (probolê
tôn ousiodôn logôn), que demanda a mediação do tempo, isto é, do movimento sequencial da
discursividade128.
A fim de melhor compreendermos como a alma se constitui enquanto imagem do
Intelecto, vejamos novamente o trecho plotiniano acerca da derivação deste último a partir do
Uno:
... nada possuindo e nada buscando em sua perfeição, o Uno transbordou e sua
superabundância produziu algo diverso dele mesmo. O que foi produzido voltou-se de
novo para a sua origem e, contemplando-a e sendo por ela preenchido, tornou-se a
Inteligência. O ato de ter-se detido e se voltado para o Uno deu origem ao Ser; o ato de
ter contemplado o Uno deu origem à Inteligência. O ato de ter-se detido e se voltado
para o Uno a fim de contemplá-lo tornou-o simultaneamente Ser e Inteligência. (tr. 11
[V.2], 1, 8-13)129
Este trecho havia sido abordado no capítulo anterior, mas desde o ponto de vista da
emanação do Uno. Do ponto de vista da constituição do próprio Intelecto, o que esse trecho nos
revela são três momentos dialéticos distintos da sua constituição interna: (1) um momento em
que a potência externa do Uno está em identidade com o próprio Uno, e isto é o Ser; (2) um
momento de alteridade, de transbordamento da potência externa do Uno, e que é a Vida; (3) e
um momento de retorno dessa potência à sua fonte, que é a Inteligência, e que é a mistura da
identidade e da diferença, a unidade do Ser e do Pensar realizada. Uma vez que esses três

128
Tecnicamente falando, em Proclo, o Tempo é uma mônada inteligível – portanto, eterna, atemporal – que mede
o movimento daquilo que é por ela movida. Ou seja, a discursividade e a sequencialidade não são Tempo, embora
sejam temporais, isto é, movimentos medidos pela mônada do Tempo.
129
Tradução de Sommerman (2000, pp. 63-64).
173
momentos são distinguidos apenas na temporalidade de nossa discursividade, o Intelecto é uma
unidade simultânea dos três, cuja imagem geométrica é aquela do círculo, da qual tratamos no
capítulo anterior, em que (1) é o centro, (2) os raios e (3) a circunferência. Trata-se, como Hadot
(2010, p.127) sintetiza a leitura que o Neoplatonismo Tardio faz a este respeito,
...de um ato de pôr-se a si mesmo em três momentos: simples posição de si, depois saída
de si, e por fim retorno a si. Mas essa posição de si, é o ato de ser ainda não desdobrado,
essa saída de si, é o ato de viver, esse retorno a si, é o ato de se pensar; assim, o ato de
ser é triplo e uno, cada ato mais particular contendo os demais.
Temos aqui uma manifestação da tríade primordial Limite, Ilimitado e Misto, derivada
do Filebo de Platão, e que em Proclo é a primeira manifestação do Uno, ainda numa esfera
supra-essencial anterior ao Intelecto, e que transpassa todo ser e é o primeiro movimento “em
seu proceder em direção à multiplicidade dos seres” (BEZERRA, 2006, pp. 119-120). O fato
de que essa tríade transpassa todo o ser significa que todos os seres espirituais serão constituídos
por participação nela, de forma que a tríade noética acima abordada seria, neste caso, apenas a
primeira instância de participação nesta tríade primordial130. O Limite é o paradigma da
permanência-em-si, o Ilimitado da dispersão de si, e o Misto do recolhimento das potências
assim desdobradas de volta à unidade de si, que completa, assim, o movimento autorreflexivo.
Essa tríade é nada mais, portanto, que a medida paradigmática de todo autorreflexividade, que
é o modo pelo qual todos seres espirituais complexos são capazes de participar na simples e
suprema autoidentidade do Uno, uma vez que a tríade é, por excelência, “uma unidade
subsistente e múltipla” (ibid.).131
Sistematizada enquanto modelo ontológico, esta lógica formará o famoso sistema
triádico de Proclo: moné, próodos e epistrophé (manência, processão e conversão/reversão),
que se espelha em todos os níveis do Real, uma vez que “todo efeito permanece em sua causa,
procede dela, e reverte a ela” (El. Th., prop. 35). Essa tríade ainda pode ser descrita no

130
Esta tríade não é por si mesma autorreflexiva, mas é a suprema medida de toda autorreflexão. É relevante que
o Limite não se identifique ao próprio Uno, mas ao momento de identidade que sua potência externa tem com ele.
Do Uno em si não se pode dizer nem que é Limite, nem que é Ilimitado.
131
Uma outra maneira de entender essa tríade, é como sendo o modo pelo qual o Uno pode ser o princípio (arkhé)
ou fonte de todos os seres, pelo Ilimitado; o fim (télos) de todos os seres pelo Misto; e o meio (méson), no qual os
seres subsistem, o Limite. O fato de que a tríade não diz respeito ao próprio Uno, mas é sua primeira manifestação
(supra-essencial), significa que esses atributos (princípio, meio e fim) não podem ser atribuídos a ele próprio.
Proclo diz, a este respeito: “[o Uno] é o princípio e o meio e o fim; ele é o princípio de todas as coisas porque todas
as coisas procedem dele; e seu fim porque todas as coisas são dirigidas a ela, pois todas as angústias do desejo e
todo o empenho natural é dirigido ao Uno, como o único Bem; e ele é o meio porque todos os centros das coisas
existentes, seja inteligível, intelectual, psíquico, ou sensível, são estabelecidos no Uno; de modo que o Uno é o
começo, o meio, e o fim de todas as coisas, mas em relação a si mesmo ele não possui nenhum desses [atributos]
[...]. O Uno é, então, transcendente a todas essas coisas, e não se deve aplicar nenhuma delas a ele, mas, como
Platão nos instrui, nós deveríamos permanecer contentes com as negações” (In. Parm., 1115. 22-1116.8-10).
174
pensamento proclino, por um vocabulário peripatético de essência, poder e atividade (ousia,
dunamis132, energeia); ou, ainda, Proclo (El. Th., prop. 28-32) também compreende essa tríade
como identidade, diferença e similitude, de forma que “o momento de manência é a identidade
do efeito com sua causa, diferença é a processão, e a união da identidade e da diferença em
similaridade [do efeito em relação à causa] é o momento do retorno” (MACISAAC, 2001, p.
70). Trata-se, de fato, de um desenvolvimento sistemático das vias dialéticas (ascendente e
descendente) trabalhadas no segundo capítulo, junto ao seu ponto de equilíbrio na metáfora do
Sol, uma vez que “a metáfora do sol [...] representa o duplo movimento dialético platônico
‘descendente e ascendente’, que se converte nos movimentos de processão e conversão
hierárquicos neoplatônicos” (BEZERRA, 2009, p. 85); isto é, cada ser espiritual interioriza em
sua própria constituição uma síntese dialética daquele duplo movimento (ascendente e
descendente).
A respeito da concepção de causalidade aqui implícita, é importante ressaltar que “para
Proclo causalidade é uma categoria essencialmente vertical” (CHLUP, 2012, p. 87n), de forma
que
... por ‘causas’, neste contexto, Proclo não quer dizer causas físicas tais qual
conhecemos em nosso mundo (estas são apenas causas secundárias, acessórias), mas
causas metafísicas que produzem seus efeitos num sentido muito mais forte, sendo tanto
seu modelo quanto a fonte de seu ser. Na visão de Proclo, toda causalidade funciona
sob o princípio da similitude, e o efeito portanto precisa assemelhar-se a sua causa. Não
obstante, também tem que ser diferente dela – de outro modo seria assimilado à causa
e não seria efeito. (ibid., p. 65).
O efeito é, portanto, similitude à sua causa, ou união de identidade e diferença, que
estabelece o efeito enquanto imagem de sua causa. A similitude, em seu aspecto enquanto
identidade, significa que “ao conhecer a imagem também se conhece o paradigma, segundo
Proclo, e pode-se ser levado da imagem ao paradigma devido à similitude da imagem ao
paradigma” (MACISAAC, 2001, p. 70). Por outro lado, a similitude enquanto diferença,
significa que
... [a imagem] não se adequa perfeitamente ao seu paradigma, ainda que seja uma
manifestação do paradigma. É por isto que Proclo caracteriza o paradigma como fértil
e preenchido de poder. O paradigma dá origem a muitas imagens, cada uma das quais
manifestam o paradigma numa maneira distinta, nenhuma das quais esgotam o seu
poder de produzir mais imagens. Além disso, de acordo com Proclo, nenhum montante

132
A concepção neoplatônica de dunamis é distinta da aristotélica: não uma imperfeição ou incompletude, mas o
poder de geração e produção.
175
de imagens poderia esgotar a fertilidade do paradigma. Ser-em-si não é equivalente à
soma total dos seres. Antes, é o paradigma cuja fertilidade emite uma variedade
infindável de seres que manifestam sua natureza. A Justiça-em-si não é a soma de atos
justos, mas antes a Forma que é o fundamento de uma variedade infindável de atos de
justiça. (ibid.)
Vejamos, nessa luz, como a emergência da Alma a partir do Intelecto se dá. Se o
Intelecto era como um círculo cujo centro era o Ser, seu momento lógico de identidade com o
Uno, a Alma é um círculo cujo centro é seu momento lógico de identidade com o Intelecto, o
qual é a sua essência (ousia). Esta manência da Alma no Intelecto é compreendida por Proclo
como uma plenitude de razões essenciais (plêrôma tôn ousiôdôn logôn) ainda não-projetadas,
como que reunidas na unidade do centro do círculo. Isto é, a essência da alma é uma imagem
racional da totalidade do cosmos inteligível, sob uma forma oculta, não transparente, uma
“única e todo-abarcante fórmula racional”. O segundo momento lógico, de diferença da Alma
em relação ao Intelecto, a dunamis133, é a processão, um desdobramento ou projeção das razões
essenciais sob uma forma discursiva, dividida, sequencial, ordenada segundo o tempo. E por
fim, no terceiro momento lógico, a similitude (união de identidade e diferença), a energeia pela
qual a Alma constitui-se a si mesma como uma hipóstase em seu próprio direito que contempla
o mesmo que o Intelecto contempla (similitude qua identidade) porém de sua própria maneira
derivada, dividida (similitude qua alteridade). A Alma, portanto, pensa o Intelecto (ou a
imagem discursiva deste) ao pensar-se a si mesma.
O momento do retorno da Alma ao Intelecto não significa, portanto que ela “se torna
Nous, ou de alguma forma reabsorve a si mesma ao Nous” (MACISAAC, 2001, p.73), de modo
que a tríade manência, processão e retorno não é “uma moção pela qual a Alma sai do Nous e
então em seu pensar é subsumida de volta ao Nous” (ibid., p. 85); antes, “ao final do seu círculo
a Alma constituiu a si mesma como uma imagem dividida de Nous” (ibid., p. 73), de modo que
“ela pensa as mesmas coisas que o Nous, mas de sua própria maneira. Se este não fosse o caso,
a Alma não poderia ser uma hipóstase em seu próprio direito” (ibid., p. 85). A totalidade das
Formas inteligíveis são de fato pensadas, portanto, pela Alma, mas sob forma discursiva, como
logoi ou razões.
A Alma hipóstase é compreendida, em Proclo, como a Mônada imparticipável da Alma,
pois, assim como na matemática pitagórica os números emergem de mônada, assim também da
Mônada da Alma emerge a pluralidade das almas. Toda alma, tal qual em Plotino, possui a
mesma natureza da Alma, como um fogo que possui sua potência de queimar inteiramente

133
A ser entendida, aqui, não como potencialidade e sim como poder.
176
presente mesmo quando dedicado a queimar um pequeno objeto. Todas almas, diz Proclo,
“possuem [de maneira secundária, ou discursiva] todas as Formas que o Intelecto possui de
maneira primária” (El. Th., prop. 194), isto é, mesmo a alma particular possui essencialmente
a plenitude das razões (plêrôma tôn ousiôdôn logôn) que a Alma possui. Toda alma, portanto,
é também um círculo autorreflexivo e discursivo que emerge a partir de um centro intelectivo
– o que nos permite transpor tudo o que foi dito para a reflexão acerca de nossa própria alma134.
A moção espiritual tríplice de reflexão sobre sua própria essência por parte da alma,
chamada por Proclo de período (períodos) devido à sua natureza circular e contínua, é a
totalidade do processo de projeção das razões essenciais. O pensamento discursivo parte de um
ponto central, indiviso, intuitivo; o desdobra em uma multiplicidade de razões e discursos (ou
mesmo ações), e depois reúne a multiplicidade numa reflexão sobre aquele ponto inicial. O
pensamento discursivo é para Proclo a própria alma, um processo de projeção das razões pelo
qual ela constitui-se a si mesma enquanto realidade distinta, passando pelos três momentos
lógicos da manência, processão e retorno. A alma, portanto, é um logos; e o seu logos é a
potência una-e-múltipla que subjaz todas as faculdades e poderes da alma, unificando-os e
manifestando-se através deles, uma vez que todas as atividades exercidas por essas faculdades
e poderes são variações do movimento fundamental de projeção das razões essenciais da alma.
Como o coloca Riggs (2015, p. 187), “as faculdades devem ser entendidas como as muitas
formas de um único poder de juízo [...]. Logos se mantém portanto como o aspecto unitário da
consciência humana e só é pluralizado como uma série hierárquica de poderes de acordo com
suas várias atividades e seus respectivos objetos”.
Ao contrário do círculo da autorreflexão do Intelecto, porém, o círculo da alma, em seus
três momentos lógicos, se dá no tempo, de forma que “no caso de qualquer alma, o círculo de
sua atividade é tal que o seu fim ainda não se ligou ao seu princípio” (MACISAAC, 2001, p.
69n). O que isso significa é que por mais que projete suas razões, a alma jamais é capaz de
esgotar a infinita fertilidade da intuição intelectiva que habita ou ilumina sua essência, e a
identidade com a qual consiste seu momento de manência ou identidade, a ‘fórmula racional
todo-abrangente’ que é a alma. Isto é, o Intelecto, possuindo todas as Formas em si, é todas as
coisas (sob modo intelectivo) e conhece todas as coisas conhecendo-se a si mesmo; como seu
autoconhecimento é pleno e “de um só golpe”, atemporal, ele é como um infinito atual do
conhecimento. A alma, sua imagem, também é todas as coisas e conhece todas as coisas

134
A diferença é apenas que certas almas (divinas e daimônicas) possuem no centro de seu ‘círculo’ um intelecto
particular, enquanto a alma particular (humana) tem o Intelecto no centro de seu ‘círculo’ apenas enquanto uma
iluminação (ellampsis) intelectiva.
177
conhecendo-se a si mesma; mas como seu autoconhecimento é sequencial, discursivo, jamais
alcançando a posse plena de todas as razões que a habita indivisamente, ela é como um infinito
potencial do conhecimento. Por mais que pense discursivamente por tempo indefinido, a alma
nunca ligará plenamente, no círculo de sua atividade autorreflexiva, o fim ao princípio – tal
qual um cão que persegue seu próprio rabo continuamente. A este respeito, comenta Trouillard
(1982, pp. 63-64):
.... [a subsistência da alma é] uma totalidade simultânea, e é impossível para aquilo que
é sucessivo a corresponder. É por esta razão que a duração se dilata sem limites, a fim
de imitar, pela extensão indefinida, a infinitude intensiva de seu centro. O cosmos
[movido pela Alma-do-mundo], segundo Proclo, não pode nem começar nem terminar;
ele não cessa de desdobrar seus instantes, porque ele não terminou nunca de exprimir
seus princípios. Ele repete sem cessar sua passagem ao ser, porque ele não pode acolher
num só golpe a potência infinita de sua causa. Do mesmo modo, cada intuição necessita
uma ronda indefinida de discurso; e cada essência psíquica singular necessita um
desdobramento ilimitado de histórias individuais para se exprimir no devir. Esta é sem
dúvidas uma das significações do mito de Er. Toda substância psíquica contém de
maneira indivisa mais formas de vida que sua atividade jamais poderá escolher ou
exercer. Uma vez que as condições terrestres propostas às almas são a projeção de suas
razões substanciais, o ser da alma jamais cessará de se buscar através do circuito de seus
períodos [círculos de autorreflexão].
Eis, portanto, que ao contrário do Intelecto, imóvel em sua atemporalidade, a alma é um
movimento perene, que deseja perpetuamente a intuição intelectiva simples de seu centro, mas
sem nunca coincidir com ela. A alma, porém, não é movida extrinsecamente por outro, mas
move-se a si mesma em seu próprio pensamento autorreflexivo. Esta é a definição da alma dada
por Platão em Leis (X, 896a), em que a diz ser “moção capaz de mover-se a si mesma” e “moção
autogerada”, e da qual deriva o movimento de todas as coisas no céu, na terra e nos mares
(897a). Ou ainda, tal qual foi visto no 2º capítulo, no Fedro (245c-246a) ele afirma que a alma
é um princípio de movimento para si mesma, de forma que isso faz dela imortal, pois o que
move a si mesmo nunca deixa de ser movido, ao contrário daquilo que é movido por outrem,
que deixa de viver quando a fonte do movimento dele se aparta; desta forma, “todo corpo que
recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si mesmo,
de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza da alma”. Ainda no Timeu
(77b-c), ele parece dizer que só o pensamento-de-si da alma racional é propriamente automotriz:
... [a alma da planta], na medida em que permanece completamente passiva e não
executa um movimento circular no seu próprio interior e ao seu redor, repelindo o
movimento exterior e exercendo o movimento que lhe é inerente, não é dotada, em

178
função de sua constituição original, de uma capacidade natural para o discernimento ou
reflexão relativamente àquilo que pertence a si mesma (tôn autoû ti logísasthai
katidónti). Por conta disso, ela é vida e não outra coisa senão um ser vivo, porém
permanece estacionária e enraizada, uma vez que lhe falta o auto-movimento.
Temos aqui que a alma da planta, sendo irracional, é incapaz de reflexão sobre aquilo
que a pertence, isto é, de autorreflexão, pensamento sobre si mesma; e tal condição é
concomitante com sua incapacidade de executar um movimento circular no seu próprio interior
e repelir o movimento exterior, isto é, aquele que é extrínseco. Esta é a condição que Proclo
chama de heterokinêsis, aquilo que é movido por outro, e que se opõe à condição própria à alma
racional, autokinêsis, aquilo que move a si mesmo. A ‘automotricidade’ da alma imortal do
Fedro é, nesta luz, associada pelos neoplatônicos tardios ao pensamento-de-si, à autorreflexão
racional (MENN, 2012, p. 59).
A natureza automotriz da alma racional é o que caracteriza a sua província na taxonomia
metafísica neoplatônica, pois embora todos os níveis da realidade são perpassados pela tríade
primária (Limite, Ilimitado, Misto), o balanço das predominâncias não é o mesmo em cada um
deles. Como resume o próprio Proclo (El. Th., prop. 14): “tudo o que existe ou é movido ou
imóvel; se o primeiro, o é por si mesmo ou por outro, isto é, intrinsicamente ou extrinsecamente:
de forma que todas as coisas são imóveis, intrinsecamente movidas, ou extrinsecamente
movidas”. Assim, nas ordens superiores (como o Intelecto) o Limite predomina, garantindo-as
uma natureza imóvel ou imutável (akinêtos), enquanto nas ordens inferiores (como o corpo) o
Ilimitado predomina, fazendo-as heterokinéticas, movidas por outro. Mas a alma está no centro,
o intermediário entre ambos, de forma que é mutável como as ordens inferiores, mas princípio
de seu próprio movimento ou movida intrinsecamente, o que lhe garante uma imortalidade ou
perpetuidade135 que o assemelha às ordens superiores (MACISAAC, 2001, p. 46).
Porém, esta condição intermediária também significa que é possível à alma tender ao
superior ou ao inferior. Especialmente, a alma particular que desce ao mundo da geração e toma
um corpo tem o movimento circular e autokinético de sua autorreflexão mesclado ao
movimento linear da translação, pelo qual é capaz de mover outro – neste caso, o corpo (MENN,
2012, p. 64)136. Desta forma, ela pode manter sua atenção nesse outro de tal forma que

135
Perpetuidade e eternidade são conceitos distintos em Proclo. O eterno é aquilo que é atemporal, assequencial;
o perene ou perpétuo é aquilo que é movimento temporal/sequencial, mas de tal natureza que se extende por toda
a extensão do tempo, não possuindo, assim como o próprio tempo, princípio e fim.
136
O neoplatônico Hermias, autor desta explicação, na verdade considera que as almas divinas também possuem
em si essa mistura do movimento circular e do movimento linear, de forma que “apenas o νοϋς poderia ser descrito
como sendo formatado ou movido de maneira puramente circular” (apud MENN, 2012, p. 64). Certamente, neste
caso, a diferença entre a alma divina e a alma particular que desce à geração é somente uma diferença de ênfase
entre esses dois movimentos que toda alma possui.
179
obscurece sua natureza automotora e assume uma natureza heterokinética, um estado de
passividade, em que é movida e determinada pelo que lhe é externa. Isso acontece, segundo
Proclo, pois a alma é “essencialmente automotriz, mas devido à sua associação com o corpo se
tornou sujeita à moção extrínseca: assim como havia concedido ao corpo a imagem derradeira
da automoção, assim também, devido à sua relação com ele, ela recebeu em torno uma
aparência de moção extrínseca” (In. Alc., 225.11-15). Isto é, a associação da alma com o corpo
é uma via de duas mãos, através da qual ela pode fazer com que ele aja e, em retorno, se torna
passível de sofrer afecções corpóreas (El. Th., prop. 80).
Esta é a condição do homem natural, tomado de esquecimento e erro, obstruídos de
nossa contemplação do ser devido aos invólucros mortais que assumiram (In. Alc., 224, 4-7);
distraídos pela desordem da vida irracional, não conhecendo a si mesmos (ibid., 7, 2-5). Neste
estado de esquecimento acerca de si mesma e suas próprias razões, a alma toma a realidade
sensível como sendo a única, assumindo que, pela indução, os seus sentidos são a fonte de seu
conhecimento e pensamento (MACISAAC, 2001, p. 47); deste modo, erroneamente tem a
impressão de que não existe independentemente do corpo, e tem sua volição determinada
passivamente “pelas pathêmata [paixões ou afecções] que vêm da sensação, vivendo de acordo
com aparências e tomando as opiniões de fora, ao invés de ser ela própria a fonte de seu próprio
movimento pensante” (ibid., pp. 197-198).
A alma tomada de heterokinêsis é um self objetivo-participativo tal qual vimos
anteriormente, em que a alma tem sua identidade de si, cognição e vontade determinadas
extrinsecamente. É necessário, portanto, que ela desperte de seu esquecimento e atualize sua
própria autokinêsis, a sua autorreflexividade que se dá através da reminiscência, o movimento
autoconsciente da projeção de suas próprias razões, de forma a determinar-se a si mesma
enquanto “substância autoconstituinte, vida autovivífica e conhecimento autocognitivo” (El.
Th., prop. 190) – as três formas pelas quais é autokinética: ontologicamente, volitivamente e
cognitivamente. Desta forma, ela é estabelecida em seu autêntico self subjetivo-individual137,
se identificando com a alma incorpórea dotada de autodeterminação e liberdade, e deixando de
se identificar com aquela alma “implantada em corpos” e que é “subserviente à necessidade e
movida sob o destino” (De Prov., 4).
Em seu Elementos de Teologia, Proclo argumenta que tudo que é autorreflexivo
(επιστρεπτικόν) ou “capaz de reverter sobre si mesmo é incorpóreo” (prop. 15), pois só algo

Mais adiante considerarei em que sentido o “self subjetivo-individual” da alma autokinética difere do modelo
137

moderno, cartesiano/kantiano.
180
simples, não composto de partes, é capaz de estar inteiramente presente a si e unido consigo; e
para corpos, devido à sua natureza múltipla, composta de partes que ocupam diferentes posições
no espaço, é impossível que o todo de suas partes esteja inteiramente presentes ao todo. Sendo
um ato de dirigir a própria energeia a si mesmo como um todo, a atividade da autorreflexão
deve ser, portanto, independente de qualquer mediação corpórea (MENN, 2012, p. 61), não a
necessitando nem como instrumento ou componente essencial, nem causa cooperativa ou
finalidade (prop. 16). E se assim o é, é necessário que a existência daquele que é capaz de tal
atividade seja também independente de qualquer corporeidade, uma vez que não é razoável
supor que sua atividade seja superior à sua existência (prop. 16). Em seguida, Proclo aponta
que tudo o que é automotriz é capaz de autorreflexão (prop. 17), pois aquilo que move a si
mesmo tem sua atividade dirigida a si mesmo, de forma que o motor e o movido são um – pois
se o motor movesse algo distinto, como uma parte movendo outra, não seria automotriz, de
forma que “para que algo seja primariamente automotriz não se trata de mover-se como se uma
parte movesse outra, ou que o todo mova uma parte, ou que uma parte mova o todo” (MENN,
2012, p. 60). E a alma é aquilo que é automotriz por excelência (prop. 20), como o definiu
Platão.
Proclo associa, assim, o mover-se a si mesmo à autorreflexividade e ao conhecer-se a si
mesmo, uma vez que naquele que reflete ou reverte sobre si, o conhecedor e o conhecido são
um, a cognição tem a si mesma como objeto (prop. 83). A alma autokinética dirige a sua
energeia inteiramente a si mesma por inteira, e assim move-se a si mesma e conhece-se a si
mesma, e desta forma é a fonte de seu próprio movimento – o qual, ao contrário da pura
autopresença intuitiva do Intelecto, é temporal e mediado. Assim, Proclo “salva” também, da
crítica cética, uma forma de autoconhecimento possível à alma, ainda que seja imperfeito e uma
mera imagem da autopresença intuitiva do Intelecto.
Mas o argumento de Proclo vai além. Ainda em Elementos de Teologia, ele argumenta
que “tudo que é em sua atividade capaz de reversão sobre si mesmo também reverte sobre si
mesmo no que diz respeito à sua existência” (prop. 44), o que quer dizer que o ente
autorreflexivo é também autoconstituído (prop. 43), αυθυπόστατόν, ou seja, deriva sua
existência de si mesmo, “é a fonte de seu próprio ser e responsável por sua própria existência
como uma substância”. A alma, portanto, sendo movimento, ao mover-se a si mesma e ser fonte
de seu próprio movimento, é “simultaneamente causa e efeito” (prop. 46) de si mesma. Ainda,
aquele que dessa forma reverte sobre si mesmo se completa, é também a fonte de seu bem-ser
(prop. 43), isto é, ele não é apenas autoconstituído, mas também autossuficiente (autarkés); pois

181
aquele que reverte a si mesmo o faz movido pelo desejo de seu próprio bem, que, dessa forma,
concede a si mesmo. Assim como o Intelecto – como vimos no capítulo anterior – realiza o
movimento da autorreflexão por possuir o Bem em seu cerne e ser por ele atraído, como o “Si”
que é objeto de sua intelecção-de-si, assim também a alma, ao pensar-se a si mesma, deve
possuir o Bem em si mesma segundo a maneira de sua própria reflexão. Nesta outra passagem,
Proclo reitera o ponto de que a alma tem seu bem de si mesma, e não de fora:
Nossa purificação não é tal que advém de fora, mas começa de dentro da alma, uma vez
que todo o mal vem de fora e é adventício à alma, mas o bem vem de dentro; pois a
alma é por natureza da forma do bem, e quão mais perfeita se torna, mais ela recupera
a vida que é automotriz, uma vez que havia se tornado extrinsecamente movida devido
à conexão com os corpos e à simpatia com eles. (In. Alc., 280.1-6)
Uma maneira de entender isso é dizer que a alma, deste modo autorreflexivo, atualiza
sua própria virtude, no sentido helênico do termo, como explica Reale (2014c, p. 112):
Para o homem helênico, a felicidade estava ligada à arete, palavra que traduzimos por
virtude, mas que na língua grega abrange uma área conceptual mais ampla. Para o grego,
efetivamente, a arete-virtude consiste na plena manifestação da essência de algo, isto é,
na plena realização daquilo que torna uma coisa válida, seja ela qual for. Pode-se,
portanto, falar de virtude de um animal, de uma planta, de um objeto. A virtude do
homem em sentido grego é, pois, a plena e perfeita manifestação daquilo que ele é, e
daquilo que o torna válido. O verdadeiro bem para o homem, nesse sentido, só pode ser
a virtude de sua alma, a perfeita realização de seu logos: só daqui pode derivar todo bem
e, portanto, a felicidade.
Assim como vimos no capítulo anterior que o Intelecto constitui-se a si mesmo, dá-se a
si mesmo seu ser (causa sui), e confere a si mesmo seu próprio bem (autarquia) ao pensar-se a
si mesmo como modo de pensar o Uno; assim também sua imagem, a alma autokinética
proclina, pensa-se a si mesma, constitui seu próprio ser ao fazê-lo, e dá-se a si mesma seu
próprio bem. Ela é, assim, autotelés, “intrinsecamente perfeita” (TROUILLARD, 1982, p. 192).
Ela, porém, é logos, pensamento discursivo de si mesmo, de modo que a
autorreflexividade, a apercepção do “eu”, só é alcançado através da mediação de suas projeções
(cognitivas e vivíficas), que, após dispersas, são reunidas novamente em si na “unidade
transcendental da apercepção” daquele que diz: ‘eu penso’, ‘eu percebo’, ‘eu desejo’, ‘eu ajo’,
etc. Esta apercepção é o modo próprio pelo qual a alma manifesta a natureza do Uno: sua
autoidentidade, sua unidade138, sua independência ou autonomia. Assim, esse logos é também
henoeidestaton, aquilo na alma que mais tem a forma do Uno (RIGGS, 2015, p. 187), de modo

Lembrando, neste contexto, que unidade é sinônimo de bondade: “bondade, então, é unificação, e unificação é
138

bondade” (El. Th., prop. 13).


182
que essa apercepção mediada é o próprio Princípio tal qual apreendido pela alma. Em outras
palavras, pensar-se a si mesma, para a alma, também é pensar-se e constituir-se enquanto
imagem discursiva do Uno – o que se dá devido ao fato de que a tríade de sua autorreflexão
(manência-processão-retorno) é uma interiorização da tríade primordial (Limite-Ilimitado-
Misto) que é a primeira manifestação do Uno.
É por isso que, nesta passagem significativa, Proclo identifica o logos que reúne em si
as faculdades da alma com o Uno-da-alma (τό ‘έν της ψυχης), a imagem psíquica do
Princípio139:
Pois novamente encontramos a faculdade do desejo (epithumia) buscando arduamente
por um conjunto de coisas, e a faculdade irascível (thumos) buscando outras, e a escolha
racional dirigindo a si mesma a outras, mas há um único princípio vivífico que move a
alma em direção a todas essas coisas, pela virtude do qual nós dizemos ‘eu desejo’ e ‘eu
estou com raiva’ e ‘eu faço tal e tal escolha’; pois esse princípio vivífico dirige a si
mesmo a estes objetos juntamente com as faculdades mencionadas e ele vive com todas
elas, sendo um poder que dirige um impulso em direção a todos os objetos de impulso.
E de fato anteriormente a ambas essas faculdades está o uno-da-alma (tês psuchês hen),
que frequentemente diz, por exemplo, ‘eu percebo tal e tal’ e ‘eu estou calculando’ e
‘eu desejo tal e tal’, e que é consciente de todas essas atividades e atua juntamente com
elas; de outra forma, nós não conheceríamos todas essas atividades, nem seríamos
capazes de dizer de que modo elas diferem, se não houvesse um único princípio unitário
em nós que conhecesse todas elas, que está acima da faculdade do senso comum e
anterior à opinião, anterior ao desejo e à vontade, e que conhece todas as deliberações
dessas faculdades e que as une em si de maneira indivisa todos seus impulsos, dizendo
em cada caso ‘sou eu que estou fazendo isso, e eu quem estou agindo’. (In. Parm., 957,
30 – 958, 13)
Este ato de apercepção, portanto, é o pensamento-de-si pelo qual a alma dá-se a si
mesma sua própria unidade/bondade e seu próprio ser – e estar ciente disso é despertar para sua
própria autokinêsis.

139
Riggs (2015, p. 188n) argumenta que esse “uno-da-alma” identificado com o logos não pode ser o mesmo que
o “uno-da-alma” que é uma imagem do Princípio na alma, através da qual ela é unida ao Uno/Bem, pois este que
é identificado com o logos não é algo ‘místico’, e sim algo integral ao funcionamento diário da alma. Lankila
(2010, p. 151n), por outro lado, discorda – porém sem argumentar sua escolha de incluir este trecho entre aqueles
que são significativos na compreensão do ‘uno-da-alma’ através do qual a união com o Princípio se dá. Sigo
Lankila neste ponto, pois entendo que é equivocado fazer uma cisão entre o funcionamento ordinário da alma e
seus acessos ‘místicos’. O uno-da-alma não pode se restringir a uma atividade extraordinária, ‘mística’, mas é
também o princípio que dá à alma sua unidade consigo, sem a qual ela não poderia ser. O modo ordinário de sua
existência, enquanto apercepção, está enraizado na transcendência; a ascensão contemplativa/unitiva não é mais
que uma via em que ocorre uma retorno concentrado sobre esta imagem do Princípio em si e assim, numa
coincidência simples com ela, deixando de lado as atividades discursivas ordinárias da alma, ascender àquele que
é o fundamento de sua possibilidade de ser, o centro mais profundo do seu círculo que é idêntico ao centro de
todos os círculos. Tratarei desta dimensão do pensamento proclino no próximo subcapítulo.
183
Além disso, a alma também é automotriz enquanto “vida autovivífica” (El. Th., prop.
190), como havíamos visto. Isto significa que ela é volitivamente capaz de reverter sobre si
mesma, e assim, ao invés de ter sua potência volitiva determinada e movida pelos objetos
externos como se dá naqueles que estão sujeitos às paixões/afecções, a alma automotriz é
volitivamente autodeterminada, capaz de escolher seu objeto de desejo. Esta é a potência
vivífica da prohairesis, o poder racional (autorreflexivo) de escolha, que se dirige ao bem –
verdadeiro ou aparente – segundo o conhecimento que a alma dele possui (De Prov., 59). A seu
respeito, diz Riggs (2015, p. 191): “Prohairesis, portanto, é conectada à automoção da alma,
ela própria uma expressão da sua natureza enquanto poder ativo, que está em contraste direto
com a natureza passiva das partes da alma irracional, o thumos e epithumia, que dependem dum
outro para atiçá-las ao movimento”.
E por fim, a alma é automotriz enquanto “conhecimento autocognitivo” (El. Th., prop.
190). Diz Proclo que, a partir da plenitude de sua essência, “a alma, de sua própria moção, deve
buscar dentro de si mesma ambos o verdadeiro e o bem e as noções eternas da realidade”, as
quais são obscurecidas pelo esquecimento, de forma que em seu estado heterokinético, a alma
busca o verdadeiro e o bem em outras coisas, negligenciando a si mesma; desta forma, voltar-
se a si como fonte do verdadeiro conhecimento, portanto, é o princípio do autoconhecimento
(In. Alc., 250.18 – 251.3). Isto significa que “a conversão da alma de heterokinêsis a autokinêsis
é uma conversão cognitiva: uma conversão da aceitação, por parte da alma, da aisthêsis como
a fonte do conhecimento, para a projeção dos logoi a partir de seu próprio centro”
(MACISAAC, 2001, p. 208). Isto é, a alma passa de um estado em que erroneamente crê que
seu conhecimento é derivado extrinsecamente, determinado pelos objetos da sensação e da
opinião, para um estado em que reconhece que, na verdade, sempre que ela conhece algo ela
está a projetar suas próprias razões. Como o coloca Trouillard (1972, p. 165), “o conhecimento
aferente, centrípeto ou a posteriori é aquela da alma passiva. O conhecimento eferente,
centrífugo ou projetivo é aquele de sua liberação”.
Assim como Plotino diz que sempre que falamos do Uno na verdade estamos falando
de nós mesmos, aqui temos que sempre que a alma fala do que quer que seja, ela está a falar
de si mesma, está a desdobrar e falar de suas próprias razões (logoi) essenciais projetadas
através de seu pensamento discursivo, e é necessário reconhecer isso para resgatar a autokinêsis
da alma racional. Deste modo, assegura-se que o conhecimento da alma não é representativo,
pois ela não está a representar algo alheio a si mesma, mas conhecendo a si mesma, suas

184
próprias razões, numa identidade sujeito-objeto semelhante àquela que existe no Intelecto140.
Teríamos aqui141, portanto, uma espécie de idealismo subjetivo, uma radicalização daquele
princípio cético incorporado por Plotino em seu pensamento acerca do Princípio.
Até aqui, a alma autokinética proclina parece se adequar muito bem à concepção do self
“subjetivida-individualista” de Christopher Gill, que havíamos abordado, uma espécie de
sujeito racional autônomo que, recordando, teria como principais características: i) percepção
de si como centro unificado de pensamento e vontade; ii) autonomia ética; iii) a capacidade
para raciocínio moral desinteressado; iv) capacidade de estabelecer sua própria posição ética
ou autenticidade identitária; v) um sentido de identidade pessoal (c.f. GERSON, 2003, p. 8);
um self que é “determinado pelas volições autônomas de um sujeito autoconsciente,
independentemente de qualquer raciocínio conforme aos padrões públicos (objetivos) de
comportamento e identidade” (RIGGS, 2015, p. 179).
O próprio autor dessas caracterizações, porém, assim como muitas historiografias da
filosofia, considerava que tal concepção subjetiva-individualista seria uma característica
própria à modernidade, enquanto o mundo antigo era tomado pela concepção objetivo-
participativa de self. A alma autokinética proclina demonstra que a reflexão filosófica acerca
da autonomia do sujeito racional não é uma invenção da modernidade, um ponto que
importantes trabalhos recentes têm reiterado. Identificam no Neoplatonismo o estabelecimento
de uma importante revolução no pensamento (HANKEY, 2004, pp. 437, 442): através de uma
transformação da máxima délfica gnothi seauton (“conhece-te a ti mesmo”), e a partir de uma
interação dialética com o Ceticismo, o Neoplatonismo teria inaugurado a centralização da
subjetividade sobre a objetividade, a visão segundo a qual as formas de realidade objetiva são
“fundamentalmente determinadas pelas perspectivas dos diversos sujeitos” (ibid., 2005b, p. 19),
de modo que “o recentramento do conhecimento e da criatividade no caráter do sujeito e sua
perspectiva é central ao Neoplatonismo pós-Plotiniano e a seus herdeiros medievais gregos e
latinos” (ibid., p. 21).
Ora, se há uma similaridade evidenciada aí entre a subjetividade moderna e a alma
autokinética proclina, é igualmente necessário apontar as profundas diferenças que as separam
– e que é o que permitirá continuar este estudo e assim completar a caracterização acerca da
concepção proclina da alma. Neste contexto, é importante ressaltar que há, no caminho até

140
Semelhante, não idêntica, pois no Intelecto a Essência e o ato de apreendê-la são idênticos; na alma, a essência
precede o ato.
141
Digo “teríamos” pois, como argumentarei mais adiante, este não é o caso, pois a figura aqui desenhada está
incompleta.
185
agora traçado neste subcapítulo, uma aparente contradição entre duas ideias que não foram
propriamente confrontadas: por um lado, a alma é uma entidade que tem seu lugar na paisagem
metafísica, e depende de outras hipóstases para que seja o que é, uma vez que ela é, segundo o
que foi dito, um efeito do Intelecto, participante do Uno através da tríade primordial, e ela
própria a causa do mundo sensível – do qual, inclusive, muitas vezes depende, em seu estado
mais parcial, para que possa projetar suas razões através de ações e assim conhecer a si mesma.
E por outro lado, afirmamos que a alma é automotriz, autoconstituída, autárquica ou fonte de
seu próprio bem, volitivamente e cognitivamente autônoma: uma espécie de sujeito racional
autônomo e autodeterminado. A alma é, então, derivada ou autoconstituída? Autárquica ou
dependente?
Trata-se, realmente, de algo paradoxal, uma vez que ambas as coisas são verdadeiras
simultaneamente para Proclo. Trouillard (1982, p. 65) diz, a este respeito, que “a
automotricidade não exclui a derivação, mas ao contrário, a implica”. Ele aprofunda, ainda, a
natureza deste paradoxo, apontando que a alma “dá-se a si mesma tudo aquilo que ela é, e ao
mesmo tempo ela o recebe. Ela se faz subsistir e ela não é a fonte do Ser, ela vivifica a si mesma
e ela participa na Vida, ela ilumina a si mesma e ela é iluminada” (ibid.). Isto é, os três modos
pelos quais ela é automotriz142 são, ao mesmo tempo, participações nos três níveis do Intelecto:
Ser, Vida, Inteligência143.
A saída para essa aparente contradição está em reconhecer que, assim como em Plotino
o Intelecto é autoconstituinte pois reflete sobre seu próprio centro através do poder do Uno/Bem
que nele se estabelece, e assim também, em Proclo “a alma procede de si mesma e se converte
a si mesma sob o influxo dos princípios que lhes são anteriores” (ibid.), de forma que “longe
de que haja incompatibilidade entre autoconstituição e derivação, a autoconstituição implica
uma derivação interiorizada” (ibid., 1972, p. 82), pois “os princípios transcendentes agem
sempre em nós desde dentro (’ένδοθεν) e portanto não nos impõem nenhuma passividade, mas
ao contrário, nos despertam à nossa própria autonomia” (ibid., 1982, p. 188. Minhas ênfases).
Ora, esta forma imanente de compreender a atuação dos princípios transcendentes na alma, que
parece ser uma característica da concepção proclina da participação, me parece ser derivada da

142
Como “substância autoconstituinte, vida autovivífica e conhecimento autocognitivo” (El. Th., prop. 190).
143
Essa é a tríade que constitui o Intelecto, em Plotino. Em Proclo, há uma sistematização dessa tríade, de forma
que a hipóstase do Intelecto é subdividida em três níveis distintos, cada um correspondente a um membro da tríade,
e de forma que cada um contenha em si os outros dois. O terceiro nível, chamaremos de “Inteligência” para
distingui-lo da hipóstase “Intelecto” como um todo, uma vez que em textos em que esses detalhes não são
relevantes para sua análise, Proclo simplesmente se refere a “Intelecto” (Nous) à hipóstase em geral, como o faz
Plotino.
186
compreensão neoplatônica do fenômeno religioso da possessão divina144. Nos diz Addey (2014,
pp. 63-63; 66; 68; 200), a respeito desta:
A visão de Jâmblico acerca da possessão divina e a adivinhação é baseada sobre a noção
de que os deuses atuam através da alma humana; em relação à experiência dos seres
humanos com a adivinhação e a possessão divina, os deuses são concebidos como
internos (atuando através das faculdades da alma humana) e como externos (num
sentido causal que preserve a atribuição da transcendência divina mas não num sentido
espacial ou temporal). Assim, a alma humana é considerada como uma agência ativa,
instrumental que atua em conjunção com a (mais poderosa) agência divina; o divino
não é, portanto, concebido como uma agência totalmente alheia sobrepujando sua
vítima humana. Possessão divina é considerada dentro do Neoplatonismo tardio como
um fenômeno envolvendo uma deidade simultaneamente transcendente e imanente
atuando através da alma do possuído145. Uma vez que a deidade é concebida como já
estando causalmente e ontologicamente ligada à alma humana, a possessão divina não
é concebida como aniquilando a consciência humana mas repondo-a pela consciência
divina, representando um aprimoramento do poder e a percepção do ser humano. [...]
[Jâmblico] enfatiza repetidamente que a iluminação divina é constantemente disponível
e onipresente no mundo mortal, contudo a receptividade dos ritualistas deve haver sido
propriamente cultivada para que eles estejam prontos para receber essas iluminações
divinas. [...] A ‘receptividade’ (’επιτηδειότης) do indivíduo é interpretada como um tipo
de poder ou agência instrumental para o homem, uma vez que é visto como o cultivo
ativo de qualidades e aptidões que permitem o contato com o divino. [...] Similar à
atualização de um potencial, os deuses pré-essencialmente habitam na alma e
manifestam assim que as condições são favoráveis.

144
Ainda no contexto da religiosidade olímpica, vemos que um guerreiro é visto, quando tomado por uma onda
extraordinária de força e coragem, como estando num estado de mania, possuído ou sob a infusão de poder de um
deus. A respeito disso, nos diz Taylor (1997, p. 159): “... ao contrário de nossas intuições modernas, isso não
parece diminuir o mérito ou desmérito do agente. Um grande herói continua grande, embora seus feitos incríveis
sejam possibilitados pela infusão de energia do deus. Na verdade, não existe concessão nenhuma aqui; não é que
o herói continue grande apesar da ajuda divina. É uma parte inseparável de sua grandeza o fato de ele ser o local
escolhido para a ação divina”. Ainda, o sentido propriamente helênico-olímpico de arete (excelência/virtude)
indica, como nos explica Gazolla (2009, p. 50), uma presença do divino nas coisas, isto é, “quando se fala da arete
dos olhos, dos cabelos ou de um belo corpo diz-se que são luminosos, magníficos, qualidades possíveis porque
algo divino está presente na coisa ou em alguém, fazendo-os excelentes”. Poder-se-ia dizer, ela diz ainda, que a
transformação do olhar mítico para o olhar filosófico operada por Platão manteve algo dessa concepção na medida
em que “funda os valores das coisas e das ações ditas belas no divino”, porém substituindo a linguagem e o sentido
mítico da presença por uma linguagem e sentido filosófico da participação. Neste sentido, nos parece que a
concepção proclina de participação retorna à sua origem pré-filosófica, na mitologia, reunindo novamente os dois
olhares.
145
Vemos que Proclo partilha da mesma concepção aqui atribuída a Jâmblico, quando diz, por exemplo, que:
Purificar uma pessoa necessitada de um tal auxílio através de sua própria agência é o trabalho de um poder
daimônico, uma vez que espíritos não operam sobre nós de fora, mas, por assim dizer, ‘nos guiam de dentro, desde
a popa’ [Critias, 109c]; nem eles purificam nossos corpos que têm uma natureza extrinsecamente movida, mas
nos curam por inteiros enquanto pessoas que são automovidas. (In. Alc., 281.17 – 282.2. Minha ênfase.)
187
À luz desta concepção, podemos entender a participação da alma no Intelecto como uma
espécie de ‘possessão divina’, cuja intensidade é determinada pela receptividade da alma.
Vemos, em Proclo, como o Intelecto se faz presente à alma146 através de uma iluminação ou
irradiação (ellampsis) de si, algo que Proclo ilustra através de uma leitura alegórica da relação
entre Sócrates e o jovem Alcibíades no diálogo platônico que tem o nome deste último: assim
como Sócrates, o divino amante, dirige a sua atenção providencial a Alcibíades constantemente,
de forma a estar presente a ele, assim também o Intelecto providencialmente dirige sua atenção
à alma e nela se faz presente. É graças a isto que a essência da alma é uma plenitude de logoi,
uma imagem do mundo intelectivo, pois as almas “não são tábulas rasas recebendo impressões
de fora, mas são tábulas sempre inscritas, e aquele que escreve [o Intelecto] está dentro da
alma” (In. Alc., 281.2-3. Minha ênfase). Isto é, a essência da alma é a própria irradiação
intelectiva que a ‘possui’, sua manência ou momento lógico de identidade com sua causa.
Mas, assim como a presença de Sócrates a Alcibíades é silenciosa enquanto este último
está envolvido com os amantes vulgares (representando a multiplicidade), e só lhe fala quando
o jovem deles se aparta, assim também a irradiação luminosa do Intelecto permanece
silenciosamente presente na alma enquanto ela está voltada à multiplicidade, e lhe fala quando
ela abandona seus ‘amantes vulgares’ e volta sua atenção à iluminação intelectiva que lhe foi
providencialmente concedida (o que é o mesmo que voltar-se a si mesma, uma vez que a
essência da alma é essa iluminação intelectiva). Desta forma, “a alma é possuída por um
intelecto147” (RIGGS, 2015, p. 192), e “é através da iluminação do nous presente à nossa alma
que os deuses nos movem de tal forma que recuperamos nossa própria automoção intelectual”
(MACISAAC, 2011, p. 57). Trata-se de algo similar àquilo que faz um professor autêntico, o
qual não é aquele que transfere conhecimento à alma do discípulo, mas aquele que,
questionando-o, o move a recuperar sua própria autokinêsis ao reconhecer por si próprio a luz
do conhecimento que possui tacitamente.
Diz ainda Proclo que Sócrates é, em sua relação com Alcibíades, um amante inspirado
(ἔνθεος ἐραστής), e é a natureza dos amantes inspirados “voltar, recordar e reunir o amado a si
mesmo”, e assim unindo-o consigo, “o conduzir conjuntamente à beleza inteligível,
‘derramando’ ... em suas almas o que quer que obtém daquela fonte”, de forma que o amante

146
É importante ressaltar que o modo de presença do superior no inferior não é uma anulação de sua
transcendência. Proclo nos diz, a este respeito: “Tudo o que é divino exercita providência às existências
secundários e ao mesmo tempo transcende os seres a que provêm: sua providência não envolve nenhuma remissão
de sua pura e unitária transcendência” (El. Th., prop. 122).
147
Segundo Proclo, a alma parcial recebe uma iluminação (ellampsis) intelectiva não do Intelecto em geral, mas
de um intelecto particular (merikos nous).
188
inspirado é aquele que, assim como o próprio amor, convertem aqueles a que dirigem sua
providência ao Bem (In Alc., 26.12-27.3). Proclo aqui faz da relação entre Sócrates e Alcibíades
“um modelo alegórico da relação entre entidades mais e menos elevadas no reino ontológico”
(VASILAKIS, 2014, p. 101), no qual vemos um fator fundamental de seu pensamento: que o
eros não é apenas uma sede daquilo que não se possui, um desejo ascendente do ser inferior ao
superior; há também um eros que é ‘descendente’148, e cuja forma suprema é o transbordar
providencial da bondade do próprio Bem, aquele cuja natureza é “irradiar o bem a todos
existentes em virtude de seu próprio ser” (El. Th., prop. 122). Tal qual o amante inspirado, em
sua efusão o Bem “procede até o nível mais inferior, e ilumina todas as coisas e as conserva, as
harmonizam e as voltam para Si mesmo” (In Alc. 181.12-15): o amor e o desejo que os seres
possuem pelo Princípio é causado pelo amor providencial (eros pronoiétikos) primordial pelo
qual o próprio Bem se dá a eles. Ainda, tudo tem sua existência iluminada, conservada e
harmonizada pela unidade e bondade que assim recebem do Uno, o qual, nos diz Proclo, “‘em
todas as coisas ... semeou o ardoroso vínculo de amor’ de modo que todo o mundo possa ser
mantido juntos pelos vínculos indissolúveis da amizade” (In Alc., 26.2-4).
Deste modo, temos um movimento duplo atribuído ao amor, que desce da esfera
superior à inferior e assim faz com que a inferior se volte à superior, o que sugere, como apontou
Gersh (1973, pp. 124-125), “uma natureza que é de fato cíclica”, isto é, o amor manifesta a si
mesmo “como o ciclo completo de manência, processão e reversão”; ele “preside sobre toda a
moção cíclica”, é equivalente “ao todo do processo triádico”. A tríade primordial (Limite-
Ilimitado-Mistura), primeira manifestação do Princípio, pela qual todos seres espirituais
participam da Sua natureza, se revela, assim, como o amor primordial: aquele que permanece
no Bem em sua plenitude, procede segundo sua causalidade eficiente ou providente, retorna
segundo sua causalidade final. Todo o movimento de autorreflexividade, em qualquer instância,
é a participação na moção primordial do amor. A alma reflete sobre si mesma, movida pelo
amor desejoso, porque o Uno a habita como o seu próprio si, de forma que todo o movimento
triádico de sua autorreflexividade é sua participação na tríade primordial do amor, e a
apercepção que alcança (‘eu penso’ etc) é a forma particular de sua receptividade da unidade
que o Princípio a confere ao possuí-la por sua efusão. Há assim, em Proclo, uma afirmação

148
Vasilakis (2014, p. 112) aponta que Proclo entende esse amor como análogo àquele que o Demiurgo possui em
sua relação com o receptáculo ‘material’, e àquele que o rei-filósofo possui ao corpo político ao qual dirige seu
cuidado após retornar à caverna, dotado da visão do Sol do Bem. Estas são duas instâncias do pensamento de
Platão que foram tratadas, no segundo capítulo, como partes da “via dialética descendente”. Vemos assim que as
duas vias dialéticas, ascendente e descendente, são movidas pelo amor – porém em cada caso um amor de natureza
própria. O que ocorre em Proclo é a formalização desse amor descendente no conceito de eros pronoietikós (amor
providencial).
189
radical da manência (moné) do Princípio na alma, que porta “o mistério do Uno ao coração dos
seres” (TROUILLARD, 1972, p. 91), e que constitui a monadologia proclina149. Diz Proclo (In
Parm., VII, 54k.6-31):
... não é o Uno que nós chamamos ‘uno’ quando utilizamos este nome, mas o
entendimento da unidade que está em nós. Pois tudo o que existe ... anseia pela causa
primeira e tem um ardor natural por ela. [...] O que mais é o Uno em nós senão a
operação e a energia deste ardor? É portanto este entendimento interior da unidade
que é uma projeção e, por assim dizer, uma expressão do Uno em nós, que chamamos
de ‘o Uno’. [...] [e esse] amor pelo Uno deve ser inextinguível. [...] Portanto o
entendimento silencioso é anterior ao que é posto em linguagem, e o desejo é anterior a
qualquer entendimento, anterior ao que é inexpressível assim como anterior àquilo que
é analisável. (Minha ênfase)
O amor que temos pelo Bem é a sua própria presença providencial em nós. Porém, cada
um dela participa segundo a natureza da sua capacidade de recepção, e são por ela aperfeiçoadas
de acordo, de modo que alguns nela tomam parte “apenas para que possa existir, outro o faz
para que possa viver, ainda outro para que possa conhecer, e outro para [obter] todos [esses
três]” (De. Dec. Dub., 23.3-6). Ainda, portanto, que o Princípio se faça diretamente presente a
cada um, a variação na potência de receptividade dá origem a uma hierarquia:
[o Bem] secretamente e inefavelmente, antes de todas as ordens, irradia todos com sua
própria dádiva, e eles tomam parte do bem diferentemente de acordo com sua própria
posição [ontológica] e de acordo com sua natureza, alguns menos e outros mais
claramente, alguns de maneira mais unificada e outros de maneira mais dividida, alguns
eternamente, mas outros sujeitos à mudança. Aqueles que são mais divinos, como eles
possuem o ser de maneira indivisa, assim também eles possuem o bem unificadamente
e indiviso; mas aqueles que procederam mais distante dos primeiros princípios
asseguraram o bem em notável diferença e divisão ... (In Alc., 181.19-182.6)
Não apenas o Intelecto, portanto, mas também o Uno/Bem irradia a si mesmo a todos
os seres e os “possui” desde o interior pela sua efusão, concedendo-os pura unidade e huparxis
ou existência indeterminada (MACISAAC, 2001, p. 191), movendo-os a determinarem para si
mesmo a sua própria forma peculiar de ser através de sua própria autorreflexão triádica de
manência-processão-retorno. Assim, cada ser espiritual é nada mais que sua ‘receptividade’
(’επιτηδειότης) do Uno, entendida não como mera passividade mas como “poder ou agência

149
Trouillard (1972, pp. 76-77) aponta que “empregar este termo leibniziano não é cometer um anacronismo, mas
assinalar uma fonte neoplatônica de Leibniz, também reconhecida por ele”. De fato, Dodds (1963, p. 264) já havia
observado que essas ideias de Proclo teriam sido absorvidas por Dionísio Areopagita, posteriormente reaparecido
em Giordano Bruno, e recebido uma ressignificação por parte de Leibniz. Poder-se-ia pensar também, além disso,
na posteridade que teve no Idealismo Alemão.
190
instrumental”, a maneira peculiar pela qual recebe e contempla o Princípio de todas as coisas
em si mesmo. Os diferentes modos pelos quais cada classe de seres recebe e determina o Bem
para si constituem diferentes modos de ser autárquico, pois, concedendo a si mesmo a todos os
seres e os “possuindo” por efusão, o Bem a todos move no sentido de despertarem sua própria
autossuficiência na medida de sua capacidade de recepção. “O Uno”, diz Proclo, é “causa de
todas entidades autoconstituídas” (In. Parm., VII, 1150.17), pois as confere existência através
delas, de maneira intrínseca, através da autorreflexividade própria de cada uma; ou como o
coloca Plotino, “o Bem é o primeiro a ser tal qual é por si mesmo, ele pelo qual as outras coisas
são também capazes de existir por elas mesmas” (tr. 39 [VI.8], 13, 25-26).
Assim, “a autoconstituição é a definição neoplatônica da substância” de modo que “o
ser não é inteligibilidade toda objetiva, mas autoafirmação” (TROUILLARD, 1972, p. 83), pois,
caso contrário, se o ser não fosse autoconsciência que põe a si mesma, ele seria matéria, i.e.,
exterioridade a si, ao invés de presença para si. Neste sentido, temos uma hierarquia de tipos
distintos de autarquia, de acordo com a capacidade de receptividade de cada classe de seres
(ibid., 1982, p. 190):
O Bem Além da autarquia
As henadas150 Autárquicas por si mesmas
Os intelectos Autárquicos por participação
As almas Autárquicas por iluminação
O universo Autárquico por assimilação
Os corpos Abaixo da autarquia151
Uma série de ordens autárquicas impede que a processão dos seres a partir do Uno seja
concebida como um mero progresso “regido por uma lógica analítica, de forma que neste
processo não haveria nada de criação ou novidade, mas apenas explicação”; ao contrário,
evidencia-se não se tratar de um mero processo dedutivo, pois “cada ordem é uma totalidade
original” (TROUILLARD, 1982, p. 237).
No Fedro (247e-248e), Platão narra como as almas contemplavam a ‘Pradaria da
Verdade’ (o mundo inteligível) antes de nascerem, e que a diferença na profundidade e

150
As henadas são os deuses primordiais na teologia proclina, a respeito das quais falaremos no próximo
subcapítulo.
151
O Bem está além da autarquia por estar além da autorreflexividade, e os corpos estão abaixo da autarquia por,
precisamente, não possuírem a capacidade de refletirem sobre si mesmos. Isto faria deles os mais distantes do
Bem, e portanto maus, no pensamento de Plotino. Proclo, porém, entende que há uma espécie de semelhança por
oposição entre o Bem e a matéria, uma vez que ambos não são autárquicos nem autorreflexivos, o que é um modo
negativo de participação do último no primeiro. Os extremos se tocam: desta forma, a matéria não é má para
Proclo.
191
completude desta contemplação originária por parte das almas é o que funda a distinção de suas
naturezas. Segundo Reale (2014c, p. 97), “os melhores homens serão aqueles que mais viram e
contemplaram a Verdade. A vida moral depende estruturalmente da contemplação”. Cada
homem é aquilo que contemplou, e a variedade de aptidões a esta contemplação gera uma
verdadeira hierarquia espiritual na sociedade dos homens, organizada em nove níveis,
colocando o tirano em último lugar, e o filósofo, o músico e o amante em primeiro lugar como
aqueles que mais detêm a verdadeira contemplação. No Neoplatonismo tardio, com sua
característica escolástica, encontramos que algo desta concepção hierárquica do Fedro é
elaborada e desenvolvida para além de sua aplicação política (que parece ser o intento de Platão
na passagem original), alcançando até uma formalização teológica: toda a realidade será
entendida como uma ordem sagrada (hier[os]-arkhia) determinada pela profundidade e
completude da contemplação do Uno que constitui cada um.
Algo disso já aparecia em Plotino, para o qual as diferentes hipóstases (o Intelecto, a
Alma, a Natureza152) formavam uma hierarquia de níveis de perfeição na contemplação; mas o
que encontramos em neoplatônicos tardios como Proclo é de uma natureza mais complexa. Se
por um lado há um esquema hierárquico de hipóstases, por outro, a verdadeira dinâmica da
transmissão da efusão do Bem se dá através de uma barroca hierarquia de entidades espirituais
dispostas ao longo das hipóstases (e emergentes das hipóstases como a pluralidade numérica
emerge de uma mônada): henadas, deuses inteligíveis, deuses intelectivos-inteligíveis, deuses
intelectivos, almas divinas hipercósmicas, almas divinas hipercósmicas-encósmicas, almas
divinas encósmicas, almas daimônicas (anjos, daimons, heróis), almas particulares, almas
irracionais. Neste contexto, “toda entidade aspira pelo Bem” mas, de fato, dele “se aproxima
através ... de seu progenitor imediato” (VASILAKIS, 2014, p. 121), isto é, a entidade que o
precede na hierarquia dos seres. Desta forma, os seres espirituais são dispostos nesta hierarquia
segundo a perfeição de sua contemplação e posse do Bem em si, e mantém-se todos em relação
amorosa, de modo que os superiores amorosamente são providentes, transmitindo a efusão do
Bem àqueles que os procedem, e os inferiores se voltam amorosamente àqueles que os
precedem – tal qual se dá na relação entre mestre e discípulo, como aquela entre Sócrates e
Alcibíades. Assim, a hierarquia dos seres espirituais é uma efusão contínua do Bem, uma ordem
sagrada cuja continuidade é o amor, e, assim, Proclo pode afirmar que “todas as coisas amam
umas às outras, se desejam umas às outras e estão unificadas umas com as outras por uma união

152
A Natureza ou Alma-do-mundo é considerada uma hipóstase por alguns, enquanto outros lhe negam esse
estatuto.
192
eterna; elas possuem um amor inteligível, uma comunhão e uma associação inefável” (apud
BEZERRA, 2006, p. 110).
Ora, a contradição que havíamos apontado, entre autoconstituição e derivação, toma
agora outro contorno, e é traduzida numa outra contradição: aquela entre a monadologia, o
acesso direto da alma ao Uno graças à sua manência, por um lado; e a hierarquia, o acesso da
alma ao Princípio através da mediação dos seres espirituais que a precedem, de outro. Trouillard
(1972, p. 108) recapitula essa antinomia, afirmando que “segundo Proclo, a efusão processiva
é ao mesmo tempo imediata e hierárquica. Não contente em comunicar diretamente com todos
seus princípios e singularmente com o Uno, cada derivado recebe participação dos mais
elevados através da mediação dos mais próximos”. Isso é possível pois o Uno é o centro mais
profundo de todos os seres, e a presença providencial de cada ser àquele que o procede se dá de
maneira intrínseca, de modo que participação imediata e mediata no Princípio se harmoniza
numa hierarquia interiorizada. Tomando apenas a série das processões hipostáticas, Trouillard
(1972, pp. 76-77) assim sistematiza a sua tese acerca das duas maneiras simultâneas pelas quais
a processão da alma pode ser vista em Proclo:

O centro mais profundo da alma coincidindo com o centro de todas as coisas (o Uno),
em sua autoconstituição ela procede de seu próprio centro inefável passando por todos os
intermediários (TROUILLARD, 1982, p. 124), como uma recapitulação espontânea da
processão inteira (ibid., 1972, p.8), de modo que “proceder de causas transcendentes e proceder
de si mesma são uma e a mesma coisa” (ibid., 1982, p. 129). A alma se volta a seu princípio e

193
suas causas ao voltar-se a si mesma (ibid., p. 98); o conhecimento de si é, para a alma, sua via
de acesso ao divino.
Por outro lado, ainda é possível falar de uma transmissão hierárquica de efusão do
Princípio através das hipóstases, ainda que a atuação ou presença do superior ao inferior seja
intrínseca. A relação que se estabelece entre elas é tal que cada uma contém as demais sob uma
forma distinta: por exemplo, as hipóstases superiores contêm em si a alma, de modo
paradigmático ou causal; enquanto a alma as contém em si de modo imagético – e, por sua vez,
também contém em si o mundo sensível de modo paradigmático. Vejamos uma passagem
relevante de Proclo a este respeito:
Tudo que subsiste de qualquer maneira tem seu ser ou em sua causa, como uma
potência originativa; ou como um predicado substancial; ou por participação, sob o
modo de uma imagem. Pois ou nós vemos o produto como pré-existente no produtor
que é sua causa (pois toda causa compreende seu efeito antes de sua emergência, tendo
primariamente o caráter que o último tem por derivação); ou nós vemos o produtor no
produto (pois o último participa em seu produtor e revela em si mesmo por derivação o
que o produtor já é primariamente); ou então nós contemplamos cada coisa em sua
própria estação, nem em sua causa nem em seu resultante (pois a causa tem um modo
superior, seu resultante um modo inferior de ser do que si próprio, e além disso deve
certamente haver algum ser que é próprio) – e é enquanto predicado substancial que
cada um tem seu ser em sua própria estação. (El. Th., prop. 65)
Cada ordem do ser é, nesta luz, uma verdadeira totalidade, como por exemplo:
Se, portanto, o Intelecto é todos os seres sob o modo intelectual, a Alma é todos sob o
modo psíquico. Se o Intelecto é todos sob o modo exemplar, a Alma é todos sob o modo
de imagem. Se o Intelecto é tudo de modo concentrado, a Alma é tudo de modo dividido.
(In. Euclid., 16, 9-16)
Tal concepções metafísicas nos remetem ao pré-socrático Anáxagoras, o qual
compreendia que em tudo o que há, há a presença da totalidade dos ingredientes básicos que a
tudo compõem, de tal modo que as coisas se diferenciam entre si não porque são constituídas
de maneira distinta, mas porque em cada uma delas há uma predominância maior de um ou
outro ingrediente. Como por exemplo, uma pepita de ouro é predominantemente ouro e
minoritariamente ferro, enquanto ferro é predominantemente ferro e minoritariamente ouro
(MCKIRAHAN, 2013, p. 341), e assim por diante, de tal modo que “todas as coisas estarão em
tudo” (fr. 13.6), “em todas as coisas há uma porção de todas as coisas” (fr. 13.11), uma tal
declaração da onipresença de tudo em tudo que “as coisas em um único cosmos não são
separadas umas das outras, nem são podadas com um machado, nem o quente do frio, nem o
frio do quente” (fr. 13.8). Assim, não há em nenhuma parte algo que deixa de ser ou vem a ser,
194
mas apenas uma transformação da predominância dos ingredientes constituintes: o pão que
ingerimos não deixa de ser ao se transformar em ossos, sangue etc; ele já continha ossos e
sangue em si anteriormente, e agora essas porções vêm à tona, enquanto a porção de pão tem
sua predominância reduzida.
O pensamento metafísico de Proclo parece possuir uma continuidade estrutural com esse
de Anaxágoras, porém espiritualizado, como a fórmula que sintetiza todo o pensamento
metafísico proclino o demonstra: “Todas as coisas estão em todas as coisas, mas em cada uma
de acordo com sua própria natureza” (El. Th., prop. 103), algo que Plotino já havia afirmado
acerca do mundo inteligível153, e que em Proclo se torna o princípio ordenador de toda a
metafísica. A passagem de uma hipóstase à outra na processão dos seres não constitui, nessa
luz, nenhum vir a ser ou deixar de ser, mas é a mesma totalidade que se encontra em todas as
partes, mas em cada uma segundo a ‘predominância’ da natureza que lhe é própria.
É assim que a alma autokinética ou sujeito racional autodeterminado proclino não é um
indivíduo atomizado e sim uma singularidade do Todo, de forma que o Todo vive nele
intrinsecamente como constituinte de sua própria essência, e sua autonomia é o próprio Todo
determinando-se a si mesmo segundo esta forma singular que é a alma. Isto é possível devido
à já mencionada “monadologia proclina”, a manência (mané) que porta “o mistério do Uno no
coração dos seres” (TROUILLARD, 1972, p. 91). Em outras palavras, o self em Proclo será
radicalmente marcado tanto pela concepção subjetiva-individualista quanto a objetiva-
participativa, mas de forma que a segunda seja interiorizada à primeira e não o contrário – o
que poderia ser visto como um desenvolvimento último da concepção invertida das esferas do
público e do privado, tratada no subcapítulo anterior.
É nesta máxima metafísica, de que “todas as coisas estão em todas as coisas, mas em
cada uma de acordo com sua própria natureza”, que encontramos a chave para a compreensão
de outra máxima proclina: de que “o conhecimento é determinado de acordo com o caráter do
conhecedor” (Dec. Dub. 7.45-50), ou o “conhecimento varia de acordo com a natureza do
agente do conhecimento”, sendo que o objeto é conhecido “de uma maneira superior por
agentes superiores, e numa maneira inferior por aqueles mais inadequados” (In Parm., 957.13-
15). O que isso de fato quer dizer não é que todo conhecimento é uma mera perspectiva
subjetiva das coisas, mas que, uma vez que cada ser espiritual ou cognoscente é todas as coisas

153
“...cada uma das partes [do Intelecto] que se considere é o todo, mesmo se provavelmente sob um modo
diferente: pois, em ato, ela é esta parte, enquanto que em potência ela pode tudo ser” (tratado 38 [VI.7], 9, 33-35).
Ver também tratado 31 [V.8], 9.
195
sob a sua forma específica de ser, ele é capaz de, conhecendo-se a si mesmo, conhecer todas as
coisas à sua própria maneira, segundo o modo em que elas se fazem presentes nele.
No caso da alma, isso significa que ela, conhecendo a si mesma ao projetar as suas
próprias razões essenciais, conhece todos as realidades a ela superiores sob o modo de imagem
discursiva, e conhece todas as coisas que lhes são inferiores sob o modo de paradigma. Isto é o
que MacIsaac (2001, p. 107) chamou de “natureza metafórica” do pensamento racional em
Proclo. Ele diz:
... no sistema de Proclo, todo o raciocínio filosófico sobre qualquer coisa outra que a
Alma é feito através de metáfora. O pensamento discursivo (dianoia) apreende o
Intelecto (Nous) porque apreende a si mesmo como sua imagem, e assim conhece o
Intelecto através de uma imagem. Da mesma forma, o pensamento discursivo conhece
o Corpo ao inspecionar ele próprio como o princípio do corpo. Esta natureza metafórica
do discurso filosófico é um aspecto do sistema de Proclo que não é enfatizado o
suficiente na literatura. Eu estou usando o termo metáfora num sentido bem preciso. Por
metáfora eu quero dizer uma maneira de falar em que uma ordem da realidade é usada
para descrever outra ordem da realidade. Colocando-o de outra forma, entendimento
metafórico é o entendimento de uma ordem da realidade através de outra ordem da
realidade, seja através de uma imagem ou de um paradigma. É claro a partir de nosso
estudo que a apreensão que o pensamento discursivo possui do Intelecto e do Uno, e do
Corpo é desta espécie de conhecimento metafórico.
Estas metáforas, porém, não devem ser entendidas como não possuindo valor de
verdade. Assim como em Plotino o discurso “metafórico” ou analógico acerca do Uno nos
desperta à sua presença sem que o próprio Uno seja reduzido ao discurso a seu respeito, e o
falar sobre si é um falar de si como modo de falar do Uno, assim também em Proclo, o
pensamento discursivo a respeito de qualquer coisa é um falar de si como modo de falar dela,
um discurso que nos desperta à sua presença sem reduzí-la ao discurso a seu respeito. Além do
mais, a própria ontologia proclina, com suas interrelações de paradigmas e imagens, sustém de
algum modo que as próprias realidades possuem relações analógicas entre si, o que torna o
discurso analógico o único verdadeiro.
Uma importante consequência disso é que toda a obra de Proclo deve ser entendida
como metáfora, ou “uma coleção de logoi metafórico” (ibid., p. 111). A relevância deste ponto
na compreensão da sua obra, e de certa forma da sua compreensão da própria filosofia, é assim
ressaltada por MacIsaac (ibid., pp. 111-113):
Uma importante característica da metáfora é que uma metáfora manifesta aquilo a que
se refere de uma maneira parcial. O pensamento discursivo produz uma imagem
dividida. A fonte que o pensamento discursivo projeta na probolê tôn ousiôdôn logôn é

196
gerador de uma multiplicidade de imagens, cada uma das quais manifestam uma
perspectiva distinta, ou um aspecto da sua fonte [intelectiva] unificada. Se este é o caso,
o corpus proclino, enquanto pensamento discursivo, deve exibir as características de
uma imagem dividida. Este de fato é o caso. Ele nos presenta com um número distinto
de estilos de obras e a ênfase de cada obra é levemente diferente. Essa diversidade de
estilo e conteúdo reflete o fato de que para Proclo cada obra é uma projeção dos logoi
que são imagens do Intelecto. Seu estatuto enquanto projeções, como imagens que são
uma tradução do nível do Intelecto à Alma, dita que elas serão sempre parciais. Elas
podem sempre ser suplementadas por um tratamento que traz à tona um aspecto que não
havia sido projetado ainda. [...] A virtude de realizar que o pensamento discursivo é
metáfora, é que isto te permite ser feliz com descrições discursivas da realidade,
enquanto realizando suas limitações, e enquanto realizando que elas podem ser
suplementadas por outras descrições que enfatizam aspectos da realidade deixados de
fora nas [descrições] iniciais. [...] De fato, de acordo com a teoria do conhecimento de
Proclo, toda a história da filosofia é uma coleção de metáforas sobre a realidade.
Novamente, isto não significa que elas não possuem verdade. O que isto significa é que
o pensamento discursivo parcela sua verdade através de perspectivas divididas.
Esta limitação intrínseca ao pensamento discursivo, uma vez reconhecida, é a própria
garantia do seu valor de verdade – aquilo que, no contexto da via da dialética descendente em
Platão, foi dito como o poder que formas relativas de conhecimento possuem de expressar mais
do que contêm quando reconhecem sua própria relatividade.
A filosofia, assim como outras atividades discursivas da alma, é um círculo cujo fim
nunca coincide com o seu princípio, e segue portanto dando voltas sem fim ao redor da intuição
central que é ponto de partida de seu discurso. Como diz Proclo em resposta a um
correspondente, “as questões que você faz são sobre problemas que têm sido discutidos mil
vezes e nunca, em minha opinião, cessarão de desafiar a alma a investiga-los” (De Prov., 1.12-
14). Porém, não é o caso que, por seu discurso nunca encontrar sua conclusão definitiva, a
história da filosofia seja uma mera repetição sem fim do mesmo: o movimento de autorreflexão
da alma sobre sua própria essência é um helicoide que não é a pura regularidade do movimento
circular, como nos seres intelectuais, e nem a pura irregularidade do movimento linear, como a
dos seres naturais. O modo temporal específico pelo qual a alma é autorreflexiva – a projeção
de suas razões – faz com que seu movimento seja, como o movimento do próprio tempo,
helicoidal ou espiralado: uma síntese de circular e linear (TROUILLARD, 1982, pp. 183-184).
Isto significa que é possível (embora não necessário) que a história da filosofia seja marcada
por uma espécie de expansão do escopo e da precisão de seu discurso, o que deve ser entendido
não como um movimento de progresso (linear) nem como uma posse imutável de sua intuição

197
(circular), mas como um movimento temporal de desdobramento discursivo da intuição
originária que é, ao mesmo tempo, um retorno constante àquela intuição.
Uma impressão de progresso, neste contexto, não pode levar a entender que a razão
eventualmente alcançará, na história do seu movimento de desdobramento discursivo, alguma
realização ou posse plena da intuição ao redor da qual gira. O pensamento racional, por sua
própria natureza discursiva, é um círculo cujo fim nunca encontra o começo, que nunca esgota
a fertilidade infindável das intuições das quais parte, e que por sua natureza metafórica nunca
pode reduzir o objeto de seu discurso ao próprio discurso. Isto significa que temos, em Proclo,
uma combinação dos modos apofático e catafático de discurso em todo o pensamento, não
apenas no pensamento acerca do Uno. A alma é um logos, e enquanto tal é incapaz de completar
o círculo da autorreflexão sobre a iluminação (ellampsis) intelectual que constitui sua essência,
e apenas apreende a pura unidade do Uno sob a forma racional da apercepção. Ela sempre
existe, portanto, num modo inferior de ser em relação àquele das hipóstases superiores, e só lhe
é possível uma posse plena daquilo a que aspira ao abandonar seu próprio modo psíquico de ser
e assim repousar na transcendência silenciosa da intuição intelectiva – e, mais além, na união
com o Uno.
As limitações intrínsecas da alma, seu modo inferior de ser em relação às hipóstases que a
precedem, não implicam, porém, que ela não tem acesso algum aos modos de ser superiores
àquele que lhe é próprio: uma vez que em sua autoconstituição ela é uma recapitulação
intrínseca e espontânea de toda a processão dos seres, ela não é apenas alma mas “Uno-Ser-
Vida-Inteligência-Alma”, ou todas essas coisas sob a forma da alma, como vimos no esquema
monadológico da processão. Em seu próprio modo discursivo de ser ela só possui esses
princípios superiores que a habitam de maneira discursiva; mas quando a alma “despe sua
atividade divisória, e é contente apenas com a unidade de seu centro, então a alma passou do
pensamento discursivo ao Intelecto” (MACISAAC, 2001, p. 85). Isto é, quando a alma passa
do discurso ao silêncio, ela se recolhe no seu centro e passa a um modo de ser superior ao seu
próprio, sem que deixe ontologicamente de pertencer à província metafísica da alma. Isto é
possível porque embora seja alma segundo a essência, ela não é apenas sua essência: segundo
sua huparxis ou pura existência indiferenciada ela é, também, a presença do Intelecto e do Uno
nela, que constituem, respectivamente, aquilo que Proclo denomina “a flor do intelecto” (anthos
nou), a “parte mais elevada da alma” (akrotaton tês psukhês); e “a flor da alma” (anthos tês
psukhês), a “huparxis da alma” (huparxis psukhês). Através destas é possível que a atividade e

198
o modo de existência próprio à essência da alma racional seja silenciado, e que ela participe de
um modo superior de existência.
O acesso transcendente ao que está acima dela na ordem da realidade também é possível e
desejável, em Proclo, assim como o era em Plotino. Mas nisso, assim como em outras coisas,
Proclo traz algumas nuances e precisões que podem complementar nossa compreensão acerca
da ascensão contemplativa plotinianas, principalmente no que diz respeito ao caminho como
um todo da paideia a que a alma precisa ser submetida, e à sua completude do movimento de
ascensão no retorno à sua província pelo movimento de descida.

4.2 (I) Cultura e (II) Filosofia no Caminho da ascensão da Alma

No diálogo Alcibíades I, como havíamos visto no segundo capítulo, o jovem pupilo é


exortado ao conhecimento de si e ao cuidado de si, sob a direção espiritual e erótica do mestre
espiritual Sócrates, de forma que esse conhecimento de si conduza, por fim, o pupilo ao
conhecimento de Deus. Conhecimento e cuidado de si se associam intimamente devido ao fato
de que a alma não é capaz de ver-se a si mesma senão através de um espelho; do ponto de vista
proclino, isso significa que é necessário que ela projete suas razões sob a forma de saber e
virtude, e deste modo conheça a si mesma. Assim, como vimos, Proclo compreenderá as ações
e as produções (internas e externas) da alma como sendo meios através de cuja mediação a alma
conhece-se a si mesma; reconhecer isso é passar de um modo heterokinético a um modo
autokinético, ou passar do modo natural de ser a um modo racional: esse é o próprio significado
da educação filosófica da alma. Porque seu conhecimento de si é mediado pelas projeções de
suas razões, as ciências são produções, autocriações da alma, pela mediação das quais é capaz
de conhecer os logoi que constituem seu saber inato, a sua iluminação intelectiva essencial; e
as ações são também autocriações da alma, através das quais ela pode vir a conhecer os logoi
que constituem suas virtudes inatas. Como um legítimo socratismo, a unidade das ciências e

199
das virtudes aqui declarada se revela, portanto, uma via dupla de conhecimento de si, cuja
culminação está na união com os princípios divinos que “possuem” a alma desde seu interior.
A filosofia será, portanto, uma paideia que consiste no cuidado de si através de uma escada de
saberes e virtudes destinada ao conhecimento de si.
Também aludi ao fato de que, para Proclo, é possível e desejável, assim como em
Plotino, o acesso ou a passagem transcendente a um modo de ser superior ao da alma, uma
forma de união com as hipóstases superiores, o que é possível devido ao fato de que essas
habitam o cerne da alma. Conhecer-se a si mesma em seu sentido mais profundo, para a alma,
significa também acessar o Intelecto e o Uno/Bem. A culminação da educação filosófica, do
resgate da autokinêsis da alma, deve ser o conhecimento ou assimilação ao Divino. O caminho
neoplatônico seria, assim, uma passagem da vida irrefletida ordinária à vida refletida da
filosofia, e desta, às causas divinas que a tornam possível. E isto se dá sob a direção de um
mestre espiritual, uma vez que, como o coloca o neoplatônico Simplício (apud GRIFFIN, 2013,
p. 2), a alma “necessita alguém que já viu a verdade, quem através de expressão verbal (foné)
... (a) move”. Assim, a doutrina da projeção (probolê) em Proclo, posta como o modo
autokinético próprio da existência da alma racional, é intermediária entre a heterokinêsis natural
e a transcendência divina, através da qual Proclo alcança uma “unificação de abstração e
inatismo, de produção e contemplação, de raciocínio e iluminação” que nos guia a um caminho
de “autoconhecimento levando à mais elevada união que a religião busca” (HANKEY, 2005a,
p. 53). Assim, Proclo
… fez esta projeção, ou auto-criatividade, essencial para a ascensão à contemplação e
união. Consequentemente, a hierarquia das ciências é uma anagogia. Proclo é o grande
sistematizador das ciências para o propósito do autoconhecimento levando ao
conhecimento de Deus, criando uma escada de ascensão espiritual que perdurou até que,
nos séculos dezessete e dezoito, foi desconstruída em prol do que chamamos ciência
moderna. (ibid., p. 54)
Reconhecendo esses três níveis possíveis de existência – natural, racional e espiritual –
, porém, faz com que seja necessário à paideia neoplatônica tardia incorpore elementos extra-
filosóficos. Isto é, poderíamos falar de três estágios distintos da educação neoplatônica da alma:
pré-filosófico, filosófico e supra-filosófico154. Sugiro chamá-los de Cultura, Filosofia e
Sabedoria, de maneira aproximada ao que aqui explica Bourgeois (2004, p. 355):

154
Por esta razão, me parece mais apropriado dizer que esta caminhada anagógica se dá não em uma escada de
ciências, mas de saberes, uma vez que só alguns de seus degraus são, propriamente, ciência – alguns estando
abaixo, outros acima da ciência. De qualquer modo, preserva-se a unidade socrática entre saberes e virtudes.
200
Cultura, filosofia, sabedoria: estas são, nessa ordem, segundo um julgamento tradicional
bem estabelecido, especialmente entre os filósofos, as etapas da realização crescente,
pelo homem, de sua humanidade, isto é, do domínio libertador de sua inserção pensante
no ser, primeiro vivido naturalmente na submissão imediata. A cultura, sob todas as
suas formas, da técnica à religião, identifica a natureza em um mundo que, mediante a
força de sua linguagem, é assimilado em sua virtude unificadora pelo indivíduo então
elevado à identidade a si de um Eu. Mas essa unificação mundana do Eu acaba por se
mostrar, na própria reflexividade cultivada deste, como um Eu inculcado, objetivo,
diferente do Eu que, como um sujeito, em sua identidade então plenamente assumida,
quer ser a razão de tudo o que preenche sua existência propriamente humana; o Eu que
se dedica a resolver esse conflito doravante interiorizado na reflexão é o Eu tornado
filósofo. No entanto, a perfeita reconciliação consigo do homem não parece poder ser
alcançada na interioridade ainda ruidosa da inquietude reflexiva que constitui a filosofia
como simples desejo ou amor da sabedoria. É no repouso silencioso do Eu meditativo
do sábio que a unidade total do ser estaria presente a si mesma, revelada na auto-
superação intuitiva do verbo.
De fato, se Hankey (supracitado) tem razão em chamar Proclo de “o grande
sistematizador das ciências para o propósito do autoconhecimento levando ao conhecimento de
Deus, criando uma escada de ascensão espiritual” que durou até o século XVIII, é razoável que
o “julgamento tradicional bem estabelecido” acerca da tríade Cultura-Filosofia-Sabedoria seja
associado ao Neoplatonismo Tardio. Ainda, sugiro que esses três níveis da paideia neoplatônica
poderiam hipoteticamente serem associados, respectivamente, a certas linhas gerais que
compõem a mentalidade das três formas de religiosidade helênica discutidas no primeiro
capítulo: olímpica, filosófica e mistérica. Pois a Cultura é uma educação da alma mortal
heterokinética, na sua condição de membro da ordem cósmica que se define por sua taxonomia,
seu lugar ou província no todo e sua submissão ao destino; a filosofia é a religião da razão, o
retorno da alma à sua condição imortal autokinética, a recobrada da consciência de ser todas as
coisas sob a forma específica da razão, bem como a busca da verdadeira piedade através de uma
vida que cultiva a virtude; e a sabedoria é a “iniciação nos mistérios”, o êxtase, a transcendência,
o ingresso ao modo de vida que pertence aos deuses. Nenhum desses níveis elimina o outro,
mas constituem andares do edifício da educação neoplatônica da alma, e que, portanto,
idealmente devem coexistir.

201
Estes três grandes estágios da paideia correm paralelamente à escada neoplatônica das
virtudes. Cada nível de virtude corresponde a um modo de vida155, a um nível de conhecimento
de si, e a faculdades cognitivas e vivíficas. Griffin (2015, pp. 38-39) chama a atenção para essa
identidade entre níveis de virtude e níveis de self no pensamento do neoplatonista tardio
Olimpiodoro:
... Olimpiodoro descreve cada uma dessas formas de excelência filosófica como um
modo de vida, seguindo Damáscio em falar de uma ‘pessoa cívica’, ‘uma pessoa
purificatória’, uma ‘pessoa contemplativa’, e uma ‘pessoa inspirada’, que vive suas
respectivas vidas, definidas por Olimpiodoro (seguindo Damáscio) como a alma usando
um corpo como instrumento (cívica), a alma refletindo sobre si mesma (purificação), a
alma refletindo sobre seus melhores (contemplativa), e a alma num estado de união com
o divino (inspirada).156 Isso, eu penso, deveria ser considerado no contexto da tradição
precedente. […] No tratado sobre o daimon a nós atribuído (3.4), Plotino […] [diz que]
é uma ‘escolha’ (prohairesis) da alma – que contém todas as coisas potencialmente –
‘energizar’ ou ‘praticar’ uma vida particular (3.4.2-4): a vida vegetativa, a vida
apetitiva, a vida irascível, a vida racional, a vida intelectual, ou a vida divina.
Dependendo de sua escolha, sua existência pós-morte será aquela de uma planta, um
animal, um homem, um daimon, ou um deus. Portanto o objetivo é similitude a deus
(homoiosis tôi theôi), isto é, alcançar deificação nesta vida para assim permanecer um
deus na próxima. Mas o primeiro passo é nos elevar, ou ‘escapar’ (pheugein, c.f.
Teeteto, 176a8-b1), da vida da natureza e percepção à vida da alma racional (logikê
psukhê), reconhecendo que isso é o que o ser humano (anthrôpos) é (3.4.2, 12). A vida
da alma é mais autenticamente ‘nós’ do que qualquer coisa perceptível, que é num
sentido um reflexo da atividade da alma (5.1.2). O Neoplatonismo Ateniense tardio,
preservado em Proclo, sistematizou este desenvolvimento, apresentando uma sequência
de autoconhecimento, cuidado de si, e ultimamente união com o divino – iniciando pela
realização de que o ser humano é a alma racional.
Trata-se de uma sistematização de todo o percurso da educação da alma, que consiste
num sofisticado desenvolvimento das exortações socráticas ao autoconhecimento e ao cuidado
de si. Esta nos oferece acesso privilegiado à metafísica neoplatônica em si, uma vez que, ao
contrário do aparente excesso de abstrações que seu estudo meramente dialético parece sugerir,
aproximar-se dela a partir de uma escada de níveis de self, virtudes e saberes imediatamente a
traz vida. E essa é, de fato, uma característica importante da metafísica neoplatônica: ela não é

155
“A ζωή, a ‘vida’ ou ‘forma de vida’, é um termo técnico neoplatônico que designa, em relação à alma, a sua
maneira de estar em movimento ou em ação ou, como o explica Hermias em seu comentário sobre o Fedro de
Platão, a alma sob o aspecto do movimento.” (HADOT, 2004, p. 104).
156
Segundo a versão mais completa da escada das virtudes, encontra-se omitido, aqui, os níveis pré-filosóficos
(natural e ético) e o nível da virtude/pessoa ‘paradigmática’, que está entre a contemplativa e a inspirada.
202
meramente uma rede de conceitos que representam algo real “lá fora”, mas que desvelam a
própria estrutura mais profunda do sujeito que conceitua e sua integração intrínseca com o Real.
Como o coloca Chlup (2012, p. 137):
Para os neoplatônicos ... a estrutura ontológica da realidade não é apenas algo
permanecendo ‘lá fora’ como um sistema externo de hipóstases no qual somos postos.
É também algo a ser subjetivamente realizado dentro de cada um de nós por um
processo progressivo de cognição. O objetivo último é alcançar total harmonia entre a
realidade psíquica interna e a realidade metafísica externa: ajustar todas as moções da
própria alma às correntes de energia fluindo ‘lá fora’, para que se possa ser capaz de
com elas dançar em uníssono, realizando o que Platão conhecidamente denominou
‘assimilação a deus na medida do possível’.
Esta “escada” educativa neoplatônica possui, ainda, poder enquanto ferramenta
hermenêutica na leitura dos diálogos platônicos, que nas mãos dos filósofos neoplatônicos é
capaz de propor uma forma de harmonizar as disparidades do corpus platônico ao localizar cada
diálogo em seu lugar apropriado na escada. Assim, como já havia aludido no capítulo anterior,
prioriza-se uma ordem pedagógica ao invés de uma ordem cronológica para os diálogos. Ainda,
não apenas os diálogos platônicos podem ser harmonizados através desta ferramenta, mas até
mesmo o legado de outras escolas filosóficas concorrentes podem ser assim incorporados em
um contexto neoplatônico, e mesmo, elementos extra-filosóficos da cultura helênica em geral,
atribuindo a cada um destes um lugar no todo157.
A primeira versão dessa escada de progressão da paideia neoplatônica foi formalizada
por Porfírio, em quatro estágios, e desenvolvida em mais detalhes no decorrer da tradição.
Baseado na versão da escada das virtudes que aparece em Olimpiodoro, por ser a mais completa
que nos foi legada, e visando oferecer uma visão integrada desses níveis de virtude,
conhecimento de si, faculdades cognitivas e vivíficas, bem como estágios da paideia, proponho
a seguinte tabela158:

157
Não por acaso o Neoplatonismo se tornou “a filosofia” helênica nos séculos em que esteve vigente, uma vez
que sua capacidade católica de absorção reuniu em si as mais variadas correntes de pensamento helênico. Filósofos
neoplatônicos tardios escreviam comentários a textos estoicos, aristotélicos, pitagóricos e outros. Esse catolicismo
neoplatônico inclui as religiosidades (olímpica e mistérica) helênicas, uma vez que diante do isolamento cultural
representado pelo avanço do Cristianismo, os filósofos neoplatônicos “tiveram que incorporar em sua filosofia um
número de características que haviam previamente existido independentemente como partes do meio cultural em
geral. A principal dessas características foi a religião: agora era um a incumbência do filósofo transmitir mitos e
levar a cabo os rituais” (CHLUP, 2012, p. 289).
158
Para esta tabela e suas explicações, partimos da escada das virtudes de Olimpiodoro, completada com outros
fatores que derivamos principalmente de Proclo, além de Porfírio e Simplício. Fontes secundárias que também são
usadas (ainda que dialogicamente) são: Hadot (2004), T. Addey (2011), Griffin (2015), Riggs (2015) e Baltzly
(2017).
203
Nível de Faculdade Estágio da
Virtude159 Cognitiva Faculdade Vivífica 160
Nível do self paideia
Natural Sentidos Apetite (epithumia) Alma irracional Pré-Filosófico
Ética Imaginação Irascibilidade (thumos)
Alma racional (voltada ao
Cívica / Política Opinião que dela procede) Filosófico
Alma racional (voltada a si
Purificatória Razão discursiva Escolha (prohairesis) mesma)
Razão Alma racional (voltada ao
Contemplativa intelectiva161 Intelecto que a precede)
Supra-
Paradigmática Intelecção Vontade (boulêsis) Intelecto (Suprapessoal) filosófico
Hierática /
Entusiástica Providência Providência (pronoia) Bem/Uno (Suprapessoal)

Neste subcapítulo, proponho realizar uma síntese dessa paideia, buscando apenas
assinalar algumas linhas gerais de cada um de seus estágios.

(I) Cultura

O homem natural, heterokinético, é marcado por três características: i) ele identifica-se a si


mesmo com o composto psicofísico, e assim crê que é mortal como ele; ii) seu eros pelo Bem
se dirige de maneira errônea ao prazer e à riqueza, tomando-os como o sumo Bem, de forma
que crê não possuir o princípio de bem-ser em si mesmo; iii) crê que a fonte do conhecimento
é o objeto externo, que o move extrinsecamente pela sensação, como se ele fora uma tábula
vazia a ser preenchida. Além disso, como nota Proclo (De dec. Dub., 3.3-6), as suas faculdades
cognitivas (sensação e imaginação) são de tal natureza que só têm cognição de coisas
particulares. Compreendendo a si mesmo como um corpo, com sua vida interna e externa
movida extrinsecamente, o homem natural é uma parte do cosmos, dominado por aquela causa
vital chamada natureza, que é responsável por mover e vivificar todos os corpos e que liga todas
as coisas umas às outras no espaço e no tempo – aquilo a que chamamos destino ou necessidade
(De Prov., 11.1-12.5). A existência do homem natural, portanto, é determinada pelo destino,
pela subserviência a Moira.

159
Em cada um dos níveis de virtude aparecem as quatro virtudes cardinais: Sabedoria, Coragem, Temperança e
Justiça. Porém, elas se manifestam de modo próprio a cada nível. Por exemplo, um instinto de sobrevivência pode
ser uma sabedoria natural, enquanto a excelência dialética seria uma sabedoria contemplativa. Alguns desses
modos de manifestação das virtudes cardinais serão precisados adiante.
160
Estas costumam serem chamadas, por vezes, de “faculdades apetitivas”, o que evito para não confundir com o
apetite (epithumia). São faculdades vivificantes, que dizem respeito à vida, isto é, ao dinamismo correspondente
ao seu modo de ser.
161
A razão iluminada pelo Intelecto, ou “intelecto discursivo” (In. Parm., 1025.27).
204
Por lidar com o homem natural, heterokinético, a característica mais fundamental deste
primeiro estágio educativo é que ele é realizado de maneira extrínseca, isto é, recebido de “fora
para dentro”, sem que o educado tenha compreensão plena da razão da educação que recebe.
Se ocupa do homem natural, o composto psicofísico. Ora, havíamos visto que Plotino distingue
entre a alma racional, que é incorpórea, e a alma irracional, que é parte do composto psicofísico.
Havíamos visto também que Proclo considera a segunda como uma irradiação (ellampsis) da
alma racional no corpo. Porém, há ainda uma precisão a ser feita: Proclo na verdade considera
que há duas formas de alma irracional. Temos assim, portanto, “três formas de vida
ontologicamente distintas: a alma racional humana, a alma irracional e a alma vegetativa”
162
(HADOT, 2004, pp. 106-107). A alma racional é imortal, automotriz, completamente
independente e transcendente ao corpo físico, ligada a um corpo luminoso (augoeidès soma)
igualmente imortal; a alma irracional é produzida pela alma racional, contém traços de
movimentos autônomos, é mortal porém de vida mais longeva que o corpo físico, pois é ligada
a um corpo pneumático que perdura enquanto perduram as transmigrações ou reencarnações da
alma, e que é destruído ao fim deste ciclo; a alma vegetativa, por sua vez, também é produzida
pela alma racional quando ela se une a um corpo, porém é completamente heterokinética, e
morre ao mesmo tempo em que o corpo morre (ibid.).

(a) Virtudes Naturais


Desta forma, ao precisar essas duas formas de existência irracional, encontramos que o
primeiro estágio da paideia compreende as virtudes naturais e éticas. As virtudes naturais dizem
respeito ao corpo vivificado pela alma vegetativa, à constituição e excelência física (phusikê
aretê), boas condições corpóreas – como saúde, força, perfeição da forma, etc. Essas virtudes
“são reflexos da razão quando a razão não é impedida por alguma desordem. Virtudes naturais
podem estar em conflito: e.g. a sabedoria natural pode estar em desacordo com a coragem
natural” (BALTZLY, 2017, p. 263). Cognitivamente e vivificamente correspondem, a este
nível, os sentidos e os apetites, sendo que Proclo caracteriza os apetites como sendo de duas
naturezas: uma que segue os temperamentos do corpo, sendo amante dos prazeres, e outra que
não segue os temperamentos do corpo, sendo amante das riquezas, de forma que ambos sejam
dirigidos à preservação do corpo, porém o amor pelas riquezas sendo superior na medida em
que demanda uma capacidade de abster-se de certos prazeres e confortos para que possa

162
Neste trecho, Hadot se refere à formulação acerca da alma realizada por Simplício. Porém, sua concepção a
este respeito segue aquela de Proclo, por que razão justificamos a citação.
205
acumular riquezas (MACISAAC, 2009, p. 135). É possível educar estas faculdades naturais de
certa forma, no sentido de fortalecer sua excelência e integrá-las à vida da alma racional, que é
o que a ginástica, além de certas dietas e abstinências visando a saúde, podem fazer segundo
Platão (República, 403c-404e). Segundo Proclo (In. Alc., 194.3-6), a educação física “pode
fortalecer a fraqueza do apetite sensível, chamando o que é brando ao vigor (uma vez que o
apetite sensível é o mais próximo ao corpo, e, como se fosse mortificado pela matéria, necessita
algo para fortalecê-lo e despertá-lo)”.

(b) Virtudes Éticas


As virtudes éticas, por sua vez, dizem respeito àquela alma irracional pneumática que
sobrevive à morte do corpo físico, e são estabelecidas através da imitação e da habituação. É
este o tipo de educação que jovens recebem quando imitam certos comportamentos, quando são
ensinadas certas crenças (corretas), ou então os hábitos que lhes são inculcados através das
restrições (dor) e encorajamentos (prazer) que recebe dos educadores para que aja de uma certa
forma. Essas virtudes “pertencem a ambos a razão à alma irracional simultaneamente”
(BALTZLY, 2017, p. 264), ou melhor, ao traço de razão que aquela alma irracional possui.
Além disso, “uma vez que as virtudes éticas não são reflexos que dependem de condições
corpóreas, elas não se chocam uma com a outra” (ibid.). Cognitivamente e vivificamente
correspondem a este nível a imaginação163 e a irascibilidade, que têm em comum o fato de ser
faculdades irracionais que possuem maior capacidade de desembaraçar-se do corpo e assim
aliar-se à razão. A irascibilidade (thumos), assim como o apetite, também se divide em duas:
uma que segue os temperamentos do corpo, e que consiste na raiva; a outra que não segue os
temperamentos do corpo e consiste no amor à honra (MACISAAC, 2009, p. 136), ligada à
vergonha e ao orgulho.
A educação nesse nível se dá principalmente através da música, no sentido amplo que
Platão a atribuiu na República: a música (propriamente dita) e a poesia, os mitos, a arte
dramática e outras formas de arte imitativa164, as quais contribuem à formação dos educandos

163
A faculdade da imaginação possui um estatuto bastante único no Neoplatonismo Tardio, bem diferente da
tradição grega em geral, e cujo legado é observável na tradição islâmica em pensadores como Ibn Sina, Ibn Arabi
e Sohravardi. Para Proclo, a imaginação, quando purificada, é uma espécie de intelecto passivo, capaz de dar forma
às verdades invisíveis, a dar voz às verdades inaudíveis etc. Possui um papel muito importante, portanto, em toda
a capacidade da alma em se relacionar com o transcendente, como em fenômenos mânticos e proféticos, mas
também em ciências como a geometria. Porém, esta operação da imaginação ‘purificada’ não é aquela que
encontramos neste nível; aqui, trata-se de uma imaginação ainda submissa à heterokinêsis, e não um espelho claro
no qual a alma projeta suas razões (como na geometria), ou no qual os deuses projetam suas revelações (como nos
fenômenos religiosos). Estas duas manifestações superiores da imaginação se dão em níveis posteriores de virtude.
164
Incluindo, como observa Griffin (2015, p. 32), a dimensão dramática/imitativa dos próprios diálogos platônicos.
206
“em matéria de costumes, proporcionando-lhes, por meio da harmonia, a perfeita concórdia,
[...] por meio do ritmo, a regularidade” (República, 522a). Assim, se aprende o amor ao belo,
que é o fim da música (403c). Proclo diz que “através da música eles [os jovens educandos]
podem relaxar a tensão e a ferocidade do temperamento e fazê-lo harmonioso e bem afinado,
uma vez que o temperamento é a tensão da alma” (In Alc., 194.6-8). Esse treinamento musical,
assim como em Platão, deve ser sempre equilibrado com o treinamento da ginástica
(mencionado no contexto das virtudes naturais):
Nem o treinamento físico sozinho é suficiente para a educação (uma vez que por si
mesmo, separado da música, torna a disposição daquele que o segue excessivamente
feroz, contencioso e intenso) nem música apenas sem o treinamento físico (uma vez que
aqueles que cultivam a música apenas tornam seus modos de vida efeminados e se
tornam um tanto brandos); mas, como numa lira, não deve haver nem tensão apenas
nem relaxamento, mas toda a alma deve ser afinada a si mesma pela combinação de
intensidade e relaxamento na educação. Essas práticas põem em ordem e treinam os
elementos irracionais dos jovens... (In. Alc., 194.9-17)165
Vale ressaltar, neste contexto, que não é o caso que o lugar relativamente inferior da
educação habituativa na escada da paideia neoplatônica o torna pouco relevante. Proclo, com
grande respeito, se refere ao hábito como sendo um poder extraordinário, não só entre os
homens mas em todo o cosmos. Em seu Comentário à República (XVI, 305.18 – 308.6), ele
diz que o hábito é o responsável por determinar a maneira de ser dos animais, o curso dos astros
(que são seres divinos), e entre os homens faz com que sejamos incapazes, justificadamente, de
nos afastar das tradições ancestrais “de coração leve”. Tudo aquilo que chamamos de leis – seja
política ou natural – são hábitos, e o que chamamos de hábitos são “leis dotadas de vida”. A lei
cósmica que o Demiurgo inscreve na alma do homem, e pela qual ele governa o cosmos, é o
próprio poder do hábito que está em todos os lugares. A própria natureza é uma alma irracional
cuja vida ou movimento é governado pela força do hábito. Os hábitos dos astros divinos, porém,
são sempre os mesmos, enquanto que os hábitos dos animais têm seu termo. As leis humanas
são verdadeiras na medida em que são imagens dos hábitos do cosmos, enquanto que as falsas
são degradações dos mesmos. Desta forma Proclo reinterpreta o sentido de “viver segundo a
natureza” como sendo uma exortação pertencente ao domínio da educação habituativa, e
implica que mesmo que possamos galgar níveis superiores de virtude graças à razão, o cultivo
do hábito verdadeiro sempre será necessário para “encarnar” a virtude no domínio da natureza.

165
Neste trecho, a seguir, Proclo adiciona ainda a matemática ao conjunto de ginástica e música, e comenta que
essas formam a tríade de atividades educativas que têm Hermes por patrono. Segue-se uma interessante análise
dos sete períodos da vida humana, governados pelos deuses planetários, respectivamente: Lua, Hermes, Aphrodite,
Sol, Ares, Zeus e Kronos.
207
Os jovens admitidos à educação neoplatônica podem ser educados segundo o hábito e a
crença correta através de um texto exortativo como Os Versos de Ouro de Pitágoras, como o
fato de o neoplatônico Hierócles tê-lo comentado demonstra. Além disso, os mitos têm sua
importância educativa neste contexto. Eles são, neste estágio, “nobres mentiras” (República,
414b-415d), estórias que são compreendidas literalmente por jovens incapazes de compreender
seu verdadeiro sentido, mas que ainda assim cumprem um papel de eficácia pedagógica,
treinando-os segundo hábito e opinião (correta) – pois as virtudes éticas são pré-filosóficas,
portanto extrínsecas, como vimos. Por esta razão, neste contexto educativo, é necessário que os
mitos apresentados aos educandos cumpram com certos requisitos, tais quais aqueles que Platão
discute na República, de forma que não introduza neles alguma confusão166. A poesia produzida
nesse nível natural ou pré-filosófico é naturalmente, portanto, de natureza mimética167: ela imita
e faz com que o educando imite. Tal qual a opinião (doxa) pode ser correta ou incorreta (sem
que deixe de ser opinião), assim também a imitação, segundo Proclo (In Remp., VI, 188.28-
192.3), pode ser fiel ao que imita ou infiel ou ilusionista, de acordo com a qualidade da opinião
que a informa. Enquanto a segunda se enquadra na crítica do livro X da República, segundo a
qual a poesia só tem por finalidade o prazer, a primeira ainda possui qualidade pedagógica neste
nível de educação habituativa pré-filosófica. Além disso, essa poesia também forma um modo
de educação da imaginação, o pensamento através de imagens, e que é a faculdade cognitiva
correspondente a esse nível de virtude.
A vida do homem natural, como disse anteriormente, é dominada pela determinação do
destino; pela heterokinêsis da vida sensitiva que, incapaz de refletir sobre si mesma, apenas
expressa o que a sensação anuncia; e pela confusão entre o prazer e o Bem. Mas através da
educação pré-filosófica da Cultura – ginástica, música, a habituação e a crença/opinião correta
–, fundações seguras são lançadas para que a alma galgue níveis de autoconhecimento e
liberdade superiores. Ele começa a ser preparado para a compreensão, anunciada por Platão
(Filebo, 67b), de que “o bem e o prazeroso não são idênticos, nem que todo o gado vote a favor
dessa visão” (De Prov., 46.11-13). Porém, ele não é capaz de averiguar por si mesmo se a
opinião que o guia é de fato correta – pois ele é extrinsecamente movido, e depende da
autoridade da tradição para avaliar sua correção.

166
Como por exemplo, que seja necessário que os deuses se portem, nos mitos, de maneira sempre virtuosa e etc,
servindo como modelo aos jovens.
167
Como mencionaremos adiante, porém, há para Proclo outros tipos de mito que não são adequados à educação
nas virtudes éticas, e mesmo leituras mais aprofundadas dos mitos em geral, que serão relevantes para os níveis
superiores de educação, nos quais o educando já possui maior capacidade racional e intuitiva para penetrar em seu
sentido.
208
Segundo Proclo, há seres que são sempre superiores ao destino, e seres que são sempre
sujeitos ao destino; mas a alma não está em nenhuma das duas categorias: sua natureza é ser
um entre, de modo que pode participar do modo de vida dos outros dois alternativamente.
Voltando-se ao corpo e ao irracional, vive junto com as coisas de baixo e é dominada pela causa
que reina sobre elas, como com “vizinhos bêbados”; voltando-se a si mesma e ao Intelecto que
a precede, é estabelecida além do domínio do destino (De Prov., 20). Ele diz ainda:
Não apenas Platão mas também os Oráculos [Caldeus] nos revelaram isso claramente.
Primeiro eles exortaram aqueles homens divinos que foram considerados dignos de se
tornar ouvintes daquelas místicas palavras: não olhe para a natureza; seu nome é
destino; e novamente: não contribua para reforçar o destino, cujo fim é o dia fatal; e
em todas ocasiões eles nos afastam de uma vida que segue o destino e é governada,
como eles dizem, junto com ‘o rebanho fadado’. Esses Oráculos nos removem da
percepção sensível e dos desejos materiais. [...] os Oráculos nos ensinam sobre a mais
divina vida e o regime imaculado, nomeadamente como aqueles podem ser finalmente
liberados de todo o regime do destino, quem compreende os trabalhos do pai e, como
eles dizem, escapam da implacável e fatal asa de Moira. 168 (De Prov., 21.1-18)
A educação promovida pela Cultura tem como propósito cultivar uma condição
virtuosa do ser natural, e é, além disso, o primeiro passo em direção ao estabelecimento da alma
em sua verdadeira natureza além do domínio de Moira, o primeiro passo para a recuperação do
seu estado supranatural ou racional, sua autokinêsis. Porém, essa forma extrínseca de virtude é
ainda bastante insatisfatória. No mito de Er, no livro X da República, Platão relata a estória de
um homem que residia no céu após uma vida de virtude adquirida segundo hábito, e que quando
teve que realizar sua escolha acerca de sua próxima vida, escolheu a pior e mais viciosa vida
possível (aquela do tirano). Como é possível que um homem virtuoso, habitante do céu no pós-
morte, fora capaz de uma tal escolha? Segundo Platão (República, 619b-d), sua “participação
na virtude se devia ao hábito desprovido de filosofia”, aquele tipo de virtude que, no Fédon
(87a-b), ele havia caracterizado como sendo derivada do “hábito e do treinamento sem filosofia
ou pensamento”, uma virtude que só é adequada a escravos (Fédon, 69b). Isto se dá porque
aquele que é treinado nas virtudes acompanhadas de Filosofia são aqueles que desenvolvem as
virtudes de modo intrínseco, autokinético, que, portanto, são dotadas de uma força e
permanência superior, uma vez que partem de escolhas racionais. Embora este primeiro estágio
da paideia neoplatônica seja necessário, deve galgar degraus que se encontram além daqueles
que pertencem às virtudes naturais e éticas, dirigindo-se às virtudes racionais cultivadas pelo
segundo estágio, a Filosofia.

168
Ênfases já presentes na tradução ao inglês, indicam citações dos Oráculos Caldeus.
209
(II) Filosofia

No período do Neoplatonismo Tardio, formou-se nas escolas neoplatônicas um currículo


filosófico que propunha uma ordem de leituras de textos filosóficos e uma hierarquia de
ciências, as quais conduziam os seus neófitos, ao longo do processo deste estágio filosófico da
paideia neoplatônica, num cultivo progressivo das virtudes (cívicas, purificatórias e
contemplativas) e das diferentes ciências. A hierarquia de ciências, formalizada por Siriano
(mestre de Proclo), seguia a seguinte ordem crescente: Medicina, Mecânica, Óptica,
Harmônica, Física, Geometria, Aritmética e Dialética (IERODIAKONOU, 2008, pp. 415-419).
Os cursos de leituras filosóficas do currículo de estudos, por sua vez, eram quatro
(SIORVANES, 1996, pp. 116-117):
1) O curso de estudos da filosofia aristotélica, que iniciavam pelo Isagogê de Porfírio,
em seguida as obras lógicas, o Organon de Aristóteles (as Categorias, seguida de Da
Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos), as obras éticas (Ética a
Nicômaco e Ética a Eudemo); as obras físicas (incluindo o De Anima), e a Metafísica.
2) O primeiro ciclo de diálogos platônicos, na seguinte ordem: Alcibíades I, Górgias,
Fédon, Crátilo, Teeteto, Sofista, Político, Fedro, Banquete e Filebo;
3) O segundo ciclo de diálogos platônicos: Timeu e Parmênides;
4) E um curso paralelo aos demais, em que se estudava a República e as Leis de Platão,
junto à Política de Aristóteles.
Procurarei assinalar, hipoteticamente, em que lugar cada um desses textos filosóficos e
ciências se encaixam no progresso da paideia filosófica na minha reconstituição dos seus três
degraus de virtudes. Geralmente, dizem os intérpretes que primeiro o currículo de estudos
passava por todas as obras do curso aristotélico, e só então ingressava nas obras do primeiro
ciclo de curso platônico; porém, mesmo que esta fosse de fato a ordem cronológica, para a
lógica pedagógica isso não faz sentido, pois, por exemplo, o primeiro diálogo platônico
(Alcibíades I) é dito ser ideal para iniciantes na filosofia, enquanto o último texto do curso
aristotélico (Metafísica) é certamente um texto para alguém já avançado, de modo que é
irrazoável que a leitura do Alcibíades começasse após o estudante ter adquirido maestria da
Metafísica de Aristóteles. Por isso, em minha reconstituição hipotética tratarei os quatro cursos
de leituras filosóficas de modo mais ou menos paralelos, ajustando sua ordem segundo o nível
de virtude em que a paideia se encontra.

210
Cada um dos três níveis de virtude deste estágio Filosófico da paideia neoplatônica
correspondem à vida de um daqueles ‘três homens’ que vimos no terceiro capítulo, que são as
três orientações possíveis da alma, segundo Plotino: “enquanto olha o que vem antes dela, a
alma pensa; enquanto olha a si mesma, ela se conserva; enquanto olha o que vem depois dela,
ordena, dirige e comanda essa realidade” (tr. 6 [IV.8], 3, 25-27). Para cada um desses modos
de vida, haverá uma forma específica de razão segundo Proclo (In. Tim., II, 246.20),
respectivamente: o logos doxastikos (opinativo), o logos epistêmonikos (científico) e o logos
noeros (intelectivo). Cada um desses é não apenas uma forma de atuação da razão, mas também
uma forma de linguagem – pois logos é tanto razão quanto linguagem. Ontologicamente, cada
uma dessas três naturezas da razão corresponde, ainda, a um tipo de Forma.

(c) Virtudes Cívicas ou Políticas


A educação propriamente filosófica começa também a partir do ‘homem natural’
ordinário, heterokinético, mas do ponto de vista da alma racional e o estado em que ela se
encontra nele. A alma racional é, como vimos anteriormente, uma plenitude de razões (logoi),
imagem racional do mundo inteligível segundo sua essência, iluminada por um ellampsis
intelectivo que lhe está sempre presente e a inscreve desde o interior. Porém, descida ao mundo
da geração, caída ao estado de esquecimento e erro, tem sua contemplação do Ser obstruída
devido aos invólucros mortais que assume (In. Alc., 224, 4-7), distraída pela desordem da vida
irracional, não conhecendo a si mesmo, e pensando conhecer muitas coisas das quais na verdade
é ignorante (ibid., 7, 2-5): esta é a condição chamada por Proclo de dupla ignorância, em que
não sabemos que não sabemos. Não significa, aqui, que a alma racional caída no esquecimento
da vida generativa é completamente desprovida de conhecimento; antes, ela o possui em sua
essência (que é eterna) mas não em seu ato (que é temporal), uma vez que, sob estado de
heterokinêsis, não realiza o ato autorreflexivo da razão. Embora não o possua em ato, esse
conhecimento essencial não deixa de emanar seu ‘aroma’, de modo que se faz presente na vida
da alma irrefletida sob a forma de noções (ennoiai) obscuras e desarticuladas, uma “consciência
vaga e confusa dos princípios racionais inatos (ousiódeis lógoi) ... que nos permite ter algumas
meras noções (ennoiai) do bem, do verdadeiro e do justo” (LAYNE, 2015, p. 31) que lhe dão a
sensação de conhecimento, o erro de crer que nossas noções são certezas. Proclo diz:
... apesar de que as almas descendem ao nascimento preenchidas essencialmente de
conhecimento, como resultado do nascimento, elas contraem o esquecimento; e por possuir as
ideias inatas da realidade como se estivessem pulsando em seu interior, elas têm noções (ennoiai)
sobre elas, mas subjugadas pela atmosfera do esquecimento elas são incapazes de articular suas

211
próprias noções e reduzi-las ao conhecimento. Portanto carregam-nas por aí como se estivessem
desmaiando e ofegantes, e por esta razão adquirem dupla ignorância, sob a impressão que através
de tais noções possuem conhecimento, quando de fato estão num estado de ignorância devido a
seu esquecimento; e daí vem o engano e a ilusão do conhecimento. [...] o conhecimento da alma
é duplo, um inarticulado e por mera noção, o outro articulado, científico e indubitável. ‘Pois ... é
como se houvéssemos aprendido tudo num sonho, apenas para estar inconsciente disso nas horas
de vigília’ [Fédon, 75c-e], possuindo em nosso ser essencial as noções inatas das coisas e como
que exalando o aroma do seu conhecimento, mas não os possuindo por realização de fato. (In.
Alc., 189.3-12; 192.1-5)
Essas noções comuns, uma forma pré-discursiva de saber, é a “errônea participação na
sabedoria que dá origem ao sofisma do mundo” (In. Alc., 34.16-17). Porém, não é o caso que
essas noções sejam meramente enganosas: é a dupla ignorância, ignorar o fato de que se é
ignorante, ou seja, a incapacidade de perceber que as noções comuns não são o verdadeiro saber,
que constitui o erro. Em si mesmas elas não são danosas, e nos permitem uma orientação
pragmática em relação ao mundo, e são, inclusive, o ponto de partida de toda reflexão
filosófica169.
No curso da vida ordinária, essas noções são adquiridas através daquilo que Proclo
chama de aprendizado (mathêsis) inferior (In. Alc., 188.4-6). O aprendizado consiste em receber
um saber “através da influência de agentes que se encontram fora da alma”, de tal forma que
esta influência externa “serve para dirigir a alma a uma ou outra de suas próprias faculdades”
(MACISAAC, 2011, pp. 39-40). Isto se dá através da experiência empírica ordinária e o
aprendizado da linguagem pública ordinária, que servem como ocasiões para essas noções
comuns e obscuras das razões internas emerjam. Isto é a doxa, a opinião.
Ora, a opinião, no pensamento de Proclo, não é uma mera condição psicológica de erro,
mas propriamente uma faculdade racional, um logos doxastikos ou opinativo ao qual cabe uma
forma específica de conhecimento, e que consiste da atuação da razão em conjunção com a
percepção sensível. Proclo assim explica a função da opinião:
Em geral, cada um dos sentidos é familiar com a afecção que ocorre no composto
psicofísico a partir do objeto de percepção sensível. Por exemplo, quando uma maçã se
apresenta, a visão sabe que ela é vermelha pela afecção que ocorre no olho, o olfato
sabe que ela é fragrante pela afecção que ocorre nas narinas, o paladar sabe que ela é
doce e o tato sabe que ela é macia. Mas o que é que nos diz que esta coisa que nos é
apresentada é uma maçã? Nenhum dos sentidos particulares faz isso, pois cada um deles
é familiarizado com apenas uma de suas características e não com o todo. Também não

169
Isto é, a investigação filosófica sobre qualquer problema começa pela investigação acerca de nossas noções
comuns, para que, a partir daí, a reflexão científica a respeito da questão se desenvolva.
212
é o sentido comum170 que faz isso, pois ele apenas discrimina as diferenças entre as
afecções mas não sabe que o objeto total tem uma natureza essencial de um tipo
particular. É claro, portanto, que deve haver uma faculdade superior aos sentidos que
conhece o todo antes das partes, por assim dizer, e contempla sem partições a sua forma,
a qual reúne todas essas várias qualidades parciais descritas. Esta faculdade, portanto,
Platão chamou de opinião e por esta razão o objeto de percepção sensível é chamado de
opinável. [...] os sentidos reportam a afecção que possuem e não dizem o que é falso
[...]. Mas a faculdade que ... a julga é diferente. Há, portanto, uma faculdade da alma
que é superior à percepção sensível. Ela conhece os objetos dos sentidos não através de
um instrumento mas por si mesma, e corrige a estupidez da percepção sensível. (In.
Tim., II, 249.14-250.9)
Trata-se, portanto, de uma faculdade racional que projeta as razões internas da alma a
partir de si mesma e assim julga o objeto da percepção sensível, apreendendo-o como um todo
antes das partes, segundo sua essência (ousía). Sua natureza, portanto, é apreender a matéria
ordenada pela forma, isto é, o juízo dos dados sensíveis através das formas inatas (logoi) à alma
racional (c.f. MARTIJN, 2010, p. 221), unificando, assim, a razão e os sentidos171. Desta forma,
esta é a faculdade que, conhecendo a natureza essencial dos objetos de sentido, é capaz de
realizar o juízo que determina o que é o objeto, mas não é capaz de realizar o juízo acerca de
suas causas (In Tim., II, 248.12-14). Em outras palavras, é um conhecimento puramente factual
que constata ‘o que é’ o objeto em questão mas não é capaz de dizer seu ‘porquê’, tem um

170
Há uma diferença, para Proclo, entre os órgãos dos sentidos e a percepção sensível. Os órgãos meramente
recebem a afecção do objeto sensível, e portanto não são cognitivos propriamente. A percepção sensível por um
lado participa da afecção, e portanto é irracional; mas por outro, “também tem um elemento cognitivo, na medida
em que é estabelecida na faculdade opinativa e é iluminada por ela, se tornando ‘da forma da razão’ (logoeidês),
ainda que ela seja em si mesma irracional” (In. Tim., II, 248.23-29). A percepção sensível propriamente dita é um
‘sentido comum’, que reúne na imaginação (phantasia) as afecções distintas oferecidas pelos diferentes sentidos,
e oferece à alma uma percepção sensível unificada que é um phantaston, um objeto de imaginação, um registro da
impressão sensível recebida pela afecção (c.f. MACISAAC, 2001, p. 40). Porém, este sentido comum, segundo
diz Proclo no trecho em questão, não é capaz de dizer o que é o objeto que percebe, apenas a faculdade racional
da opinião é capaz de julgar sua natureza essencial (ousia).

171
Essa faculdade, tal como pensada em Proclo, pode legitimamente ser comparada ao entendimento kantiano e
suas formas a priori. No contexto da educação filosófica da alma, a opinião é para Proclo meramente um nível
relativamente inferior a ser ultrapassado. Mas no contexto da física, que não é o objeto deste trabalho, ele
desenvolve amplamente um lugar digno à opinião, cujo alcance é estabelecer “a conexão entre as abordagens
racional e empírica ao mundo natural” com o resultado de que Proclo “garante uma fundação universal, necessária
e conhecida para toda a filosofia da natureza” (MARTIJN, 2010, p. 205). Sua compreensão sobre a faculdade da
opinião, somada à sua abordagem geométrica da física e seu heliocentrismo, fazem de Proclo um antecessor da
ciência renascentista. Não por acaso, alguns dos pioneiros da ciência renascentista foram reconhecidamente
influenciados por ele, uma vez que encontraram na física neoplatônica uma inspiração e suporte na sua rejeição da
física aristotélica. Um exemplo seria Kepler, como observa Siorvanes (1996, p. 311): “Kepler saudou Proclo como
um profeta do lugar central do Sol no cosmos. Especialmente, ele manteve a teoria da matemática de Proclo como
o pilar do conhecimento demonstrativo. A matemática prove o melhor modelo da realidade, e exemplifica a
natureza reguladora das leis universais. Ele também subscreveu à metafísica da luz neoplatônica. A luz é a essência
do espaço cósmico e da realidade em geral”.
213
conhecimento que é puramente factual, incapaz de justificar-se, de explicar a sua causa ou
razão. Neste sentido, a opinião é racional na medida em que conhece a natureza essencial dos
objetos de sentido segundo suas razões (logoi) internas, mas é irracional na medida em que é
ignorante de suas causas (In. Tim., II, 249.8-14).
Segundo a ontologia das diferentes formas de universais proposta por Siriano, mestre
de Proclo, há Formas inteligíveis, as Ideias platônicas, paradigmas divinos de tudo o que é; há
as Formas discursivas, razões (logoi) que são imagens das Formas inteligíveis, e que constituem
a essência inata da alma172; e há as Formas que são inseparáveis dos corpos sensíveis, inerentes
a eles, as causas imanentes dos objetos perceptíveis particulares (IERODIAKONOU, 2008, p.
406). Estas últimas, na verdade, são os últimos ecos ontológicos e epistemológicos das Formas
inteligíveis, um logos enfraquecido, incapaz de refletir sobre si mesmo e dar suas próprias
razões, isolado da universalidade e preso à natureza do particular. São os princípios racionais
que, gerados pela alma, caem na matéria, denominados por Proclo como “razões técnicas” (De
dec. Dub., 13.8-11), que se opõem às “razões científicas” que permanecem no nível da alma173.
A opinião, enquanto faculdade racional, é a apreensão deste tipo ‘técnico’ de razões174.
A vida cognitiva da alma opinativa, em sua apreensão de razões desta natureza, dotada
de noções (ennoiai) inarticuladas sobre as coisas, corresponde à linguagem ordinária pré-
filosófica – pois, vale lembrar aqui, logos é tanto razão quanto linguagem, de modo que o forma
de razão que é a opinião também é uma forma de linguagem175. Segundo Proclo, a linguagem
é tanto uma matéria (o som vocálico, variável em diferentes idiomas) quanto uma forma (um
conceito)176, de modo que os gramáticos se ocupam da matéria da linguagem, enquanto os
filósofos se ocupam de sua forma (In Crat., §80, 37.22-25). Ora, a linguagem opinativa é aquela
em que a matéria da linguagem predomina sobre sua forma, de modo que este é o nível em que
a linguagem é mais convencional, uma vez que “o nome consiste de forma e matéria, e quão
maior for o elemento material, maior é o nível de convenção” (HELMIG, 2017, p. 191). Ainda,
a linguagem é mais convencional e menos natural na medida em que se refere a entes perecíveis,

172
Tanto a hipóstase quanto a particular.
173
As Formas inteligíveis transcendem a alma, são idênticas ao Intelecto.
174
Segundo o princípio de que cada um conhece a todas as coisas de sua própria maneira, a doxa conhece as
Formas inteligíveis de maneira doxástica, de modo imerso no particular, incapaz de autorreflexão, isto é, incapaz
de dar razões. Também a natureza é um doxa, e produz o mundo sensível ordenado segundo formas racionais deste
tipo – o que é a sua forma doxástica de contemplar os inteligíveis.
175
Cada uma das três formas de razão (logos) corresponde a uma forma de linguagem, de modo que além da
linguagem opinativa ainda há a linguagem científica (dianoética) e linguagem intelectiva, as quais abordaremos
adiante.
176
Helmig (2017, p. 192) aponta que, para os neoplatônicos, a palavra falada (logos prophorikos) é uma imagem
de um logos interno (logos endiathetos) – terminologia que eles teriam tomado dos estóicos.
214
e menos convencional e mais natural177 na medida em que se refere a entes imutáveis (In Crat.,
§10, 4.13-15); e a linguagem opinativa é tal que sua referência primária é a entes particulares e
sensíveis, mas não a inteligíveis, carecendo de nomes que podem se referir a gêneros e espécies,
sendo ambígua entre os modos essencial e acidental de predicação (GRIFFIN, 2013, pp. 3-4).
Ela é uma forma de “imposição primária de nomes” que indica e se refere aos objetos
cotidianos, esboçando os contornos do ambiente perceptível ou do mundo que nos é mais
familiar que é selecionado pela linguagem pública cotidiana (ibid., pp. 10-11).
Ainda assim, através dessa linguagem ordinária, temos uma forma imperfeita mas
funcional de acesso à realidade178, uma espécie de “guia heurístico” que é eficiente mas falível
(ibid., p. 12), de modo que nossos termos baseados em noções comuns (ennoiai) “podem e de
fato se referem” à realidade “de um modo que faça sentido e provê pontos de partida para a
correta aplicação de nomes” (ibid., p. 8). Porém, como diz Proclo, é um acesso à realidade que
se dá de modo referencial, representativo, no qual “o objeto de cognição está fora e não dentro”,
por qual razão “o objeto não é apreendido, mas opinado” (In. Tim., II, 251.27-29).
Do ponto de vista prático, a alma é um eros dirigido invencivelmente ao Bem, mas uma
vez que só possui noções obscuras e inarticuladas acerca dos desejados valores e atributos
divinos (o justo, o belo, o autossuficiente etc), ela não compreende claramente onde jaz seu
verdadeiro fim, e ao se deparar com objetos externos que contém em si algum traço dos
verdadeiros bens divinos, é capaz de reconhecer este traço a partir de suas noções, e, sem
compreender que se tratam apenas de traços e não dos bens em si, erroneamente se lança sobre
eles, escolhendo um bem aparente ao invés de um bem verdadeiro. Deste modo, “a alma se
volta a outro lugar em sua busca da verdade, apesar de possuí-la em sua essência, e procura
pelo bem em outras coisas, negligenciando a si mesma” (In. Alc., 251.1-2). Esta é a maneira
pela qual Proclo sustenta a tese socrática de que o mal sempre é involuntário, como o explica
Layne (2015, pp. 43, 45-46):
De acordo com Proclo, todos nós temos o desejo correto de retornar ao estado de
conhecimento divino, mas devido à presunção da dupla ignorância a maioria
involuntariamente engana a si mesmos ao acreditar que bens externos são o bem
autêntico e que meras opiniões humanas constituem conhecimento. [...] os duplamente
ignorantes aplicam precipitadamente as noções vagas de seu conteúdo divino aos

177
A linguagem é natural, segundo Proclo, na medida em que é “como imagens fabricadas que são similares aos
seus paradigmas”, isto é, às Formas inteligíveis. Aprofundarei estes pontos no contexto da virtude contemplativa.
178
Em verdade, a relação entre a opinião e seu objeto é uma imagem, um eco distante da verdadeira identidade
entre sujeito e objeto que é auto-intelecção da Forma intelectiva propriamente dita. Portanto, o que garante o acesso
dessa cognição ao seu objeto é o fato de que tanto a cognição quanto o objeto são imagens de uma unidade
primordial de cognição-objeto.
215
objetos materiais e externos. Não obstante, este assentimento precipitado a um tipo de
correspondência material de suas noções imediatas de coisas como a beleza ou a
bondade, emerge de uma característica notável que é própria a cada indivíduo, a ânsia
humana de articular ou reunir-se com uma figura clara da fonte daquelas noções vagas,
os princípios racionais que ordenam nosso próprio ser. Os duplamente ignorantes
cometem erros porque eles querem, como todas as almas, alguma forma de reunião com
as realidades divinas que pulsam através deles. Em seu amor pelo bem, eles
desesperadamente querem atualizar o que eles portam indiscriminadamente dentro
deles, e então prontamente investem sobre o mundo externo em sua tentativa de trazer
à tona este conhecimento.
Assim, por exemplo, as pessoas desejam poder político, dinheiro e prazer devido ao
traço de semelhança que estes possuem com as atividades dos deuses, a autossuficiência divina,
e a bem-aventurança celeste do Bem, respectivamente (In Alc., 136-137; 148-149), de modo
que “as concepções de tais almas são grandes e admiráveis, mas suas traduções na prática são
mesquinhas, ignoráveis e iludidas, perseguidas sem verdadeiro conhecimento” (In Alc., 150.19-
21).
Esta é a natureza da alma racional em sua condição opinativa de ser. A sua educação
filosófica deve começar através do método socrático de refutação das opiniões, o qual volta a
atenção da alma às suas noções e a faz compreender suas deficiências, conduzindo-a a
reconhecer que não se tratam de conhecimento de fato. Proclo diz a seu respeito:
Assim como os deuses nos purificam e nos beneficiam através do intermédio de nossa
própria pessoa, e em geral nos move enquanto seres que são automotrizes, assim
também Sócrates concebeu um método de refutação no qual a pessoa que é refutada
parecerá ser seu próprio refutador e o sujeito da elicitação (ho maiomenos) opera sobre
si mesmo. (In Alc., 241.14-18)
Esta refutação de si mesmo, o reconhecimento da própria ignorância, remove a
heterokinêsis da dupla ignorância (‘não saber que não se sabe’), reduzindo-a à simples
ignorância (que reconhece não saber). Desta forma, desperta seu movimento autokinético sob
a forma da atividade da investigação ou inquérito racional (zêtêsis), que só é possível àqueles
que possuem ‘simples ignorância’ (In Alc., 188.16-189.1). Esta investigação racional, por sua
vez, tem a forma da pergunta socrática: “o que é X?”. Diz Proclo:
É por esta razão que Sócrates, em suas conversas, sempre conduz a discussão em direção
à questão “o que é X?”, uma vez que ele está ansioso para estudar os princípios racionais
(logoi) na alma, [como por exemplo] em sua busca pela forma da Beleza, em virtude da

216
qual todos os fenômenos belos são belos, isto é, o princípio racional das coisas belas
preexistente na alma...179 (In Parm., 987.8-24)
A investigação racional (zêtêsis) socrática, portanto, significa o princípio da
autorreflexão racional da alma que, partindo das noções comuns (ennoiai), se volta sobre suas
próprias razões essenciais (logoi) e assim as articula e desdobra discursivamente, passando
gradualmente de um modo opinativo a um modo científico de pensamento, no qual entra em
ação o processo de descoberta (heuresis), que não é nada mais que a projeção autoconsciente
ou autokinética das razões internas da alma (In Alc., 187.14-18) – a ‘reminiscência (anamnese)
platônica’. Algumas ciências que correspondem a este nível da paideia, e que podem contribuir
para a ascensão da alma, são, segundo Siriano: a medicina, a física (aristotélica), a mecânica, a
óptica e a harmônica (IERODIAKONOU, 2008, p. 417). Textos filosóficos relevantes neste
nível seriam o Isagogê de Porfírio e as Categorias de Aristóteles, que juntos formavam a
introdução elementar à lógica no currículo neoplatônico, e que ocupam um lugar de transição
entre o logos opinativo e o logos científico; e diálogos platônicos como o Alcibíades I e o
Górgias, uma vez que ambos são diálogos que conduzem o iniciante a um primeiro início no
processo de conhecimento de si como uma alma racional incorpórea separada do corpo (o qual
é para ela como um instrumento), assim como um primeiro curso acerca das virtudes políticas
e a superioridade da virtude sobre como bem sobre os bens externos.
Na educação prática, neste ponto da paideia é necessário cultivar as virtudes cívicas ou
políticas, que dizem respeito à alma racional na sua relação de governante-e-governado com o
corpo e as potências da alma irracional180. Como o coloca Baltzly (2017, p. 264), “a alma
racional possui virtudes cívicas quando põe as partes irracionais (da alma) em ordem e as utiliza
como seus instrumentos”, isto é, pertencem àquele que já compreendeu em algum sentido que
não é o seu corpo e suas paixões, mas que estes são apenas seus instrumentos. Seu ideal é a
metriopatheia, a moderação das paixões, ordenadas pela medida oferecida pela razão. Nesse
ponto a alma começa a reconhecer o bem a que aspira em suas próprias virtudes ao invés de

179
Ele distingue, ainda, entre a busca pelo princípio racional do Belo que existe na alma, e a busca pela Forma
inteligível do Belo que existe no mundo inteligível. Esta é a diferença, ele aponta, entre a investigação acerca do
Belo no Hípias Maior e aquela no Fedro, a primeira buscando o princípio racional do Belo na alma, a segundo
buscando a Forma inteligível do Belo em si. A investigação que procede pela pergunta “o que é X?” é do primeiro
tipo, e é a essa que Sócrates conduz seus interlocutores quando utiliza o método maiêutico. Quando Sócrates busca
pela Beleza inteligível em si, segundo Proclo, ele procede de modo inspirado ao invés de racional.
180
Externamente, correspondem também às virtudes da vida prática ou política de fato. A vida política era
encorajada pelos Neoplatônicos Tardios, que além disso, possuíam uma filosofia política robusta, recentemente
apresentada pelo trabalho de Dominic O’Meara (2005), no qual observa ainda a influência que a filosofia política
neoplatônica exerceu sobre a ordem eclesiástica da Igreja cristã oriental, bem como sobre o mundo islâmico.
Porém, a ciência filosófica da política propriamente dita não cabe ainda neste nível educativo, apenas no próximo,
quando a razão científica já se desenvolveu no educando.
217
objetos externos, na medida em que começa a desvela-las enquanto razões internas: “a alma
deve, de sua própria moção, buscar dentro de si mesma tanto o verdadeiro quanto o bem e as
razões (logoi) eternas da realidade” (In Alc., 250.18-19), e uma vez que ela se torne capaz de
apreender em si mesma aquilo que buscava fora de si, seu eros é reorientado. “Tal era o método
de Sócrates”, diz Proclo, “elevar cada indivíduo ao seu objeto apropriado de desejo”, de modo
que ele mostrava “ao amante do prazer onde o prazer puro, não misturado com a dor existe”, e
ao “amante do dinheiro onde a verdadeira autossuficiência, completamente livre de
necessidades, existe”, e até mesmo ao “amante do comando onde o poder e o governo existe ...
livre de toda escravidão” (In Alc., 152.11-20)181.
Segundo argumenta Simplício, não é ideal que nesse nível da paideia sejam utilizados
como textos base os tratados de ética de Aristóteles, uma vez que esses procedem já segundo o
logos científico; antes, é necessário uma educação para a virtude que se apoia sobre as noções
comuns que possuímos, que parta das opiniões corretas (HADOT, 2004, p. 50), de modo que o
texto ideal é o Manual de Epicteto, para o qual ele escreveu um comentário neoplatônico.
Através de suas exortações, a alma é treinada a portar-se segundo a razão, e é introduzida à
importante reflexão acerca “do que nos cabe”, isto é, o domínio em que nossa faculdade de
escolha é exercido. Deste modo, conduz a alma a recuperar sua reversão autokinética segundo
sua potência vivífica racional da escolha deliberada (prohairesis) de modo a adquirir
autodomínio, uma vez que, diz Simplício (apud HADOT, 2004, pp. 124-125), “o juízo de valor,
tendência à ação, desejo e aversão se resumem às escolhas e às escolhas deliberadas, sendo
todos movimentos da alma que lhe são internos e não impulsos produzidos do exterior. Esta é
a razão por qual a alma é mestra desses movimentos”.
Segundo Proclo (De Prov., 17.2-25), a alma corretamente educada segundo as virtudes
cívicas é aquela que, “cavalgando sobre as vidas (irracionais) inferiores”, se dedica a corrigir
os erros e ilusões da percepção, bem como a educar a imoderação das emoções, tratando-as
ambas como estrangeiras à sua verdadeira natureza. Recua dos movimentos impetuosos da sua
parte irascível ao dizê-la “as palavras homéricas ‘aguente, meu coração’”, e se esforça para
conter os apetites, repreendendo a descrição ilusória de seus prazeres e “repelindo seu encanto
com a temperança”. E tudo isso a razão faz ao “olhar para suas razões internas”, que não podem
ter sido adquiridas através de meios externos. Assim, o educando inicia um “caminho a partir

181
Olimpiodoro (In Alc., 6-7) diz que esta é a característica marcante do modo ‘desprovido de dor’ pelo qual
Sócrates purifica as almas, aplicando a elas remédios que são similares à condição atual da alma, mostrando ao
amante da beleza, ao amante da riqueza, ao amante do prazer, etc, onde o verdadeiro objeto de seu amor jaz – isto
é, no divino. Por outro lado, ele opõe este método de Sócrates ao de Aristóteles, que julga que aplica os opostos
uns aos outros os equilibra; e ao dos Pitagóricos, que supõem que ‘degustar’ as paixões contribui para eliminá-las.
218
da moderação das paixões (metriopatheia) em direção à ausência de paixões (apatheia)” (De
Prov., 27.11-12), que será a virtude do próximo degrau da escada neoplatônica, ao mesmo
tempo em que refuta suas noções comuns e inicia o processo de investigação e descoberta das
razões essenciais da alma racional.

(d) Virtudes Purificatórias

A alma, neste nível da paideia filosófica, é aquela que recuperou a autokinêsis do seu
movimento racional de autorreflexão. Este nível lida, portanto, com a alma racional tomada em
si mesma, incorpórea e independente do corpo.
A educação cognitiva aqui adequada é aquela que se dá através do cultivo do logos
epistêmonikos ou científico, ao qual correspondem as ciências dianoéticas, cuja natureza é
desdobrar discursivamente as razões internas da alma através dos métodos de análise
(analutiké), divisão (diaretiké), definição (horistiké/dioristiké) e demonstração (apodeiktiké)
(IERODIAKONOU, 2008, p. 414). Ao contrário da opinião, que consiste num conhecimento
meramente fático, a razão científica, através dos métodos supracitados, diz o ‘porquê’ daquilo
que conhece, discursando acerca de suas causas, diferenciando entre substância e acidente etc.
As ciências dianoéticas se caracterizam, portanto, por conhecerem os verdadeiros universais ou
formas intermediárias que residem no nível discursivo da alma182 – que são os verdadeiros
objetos da ciência segundo Siriano, as causas dos universais imersos na particularidade da
matéria (formas inferiores), e imagens das Formas inteligíveis (ibid., p. 406). Segundo Proclo
(De Prov., 43.4-16), o propósito das ciências dianoéticas é conduzir a alma a atuar
independentemente dos sentidos, acostumando-a a olhar para si mesma e suas razões imateriais,
e desta forma ser capaz de demonstrações que estão em conflito com os sentidos, pois os
sentidos só admitem aquilo que é divisível, particular, mutável; mas a ciência conhece aquilo
que é indivisível, universal, estável, e nestes encontra o que é mais verdadeiro, e o que permite
àqueles primeiros (admitidos pelos sentidos) a sua existência. Tudo isso a ciência só pode
conceber segundo suas razões internas, que não podem advir dos sentidos.

182
Segundo Siriano, quando esses universais ou Formas intermediárias que residem na alma “são contempladas
por almas mais elevadas, como as almas divinas e daimônicas, elas funcionam não apenas como cognitivas, mas
também [como] princípios criativos e ativos, mas quando são contempladas por almas caídas, isto é, almas
humanas encarnadas, elas funcionam apenas como princípios cognitivos” (IERODIAKONOU, 2008, p. 406).
Através dessas formas é que estas almas mais elevadas impõem medidas racionais sobre o cosmos, e assim o
ordenam.
219
A linguagem científica, portanto, não pode se restringir à linguagem ordinária do
cotidiano, que apenas aponta factualmente os objetos sensíveis através de seus nomes e noções
comuns. O curso elementar de lógica no currículo neoplatônico, que iniciava com o estudo do
Isagogê de Porfírio e as Categorias de Aristóteles, contribuía para esta passagem, uma vez que
oferece ao iniciante na filosofia um transição gradual entre a linguagem ordinária ou opinativa
para a linguagem científica da filosofia, isto é, da linguagem que só lida com particulares (ou
as “razões técnicas” imersas nos particulares) para a linguagem que lida com os universais (ou
as “razões científicas” que inerem na alma). Segundo Griffin (2013, p. 11), estes textos
realizavam esta passagem devido ao fato de que conduziam o iniciante a compreender que “o
que é realmente correto na linguagem é a organização mais profunda de classes. Nomes para
classes são precisos; nomes para objetos sensíveis são imprecisos e vagos, porque não há
conhecimento dessas coisas”. Ele expande sobre este ponto:
Partindo deste ponto de partida comum da nossa comunidade de linguagem, na qual
nossa ontologia é baseada numa linguagem ordinária que agrupa ‘ser’ em torno de
objetos particulares que ordinariamente recebem nomes em nossa comunidade de
linguagem, o estudo das Categorias de algum modo nos ajuda a desenvolver uma
avaliação mais correta dos modos pelos quais nossas predicações (kategoríai) de fato
funcionam. Nós devemos observar, em particular, que nossas predicações significativas
caem numa gama de silos genéricos. Começamos a focar na semelhança na diferença.
Tudo isso tende mais ou menos à seguinte direção: de inicialmente supor que as palavras
se referem primariamente a entidades perceptíveis (tà aisthetá), porque esses são os
fenômenos que ‘primeiro adquirem nomes’ (Simplício In Cat. 73,33; c.f. Porfírio In
Cat. 57.20), começamos a desenvolver um novo entendimento das palavras como se
referindo primariamente a certas outras entidades que os Neoplatônicos chamam de
‘inteligíveis’ (tà noetá). (GRIFFIN, 2013, p. 13).
Porém, o iniciante da filosofia neste nível carece de nomes que sejam capazes de
discursar acerca de tais universais, uma vez que se trata de realidades que não são apontáveis
em nossa vida empírica ordinária. Por esta razão, precisam ser introduzidos (através do processo
de inquérito e descoberta discutindo anteriormente) a um emprego distinto da linguagem, que
envolve nomes que são cunhados por filósofos:
… não há palavras para aquelas outras coisas [espécies inteligíveis]; portanto,
realizando uma leve alteração, eles [os filósofos] falaram de ‘humanidade’
(anthropótes) ou do ‘homem-em-si’ (autoánthropos) ou do ‘homem primário’ (protos
ánthropos). (SIMPLÍCIO apud Griffin, 2013, p. 14)
De modo que se pode dizer corretamente que
Filósofos são intérpretes de coisas que são desconhecidas à maioria das pessoas, e
precisam de novas palavras para comunicar as coisas que descobriram. Portanto, eles
220
ou inventaram expressões novas e não familiares, ou eles empregaram [expressões já]
estabelecidas num sentido estendido, para poder indicar as coisas que eles
descobriram183. (PORFÍRIO apud Griffin, 2013, p. 13)
Ora, uma característica fundamental dessas palavras e expressões que dizem respeito de
universais é que elas não podem ter origem na experiência empírica, isto é, não podem ser
formadas por induções que partem de realidades particulares, pois, na formação dessas
concepções, “como nós poderíamos atravessar a série infinita de particulares, ou
alternativamente como nós poderíamos formar uma tal concepção baseado num número
pequeno [de particulares]?” (ALCINO apud Griffin, 2013, p. 15). Necessariamente, portanto,
são termos que têm sua origem no movimento autokinético de projeção das razões essenciais
da alma, que são descobertos (pelo próprio educando) e não meramente ensinados184.
Segundo Proclo, o nome, aqui, “tem o papel de revelar os objetos da intelecção; e, uma
vez que discrimina a essência, implanta em nós um entendimento das coisas” (In Crat., §48,
16.23-25); isto é, o nome é um instrumento (órganon) de instrução (didaskalikón) que é o ponto
de partida para um retorno reflexivo da alma racional às suas próprias razões, que são assim
projetadas, isto é, discriminadas, tornadas discursivamente claras. O nome evoca uma razão
universal interna da alma. Desta forma, ainda que a linguagem neste nível científico consista
de matéria (som, variável segundo o idioma) e forma (conceito ou logos interno), há uma a
predominância maior do segundo sobre o primeiro, de modo que se trata de uma linguagem que
é mais natural e menos convencional que a linguagem opinativa. Em outras palavras, os nomes
aqui são conceitos, dizem respeito a si mesmos e não a objetos externos a eles, e portanto não
são meramente “rótulos” de objetos sensíveis apontáveis, como é o caso dos nomes empregados
na linguagem opinativa.
Ciências que são relevantes neste contexto são as matemáticas puras: geometria e
aritmética (IERODIAKONOU, 2008, p. 417), e também a gramática (HELMIG, 2017, p. 193).
Além disso, a lógica e a reflexão filosófica sobre a linguagem têm um lugar central aqui. Mas

183
É importante ressaltar, porém, que o educando neste nível da paideia ainda não está em condições de inventar,
ele mesmo, novas palavras e expressões. É só o dialético, que cultiva as virtudes contemplativas de que falaremos
adiante, é que o faz. O educando, neste nível, é conduzido apenas a aprender os termos e expressões cunhados por
outros filósofos que o precederam.
184
Um exemplo seria a discussão entre Sócrates e seu interlocutor no diálogo Hípias Maior, em que ele tenta
conduzi-lo à descoberta do sentido do “belo” enquanto substantivo, ou enquanto essência universal, para além do
“belo” que é mero adjetivo, isto é, atributo pertencente às coisas belas em particular. O “belo” substantivo não é
nenhuma coisa bela em particular, mas aquilo que faz com que todas elas sejam belas. Ora, conhece-lo é conhecer
o todo antes das partes, o que não se pode alcançar a partir da observação indutiva das muitas coisas belas. As
coisas belas são instâncias que servem de ocasiões para que a alma projete sua própria razão universal do “belo”,
o que é a descoberta. A passagem do ‘belo’ enquanto adjetivo para o ‘belo’ enquanto substantivo é a passagem da
linguagem opinativa para a linguagem científica.

221
em geral, todas as ciências filosóficas (com exceção da metafísica) pertencem a este nível do
logos científico. Deste modo, textos filosóficos do currículo neoplatônico que seriam relevantes
neste nível da paideia seriam os tratados lógicos de Aristóteles, bem como seus tratados éticos;
diálogos platônicos como o Fédon, o Crátilo e o Teeteto, que acostumam a alma a voltar-se a
si mesma e reconhecer a natureza apriorística do seu saber; e os textos do curso neoplatônico
sobre textos políticos (República e Leis de Platão, e Política de Aristóteles). Em geral, o
propósito aqui é conduzir a alma a voltar-se a suas próprias razões a priori e as desdobrar
discursivamente, o descobrimento como uma forma de conhecimento que não é passivo mas
autokinético.
A faculdade vivífica correspondente ao logos em geral é a escolha deliberada
(proairesis), e ela é a versão prática da autokinêsis racional da alma, a capacidade de
autodeterminação da volição, como foi mencionado anteriormente. No Neoplatonismo Tardio
ela é pensada a partir da reflexão estóica sobre aquilo que ‘depende de nós’, como o explica
Riggs (2015, pp. 190-191):
A habilidade de manter-se focado em seu próprio bem e de usar sua prohairesis para
escolher aquele bem depende do conhecimento da alma acerca do que está sob seu poder
fazer enquanto alma, o que neoplatônicos chamam de ‘o que nos cabe’ (to eph’ hemin).
[...] Simplício explica a importância da descoberta do to eph’ hêmin como o primeiro
passo na autorreversão. Prohairesis, portanto, é conectada à automoção da alma, a qual
é uma expressão de sua natureza enquanto um poder ativo, que está em contraste direto
à natureza passiva das partes da alma irracional, o thumos e a epithumia, que dependem
de um outro para serem atiçadas ao movimento.
A maneira especificamente neoplatônica pela qual ‘o que nos cabe’ é entendido se
fundamenta na compreensão da alma racional como sendo um ente intermediário entre o mundo
sensível e o inteligível: enquanto intermediário, a alma é ambivalente, capaz de voltar-se tanto
a um quanto ao outro, e existir segundo a natureza daquele ao qual se volta. Isto é, voltando-se
ao mundo sensível a alma se submete ao destino, que é o modo de existência daquilo que é
natural, e voltando-se ao inteligível ela se ‘submete’ à liberdade e à providência, que são o
modo de existência daquilo que é espiritual. A ‘escolha’ é aquela potência vivífica que se move
entre essas duas opções ‘verticais’; quanto mais ela se assimila ao inferior, ela deixa de ser
verdadeiramente uma escolha, submetida que se encontra ao reino determinista do destino;
quanto mais se assimila ao superior, mais se torna uma vontade (boulêsis) propriamente dita,
que é a potência vivífica que pertence aos seres intelectuais ou espirituais. Diz Proclo a respeito
da escolha:

222
Os antigos sempre tomam a expressão ‘o que depende de nós’ como se referindo à
atividade da escolha [...]. Pois eles não identificam escolha (proairesis) e vontade
(boulêsis): a vontade, eles dizem, apenas considera o bem, enquanto a escolha é tanto
por coisas boas quanto não boas [...]. Portanto, a escolha caracteriza a alma, uma vez
que a escolha é igualmente aberta a ambas, e é apropriada à natureza intermediária que
é movida em direção a ambos. [...] Ninguém possui, porém, vontade pelo mal, e para
aqueles que o escolhem, o mal parece ser um bem. Pois nenhuma alma intencionalmente
escolhe o mal, mas o evitaria. Devido à ignorância, [a alma] é ocupada com ele. Pois
ainda que ela tenha por natureza um ‘ardente amor’ pelo bem, ela é incapaz de ver aonde
o bem jaz. Assim, ... a alma tem em seu próprio ser essa inclinação ambivalente [...].
Resumindo, a escolha é uma faculdade racional vivífica que se empenha por algum bem,
seja verdadeiro ou aparente, e conduz a alma a ambos. Através desta faculdade a alma
ascende e descende, comete erros e acertos. Considerando a atividade desta faculdade
autores chamaram sua inclinação ambivalente da ‘encruzilhada’ em nós. Devido a esta
faculdade nós nos diferenciamos tanto de seres divinos quanto mortais, uma vez que
nenhum dos dois é sujeito a essa inclinação ambivalente: seres divinos, devido à sua
excelência, são estabelecidos apenas em meio aos bens verdadeiros, e seres mortais,
devido à sua deficiência, apenas entre bens aparentes. (De Prov., 57; 59)
Ora, se a ambivalência da escolha oscila entre o verdadeiro bem e o bem aparente, e se
o que determina a direção que toma é o conhecimento que possui acerca do bem, é o caso que
para que a faculdade da escolha seja exercida de modo virtuoso, é preciso haver uma ciência
ou saber racional que desenvolva discursivamente as noções inatas que a alma possui sobre o
bem e o justo etc, de modo que ela assim seja capaz de discernir corretamente o bem real do
bem aparente. Diz Griffin (2013, p. 6) que, na concepção neoplatônica, “o desenvolvimento
humano depende da capacidade de realizar boas escolhas”, mas uma vez que não nascemos
com esta capacidade, precisamos “cultivá-la conscientemente”. Para isto, precisamos nos
desenvolver na capacidade do raciocínio, “pois boas escolhas são escolhas racionais, escolhas
que atingem a bons fins através do desígnio”. É só através da aplicação do instrumento
(órganon) do correto raciocínio que nós podemos distinguir consistentemente entre ações
beneficiais e nocivas, e entre crenças verdadeiras e falsas. É também devido a essa natureza de
inclinação ambivalente que a educação é necessária, diz Proclo (De Prov., 66.7-10), pois se
‘aquilo que depende de nós’ é abolido, “a própria filosofia se mostrará inútil. Pois o que nos
educará, se não há nada que pode ser educado? O que será educado, se não depende de nós se
tornar melhores?”.
A ciência, então, atua como uma purificadora, trazendo clareza às noções obscuras do
bem que possui a alma, reconhecendo o justo, o belo e etc em sua verdade e como habitando

223
sua própria interioridade, e assim redirecionando o impulso erótico pelo Bem ao seu próprio
interior. A qualidade purificatória deste nível se deve, portanto, à sua capacidade de voltar a
alma racional a si mesma, separando-a da objetividade do mundo e da sua corporeidade, o que
a conduz à apatheia ou o estado de ser livre das afecções185, que é o ideal das virtudes
purificatórias que pertencem a este nível, que são virtudes que pertencem à razão “na medida
em que se retira das relações com outras coisas [corpóreas]” (BALTZLY, 2017, p. 264). Diz
Proclo acerca da verdadeira apatheia a que o filósofo deste nível da paideia aspira, que é a
garantidora da verdadeira liberdade da alma, e como esta está intimamente associada a uma
forma de conhecimento de si em que a alma, ciente de sua autokinêsis, compreende-se como
incorpórea:
... se nós pensarmos desta maneira [na incorporealidade de quem realmente somos],
nada nos perturbará quando as partes inferiores sofrerem. Mas quando nosso corpo é
perturbado e nós dizemos que nós estamos sofrendo terrivelmente, não é nós quem
dizemos isso, mas esse é um enunciado do apetite; pois os prazeres do corpo pertencem
ao apetite, e portanto também as dores. E quando nós sofremos por sermos desprovidos
de nossas riquezas ou não obter riquezas, (novamente, não é nós quem sofremos, mas o
apetite); pois também o amor pelo dinheiro pertence a esta alma (irracional). E
novamente, quando nós estamos enraivecidos porque fomos desonrados e caímos do
poder, esta não é uma paixão da alma mais elevada, mas da alma que está assentada ao
redor do coração. Pois o amor pela honra pertence àquela parte. Se a razão em nós é
enganada por todas essas paixões, ela segue as partes inferiores, e se entrega juntamente
com elas, sendo uma inteligência cega e não havendo ainda purificado o princípio pelo
qual ela pode ver a si mesma e o que está antes de si mesma e depois de si mesma. Mas
se purificando daquelas coisas com as quais foi vestida quando caiu, saberá onde
encontrar aquilo que depende dela e como este não se encontra entre as coisas corpóreas
– pois estas vêm depois dela – nem naqueles seres nos quais jazem a autodeterminação
– pois estes a precedem – mas na vida de acordo com a virtude. Pois a virtude apenas é
livre e ‘sem um mestre’ e ‘apropriada’ a um homem livre’, verdadeiramente o poder da
alma, e aquele que a possui é o seu mestre. [...] Toda alma, portanto, tem parte no estado
da liberdade na medida em que tem parte na virtude. (De Prov., 23.3-24; 24.4-5)
É a natureza dos seres corpóreos agir e existir segundo a necessidade, enquanto os seres
intelectuais agem e existem “de modo superior a toda necessidade” e “exclusivamente livres”,
a alma, enquanto natureza intermediária, oscila entre estes dois pólos, hora assumindo a
necessidade dos seres inferiores, hora assumindo a liberdade dos superiores, de modo que ela é

185
Ressaltamos o sentido passivo deste termo: afecções são as determinações que são passivamente recebidas pela
alma, seja determinações de sua identidade, pensamento ou vontade. Apatheia não significa, portanto, desfazer-se
do eros, o dinamismo divinizante central, que continuará sempre ativo; significa que este deixará de ser movido e
determinado desde “o lado de fora” ou extrinsecamente.
224
sempre “governada desde cima [pela providência] ou desde baixo [pela necessidade]”,
“governando junto com seus mestres ou sendo uma escrava junto com aqueles que são apenas
escravos” (De Prov., 25.1-9). Sua vida é uma mescla de necessidade e liberdade, daquilo que
não depende dela e daquilo que depende dela, de modo que ser livre é uma exclusividade do
virtuoso que descobriu propriamente ‘o que depende de nós’ como dizendo respeito somente à
vida interna da alma, enquanto que o que jaz fora dela ‘não depende de nós’. Pois a maioria das
pessoas, não possuem uma vida interna poderosa, e por isso seguem coisas externas, de modo
que “enterram aquilo que depende deles juntamente com aquilo que não depende, e assim não
têm nada que depende deles” realmente; mas o virtuoso, que vive a vida interna da virtude, é
livre porque “sua atividade depende dele e não é escrava do que depende” (De Prov., 61.14-
21).
O propósito da educação filosófica neste nível, portanto, é tonar a alma livre “tal qual
ela foi projetada pelo Demiurgo e Pai, quando Ele a criou e a engendrou, de tal forma que ela
não tema a nada, que ela não se entristeça por nada, que ela não seja dominada por nada de
inferior” (SIMPLÍCIO apud I. Hadot, 2004, p. 65). E o homem que alcança a verdadeira virtude
purificadora da apatheia é o verdadeiramente livre, segundo Proclo:
Assim, quando a alma neste mundo se eleva e recupera o seu poder, a virtude, ela não
considerará nada como sendo terrível, o que quer que aconteça ao seu corpo e aos bens
externos a ele. Pois as afecções dos órgãos não são transmitidas aos seus usuários, mas,
não importa sob qual condição os órgãos estejam, a pessoa agirá de acordo com a
virtude. Se seu corpo acontece de estar doente, ela será corajosa; se acontece de estar
saudável, ela será moderada; quando confrontada com pobreza, ela agirá com
magnanimidade; quando dotada de riquezas, ela agirá com magnificência, sempre
pondo, sobre os bens (externos) que parecem fluir abundantemente, a virtude que os
usará, e opondo às adversidades a virtude que liberta da escravidão. (De Prov., 25.10-
20)
Este nível de educação filosófica, portanto, é aquele em que o educando atinge a
maturação da sua verdadeira natureza e seu verdadeiro bem enquanto alma racional
autokinética – tal qual fora originalmente antes de cair na geração –, segundo o conhecimento
de si, segundo sua cognição e segundo sua vida. Porém, ele não encontra aqui ainda as suas
causas: trata-se de um conhecimento de si imperfeito, que ainda não realizou o fato de que os
princípios superiores habitam em seu cerne. O primeiro passo para esta reversão às suas causas
através da reversão a si mesma se dá no próximo nível, que pertence às virtudes contemplativas.

225
(g) Virtudes Contemplativas

O logos científico é de tal natureza que desdobra discursivamente uma razão interna
através do raciocínio dedutivo e demonstrativo. Ora, anterior ao desdobramento demonstrativo
está a razão interna enquanto intuição simples, inscrita na essência da alma pelo ellampsis do
Intelecto que inscreve em seu cerne a ‘fórmula racional todo-abrangente’ que é imagem do
mundo inteligível. Isto é, todo desdobramento do logos científico parte de uma intuição simples
que é, para cada uma das ciências, o seu princípio axiomático fundamental e fundador, suas
“premissas necessárias”. Porém, as ciências dianoéticas apenas aceita seus princípios
axiomáticos como dados, sendo incapaz de refletir acerca desses, os quais são, para ela,
indemonstráveis. Aqui jaz a deficiência das ciências dianoéticas, segundo Proclo, que cita
Aristóteles dizendo que “os geômetras não argumentarão contra alguém que abole seus
princípios”, pois “o que quer que siga dos princípios admitidos nessas ciências será evidente,
mas o que quer que diga respeito aos princípios em si mesmos será deixado de lado como sendo
obscuro e desconhecido” (De Prov., 28.6-14).
Além disso, as ciências dianoéticas, por si mesmas, são inevitavelmente fragmentadas
entre si, incapazes de encontrar a unidade de todas as ciências, uma vez que cada uma parte de
seu próprio princípio axiomático e todas elas ignoram o Princípio dos princípios, o único capaz
de reunir todas as ciências. É só a dialética, também chamada de metafísica ou primeira
filosofia, que é possível lidar com os princípios em si mesmos, e assim ascender ao Princípio
de todos eles e deste modo unificar todas as ciências:
Ascendendo mais alto, [...] [há outra] forma de conhecimento da alma humana, aquela
que ascende ‘através de todas’ as Formas, por assim dizer, em direção ao Uno e
Princípio ‘incondicional’, dividindo algumas, analisando outras, ‘tornando o uno
múltiplo’ e ‘o múltiplo uno’. Este conhecimento Sócrates define na República como a
‘cúpula’ das ciências matemáticas, e o estrangeiro do Epinomis a chama de
‘interconexão’ das ciências. Pois é desta ciência que o geômetra e cada um dos outros
cientistas derivam o conhecimento de seus próprios princípios, porque ela conecta os
muitos e divididos princípios com o Princípio único de todas as coisas. Pois o que é este
Princípio em todos os seres, na geometria é o ponto, na aritmética a unidade, e em cada
uma das outras ciências aquilo que é o mais simples; pois a partir daí cada uma das
ciências produz e demonstra seu próprio objeto. Mas cada um desses princípios é e é
dito ser um princípio particular, enquanto que o Princípio de todos os seres é um
princípio num sentido absoluto e é a Este que a ciência suprema [a dialética] ascende.
(De Prov., 29)

226
Também Siriano, mestre de Proclo, considerava-a como a ‘ciência de todas as ciências’,
por duas razões:
... primeiro, porque ela assiste as almas humanas em sua ascensão aos paradigmas
arquetípicos no nível inteligível; e segundo, porque ela provê as outras ciências com
seus axiomas. Por exemplo, ela oferece à lógica o princípio da não-contradição, à física
o princípio de que nada vem do nada, à geometria, ou à matemática em geral, o princípio
de que coisas iguais a algo são iguais uma à outra. O primeiro filósofo adquire
conhecimento destes princípios não através de demonstrações, mas apreendendo-os
com seu intelecto, enquanto todas as outras ciências particulares os aceita como
axiomáticos e demonstra com base nele as suas afirmações. (IERODIAKONOU, 2008,
p. 416)
A dialética, assim como a razão científica, consiste numa autorreflexão da alma sobre
suas próprias razões internas, através da projeção. Porém, o que as distingue é que a razão
científica apreende suas próprias formas a priori por si mesmas, enquanto que a dialética as
apreende enquanto imagens das Formas inteligíveis transcendentes, as essências autênticas da
verdadeira realidade. Por esta razão, a dialética é um movimento de reversão da alma a si mesma
como modo de reverter sobre suas causas superiores, um conhecimento de si que é
conhecimento analógico do verdadeiramente Real. Ela é a apreensão das formas lógicas,
linguísticas e matemáticas186 inatas à essência da alma, enquanto modo analógico de apreender
as Formas inteligíveis, ou seja, como sistema simbólico revelador de verdades ideais superiores
das quais os princípios dessas (lógica, linguagem, matemática) são meras imagens187.
Portanto, ela deve ser uma forma de pensamento racional que deve ser em alguma
medida intelectivo, capaz de ascender às intuições simples dos inteligíveis e ao mesmo tempo
discursar a seu respeito, sendo simultaneamente intuitiva segundo a sunagogê e discursiva
segundo a dihairesis. Mais além, deve ser capaz de conhecer de alguma maneira o Uno,
princípio de todas as coisas, e apreender as Formas inteligíveis à sua luz, “tornando o uno
múltiplo e o múltiplo uno”, unificando assim todas as ciências sob a ciência do Princípio de
todas as coisas188.

186
As formas matemáticas, de fato, permitem tanto que a alma apreenda suas próprias razões enquanto paradigmas
dos objetos sensíveis, tanto que apreenda suas próprias razões enquanto imagens dos inteligíveis (além, é claro,
da sua apreensão propriamente racional). Assim, há formas de empregar a matemática em cada um dos três níveis
de logos e linguagem que foi discutido até agora. A matemática enquanto apreensão analógica do inteligível seria
como aquele modo neopitagórico de empregá-la como sistema simbólico revelador de ideias mais gerais, através
das quais se pode compreender até mesmo as virtudes e os entes metafísicos em geral.
187
Proclo possui definições mais técnicas de símbolo, imagem, analogia, distinguindo-as entre si. Não entrarei no
mérito destas distinções, e mantenho aqui um emprego não técnico delas como se fossem sinônimos.
188
A ciência dialética sobre o Uno não é, porém, a via unitiva. Trata-se do discurso científico ou metafísico a seu
respeito, o qual porta não sobre o Uno em si mas sobre sua imagem racional em nós. A dialética que de fato conduz
à via unitiva será abordada no contexto da etapa da paideia que denominei Sabedoria.
227
Em sua faceta enquanto pensamento discursivo, a dialética é uma forma de lógica. Os
neoplatônicos, porém, diferenciam cuidadosamente a lógica formal dianoética (que só apreende
as formas racionais da alma), tal qual a aristotélica, desta lógica dialética que apreende também
os seres autênticos: uma forma, portanto, de lógica ontológica ou objetiva, que atribuem a
Parmênides e Platão. Vemos Proclo fazendo esta distinção quando diz, por exemplo, que “o
Crátilo é lógico e dialético, não, porém, ao modo dos métodos dialéticos peripatéticos, que não
são relacionados à realidade, mas ao modo do grande Platão” (In Crat., §2, 1.10-13). Trata-se
de uma distinção que Plotino já realizava, quando notou que a dialética não é um mero
instrumento e não lida meramente com proposições e regras formais, ou meras teorias e regras,
mas “lida com realidades e sua matéria, por assim dizer, são os seres”, um método que
“apreende as realidades juntamente com suas teorias” (tr. 20 [I.3], 5.9-13; 18-19), isto é, uma
apreensão simultaneamente do “quê” e do “porquê” dos entes.
Vemos neste trecho, também, a menção ao debate acerca da questão se a dialética é uma
parte ou um instrumento da filosofia, derivado dos filósofos estóicos e peripatéticos.
Encontramos no Comentário aos Analíticos Anteriores escrito por Amônio, discípulo de Proclo,
uma versão bem elaborada deste debate e a posição do Neoplatonismo Tardio a este respeito,
que nos serve para delinear com clareza a maneira como os neoplatônicos distinguiam entre a
lógica formal aristotélica da lógica ontológica (dialética) que eles consideravam como
propriamente platônica. Diz Amônio (apud HELMIG, 2017, p. 186):
De acordo com Platão e a verdadeira razão, a lógica não é nem uma parte, como os
estóicos e alguns platônicos dizem, nem é apenas um instrumento, como os
peripatéticos dizem, mas é ambos uma parte e um instrumento da filosofia. Pois se você
considerar os argumentos juntamente com seus objetos – por exemplo, silogismos em
si mesmos juntamente com os seus objetos que estão em sua base (o conteúdo dos
termos lógicos) – a lógica é uma parte [da filosofia]; se, porém, (você considerar os
argumentos) como esquemas vazios sem seus objetos, é um instrumento. Portanto, os
peripatéticos estão corretos em atentar-se aos comentários de Aristóteles e dizer que a
lógica é um instrumento. Pois ele apresenta esquemas vazios, considerando não os
objetos subjacentes mas aplicando o esquema a letras: ‘A (se sustenta) para todo B, B
para todo C, portanto A para todo C’, por exemplo. Platão, por outro lado, usa a lógica
tanto como uma parte quanto como um instrumento, pois quando ele aplica esses
esquemas aos objetos e usa os silogismos sobre objetos, quando, por exemplo, ele diz,
‘a alma é automotriz, este último [aquilo que é automotriz] é perpetuamente em
movimento, este último [o movimento] é imortal, então a alma é imortal’, então, usando
a lógica juntamente com os objetos que a subjazem, ela a usa como parte. Quando,

228
porém, ele emprega apenas métodos dedutivos, esquemas vazios sem objetos, ele usa a
lógica como instrumento.
Para que a dialética possa aportar sobre os objetos ou realidades (inteligíveis) e não
apenas sobre as suas próprias formas a priori, porém, é necessário que ela seja não só um
pensamento discursivo que desdobra suas próprias razões, mas também, como vimos, que ela
seja capaz de analogicamente apreender os autênticos inteligíveis através das suas próprias
razões. Mas o logos científico, com seus processos de composição e distinção, não é capaz de
apreender o inteligível, que é uma intuição simples. Nem é possível que a razão científica
discurse acerca dos seres inteligíveis em si, que são externos a ela, pois se discursasse de modo
representativo sobre aquilo que lhe é externo, ela seria uma razão opinativa. Portanto, segundo
sua outra faceta enquanto pensamento intuitivo, a dialética é uma forma de intelecção ou noêsis,
um logos noeros (intelectivo) que participa na pura imediaticidade da intelecção divina através
da luz irradiada (ellampsis) pelo Intelecto, dotada como é de identidade entre cognoscente e
cognoscível, livre da distância e alteridade da representação. Neste sentido, a dialética não é
meramente uma descoberta (o movimento autokinético da alma racional desdobrando suas
próprias razões), mas consiste numa forma superior de aprendizado (mathêsis). Ora,
aprendizado havia sido definido anteriormente, no contexto da sua forma inferior, como algo
que a alma recebe de fora; o aprendizado superior, porém, ela recebe do intelecto que a ilumina
desde seu interior. Ele se dá quando a alma volta-se a si mesma como um modo de voltar-se à
sua causa (MACISAAC, 2011, pp. 44-45)
E por fim, enquanto um pensamento simultaneamente discursivo e intuitivo, a dialética
não é uma forma de intelecção que intui os inteligíveis num só golpe e como uma totalidade,
como o faz o Intelecto, mas uma forma de intelecção parcial e sucessiva que intui um inteligível
por vez, um “conhecimento discursivo intuitivo envolvendo um aspecto temporal conatural a
si mesmo” (In. Tim., II, 244.16-19). Desta forma, ela age simultaneamente de segundo o modo
demonstrativo e discursivo de discurso, e segundo a simplicidade do conhecimento intuitivo,
de modo que conhece “cada coisa de uma vez e como algo simples, mas não conhece todas as
coisas de uma vez. Ao invés disso, move de uma a outra, ainda que neste processo conheça
cada objeto de seu conhecimento como algo único e simples” (In. Tim., II, 246.2-10). Proclo
assim descreve a natureza desse logos noeros ou intelectivo:
… quando quer que a alma distancia a si mesma da imaginação, da opinião e da
cognição que é variegada e indeterminada, e ascende à sua própria indivisibilidade 189
em virtude da qual é enraizada num intelecto particular, e em sua ascensão conecta sua

189
A ‘flor do intelecto’, de que tratarei adiante.
229
própria atividade com o conhecimento intuitivo daquele intelecto, é então que,
juntamente com ele, ela conhece o sempre existente. [...] então que o conhecimento
intuitivo da alma é mais capaz de ver ... e se aproximar mais das realidades eternas, de
modo que ela também apreenda o inteligível juntamente com o intelecto e se torne ativa
como uma luz menor agindo em conjunto com uma luz maior. De fato, o logos em nós
se eleva ao conhecimento intuitivo do intelecto, e então o inteligível é apreendido por
um conhecimento intuitivo junto ao logos. [...] quando quer que este último se torna ‘da
forma do intelecto’ (nooeidês). [...] o logos contempla o objeto inteligível circundando
ao seu redor e focando sua atividade e movimento num ponto central. O conhecimento
intuitivo conheceria então seu objeto não-discursivamente e indivisamente, enquanto o
logos dança ao redor da essência do inteligível num círculo e desenrola a unidade
substancial de todas as coisas que ele possui. (In. Tim., II, 247.9 – 248.7)
Havíamos visto no segundo capítulo as duas operações fundamentais do pensamento
dialético em Platão: a sunagogê e a dihairesis, sinopse e divisão, que correspondem
respectivamente às vias dialéticas ascendentes e descendentes, que tratei no segundo capítulo
de um modo mais amplo, como demarcando o caminho duplo da paideia platônica em geral.
Mais tecnicamente, no contexto estrito da dialética, trata-se de dois modos ou direções distintas
do pensamento, como o observou Aristóteles: “atentemos ... para a diferença entre os
argumentos que procedem dos primeiros princípios e os que levam a eles. Platão já havia
levantado esta questão, perguntando, como costumava fazer: ‘estamos no caminho que parte
dos primeiros princípios ou no que se dirige a eles?’” (Ética a Nicômaco, 1095a). A dialética,
enquanto combinação de sunagogê e dihairesis é uma oscilação constante entre essas duas
direções do pensamento, de modo a constantemente unificar o múltiplo e multiplicar o uno.
Em Proclo encontramos essas duas operações do pensamento dialético sob o nome de
análise e síntese, que são, respectivamente, raciocínio por negação (apophasis) e raciocínio por
afirmação (kataphasis); através do primeiro nos elevamos ao inteligível, através do segundo
descendemos ao sensível. Ele diz:
... algumas vezes procedemos através da síntese e algumas vezes através da análise: e
ao raciocinar sinteticamente nós fazemos afirmações (ta men kataphatika legontes
sunthetikôs) e ao raciocinar analiticamente nós fazemos negações (ta de apophatika
analutikôs). Síntese e análise pertencem inteiramente à natureza da alma. Ela descende
do mais perfeito ao mais imperfeito através das sínteses de logoi e a adição de certas
vestes estrangeiras, de tal modo que é cercada por esta prisão grosseira e rígida. Ela
ascende através de análises e o abandono daquilo que não a pertence de nenhuma
maneira, até que se torne nu ... e se unifica com as Formas imateriais e separadas. Por
esta razão o silogismo que procede através de afirmações procede do mais perfeito ao

230
menos perfeito, e o silogismo que procede através de negações é o reverso. (In Alc.,
179.11-180.6)
A síntese, ou afirmação (kataphasis), é o raciocínio que, partindo de uma intuição
intelectual simples, a explica ou desdobra discursivamente, adicionando termos a ela: por
exemplo, da pura ideia do animal, desdobra o pensamento do cachorro, do cavalo, etc, como
explicitações daquilo que jaz potencialmente na simplicidade da ideia “animal”. Desta forma,
a síntese é o pensamento que, partindo de um princípio inteligível simples, se dirige à
complexidade – o que é o modo pelo qual a alma descende do inteligível ao sensível, da intuição
ao discurso. A análise, ou negação (apophasis), por outro lado, é o raciocínio que, partindo da
complexidade, nega ou subtrai todos os desdobramentos e adições, até que conduza a alma à
pura simplicidade da intuição originária da ideia do animal – no exemplo em questão
(MACISAAC, 2001, p. 202n). Este é o modo pelo qual a alma ascende da complexidade à
simplicidade, do sensível ao inteligível, do discurso à intuição. A análise, portanto, é um
raciocínio ou movimento da alma racional que a conduz à simplicidade da iluminação
intelectiva que a inscreve essencialmente, e unida à qual a alma é capaz de atuar de modo
intelectivo como um logos noeros. O raciocínio analítico ou apofático, diz MacIsaac (2001, pp.
203-204), “projeta os logoi [as razões essenciais] apenas para deixá-los para traz”. Hadot (2002,
pp. 240-241; 243) comenta o emprego desta forma analítica de raciocínio, ainda entre os antigos
acadêmicos e peripatéticos:
... a noêsis consiste na intuição de uma forma ou de uma essência, e esta apreensão da
forma implica uma retração daquilo que não é essencial: é próprio ao pensamento o
poder de efetuar esta separação. [...] [Por exemplo], para definir as entidades
matemáticas: pela retração da profundidade, nós definimos a superfície, pela retração
da superfície, nós definimos a linha, pela retração da extensão, nós definimos o ponto.
[...] Ora, esta operação de retração pode se conceber, numa perspectiva lógica, como
uma operação de negação. Nós podemos representar a atribuição de um predicado a um
sujeito como uma adição e a negação deste predicado como a retração desta adição. [...]
Esta abstração é um verdadeiro modo de conhecimento. Nós retraímos e negamos um
‘extra’ que é adicionado a um elemento simples. Nesta análise, nós remontamos assim
do complexo ao simples e da realidade visível – os corpos físicos – às realidades
invisíveis e puramente pensadas que fundam sua realidade. A hierarquia e a gênese das
realidades se estabelecem em função de seu nível de complexidade ou simplicidade. O
complexo procede do simples por adições de elementos que, tal como as dimensões
espaciais, materializam a simplicidade original. É por isto que a ascensão em direção
ao inteligível se efetua ao retrair essas adições materializantes. Esta ascensão tem,
portanto, um aspecto negativo: a subtração dessas adições, e um aspecto positivo: a
intuição das realidades simples. Este método permite se elevar de um plano ontológico
231
inferior aos planos ontológicos superiores, numa progressão hierárquica. [...] esta
abstração não conduz a ‘abstrações’. As negações são de fato afirmações [...]. As
abstrações podem, portanto, conduzir à intuição intelectual de uma plenitude concreta,
o verdadeiro concreto sendo incorpóreo e inteligível.
O dialético, diante da questão filosófica com que lida, procede de uma intuição simples
originária e a ‘explica’, desdobrando sua complexidade inerente segundo a afirmação, a divisão,
a demonstração, a síntese; em seguida, pela negação, pela análise e pela sunagoge, retorna à
intuição simples originária, mas com uma claridade maior em sua capacidade de apreendê-la
(MORROW apud Olsen, 2002, p. 92), momento em que irrompe em sua alma “a luz da
inteligência e do saber” (Sétima Carta, 344b), “gerada na alma de súbito, como a luz que cintila
quando uma fogueira é acesa, alimentando em seguida a si mesma” (ibid., 341c-d). Essa é a
capacidade de “salto intuitivo” que é necessário para que hipóteses sejam concebidas 190,
saltando intuitivamente, sem discurso ou argumento, das conclusões às premissas por elas
implicadas – as quais não podem ser deduzidas a partir da conclusão (CORNFORD apud Olsen,
2002, p. 95). E, novamente, ela procede desta intuição num novo discurso sintético, para em
seguida retornar ao princípio analiticamente. Deste modo, ela retorna sempre a uma intuição
mais aguçada e expandida, passando assim de hipótese a hipótese, até atingir dialeticamente o
princípio não-hipotético, o Uno. Por outro lado, ela procede sempre novamente, segundo o
discurso, a cada passo verificando e demonstrando racionalmente as hipóteses intuitivas pelas
quais subiu (HEATH apud Olsen, 2002, p. 92). Desta forma, o dialético ascende das ciências

190
Olsen (2002, pp. 94-99) argumenta que este “salto intuitivo” que é a essência da ascensão dialética em Platão,
e que teria sido melhor preservado textualmente nos escritos de Proclo, corresponde àquilo que Charles S. Peirce
(1839-1914) chamou de abdução. A abdução seria uma forma de raciocínio distinto tanto da dedução quanto da
indução, na medida em que é o único método pelo qual hipóteses podem ser formadas, pelo qual algo novo e
original pode ser concebido, “a única operação lógica que introduz novas ideias”, e que consistia numa espécie de
salto em insight pelo qual “criatividade e uma habilidade de ver novas relações e raciocinar de modos novos”
adentram no método científico. Trata-se de uma espécie de “adivinhação” criativa e intuitiva, porém também
apenas conjenturalmente ou aproximadamente verdadeira. Cada hipótese assim formada, precisaria ter deduzidas
as condições segundo as quais ela seria verdadeira, e em seguida é preciso verificar na experiência se estas
consequências se seguem (o que Peirce chama de indução). Uma vez que as condições assim deduzidas são
verificadas na experiência, a hipótese abdutivamente concebida pode ser considerada provisoriamente verdadeira.
Mas quando algum problema é encontrado, é preciso um novo “salto” a uma nova e mais abrangente hipótese, que
novamente passaria pelo crivo da dedução e da indução, formando uma teoria provisoriamente verdadeira, e assim
sucessivamente. A característica fundamental de um cientista que prossegue segundo este método, segundo Peirce,
seria o fato de que ele, a cada etapa de sua investigação, tem uma teoria que é aproximadamente verdadeira, e,
assim, na medida em que sua investigação prossegue, ele não passa meramente do erro à verdade, mas de uma
verdade aproximada a outra verdade ainda mais aproximada, e assim sucessivamente. Olsen propõe que esta teoria
da abdução peirciana é parente direta da dialética platônica, preservada parcialmente nos textos de Aristóteles e
mais plenamente nos textos de Proclo, e que oferece uma espécie de ponte entre o método científico e o raciocínio
metafísico neoplatônico. Ele diz (ibid., p. 99): “Este método epistemológico não é de modo algum inconsistente
com uma ontologia profundamente metafísica e, de fato, espiritual. [...] abdução, a lógica da descoberta e a essência
do método científico, é um método epistemológico claramente aplicável à divina hierarquia da Grande Corrente
do Ser”.
232
aos seus princípios, e destes ao Princípio de todas as coisas, de modo que cada etapa seja tanto
intuída quanto demonstrada. Esta seria a ciência filosófica suprema, a metafísica.
Porém, devido à natureza fragmentada e sucessiva da noêsis discursiva a que o dialético
tem acesso, ele nunca alcança, nessas suas perambulações entre intuição e discurso, a apreensão
‘de um só golpe’ da totalidade do Real – que é o Intelecto. A razão intelectiva toca, saboreia o
inteligível – mas sempre segundo o modo próprio à razão e não segundo o modo próprio ao
Intelecto. O conhecimento dialético é de fato verdadeiro, porém sempre aproximativo, sempre
imerso num movimento que, ainda que cada vez mais amplo em sua visão, está fadado a nunca
ser a visão total. O círculo da sua autorreflexão ao redor da intuição intelectual nunca se fecha,
a perambulação (planê) do pensamento dialético nunca tem fim. Ora, porque a alma é
discursiva, ela é essencialmente planê, e a medida de sua planê significa a medida de sua
ignorância. Mesmo, portanto, que em sua intelecção dialética ela de fato tenha um contato com
o Ser real ou a verdade (De Prov., 30.21-22), na medida em que ela é perambulação ao redor
desta verdade que ela incapaz de apreender em sua totalidade, ela é ignorante (c.f. BUTORAC,
2009, pp. 40-41). A verdade da dialética é sempre aproximativa, portanto. Mesmo que possa
reivindicar um acesso ao Real e à verdade, o dialético não pode reivindicar sua posse. Essa seria
a justificação última, segundo Proclo, para a confissão de ignorância de Sócrates:
[A ignorância de Sócrates] emerge do fato que ele não tem uma visão plenamente
unificada do Intelecto como o próprio Intelecto, apreendendo esta visão, em vez disso,
apenas parcialmente ou particularmente, isto é, temporalmente, uma vez que ele é uma
alma. Enquanto alma (seja racional ou intelectual), Sócrates nunca completamente
conhecerá, i.e. ser unificado com, a hipóstase do Intelecto, e portanto ele, para manter
sua honestidade, deve admitir ignorância. Ele não possui tal conhecimento divino ou
completo. Ainda assim, certamente, através do seu amor pelas Formas [inteligíveis],
Sócrates está assentado, como Proclo o descreve, no ponto de vista do divino. Em outras
palavras, Sócrates, no nível da alma intelectiva, possui uma forma de sabedoria que
supera o pensamento discursivo ... mas ultimamente Sócrates permanece, como Diotima
pensou acerca do eros, entre o intelectual e o corpóreo. [...] ele está entre um certo
conhecimento (divino), i.e. o sempre existente nível do unificado Intelecto divino que
pensa a si mesmo, e o conhecimento humano, a alma racional/intelectual [imersa] no
tempo ... (LAYNE, 2017, p. 10)
O dialético proclino, portanto, corresponde perfeitamente ao conceito de filósofo
platônico que propus no segundo capítulo: barqueiro daimônico que navega continuamente
entre as margens do divino e do humano, da intuição e do discurso; um intérprete que traduz a
linguagem de um ao outro – e que, por esta razão, nunca pertence completamente a nenhum
dos dois lados. Além da Metafísica de Aristóteles, outros textos filosóficos relevantes neste
233
nível são: o Sofista, o Político e o Filebo, diálogos caracteristicamente dialéticos. Além disso,
o Timeu também poderia entrar aqui, pois é uma física platônica que lida com todos os três
níveis de logos e suas respectivas Formas, porém derivando tudo dialeticamente a partir do
Intelecto Demiúrgico.
E isto nos leva à consideração acerca do tipo de linguagem a que corresponde esse logos
intelectivo da dialética. Como foi visto anteriormente, para Proclo, há níveis distintos em que
nomes podem ser considerados convencionais ou naturais, de acordo com a predominância da
forma ou da matéria em sua natureza, e de acordo com a perecibilidade ou imutabilidade do
ente a que se referem, de modo que a linguagem opinativa foi dita ser mais convencional e a
linguagem científica mais natural, relativamente uma à outra. Também foi mencionado que,
para Proclo, a linguagem é natural na medida em que é como uma imagem similar a seu
paradigma. Ora, do que se trata o paradigma da linguagem, sendo mais similar ao qual ela pode
ser dita natural, e sendo mais dissimilar ela pode ser dita convencional?
O paradigma de toda linguagem é, de fato, as Formas inteligíveis. Elas formam uma
espécie de linguagem divina primordial, na qual os nomes e os seres, referente e referenciado,
são um só. Isto se dá devido à identidade entre Ser e Pensar no inteligível, que é tal que as
Formas são o que dizem e dizem o que são, sendo a verdade tanto enquanto pertencimento à
ordem da realidade quanto à ordem da significação (“a verdade ... é o que diz e diz o que é”, tr.
32 [V.5], 2, 15-20). Nomes, nessa ‘linguagem’ divina, são seres. Esta identidade entre referente
e referenciado nas Formas inteligíveis garante, enquanto imagem algum nível de identidade
entre os níveis inferiores de linguagem e seus respectivos objetos (as formas ‘técnicas’ imersas
na matéria e as formas ‘discursivas’ da alma). Porém, na medida em que constituem uma
linguagem paradigmática, as Formas não são, elas mesmas, linguagem, mas a medida
ontológica e gnosiológica pela qual toda linguagem se ordena. A respeito dessa identidade
intelectiva primordial, diz o neoplatônico Simplício (apud GRIFFIN, 2013, p. 12):
Pois nem são as expressões significativas completamente separadas da natureza dos
seres, nem são os seres separados dos nomes que são naturalmente apropriados para
significa-los. Nem, finalmente, são conceitos intelectuais estranhos à natureza dos
outros dois; pois todas essas três coisas foram previamente [no Intelecto] uma só, e se
tornaram diferenciadas posteriormente [na Alma]. Pois o Intelecto, sendo idêntico às
realidades e com intelecção, possui como um tanto os seres quanto os conceitos
intelectuais a seu respeito, em virtude de sua unidade indiferenciada, e ali (no mundo
inteligível) não há necessidade da linguagem.
Os nomes são, segundo Proclo, estabelecidos ocultamente entre os deuses inteligíveis
(In Crat., §71, 29.23-24), isto é, sob uma forma supralinguística; e na medida em que
234
descendem a níveis inferiores de realidade, tomam a forma correspondente ao nível que os
recebe (ibid., 31.8-32.1), de modo que se tornam linguísticos de fato, segundo forma e matéria,
quando recebidos pela natureza discursiva da alma. Trata-se de uma explicação linguística para
aquilo que vimos anteriormente como sendo a inscrição das razões (logoi) na essência da alma
a partir de uma iluminação intelectiva.
Neste sentido, a linguagem emerge também como projeção (probolê), na medida em
que a alma utiliza seu poder de representação (eikastikê dunamis) e sua imaginação linguística
(lektikêi phantasiai): voltando-os para fora, para o mundo sensível e seus objetos particulares,
gera (projeta) a linguagem imitativa (opinativa); voltando-os para a essência da própria razão,
projetam e articulam a essência racional dos nomes, suas formas; e voltando-os para o Intelecto
que a inscreve, gera nomes que são como estátuas sagradas nos templos, as quais, graças aos
sinais que a tornam semelhante à natureza divina, teurgicamente recebem em si uma iluminação
divina pela qual os próprios deuses se fazem presentes nela (In Crat., §51, 18.29-19.18). Isto é,
“o ser humano que associa seu próprio nous à luz divina está ‘atuando sob inspiração’, e,
portanto, é capaz de instituir nomes que verdadeiramente significam as essências divinas”
(MACISAAC, 2013, p. 104). Enquanto a matéria predomina na linguagem opinativa, e a forma
predomina na científica, temos que a própria luz intelectiva da Forma inteligível – que é o
paradigma de toda linguagem – habita a forma e a matéria da linguagem intelectiva, tal qual
um deus habita com sua luz e presença a estátua a ele consagrada. Desta forma, neste nível os
nomes são carregados de um poder capaz de instituir, na alma daquele que o recebe 191, uma
intuição daquele ser real que é o inteligível (In Crat., §48, 16.21-25)192.
Porém, se o dialético operasse de modo puramente intelectivo, não haveria em seu
pensamento nem racionalidade nem linguagem; mas como ele é um logos intelectivo, sua
linguagem é forma e matéria, na medida em que é logos, e luz intelectiva, na medida em que é
intelecção. Ela ainda é uma projeção das razões essenciais da alma, mas uma apreensão destas

191
O intérprete da linguagem intelectiva só pode compreendê-la na medida em que ele mesmo associa seu logos à
luz intelectiva que é a fonte daquela linguagem (MACISAAC, 2013, p. 118).
192
No mundo inteligível, o Intelecto demiúrgico é o nomeador paradigmático, o ‘legislador’ (nomothetês), que
produz segundo uma lei eterna todos os logoi da Alma, segundo Proclo, “por meio da fala apenas – pois as palavras
do Pai são os pensamentos demiúrgicos e seus pensamentos são atos de criação” (apud HELMIG, 2017, p. 192).
Isto é, Zeus, o Intelecto demiúrgico, revela à Alma e a instrui acerca do mundo inteligível, e desta forma ele é o
princípio da processão dos seus raciocínios, o produtor dos nomes. Por outro lado, o Intelecto que permanece
voltado a si mesmo, Kronos, possui o princípio dos nomes que Zeus produz, porém os possui por si mesmos, de
forma que sua atenção habita a essência dos nomes. Também entre os homens, temos os oráculos e poetas que
instituem os nomes, revelando-os e instruindo-os, e são assim análogos de Zeus; e os dialéticos, aqueles cujas
inteligências habitam a essência mesma dos nomes, dedicando-se ao seu uso enquanto instrumento de
discriminação das essências inteligíveis (MACISAAC, 2013, pp. 102-103).

235
enquanto imagens analógicas das Formas inteligíveis; isto é, uma apreensão “metafórica” (no
sentido trabalhado no subcapítulo anterior) daquelas. Neste sentido, ela é ainda discursiva,
racional, porém “grávida” de um sentido mais profundo do que sua matéria e mesmo a sua
forma podem compreender, e isto se dá porque esta forma de linguagem assume sua natureza
enquanto analogia: ela não se resume a literalmente apontar para algum objeto externo (tal qual
a opinativa), nem cientificamente demonstra as razões internas (tal qual a científica), mas alude
a algo que transcende sua natureza propriamente discursiva. Segundo Proclo, as analogias da
linguagem não são meramente arbitrárias ou convencionais, nem meramente indicam a relação
de Forma e imagem: antes, elas apreendem analogias ontológicas reais que unem diferentes
realidades em simpatia, uma vez que “por analogia, assim como as coisas são dispostas umas
às outras, assim também os nomes a elas atribuídos são dispostos um ao outro de acordo com
sua honra e poder” (In Crat., §56-57, 24.29-25.10).
Toda a progressão do pensamento filosófico está apoiada, de certa forma, sobre a
linguagem: inicia-se pelas noções comuns expressas na linguagem ordinária; em seguida
passamos pelo desdobramento racional das razões que subjazem a essas noções comuns, numa
linguagem científica; e por fim, remetemos analogicamente as razões de nossa linguagem às
realidades autênticas no mundo inteligível. Trata-se de um processo de refinamento da
linguagem, no qual a metáfora exerce o papel de sua ‘espiritualização’. Como o observou Hegel
(2009, p. 449), “cada língua, como tal, contém já um grande número de metáforas. Provém isso
de que uma palavra, que de início possuía um significado essencialmente sensível, acaba por
assumir uma significação espiritual” – um fato que deixa de ser reconhecido pela força do
hábito.
Uma elucidação mais clara deste processo poderia ser atingida através de uma
aproximação a algumas reflexões do pensador indiano Ram Swarup (1920-1998). Ele aponta
(2001, pp. 64-66) que, no processo de desenvolvimento de um idioma numa dada cultura, as
palavras passam a existir em múltiplas camadas e modos de significação – desde aqueles que
são mais sensíveis, até camadas mais profundas, de significações mais psicológicas e até
intelectuais. Isto se dá porque as palavras não são apenas “um sistema de signos para coisas
externas. Elas expressam a vida interna da mente em toda sua ampla gama. A mente não vive
num mundo de coisas e fatos e utilidade; ela vive num mundo de sentidos e significações” (ibid.,
p. 68). Por exemplo, ele diz, o fogo é facilmente identificado com palavras como ‘queimar’,
‘aquecer’ e ‘brilhar’; mas também ideias morais e psicológicas – como energia, ânsia, vigor,
paixão, inspiração, raiva, violência, destruição, entusiasmo, excitação – o evocam, ainda que

236
num sentido expandido e mais “metafórico”. Assim, também, uma palavra como “oceano” pode
indicar a expansão aquática a que este nome se refere primariamente, mas também, num sentido
expandido, pode sugerir as ideias de um obstáculo insuperável, algo que divide, ou uma
profundidade insondável, ou mesmo uma ideia tão ‘abstrata’ como a infinitude. A palavra
“pedra” pode sugerir não apenas a substância mineral, mas ideias como a inflexibilidade,
insensibilidade etc. O solo (latino humus) sugere ideias como homem, humanidade, humildade.
Uma flor é, também, a parte mais delicada de alguma coisa; o fruto é também a prole, ou os
resultados de nossas ações. Desta forma, uma palavra “existe simultaneamente em vários níveis,
o físico, o psicológico, o moral, o espiritual. Ela é o ponto de encontro entre todos eles” (ibid.,
p. 66). Ele diz:
Uma palavra poderia ser dita possuir três corpos, um interno ao outro. Estes poderiam
ser chamados: físico, sutil e causal. No primeiro reside os sentidos físicos mais
dominantes e diretos de uma palavra [...]. Estes sentidos estão dentro do alcance de
mentes ordinárias. O corpo sutil contém muitos sentidos-semente que são psicológicos
e psíquicos em caráter. Aqui a palavra pulsa com uma nova vida e brilha com uma
grande inteligência interna. Esses sentidos não estão inteiramente fora do alcance e são
revelados à mente refletiva. O terceiro invólucro é o mais sutil e contém os sentidos
noumênicos que também são o suporte de todos os sentidos fenomênicos de uma
palavra, mental ou físico. Ele possui a semente imperativa que renova a palavra
continuamente; que é sempre idêntico através de todas as mudanças físicas. Este é o
estatuto mais elevado de uma palavra e ele permanece invisível. Seu cume ou cerne é
oculto no coração; o que significa que seus sentidos não são revelados à mente sensual
e raciocinante, mas são acessíveis à mente intuitiva. (SWARUP, 2001, p. 99)
Neste sentido, duas atitudes filosóficas distintas podem ser identificadas acerca dessa
polissemia de níveis de sentido de que as palavras são capazes: uma atitude seria considerar
que os significados sensíveis das palavras são primários, e os não-sensíveis são uma mera
extensão ou abstração; outra atitude, por outro lado, seria considerar que os significados mais
amplos, que sugerem ideias pertencentes à vida interna do intelecto, é que são de fato primários,
pois dizem respeito àquilo que é verdadeiramente real, enquanto que os fatos sensíveis análogos
são suas meras instâncias (ibid., p. 66). Isto é, esta segunda atitude vê as analogias que os níveis
de sentido dos nomes possuem como sendo reveladoras de analogias ontológicas entre níveis
de realidade a que fazem alusão, e compreendem os sentidos mais ideais como os mais reais193.
Ele diz:

193
O que pode ser uma maneira de compreender a natureza do idealismo objetivo, como o platônico.
237
Na vida, no desenvolvimento humano ordinário, a mente física ou sensual vem
primeiro; e em muitos casos, ela permanece predominante. Para esta mente, a palavra é
primariamente um nome de um objeto físico ou de uma emoção forte; e qualquer outra
acepção mais psicológica ou intelectual é meramente uma extensão do significado
primário. Mas na declaração de princípios [metafísicos], tattvas, e para uma mente
introspectiva que desenvolveu uma capacidade para ver internamente, a ordem é
revertida. Os mundos físicos e sensuais refletem realidades internas; objetos externos
convêm informações sobre estados internos da mente. Eles representam, numa forma
física ou sensual, a ‘ideia’, alguma verdade universal mais profunda da mente. Para esta
mente, o céu é uma imagem do Infinito interno, que também poderia ser evocado pela
imagem do oceano, ou pelas estrelas, ou mesmo por números matemáticos. Portanto,
para esta mente, o céu, o oceano, as estrelas são metáforas tanto quanto as ideias de
infinitude e eternidade o são para outro tipo de mente, se por metáfora queremos dizer
um significado transferido, uma transliteração de sentido de uma linguagem para outra,
de uma linguagem de um nível da mente para outro. (ibid., pp. 85-86)
É a combinação da polissemia de níveis de sentido da linguagem e o idealismo objetivo
que compreende haver analogias reais entre os seres que fundamenta a possibilidade da poesia
e garante que ela seja significativa. Ele diz:
[isso] faz com que essas palavras sejam adequadas à poesia. Ajuda-as a expressar na
linguagem sensual aquilo que está além dos sentidos. Poetas tiram proveito desta
qualidade das palavras. Eles utilizam um nível de experiência para sugerir outro. Eles
utilizam figuras de linguagem, figuras de comparação e contrastes, analogia, aliteração,
metáfora, alegoria, personificação, paralelos, alusões. Eles substituem o continente pelo
conteúdo, o signo pelo significado, a causa pelo efeito e vice-versa. [...] E tudo isto não
é apenas licença poética ou artimanha linguística, boa para ornamentação mas má para
pensamento correto, como alguns nos alertariam. Não. Essas são as maneiras de dizer
coisas efetivamente. De fato, algumas coisas não poderiam ser ditas de outro modo. [...]
Pois as palavras são por natureza multifacetadas ... elas reportam e generalizam; elas
interpretam e fornecem uma moral, e sugerem profundidades e alturas insuspeitadas. E
elas preenchem esta função porque elas repousam e constroem sob a natureza das coisas,
porque as ideias e coisas que elas significam a tornam possível, porque elas expressão
uma verdade da realidade. Palavras são vivas porque seus referentes são vivos. Palavras
falam porque porque as coisas que significam são eloquentes. O que chamamos de
mundo físico não é morto, nem estúpido. Ele é vivo; ele fala. Ele faz sugestões para
além de si mesmo. Ele é penetrado pela vida do Espírito. (ibid., pp. 67-68)
De fato, também Proclo reconhece, além da forma imitativa de poesia tratada no estágio
da Cultura, uma forma didática ou científica de poesia, que é adequada à educação no estágio
Filosófico da paideia. Ao contrário da primeira, que apenas imitava entes sensíveis e a vida
passional, e que precisava ser regulada segundo certos princípios da natureza da opinião correta
238
para que servisse ao propósito educacional de treinar almas jovens nos hábitos virtuosos, a
poesia didática é preenchida de saber: um tipo de poesia filosófica. Ela é a poesia que possui a
ciência dos seres e que opera com entendimento e sabedoria, que ensina aos homens sobre a
natureza incorpórea e examina as proporções que tornam a alma bela – e a tudo isso “ornando
de métricas e ritmos apropriados” (In Remp., VI, 186.22-30). Seus autores não são nem
meramente opinativos ou imitativos, nem ainda divinamente inspirados, mas “prudentes”,
movidos segundo a “ciência pela qual discerne a natureza das coisas” (ibid., 188.11-14).
Porém, a dialética não é poesia. Como foi dito anteriormente, ela é a apreensão das
formas lógicas, linguísticas e matemáticas inatas à essência da alma, enquanto modo analógico
de apreender as Formas inteligíveis, ou como sistema simbólico revelador de verdades ideais
superiores das quais os seus princípios são meras imagens. Neste sentido, ao contrário da
poesia, a dialética possui uma forma e um comprometimento racional bem mais pronunciado.
Dizer que sua linguagem é metafórica não significa reduzi-la a mera poesia, mas identificar a
natureza expandida do sentido em que emprega a linguagem. Não apenas no sentido em que
falar em ‘Ideias’ não significa meramente falar em contornos visíveis dos objetos (a acepção
‘sensível’ primária do termo grego idea); nem falar em ‘visão’ ou ‘insight’ e ‘olho da alma’
significa falar de uma percepção sensível de fato, nem falar em ‘apreensão’ significa o ato
concreto de apreensão com a mão, e assim por diante; mas, mais profundamente, os próprios
conceitos da dialética são “metafóricos” num outro sentido: pois o dialético fala temporalmente
daquilo que é atemporal, fala sucessivamente daquilo que é não-sucessivo, fala divisivamente
daquilo que é indivisível, etc. A linguagem metafísica está plena de termos que são expansões
metafóricas do sentido sensível ordinário, e este sentido propriamente intelectual é mais
verdadeiro, mais conatural ao autenticamente real. E neste sentido, embora não seja poesia,
possui um parentesco fundamental com aquela: tanto o senso filosófico quanto o senso poético,
diz Schelling (2010, p. 54), depende da compreensão viva de que o “absolutamente ideal” é o
“absolutamente real”.
O último nível do estágio filosófico da paideia, portanto, é o da virtude contemplativa,
quando a alma racional se volta ao Intelecto e é por ele iluminado. É aqui que ganha
proeminência a dialética, a ciência que é constituída pela íntima interrelação entre discurso e
intuição sinóptica, a atividade própria da razão e a iluminação intelectiva que a permite
contemplar o Ser. Vivificamente, a escolha iluminada pela razão intelectiva tende sempre à
verdadeira vontade. Este é o início da vida contemplativa da alma, na qual ela passa a participar
da quietude e a tranquilidade do Espírito, o momento em que o verdadeiro despertar do sono

239
dos sentidos começa a dar frutos. Segundo Porfírio (apud ADDEY, 2011, p. 76), aquele que
vive segundo a virtude política é um homem digno, aquele que vive segundo a virtude
purificatória é um homem angélico, mas aquele que vive segundo essa virtude contemplativa é
um deus194. Ele é aquele que vive a verdadeira vida teorética que Platão e Aristóteles exaltavam,
o filósofo contemplativo do Teeteto (173d-174a), que vive completamente desapegado das
coisas mundanas com as quais as outras pessoas se ocupam, prosseguindo “seu caminho alado”,
“investigando a natureza universal de todas as coisas que são, cada uma em sua inteireza, jamais
rebaixando-se a qualquer coisa ao alance da mão”.
Porém, o logos intelectivo da dialética é, como vimos, uma perambulação infindável ao
redor da intuição simples e unificada do Intelecto, de forma que ao dialético nunca cabe a plena
satisfação de repousar na Sabedoria. Ainda assim, esta perambulação é “uma preparação para
a unidade e o insight do Intelecto” (BUTORAC, 2009, p. 42). O filósofo é aquele que vive
segundo essa preparação, até que a morte o permita ascender à verdadeira Sabedoria.

4.3 Sua culminação na (III) Sabedoria

Por fim195, o terceiro e último estágio da paideia neoplatônica, o supra-filosófico, a que


chamamos de Sabedoria, segundo a seguinte concepção, citada anteriormente:
... a perfeita reconciliação consigo do homem não parece poder ser alcançada na
interioridade ainda ruidosa da inquietude reflexiva que constitui a filosofia como
simples desejo ou amor da sabedoria. É no repouso silencioso do Eu meditativo do sábio
que a unidade total do ser estaria presente a si mesma, revelada na auto-superação
intuitiva do verbo. (BOURGEOIS, 2004, p. 355)
Ora, uma questão recorrente na tradição platônica, diz Proclo (De Prov., 49.7-10), é se
é possível à alma elevar-se a tal contemplação enquanto ainda encarnada, uma vez que Platão
havia dito, no Fédon (66b-67b), que a companhia do corpo torna nosso acesso pleno à verdade
impossível à alma, que só é capaz da Sabedoria depois de morta, isto é, separada do corpo:
... enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais
poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por
todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela

194
Ponto que, creio, Neoplatônicos Tardios não concordariam, uma vez que para eles é a virtude
hierática/entusiástica que divina a alma de fato.
195
Uma nota metodológica: na maior parte desta subseção deixaremos que Proclo fale, com muitas e longas
citações. A razão para isso é a intenção de preservar a riqueza de seu discurso acerca da transcendência divina.
240
necessidade de alimentar-se, em falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros
empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a
espécie e um sem-número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como
se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que
seja. Mas, ainda: guerras dissensões, batalhas, suscita-as exclusivamente o corpo com
seus apetites. Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que
nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se
carecemos de vagar para nos dedicarmos à filosofia, a causa é tudo isso que
enumeramos. O pior é que, mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir
sobre determinado ponto, na mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil
modos, causando tumulto e inquietude em nossa investigação, até deixar-nos
inteiramente incapazes de perceber a verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência
que, se quisermos alcançar o conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-
nos do corpo e considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só
nessas condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que nos
declaramos amorosos, a sabedoria, isto é, depois de mortos, conforme nosso argumento
o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se realmente, na companhia do corpo não é
possível obter o conhecimento puro do que quer que seja, de duas uma terá de ser: ou
jamais conseguiremos adquirir esse conhecimento, ou só o faremos depois de mortos,
pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso.
A este respeito, Porfírio (1823, p. 202) já havia observado que há, de fato, não uma mas
duas mortes distintas: uma é aquela em que a natureza liberta o corpo da sua associação com a
alma, e que é comumente chamada de morte; mas a outra é quando a alma liberta a si mesma
do corpo, o que constitui não uma morte natural mas filosófica:
A alma é presa ao corpo por uma conversão às paixões corpóreas; e novamente libertada
por tornar-se impassível ao corpo. Aquilo que a natureza ata, a natureza também
dissolve: e aquilo que a alma ata, a alma da mesma forma dissolve. A natureza, de fato,
atou o corpo à alma; mas a alma ata ela mesma ao corpo. A natureza, portanto, liberta
o corpo da alma; mas a alma liberta ela mesma do corpo. Há, portanto, uma dupla morte;
uma, de fato, universalmente conhecida, em que o corpo é liberado da alma; mas a outra
é peculiar aos filósofos, na qual a alma é libertada do corpo.
O filósofo neoplatônico cultiva esta forma filosófica de morte através do cultivo das
virtudes purificatórias, da recuperação da autokinêsis da alma através da educação filosófica.
Desta forma, mesmo antes da morte natural, ele passa pela morte filosófica que o permite ter
acesso à verdadeira sabedoria. Desta forma, observa Proclo, “é de fato possível para alguém
contemplar mesmo quando ainda estando neste mundo”, porém, “é impossível que alguém se
torne perfeitamente contemplativo pelas razões explicadas no Fédon” (De Prov., 49.11-12;
49.17-18). Isto vai de encontro com a opinião majoritária acerca das experiências de ascensão
241
contemplativa em Plotino, que as considera como sendo experiências temporárias devido à
limitação inerente à condição encarnada da alma.
A Sabedoria, portanto, é possível para aquele que realizou a morte filosófica, mas
enquanto sua condição humana perdurar, ela não é estabelecida com total perfeição. As virtudes
deste estágio supra-filosófico, portanto, são horizontes acessíveis em alguns momentos da vida
do filósofo neoplatônico, mas não perfeitamente atualizados. A ascensão a este nível e modo
de ser é sempre sucedida de um retorno à condição própria à alma, razão pela qual o estágio
filosófico da paideia é tão importante: não apenas ele constitui uma preparação para o acesso à
verdadeira Sabedoria, mas ele é também o porto seguro a que a alma sempre retorna para se
preparar para o próximo voo.
Diálogos platônicos relevantes a este estágio da paideia são o Banquete e o Fedro, que
discutem a natureza da contemplação inspirada do inteligível, e o Parmênides, que é
privilegiado como um diálogo esotérico no último nível de virtude.

(f) Virtudes Paradigmáticas


A virtude paradigmática, que constitui o primeiro degrau deste derradeiro estágio da
Sabedoria, é, de fato, estabelecida quando a alma “não mais está contemplando o Intelecto, mas
quando a alma é estabelecida por participação no Intelecto que é o paradigma de todas as coisas”
(BALTZLY, 2017, p. 264). Ou, ainda mais precisamente, quando a alma se despe do seu ser-
alma, e se estabelece num modo de ser intelectivo que é suprapessoal, transcendente à natureza
da própria alma. É só aí que tem fim a infindável perambulação da alma, que perpetuamente
move-se ao redor de seu próprio centro sem nunca alcançá-lo. Diz Proclo que, após a ascensão
ao ‘grande mar das ciências’ atingido pela dialética,
... nossa alma verá que deve se separar de coisas compostas e aplicar-se à verdadeira
realidade no nível da intuição. Pois conhecimento intuitivo é superior ao científico, e a
vida vivida de acordo com o conhecimento intuitivo é mais honorável que a vida da
ciência. Assim, então, muitas são as perambulações das almas. Há uma no nível da
imaginação, outra acima dessa no nível da opinião, ainda outra no nível do intelecto
discursivo. Apenas a vida segundo o intelecto intuitivo é livre da perambulação (tò
aplanês), e este é o místico ancoradouro da alma, ao qual o poema traz Odisseu após as
múltiplas perambulações de sua vida (Od. 13.101) ... (In. Parm., 1025.15-28)
Como havíamos visto, o centro ou a essência da alma é uma irradiação ou iluminação
(ellampsis) do Intelecto, cujas intuições ela desdobra discursivamente através da projeção. Esse
intelecto que assim oferece sua iluminação à alma, porém, não é a Mônada ou a hipóstase
Intelecto, mas um intelecto particular que intui um objeto intelectivo em particular, pois, como
242
vimos em Plotino, Ideias são intelectos que inteligem a si mesmas; e como no mundo inteligível
todos os inteligíveis são todos os demais sob uma perspectiva específica, o fato de que o
intelecto particular intui um inteligível particular significa que através dele intelige todo o
cosmos inteligível, numa intuição da totalidade dos inteligíveis sob uma perspectiva específica.
Há, portanto, duas formas de cognição intelectiva no Intelecto, segundo Proclo:
... um tipo é o conhecimento de todas as coisas de uma vez e absolutamente, outro [é
conhecimento] de todas as coisas sob um aspecto. Neste respeito, o conhecimento do
Intelecto todo-abrangente e o conhecimento dos intelectos particulares são diferentes.
Todos esses intelectos pensam todas as coisas e portanto transcendem as cognições
racionais, mas o [intelecto universal] é todas as coisas e as pensa como um todo,
enquanto que [o intelecto particular] são ambas [ser todas as coisas e pensar todas as
coisas] numa maneira particular, pois assim como cada intelecto é, ele também pensa o
que ele pensa e ao pensar ele é o que ele é. (De dec. Dub. 3.12-20)
Proclo diz ainda, estabelecendo um intelecto particular como intermediário entre a alma
e o mundo inteligível, que “acima de toda alma um intelecto divino é superposto, o que a garante
uma disposição intelectual” (De Prov., 19.6-7), de modo que a sua irradiação à alma consiste
numa espécie de amor providencial. Diz Proclo a seu respeito:
... o intelecto é sempre ativo em relação a nós e sempre nos concede a luz da inteligência,
tanto antes de nos reclinarmos à irracionalidade e vivermos com as emoções, quanto
depois destas serem aquietadas por nós, mas nós nem sempre estamos conscientes disto
exceto quando, libertos das muitas ondas de processos temporais, ancoramos nossas
vidas em meio a uma certa calma – pois aí o intelecto nos é revelado e, por assim dizer,
nos fala; o que antes estava silencioso e quietamente presente nos dá uma parte de sua
elocução. [...] dá parte na conversação ao amado, o oferece comunicação mútua e revela
sua identidade e que seu amor é providente, da forma do bem ... (In. Alc., 44.4-45.4)
A alma aqui calma as ondas de processos temporais que constituem seu modo próprio
de ser, e assim se torna capaz de receber a irradiação do intelecto, e se unir a ele:
Ascendendo a este intelecto, contemplemos, em conjunção com ele, os seres
inteligíveis, por meio de intuições simples e indivisas, observando as simples, imóveis
e indivisíveis classes dos seres. [...] Ali contemple uma essência habitando na
eternidade, uma vida ardente e uma intelecção que nunca dorme, para o qual nada da
vida é insuficiente, e que não requere a carruagem do tempo para a perfeição da sua
natureza. (In. Alc., 274.4-6; 249.4-7)
Uma união com o próprio Intelecto demiúrgico ainda é anunciada por Proclo, em termos
reminiscentes da união com o Uno em Plotino196:

196
O que reforça a tese, defendida por Bussanich (1994, pp. 5301 e 5310), de que não se pode restringir a mística
neoplatônica à união com o Uno, uma vez que a ascensão ao Intelecto também é uma forma de união mística. O
243
... também é necessário para a alma, depois de se tornar um cosmos intelectivo e
assimilando a si mesma na medida do possível à totalidade do cosmos inteligível,
realizar sua aproximação ao Construtor (poiêtês)197 do universo, e através desta
aproximação se familiarizar com ele de algum modo através de sua contínua
concentração [...]. Essa é a sua descoberta, encontrá-lo, unificar-se estando a alma só
junto a ele só, obtendo esta automanifestação, despachando-se de toda outra atividade
e nele focando, quando [a alma] pensará que mesmo argumentos científicos são estórias,
uma vez que se está junto ao Pai198 e se banqueteia junto a ele da verdade do Ser e ‘numa
pura luz é puramente iniciado em perfeitas e estáveis visões’. [...] isso ocorre em virtude
do ato intuitivo da visão concentrada, o contato direto com o Inteligível e a unificação
com o intelecto demiúrgico. (In. Tim., II, 301.23-27; 302.2-7; 302.14-16)
Esta unificação com o Demiurgo, por sua vez, só é possível depois de haver passado por
todo o processo educativo neoplatônico dos estágios que chamamos de Cultura e Filosofia, pois
só aí a atividade intelectiva em nós, ‘a flor do intelecto’, se desperta:
... é apenas quando a alma passou para além da distração do nascimento e do [processo
da] purificação e além da iluminação do conhecimento científico que sua atividade
intelectiva e o intelecto em nós se acende, ancorando a alma no Pai e estabelecendo-a
imaculadamente nos pensamentos demiúrgicos. A luz se conecta à luz, não à maneira
do conhecimento científico, mas numa maneira que é mais bela, mais intelectiva e mais
una (henoeidesteron). Este é o ancoradouro paterno, a descoberta do Pai, a unificação
imaculada com ele. (In. Tim., II, 302.18-25)
Uma vez que este acesso se dá segundo um modo de ser transcendente ao discursivo,
ele se dá na alma que permanece em silêncio, e é um contato intuitivo de tal natureza que não
pode ser expresso pela linguagem:
A pessoa que o encontrou é incapaz de dizer isso a outros tal qual o viu, pois a
descoberta não é feita pela alma que faz a declaração, mas pela alma que é iniciada e
repousa aberta à luz divina, não movendo com seu próprio movimento, mas mantendo
seu próprio silêncio, por assim dizer. Pois se [a alma] não e capaz de apreender a
natureza essencial de outras realidades seja pelo nome ou por uma proposição
definidora ou pelo conhecimento científico, mas pelo pensamento intuitivo (noêsis)
apenas, como ele mesmo diz nas Cartas199, como poderia descobrir a natureza essencial
do Demiurgo em qualquer outra maneira que não intuitivamente (noerôs)? Como

tradutor do trecho proclino aqui citado também comenta que “O processo de conhecer o Demiurgo termina num
estado noético de ‘conhecimento intuitivo’, que é místico porque transcende a forma de conhecimento que, de
acordo com Proclo, é natural à alma humana, i.e. o conhecimento discursivo” (RUNIA e SHARE, 2008, p. 157n),
e ainda que “A linguagem do misticismo nos lembra de Plotino, mas devemos manter em mente que Proclo só está
falando aqui do Demiurgo” (ibid., 156n).
197
O Demiurgo.
198
É provável que a menção ao ‘Pai’ (patêr), nesses trechos, seja um empréstimo de vocabulário dos Oráculos
Caldeus, como também nota o tradutor (RUNIA e SHARE, 2008, p. 157n).
199
Sétima Carta, 342a7–e2.
244
poderia a alma, o havendo encontrado desta maneira, ser capaz de relatar o que viu por
meio de substantivos e verbos para transmitir isso aos outros? Afinal, porque o
pensamento discursivo procede através de combinação, ele é incapaz de expressar a
natureza do que é unificado e simples. (In. Tim., II, 302.26-303.16)
Tal qual em Plotino, porém, ainda há uma possibilidade de discurso “catafático” a
respeito do Intelecto assim descoberto, embora este discurso só possa ser analogicamente ligado
à pura intuição que o acessa diretamente:
Mas o que é isso, alguém poderia perguntar? Não estamos nós a fazer várias declarações
acerca do Demiurgo e dos outros deuses e até mesmo do próprio Uno? Como resposta
nós poderíamos dizer que nós falamos a respeito deles, mas nós não descrevemos o que
eles são cada um em si mesmos. Nós somos capazes de discursar cientificamente, mas
não intuitivamente. [...] Se a descoberta se dá pela alma que mantém silêncio, como
poderia o fluxo da linguagem através da boca ser suficiente para trazer à luz a natureza
essencial do que foi descoberto? (In. Tim., II, 303.17-24)
Assim, o educando ascende além da Cultura e da Filosofia àquilo que é a verdadeira
Sabedoria, a “esta vida” que, como o pôs Plotino, “é sabedoria (sophía), sabedoria não adquirida
pelos raciocínios, porque ela está sempre lá inteiramente e sem nenhuma carência que faça com
que seja necessária alguma busca” (tr. 31 [V.8], 4, 36-38), pois “a deliberação é a marca do
encontro do pensamento com dificuldades” (In. Parm., VII, 74k.28-29). A alma, elevada a esta
transcendência, participa da pura intuição atemporal e todo-abrangente, que vislumbra “de um
só golpe” a totalidade do Ser e do inteligível.
A transcendência da Sabedoria em relação a todo raciocínio e deliberação também
caracteriza a sua natureza vivífica ou volitiva, pois sua faculdade correspondente é a Vontade
(boulêsis), que, ao contrário da escolha (prohairesis), não necessita deliberar e distinguir entre
o bem real e o bem aparente, sendo sempre invariavelmente e infalivelmente dirigida ao bem
real apenas. Esta vontade perfeita do Intelecto corresponde à sua perfeita autorreflexividade,
infalivelmente dirigida ao centro de si mesmo, a posse total e instantânea de si mesmo enquanto
imagem do Bem. Segundo Proclo, esta vontade é dotada de onipotência, da qual a alma
participaria se convertesse sua faculdade de escolha em verdadeira vontade:
A faculdade da escolha é dual, e portanto não é de todas as coisas, porque ela é, por suas
inclinações ambivalentes, inferior [...]. Ela teria ela mesma se tornado o poder sobre
todas as coisas, se não tivesse o impulso da escolha, mas fosse apenas vontade. Pois
uma vida segundo a vontade é em acordo com o bem e faz ‘o que depende de nós’
extremamente poderoso e é verdadeiramente divino: graças a isso a alma se torna um
deus e governa todo o mundo, como diz Platão. (De Prov., 60.6-15)

245
Já havíamos visto como o Intelecto neoplatônico é uma identidade entre Ser e Pensar;
poderíamos, neste contexto, sugerir ainda o Querer como idêntico aos outros dois termos. Deste
modo, o movimento vivífico do Intelecto é idêntico ao seu pensamento de si mesmo, que é o
seu próprio ser: ele “age” apenas permanecendo em si, apenas sendo o que é. Estabelecer-se
neste modo de ser é estabelecer-se na virtude paradigmática, tornar-se uno com o paradigma
eterno de todas as virtudes.
A abundância de referências a essa forma transcendente de participação na Sabedoria
do Intelecto como sendo de natureza silenciosa, inacessível pela linguagem, divina e
transcendente, não pode, porém, obscurecer o fato de que este não é, ainda, o degrau supremo
da escada neoplatônica. Assim como discutimos em Plotino, também em Proclo encontramos
que o Uno é superior ao Intelecto, o absoluto a que aspira o amor é anterior e mais fundamental
que o absoluto a que aspira a inteligência.
Mais precisamente, me parece proveitoso adotar uma distinção entre mística e gnose,
proposta pelo pensador espanhol Raymond Abellio (1907 – 1986), segundo a qual a primeira é
“feminina e noturna, voltada para a devoção, a segunda viril e solar, dirigida pelos valores do
conhecimento” (apud Merlo, 2010, p. 117), de forma que essa união com o Intelecto seja de
natureza gnóstica200, solar, apolínea, uma transcendência ou um absoluto cognitivo; enquanto
que a união com o Uno seria de natureza mística, lunar, dionisíaca, uma transcendência ou um
absoluto erótico. Desta forma, embora ambos sejam caracterizados por uma qualidade de
silêncio, marca de sua transcendência ao modo discursivo de ser da alma, eles diferem devido
à natureza deste silêncio: enquanto o Intelecto é o silêncio da clara visão, da intuição, e,
portanto, dotado de conteúdo cognitivo, o Uno é o silêncio da não-visão, do recolhimento no

200
É necessário ressaltar que empregamos este termo, aqui, num sentido mais amplo do que o usual, o qual
geralmente se restringe ao assim chamado gnosticismo dos primeiros séculos cristãos. Diz Merlo (2010, p. 116):
“estudiosos afirmam que o gnosticismo é uma filosofia cristã, embora considerada heterodoxa pela forma de
cristianismo que se erigiu em ‘ortodoxia’ dominante, e sem dúvida o papel de Jesus, o Cristo, é crucial em todas
as doutrinas dessa escola. [...] Podemos evocar a distinção estabelecida entre uma gnose mágico-vulgar (como a
de Simão, o Mago), uma gnose mitológica (com seitas como a dos mandeístas, a dos orfitas, a dos barbelognósticos
ou a que nos legou o escrito, hoje célebre, intitulado Pistis Sophia) e uma gnose especulativa (onde se destacam
pensadores de importantes sistemas filosófico-teológicos como Valentino, Basilides e Carpócrates, para só lembrar
alguns). Nas últimas décadas, extrapolando esse limitado enfoque acadêmico, a noção de ‘gnose’ vem sendo
amplamente empregada. De modo geral, pode-se dizer que ela se refere a uma ‘sabedoria’ situada além das ciências
e do pensamento filosófico exclusivamente argumentativo. Bom exemplo disso seria a obra de Henry Corbin, que
dedicou grande parte de sua vida ao estudo e transmissão da ‘gnose do Islã’, especialmente a xiita, pois, como ele
mesmo diz, ‘há uma gnose judaica, uma gnose cristã, uma gnose islâmica, uma gnose búdica etc.’”. O supracitado
Corbin diz ainda, a este respeito: “A gnose é, enquanto tal, conhecimento salvador ou salvífico [...] É, pois, um
conhecimento que só pode ser atualizado ao preço de um novo nascimento, um nascimento espiritual. Esse
conhecimento comporta um caráter sacramental. Desse ponto de vista, a ideia de gnose é inseparável da de
conhecimento místico” (apud ibid., p. 194n). Assim, neste sentido, não restringimos o termo gnose ao contexto
dos movimentos cristãos dos primeiros séculos, aos quais o termo é mais frequentemente empregado.
246
Inefável, “um não-ver que é fruto de uma união extática que tem na fé e no silêncio os dois
pilares para a divinização do homem” (BEZERRA, 2006, p. 128). É desta forma que o Intelecto
é uma cognição silenciosa por ser superior à linguagem, mas o Uno é, antes, uma
supracognição, silenciosa precisamente por ser superior a qualquer cognição.

(g) Virtudes Hieráticas/Entusiásticas


Portanto, também Proclo busca superar o Intelecto no recolhimento inefável no Uno,
assim como vimos em Plotino. Essa união é entendida por ele da seguinte forma:
Após o muito valoroso intelecto deve-se despertar o próprio cimo da existência da alma,
pela qual nós somos unos e pelo qual a multiplicidade em nós é feita uma. [...] nós
participamos no Primeiro Princípio, do qual vem a unificação a todos os seres, por meio
da porção unitária e ‘flor da nossa existência’, por assim dizer, pela qual nós somos
unidos ao divino. [...] Esta é a mais sublime de nossas atividades: por ela nós nos
tornamos divinamente inspirados201, abandonando toda nossa multiplicidade,
convergindo sobre nossa própria unificação, nos tornando unos, e operando de acordo
com a maneira do Uno. [...] [assim considerando] as henadas e a unidade que transcende
as totalidades. Havendo chegado ali, terás deixado para trás toda multiplicidade, terás
ascendido à própria fonte do Bem. (In Alc., 247.7-19; 249.14-16)
Ele diz, tratar-se de uma espécie de
... conhecimento além do intelecto e que [Platão e os teólogos] comumente chamam de
uma verdadeira ‘loucura divina’, e que desperta o que é chamado de o ‘uno da alma’, e
não mais nossa faculdade intelectual, e o conectando com o Uno em si. [...] Assim
portanto, quando pensando, a alma conhece tanto a si mesma quanto aquilo que pensa
através do ‘contato’, como dissemos, mas quando ela está transcendendo o pensamento,
ela não conhece nem a si mesma nem aquilo a que dirige seu ‘uno’. Ela ama então
permanecer quieta, havendo fechado seus olhos aos pensamentos que se dirigem para
baixo, havendo se tornado atônita e silenciosa num silêncio interno. Pois de que outra
maneira poderia ela se unir à mais inefável de todas as coisas, senão adormecendo sua
tagarelice? Que ela se torne portanto una, para que ela possa ver o Uno, ou melhor, não
ver o Uno. Pois vendo, a alma verá algum objeto inteligível e não o que está além do
intelecto, e ela pensará alguma coisa que é una, mas não o Uno em si 202. Assim, meu

201
O Uno-da-alma, aqui, é aquele ativando o qual se dá a possessão ou inspiração divina. Não há contradição com
a apresentação feita no subcapítulo anterior, em que tratamos o Uno da alma como sua apercepção racional, a
diferença entre ambos sendo apenas esta: que o último é o modo discursivo pelo qual a alma possui aquele puro
eros da unidade, enquanto que o primeiro é a ativação que tem lugar quando a alma se recolhe de seu modo
discursivo de ser.
202
Pois, como foi enfatizado no capítulo anterior, o Uno é vazio de objetos, mesmo os objetos inteligíveis, uma
vez que sua natureza é uma espécie de “absoluta ou infinita consciência sem objeto, uma consciência não relacional
desprovida de intencionalidade e composição” (BUSSANICH, 2017, p. 85). Isto é o que explica o fato de a união
com o Uno ser uma forma de não-visão.
247
amigo, alguém efetiva o que é realmente a mais divina atividade da alma, [...]
repousando não apenas as moções externas mas também as moções internas, ele se
tornará um deus na medida em que isso é possível para a alma, e conhecerá apenas no
modo em que os deuses conhecem todas as coisas numa maneira inefável, de acordo
com seu próprio uno203. (De Prov., 31.5-32.6. Minhas ênfases.)
Encontramos nestes trechos acima alguns dos elementos fundamentais da concepção
proclina da ascensão da alma ao Uno: i) que, como havíamos visto anteriormente, a união com
o Uno é uma espécie de não-visão; ii) que esse contato ou união se dá através do uno em nós,
o princípio que nos dá unidade, e que, uma vez desperto, nos torna divinamente inspirados; iii)
que se une ao Uno através das henadas, ou unidades supra-essenciais, que são os deuses
supremos na teologia proclina; iv) e que ao atingir tal união, a alma opera de acordo com a
maneira do Uno, isto é, há uma forma de atividade própria ao Uno, na qual a alma deificada
participa – o que constitui a virtude hierática ou inspirada, a mais elevada da escada
neoplatônica de virtudes; v) que há um modo de conhecimento que as henadas (os deuses)
possuem segundo sua unidade, do qual consiste a “faculdade cognitiva” correspondente a este
mais elevado nível de virtude neoplatônica. Ainda, identifico no pensamento proclino duas vias
distintas (e complementares) pelas quais essa ascensão à unificação com o Princípio supremo
se dá: uma filosófica e outra teúrgica204. Exploremos estes pontos todos daqui em diante.
A via filosófica de ascensão ao Uno corresponde à metodologia dialética que os
neoplatônicos identificavam no diálogo Parmênides de Platão, o qual consideravam uma
verdadeira via discursiva de iniciação no mais elevado mistério divino do Princípio supremo.
Essa dialética seria uma verdadeira via esotérica, um santuário para iniciados, uma vez que,
como Proclo explica, é necessário se aplicar a essa metodologia dialética através de uma
combinação simultânea de três atividades (para as quais um iniciante ou um profano ainda não

203
Vemos aqui um prenúncio de algo que trataremos adiante: o modo de conhecimento que os deuses possuem
segundo sua unidade, do qual consiste a “faculdade cognitiva” correspondente ao mais elevado nível de virtude
neoplatônica.
204
Não são poucos os comentadores de Proclo que supõem uma hierarquia entre essas duas vias, como se a via
filosófica conduzisse apenas ao Intelecto, e que só a teurgia pode ascender mais além, até o Uno, uma vez que a
filosofia lida com aquilo que é dizível e pensável, enquanto que a teurgia apenas é capaz de lidar com aquilo que
é indizível e impensável. Discordo desta leitura, por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, ela ignora o fato
de que mesmo a ascensão ao Intelecto já consiste numa culminação que transcende a filosofia propriamente dita,
e tudo aquilo que é dizível e pensável discursivamente; e em segundo lugar, estou de acordo com a crítica realizada
a esta leitura por parte de Lankila (2010), que argumenta com evidências textuais relevantes que “para Proclo a
experiência última de contato com o Uno não se identifica à teurgia” (ibid., p. 168), pois a “atividade hipernoética
[pela qual se une com o Uno] transcende a teurgia tanto quanto o pensamento discursivo e a intelecção
propriamente dita” (ibid., p. 170), de forma que “teurgia e filosofia são dois caminhos conduzindo em direção ao
mesmo fim, o primeiro, externo, através dos signos divinos oferecidos pela natureza e todo o cosmos, e o segundo,
interno, conduzindo-se através do circuito psíquico. Tocar as henadas e o Uno pela hiperintelecção é a consumação
de ambos” (ibid., p. 167). Ou seja, o contato com o Uno é transcendente tanto à filosofia quanto à teurgia, mas
ambas servem como caminhos a ele, em que atingem consumação derradeira.
248
estão capacitados): lógica, intuitiva e divinamente inspirada. A atividade lógica seria o próprio
desdobramento racional do discurso de Parmênides no diálogo; porém, uma vez que não se trata
de uma dialética puramente silogística, mas uma tal que lida com o Ser real, que desdobra a
própria realidade sob forma discursiva, é necessário que esteja atuante a luz da intuição
intelectiva; e uma vez que se trata de uma via dialética que visa o contato com o Uno, a
superação de toda a intelecção pela união com sua fonte inefável, é necessário despertar Sua
imagem na alma, através do qual este contato se torna possível. Diz Proclo:
... consideremos ... como nós poderemos ser capazes, eu diria, de operar logicamente e
intelectualmente e ao mesmo tempo com inspiração divina, de modo que possamos ser
capazes de apreender o poder demonstrativo de Parmênides, e seguir suas concepções,
dependentes como elas são do Ser real, e que nós possamos ser capazes de ascender
pela inspiração divina à indizível e incompreensível consciência do Uno. Pois nós de
fato possuímos, na medida em que nos cabe enquanto almas, imagens das causas
primeiras, e nós participamos tanto na Alma como um todo e do plano do Intelecto e na
divina Unidade; e nós devemos avivar os poderes dessas entidades dentro de nós para a
compreensão do assunto em questão. Ou de que outra maneira poderíamos nos tornar
mais próximos do Uno, se não despertássemos o Uno da alma, que é em nós como uma
imagem do Uno, em virtude do qual a mais acurada das autoridades declara que a
possessão divina mais especialmente sucede? E como nós faríamos este Uno e ‘flor da
alma’ refulgir se não ativarmos primeiramente nosso intelecto? Pois a atividade do
intelecto conduz a alma a um estado e atividade de calma. E como nós atingiríamos
perfeita atividade intelectual se não atravessamos até ela através de concepções lógicas,
utilizando intelecções compostas antes das mais simples? [...] despertando o Uno dentro
de nós e, através disto, aquecendo a alma nós podemos nos conectar com o próprio Uno
e, por assim dizer, encontrar âncora, tomando a posição acima de tudo o que inteligível
em nós e dispensando toda outra forma de atividade [...]. Seja esse, portanto, o modo de
nosso discurso: lógico, intelectual, e inspirado.... (In Parm., VI, 1071.7-1072.16)
Neste esforço integrado para se pensar o Uno, seguindo a dialética do Parmênides,
adota-se a via das negações, como foi mencionado no capítulo anterior. Negando do Uno tudo
aquilo que se pode ser concebido ou dito, negando-lhe até mesmo o Ser, introduz-se a
inteligência a um estado de indeterminação. Por fim, porém, até mesmo a negação é negada, e
o mais inefável silêncio da unificação com o Uno é alcançado:
A alma ascendendo ao nível do Intelecto [...], havendo ali chegado ela repousa no Uno-
Ser205, e se aproxima do Uno em si e se torna simples, não sendo inquisitiva ou
perguntando o que [ele] é ou não é, mas em toda parte fechando os seus olhos, e
contraindo toda sua atividade e se contentando com a unidade apenas. Parmênides,

205
O Ser intelectivo, imagem intelectiva do Uno propriamente dito.
249
portanto, está imitando isso e termina por se desfazer tanto das negações quanto de todo
o argumento, porque ele quer concluir o discurso sobre o Uno com o inexpressível. [...]
terminando por remover as negações do Uno. Pois todo este método dialético, que atua
por negações, nos conduz ao que jaz antes do limiar do Uno, se é possível falar de tal
coisa. Mas após passar por todas as negações, deve-se deixar de lado também este
método dialético, como sendo perturbador e introduzindo a noção de coisas negadas
com as quais o Uno não pode ter proximidade. [...] Assim como ali a deliberação deve
ser eliminada de nossa atividade, embora isto seja alcançado pela completude da
deliberação, assim também toda atividade dialética deve ser eliminada. Essas operações
dialéticas são a preparação para o esforço em direção ao Uno, mas não são elas mesmas
o esforço. Ou antes, não apenas elas devem ser eliminadas, mas também o esforço.
Finalmente, quando completar o seu curso, a alma pode devidamente habitar com o
Uno. Havendo se tornado simples e solitária em si mesma, ela elegerá o simples Uno.
[...] É com o silêncio, portanto, que ele [Parmênides] leva a termo o estudo do Uno. (In.
Parm., VII, 74k.4-76k.6)
Este é o caminho através do qual, iluminado pela luz da intuição, se conduz a
deliberação, o raciocínio e a dialética à completude, e consequentemente a seu abandono; e,
com o Uno da alma desperto, se recolhe na Inefabilidade do próprio Uno.
Há, ainda, o caminho teúrgico, que consiste em verdade numa via de natureza
propriamente religiosa e que é paralela a toda a paideia percorrida até agora, uma vez que a
prática teúrgica também possui níveis distintos de realização, os quais correspondem a cada um
dos degraus da escada das virtudes que são percorridos – mesmo que a virtude mais elevada
dessa escada, a hierática/entusiástica, seja especialmente conectada a esta prática. A via teúrgica
pode ser abordada em três perspectivas distintas: segundo a prática ritual; segundo a prática da
oração; e segundo as diferentes formas de inspiração divina que eclodem na alma do mestre das
artes hieráticas, e que estabelecem a deificação de cada uma das partes da alma segundo sua
virtude própria. Ainda assim, a virtude mais elevada da escada neoplatônica, a
hierática/entusiástica, é especialmente conectada com a via teúrgica.
A compreensão desta via passa pela compreensão da natureza das henadas e as séries
divinas, que pertencem à teologia do Neoplatonismo Tardio. Como havíamos visto, a metafísica
proclina compreende que “todas as coisas estão em todas as coisas, mas em cada uma de acordo
com sua própria natureza” (El. Th., prop. 103), de tal forma que, como vimos, mesmo a alma é
todas as coisas sob forma racional. Ora, o Uno, portanto, também deve ser todas as coisas, de
acordo com sua própria natureza de absoluta unidade e simplicidade. De fato, vimos no capítulo
anterior que Plotino considerava que o Uno era todas as coisas de modo indiferenciado, e foi
mencionado que esta concepção apareceria em Damáscio, num período posterior da tradição
250
neoplatônica, o qual afirma que o Uno é “Tudo antes de todas as coisas, não de uma maneira
irrealizada, como se fosse tudo em potência, nem segundo a causa, como se não possuísse ainda
o Tudo, mas será o Tudo segundo a existência (κατα ‘ύπαρξιν), essa que é indiferenciada ... por
sua própria simplicidade” (apud HADOT, 2004, p. 116), de modo que Damáscio faz uma
distinção entre o Uno enquanto pura Inefabilidade, e o Uno enquanto esse “Tudo antes de todas
as coisas”, que é menos transcendente que o primeiro (HADOT, 2004, p. 116). Filosoficamente,
a distinção entre esses dois “Unos” poderia ser formulada de forma que o Uno da pura
inefabilidade seja considerado imparticipável, enquanto que o segundo Uno, que é “tudo antes
de todas as coisas”, é o Uno visto segundo sua natureza participável; em outras palavras, temos
aqui uma distinção entre o Uno em si mesmo e o Uno em sua relação com todas as coisas que
dele emergem. É deste ‘segundo’ Uno que se pode dizer que é o princípio, o meio e o fim de
todas as coisas, enquanto do ‘primeiro’ nem isso se pode dizer.
Por sua vez, também no pensamento proclino (que precede Damáscio) encontramos esta
distinção entre o Uno em si, imparticipável, e o Uno em seu aspecto participável. Em seu
aspecto participável, se revela ser um ponto de interface entre a suprema e inefável Unidade do
Princípio e a multiplicidade de tudo o que dele precede, de modo que é constituído por uma
pluralidade de puras unidades ou “henadas”, termo empregado por Proclo (e seu mestre,
Siriano) “para designar aquilo que é a ponte sobre o abismo entre o Uno e a realidade, entre
pura unidade e multiplicidade” (FORTIER, 2014, p. 81). Segundo Proclo, enquanto o Deus
primário é o Uno e o Bem inqualificados, cada um dos deuses ou henadas é uma bondade ou
uma unidade em particular, uma espécie de “individuação da Bondade que torna todas as coisas
boas” (El. Th., prop. 133). Entre elas, encontramos “tanto unidade indescritível (ἕνωσις) quanto
a singularidade (ἰδιότης) de cada (pois todas as henadas estão em todas, ainda que cada uma
seja distinta)” (In. Parm., VI, 1048.27-1049.2); elas são, simultaneamente, “secretas e
inteligíveis: secretas enquanto unidas ao Uno, mas inteligíveis enquanto participadas pelo ser”
(El. Th., prop. 162). Mas, em verdade, elas não são “uma classe subordinada de coisas que
participam no Uno, mas são o Uno na medida em que este interage com a realidade ontológica”
(FORTIER, 2014, p. 82), ou como o põe Proclo, “cada um dos deuses é nada mais que o Uno
em seu aspecto participado” (In. Parm., VI, 1069.6-7). Elas são nada mais que pura bondade e
unidade, ainda que uma bondade/unidade singular, e não alguma coisa outra somada à
bondade/unidade206 (El. Th., prop. 119). Fortier (2014, pp. 81-82) assim o resume:

206
Isto é, não são inteligências, almas ou algum outro tipo de realidade somado à sua pura bondade e unidade; são
bondade e unidade apenas.
251
Elas são idênticas ao primeiro princípio na medida em que são unidade/bondade apenas
(μόνον), daí seu segredo, e são unificadas, mas são diferentes dele [do Princípio] na
medida em que não são nem o Uno nem o Bem simplesmente (ἁπλως), nem o Uno em
si mesmo (αὐτοέν), mas certas unidades/bondades individuais. Esta individualidade é a
“adição (πρόθεσιν)” ou “excedente (πλεονασμόν)” que as diferencia do Uno em si, e
que as permite ser tanto inteligíveis e, mais importante, participáveis. Esta
participabilidade é a única diferença entre as henadas e o Uno, algo que Proclo ilustra
ao voltar à analogia solar da República. Como aponta Sócrates, a luz do Sol, não o Sol
em si, é o que de fato nos permite ver, e nós não devemos, portanto, confundi-los.
Todavia a luz do Sol é tudo o que podemos saber a seu respeito e a totalidade de nossa
participação nele, de modo que, na medida em que nos concerne, não há diferença entre
eles [Sol e seus raios]. Esta luz é para Proclo a imagem das henadas, assim como o Sol
é a imagem do Bem.
Cada deus ou henada, enquanto o Uno/Bem sob aspecto participável, é uma bondade e
uma unidade singular ou peculiar. Sua natureza, nos diz Proclo, é a doação desta bondade ou
unidade, a providência (pronoia), pois, uma vez que “o ofício distintivo do caráter providencial
é a outorga de coisas boas aos seres que são seus objetos”, e as henadas são bondades/unidades,
“todo deus abraça em sua substância a função de exercer providência ao universo; e a
providência primária reside nos deuses”, de modo que “em virtude de seu ser e em virtude de
ser excelências, os deuses exercitam providência a todas as coisas, preenchendo todos com uma
bondade que é anterior ao Intelecto” (El. Th., prop. 120). Cada um dos deuses é uma
superabundância daquela bondade que é seu caráter distintivo, o que o permite comunicar-se e
doar-se a si mesmo a outros por transbordamento, de modo que “de sua própria substância
preenche todas as coisas com o bem que contém” (El. Th., prop. 131). Assim, se é verdade que
todas as coisas devem ao Uno a sua simples existência, também é verdade que devem a alguma
henada o caráter peculiar, o traço específico de bondade/unidade que revelam existencialmente
(El. Th., prop. 137). Esse caráter peculiar dos deuses se faz presente aos seres sob a forma de
um “sinal” (sunthêma) ou “símbolo” (sumbolon), assinaturas divinas dos deuses, através das
quais cada ser é inefavelmente conectado ao deus que lhe concedeu esse caráter divino. Proclo
nos diz (Theol. Plat. II 8, 56.16-25), acerca desses signos e símbolos divinos:
Pois ele que causou o universo ‘semeou em todas as coisas’ signos (sunthêmata) de sua
própria transcendência perfeita, e por meio desses estabeleceu todas as coisas em si
mesmo: ele é inefavelmente presente a elas, e ainda assim as transcende todas. Cada
coisa, portanto, mergulhando na zona inefável de sua própria natureza encontra ali o
símbolo (sumbolon) do Pai de todos. E cada coisa de acordo com sua própria natureza
o venera e se une a ele através de seu próprio sinal (sunthêma) místico, despindo de sua
própria natureza e ansiando ser nada mais que seu sinal e nele participar.
252
Proclo enuncia aqui os signos semeados nos seres por parte do Demiurgo. Mas em
verdade, cada um dos deuses/henadas faz a mesma coisa, de modo que na medida em que há
henadas distintas, há caráteres divinos distintos, e, portanto, signos e símbolos distintos que
estabelecem os seres em deuses distintos. O que isso significa pode ser melhor ilustrado a nível
cósmico (ainda que esse princípio seja o mesmo nos outros níveis de realidade), como o
observou Chlup (2012, pp. 135-136):
Numa passagem interessante do Comentário ao Timeu (I 161.5-12), Proclo explica que
a alma-do-mundo não deixa o espaço do cosmos uniforme mas impõe sobre diferentes
partes do espaço uma afinidade simbólica especial com diferentes ordens divinas. [...]
Graças às Formas o mundo é um organismo ordenado, profissionalmente trabalhado.
Graças aos deuses é um lugar onde diferentes regiões possuem histórias sagradas
distintas e onde comunidades humanas podem adorar os deuses em cultos que foram
revelados a elas como sinais de vínculos locais únicos entre eles e seus patronos divinos.
É ao conferir ao mundo suas marcas individuais inexplicáveis que os deuses fazem dele
um lugar digno de ser habitado apesar de suas imperfeições.
É desta forma que os deuses, ao conferir seus caráteres distintivos ao semear
providencialmente seus próprios signos e símbolos, tornam cada ser e realidade enraizados na
peculiaridade divina daquele que é seu patrono. Essa irradiação providente da bondade e
unidade que os constituem se estende ao longo de toda a hierarquia ontológica, do mais alto ao
mais baixo estrato (El. Th., prop. 140): Ser, Vida, Inteligência, Alma, Natureza, Corpo,
Matéria207. Diz Proclo (El. Th., prop. 145):
O caráter distintivo de qualquer ordem divina viaja através de todos os existentes
derivados e concede a si mesmo sobre todas os gêneros inferiores. Pois ... o caráter
distintivo dos poderes divinos, radiando para baixo, é encontrado em cada gênero [...].
Eu quero dizer que se, por exemplo, há uma deidade purificadora, então a purgação será
encontrada nas almas208, nos animais, nos vegetais, e nos minerais; [...]. O mineral
participa do poder purificador tal qual os corpos o podem; o vegetal num modo mais
claro, isto é, vitalmente; o animal o possui num modo adicional, aquele da apetição; a

207
Essa é a versão completa da hierarquia ontológica em Proclo, que se segue do Uno e as henadas. Ser, Vida e
Inteligência são três níveis da hipóstase do Intelecto, o mundo espiritual, habitante da Eternidade; Alma, Natureza
e Corpo formam a tríade do mundo temporal, reflexos invertidos do mundo espiritual, em que a Alma é um reflexo
da Inteligência, a Natureza um reflexo da Vida, e o Corpo um reflexo do Ser. A Matéria, por sua vez, é um reflexo
invertido do Uno, na medida em que ambos são desprovidos de forma.
208
As almas possuem também sua peculiaridade ou singularidade determinada pelo caráter distintivo a ela
concedido por uma henada. Além de ser uma plenitude de formas, a alma também é uma plenitude de signos e
símbolos divinos nela semeados, de forma que a combinação única destes forma sua singularidade. Chlup (2012,
p. 135n) sugere uma comparação com a singularidade de um horóscopo individual: “dizer que uma pessoa é de
Virgem, por exemplo, realmente quer dizer que Virgem é o signo dominante presidindo sobre uma constelação
única de todos os planetas em relação a tanto Virgem quanto a outros signos”. Isto se dá porque todos os deuses
estão em todos os deuses segundo sua natureza específica, de forma que a alma é uma plenitude dos signos e
símbolos de todos os deuses, mas sob a forma específica do caráter divino do deus a cuja série pertence.
253
alma racional, racionalmente; uma inteligência, intelectualmente ou intuitivamente; os
deuses, supra-essencialmente e sob o modo da unidade; e a série inteira possui o mesmo
poder como resultado de uma única causa divina. O mesmo se aplica a outros caráteres.
Pois todas as coisas são dependentes dos deuses, algumas sendo irradiadas por um deus,
outra por algum outro, e as séries se estendem para baixo até a última ordem do ser.
Algumas são conectadas aos deuses imediatamente, outras através de um número
variável de termos intermediários; mas 'todas as coisas estão cheias de deuses', e dos
deuses cada uma deriva seu atributo natural.
Temos, aqui, que cada henada é a emanadora de uma série inteira de seres que partilham
de seu caráter distintivo, de sua forma peculiar de bondade/unidade, e que atravessa toda as
ordens dos seres. A ideia de séries divinas verticais pode ser ilustrada por uma passagem do Íon
(533d-e; 535e-536b) de Platão, em que ele fala a respeito de uma pedra magnética (ímã) que
não apenas atrai a si anéis de ferro, mas também os concede o poder de, por sua vez, atrai outros
anéis, de modo que eles formam uma corrente muito longa de peças de ferro suspendidas uma
na outra – toda a corrente dependendo do poder de atração do ímã que é emanado aos demais.
Analogicamente a esta imagem, diz Platão, se pode conceber a Musa e seu poder de inspiração
divina como sendo um ímã dotado de poder de atração, à qual se suspendem os “anéis de ferro”
dos poetas, dos rapsodos, e, por fim, dos espectadores, de modo que quão mais próximo à Musa,
mais inspirados são. Por sua vez, há diferentes Musas, de forma que alguns poetas estão
vinculados a uma, outros a outra; de modo que alguém que pertença à corrente de uma Musa
específica é movido e possuído quando escuta a poesia de um poeta a ela vinculado, e adormece
quando escuta a de um outro. Da mesma forma, cada henada é uma pedra magnética ou ímã à
qual uma corrente inteira de seres inspirados por seu caráter peculiar é suspendida, formando
uma série através da qual o poder daquela henada é transmitida. Diz Proclo (El. Th., props. 128-
129):
Todo deus, quando participado por seres de uma ordem relativamente próxima a ele, é
participado diretamente; quando por aqueles que são mais remotos, [é participado]
indiretamente através de um número variado de princípios intermediários. [...] Todos os
corpos divinos o são através da mediação de uma alma divinizada, todas almas divinas
através de uma inteligência divina, e todas inteligências divinas por participação numa
henada divina209: a henada é divindade imediata, a inteligência a mais divina, a alma

209
Proclo fala, aqui, de inteligências, almas e até corpos divinos. De fato, não apenas as henadas supraessenciais
são deuses, mas há deuses em cada um dos níveis ontológicos. Inteligências, almas etc, são deuses na medida em
que participam de uma henada, mas não-deuses na medida em que são inteligências, almas etc. Uma outra maneira
de abordar este ponto é a distinção entre dois tipos de henadas que Proclo introduz em El. Th. Prop. 64: assim
como a mônada da Alma origina almas que se mantém transcendentes como ela, e outras que inerem em corpos;
assim como a mônada do Intelecto origina intelectos que se mantém transcendentes e outros que inerem em almas;
também o Uno origina henadas autossuficientes (autoteleis) e henadas que são meramente irradiações de unidade
254
divina, o corpo da forma da divindade. [...] O caráter divino penetra até o último dos
termos de uma série participante, mas sempre através da mediação de termos similares
a si mesmos. Assim a henada concede primeiro à inteligência aquele poder entre os
atributos divinos que é peculiarmente seu próprio, e faz com que esta inteligência seja
na ordem intelectual aquilo que é ela própria na ordem das unidades. Se esta inteligência
é participável, através dela a henada é presente também à alma, e é cooperativa em ligar
a alma à inteligência e inflamá-la. Através desta alma, se ela é participada por um corpo,
a henada comunica até mesmo ao corpo um eco de sua própria qualidade: desta forma
o corpo se torna [...] também divino, [...] cada princípio sucessivo comunicando aos
termos consequentes algo de sua própria substância.
Neste sentido, se torna compreensível o porquê das henadas serem ao mesmo tempo
“secretas e inteligíveis”, na medida em que são incognoscíveis em si mesmas (uma vez que são
unidades supraessenciais), mas seus caráteres distintivos podem ser inferidos a partir da série
que emanam (El. Th., prop. 123), e através da qual se revelam teofanicamente. Trouillard (1982,
pp. 200-201) observa, a este respeito:
É na medida gradual em que se desdobra em sua série que o caráter divino se define.
[...] Quando Proclo repete que cada henada comunica à sua série seu próprio caráter, é
preciso compreender que este deus abre por seu poder um campo de símbolos que sua
série preencherá de todos os modos possíveis sob uma lei única. Seria legítimo fazer
atribuir a ele esta lei [...]. Mas isso não nos autorizaria a qualificar o princípio [a henada]
se nós a abstraíssemos de sua série. Pois ela é ao mesmo tempo participada e
imparticipável. Na medida em que é imparticipável, cada henada não se distingue do
Uno. Apenas suas participações (seu número) a fornecesse uma posição inteligível.
Apenas sua série a concede ser e afirmação. Sem ela a henada se reabsorveria no Não-
Ser por excesso, assim como os centros secundários de uma esfera se confundiriam com
o centro principal se cessassem de se distinguir pelo raio que cada um projeta em direção
à periferia. A henada não é uma entidade, mas uma passagem, que não pode se definir
senão pelo que ela produz. “Pois todas as henadas são conjuntas na medida em que
permanecem no Uno, e elas se distinguem na medida em que elas realizam processões
diferentes a partir do Uno”210.
Remetendo àquela metáfora do Sol e seus raios (representando o Uno e as henadas), é
razoável pensar que o raio solar é o próprio Sol para aqueles que iluminam; da mesma forma,

e que inerem nos entes aos quais concede unidade. Também em In. Parm., VI, 1062.20-28), Proclo repete esta
explicação e fala de “henadas autônomas que transcendem seus participantes, e outras que atuam como unificações
de outras entidades que são unificadas em virtude delas e nas quais elas inerem”. Desta forma, deuses intelectuais,
psíquicos etc, podem ser vistos como henadas da segunda categoria, que inerem no intelecto, na alma etc, e que se
distinguem das henadas transcendentes e supra-essenciais propriamente ditas. A questão aqui é que adjetivar algo
de ‘divino’, para Proclo, significa declarar sua bondade e unidade, de modo que tudo o que é divino o é por sua
bondade/unidade, e os deuses o são também segundo este critério.
210
In Parm., VI, 1051.10-13.
255
cada henada é o próprio Uno para a série que dela se suspende (El. Th., prop. 151), uma vez
que é através dela que os membros da série participam no Uno. A henada é o princípio que
origina os membros da sua série; é o meio, ou aquela na qual os seres da sua série se sustentam
na existência; e é o fim, ao qual todos se voltam amorosamente. Através dos signos e símbolos
divinos que todos os membros da série possuem em si, eles veneram, oram e cantam hinos
àquele que é o seu princípio paterno, a henada pela qual participam no Uno:
Por que [plantas] heliotrópicas movem junto ao Sol, selenotrópicas junto à Lua,
movendo, na medida de sua habilidade, em torno aos luminários do cosmos? Todas as
coisas oram de acordo com sua estação e cantam hinos, seja intelectivamente ou
racionalmente ou naturalmente ou sensivelmente, aos chefes das correntes universais.
E uma vez que heliotrópios são movidos em direção àquele ao qual se abre, se alguém
ouvir como afeta o ar quando se move, perceberá no som [assim produzido] que eles
oferecem ao Rei o tipo de hino que uma planta pode cantar. [...] O lótus também mostra
este tipo de simpatia. Antes que os raios do Sol apareçam, ele está fechado, mas quando
o Sol se levanta ele lentamente se desdobra, e quão mais alto vai a luz mais ele se
expande, e então é novamente contraído quando o Sol se põe. Se os homens abrem e
fecham suas bocas e lábios para cantar hinos ao Sol, como isso difere da reunião e o
desprendimento das pétalas do lótus? Pois as pétalas do lótus tomam o lugar da boca, e
seu hino é natural. Mas por que falar de plantas, que têm algum traço de vida generativa?
Também se pode ver que as pedras inalam as influências dos luminários, como nós
vemos na pedra solar com seus raios dourados imitando os raios do Sol; e a pedra
chamada olho de Bel (que deveria ser chamada de olho do Sol, como dizem) que se
parece com a pupila do olho e emite uma luz cintilante do centro de sua pupila.
(PROCLO apud Chlup, 2012, pp. 130-131)
Ainda, não apenas os deuses são ‘princípio, meio e fim’ para aqueles que pertencem às
suas respectivas séries, mas, também, se da perspectiva dos seres é verdade que eles procederam
dos deuses, da “perspectiva dos deuses eles permanecem Neles” (In. Tim., II, 210.1-2). Isto é,
não apenas todos os seres participam nas henadas através de uma hierarquia de mediações, mas
também todos estão diretamente enraizados nelas211, na medida em que são por elas abraçados.
Diz Proclo (In. Ti., II, 209.13-29):
Todas as coisas que existem são proles dos deuses, e são trazidos à existência por eles
sem intermediação e têm neles sua fundação. Pois não apenas a processão contínua das
entidades encontra completude, na medida em que cada uma delas sucessivamente
obtém sua subsistência de suas causas próximas212, mas também dos próprios deuses

211
Esta é uma outra versão de algo que foi observado no subcapítulo anterior, acerca dos dois modos pelos quais
as hipóstases procedem do Uno: o modo gradual, hierárquico; e o modo direto, em que cada hipóstase se enraíza
diretamente no Uno.
212
No modo hierárquico de processão.
256
todas as coisas são, num sentido, geradas, mesmo que sejam descritas como sendo
removidas dos deuses pela maior distância, mesmo, de fato, se fossemos falar da própria
matéria (hulê). Pois o divino não se mantém removido de coisa alguma, mas é presente
a todas as coisas igualmente. Por esta razão, mesmo se tomarmos os mais inferiores
níveis de realidade, ali também encontraremos a presença do divino. O Uno, de fato, é
presente em todas as partes, na medida em que cada um dos seres deriva sua existência
dos deuses, e mesmo que procedam dos deuses, não saíram deles mas estão, ao invés
disso, enraizados neles. Para onde, de fato, poderiam eles ‘sair’, quando os deuses
abraçam todas as coisas e as possuem antecipadamente213 e as retém em si mesmos?
Pois o que está além dos deuses é Aquilo que não é214, mas todos os seres são abraçados
num círculo pelos deuses e existem neles. Num modo maravilhoso, portanto, todas as
coisas tanto procederam quanto não procederam [dos deuses].
É deste modo que as henadas possuem em si todas as coisas que deles emanam, sob um
modo unitário e supraessencial que lhes é próprio, e deste modo são presentes
providencialmente e abraçam com seu poder providencial todas as coisas que delas derivam.
Este é seu modo providencial de ser, seu modo de conhecimento e de atuação, pois tudo o que
é divino é caracterizado “por sua bondade, um poder que tem o caráter da unidade, e um modo
de conhecimento que é secreto e incompreensível a todos os seres secundários” (El. Th., prop.
121). Os deuses, sendo bondade providencial, possuem um poder que “domina todos os objetos
de sua providência, um poder além de toda resistência e sem nenhuma circunscrição, em virtude
do qual os deuses preenchem todas as coisas consigo mesmos”, “pré-abraçando em si
igualmente todos os poderes de todas as coisas existentes” (ibid.). Este poder providencial é
idêntico ao “secreto e incompreensível” modo de conhecimento providencial dos deuses, um
dos elementos mais difíceis de compreensão no pensamento de Proclo.
Ele diz, a este respeito, em De dec. Dub. (4.1-5.41), que além de todas as outras formas
de conhecimento (irracionais, racionais, intelectivas) está o conhecimento da providência, que
opera em virtude do Uno, de acordo com o qual os deuses “tanto existem quanto exercem
providência a todas as coisas” ao transmitir o bem e a unidade a todas elas. Ora, diz Proclo, há,
na existência, totalidades e partes, universais e particulares, forma e não-forma, aquilo que é de
acordo com a natureza e aquilo que não o é; mas tudo quanto quer que exista, é uno, e participa
no Uno e sua providência, de modo que a providência não pertence mais a um do que a outro.
Por essa razão, na medida em que a providência a tudo conhece segundo sua unidade, conhece
unitariamente tudo aquilo quanto é uno, tanto o universal quanto o particular, a totalidade e a

213
Antecipadamente: antes da manifestação dos níveis ontológicos nos quais os serem subsistem. Trata-se de uma
metáfora temporal que indica uma realidade atemporal.
214
O supremo ‘Não-Ser’, que é o Uno em sua pura inefabilidade.
257
parte, a forma e a não-forma, o que está segundo a natureza e o que não o está, de modo que “a
providência conhece todas as coisas, pelo seu Uno, pelo qual também faz todas as coisas boas:
aqueles que pensam assim como aqueles que não pensam, aqueles que são vivos e aqueles que
não o são, seres assim como não-seres”, pois a providência “a todas as coisas transmite unidade,
como um traço de seu próprio Uno”. E ele completa o trecho em questão com uma ilustração
deste modo misterioso pelo qual a providência a tudo conhece unitariamente:
E é dito, e corretamente dito, que o círculo inteiro existe no centro sob o modo de centro,
uma vez que o centro é a causa e o círculo é a coisa causada. E pela mesma razão todo
número existe num modo monádico na mônada. No Uno da providência, porém, todas
as coisas existem num modo superior, uma vez que ele também é uno numa medida
superior que o centro ou a mônada. Suponha, então, que o centro tenha conhecimento
do círculo, ele teria um conhecimento central, assim como tem uma existência central,
e não se dividiria nas partes do círculo. Num modo similar, o conhecimento unitário da
providência é, na mesma indivisibilidade, o conhecimento de todas as coisas divididas
e de cada uma delas, tanto da mais individual quanto da mais universal das coisas. E
assim como dá existência a todas as coisas ‘de acordo com o Uno, assim também
conhece todas as coisas’ de acordo com o Uno.
Desta forma que o Uno da providência é “tudo antes de tudo”, sob o modo unitário e
indiferenciado da pura existência (huparxis), e cada um dos deuses/henadas, ao irradiar de
maneira transbordante a bondade que lhe é característica, abraça em sua própria existência todos
os seres que nele participam, e desta forma age sobre eles e os conhece unitariamente e
supraessencialmente, numa espécie de suprema adivinhação ou “pressentimento”, que é
também uma forma pela qual se faz presente a todos os seres segundo um cuidado e amor
providencial (eros pronoetikós) (c.f. ROSAN, 1982, p. 49). Poder-se-ia pensar que esta é uma
concepção que é derivada da maneira como a religião olímpica concebia os seus deuses, os
quais de tudo cuidam apenas permanecendo em si mesmos (c.f. OTTO, 1956, p. 75).
A via teúrgica seguida no Neoplatonismo Tardio se explica por esta concepção das
séries divinas que são providencialmente suspensas a partir do “ímã” dos deuses henádicos, e
os divinos signos e símbolos por eles semeados no coração de todos os seres. Como o coloca
Lankila (2010, p. 156), a melhor tradução de theourgia seria “ação divina”, e sua melhor
definição seria “um simbolismo operatório destinado a despertar a presença divina”, pois,
enquanto a teologia ‘revela’ os deuses215, a teurgia “invoca; ela age simbolicamente, e seu
propósito é trazer a divina iluminação” (ibid., p. 157). Por esta razão, os teurgos são, para

215
Teologia, neste contexto Neoplatônico Tardio, significa a revelação dos deuses através da linguagem mítica, e
a expressão conceitual/racional das suas essências através de uma interpretação dos mitos.
258
Proclo, aqueles “em quem um entendimento desses símbolos [divinos] é mais plenamente
encarnado, pela graça da revelação divina” (ibid., p. 158), de modo que “a capacidade de
encontrar, conhecer e usar esses signos místicos é a característica de um verdadeiro teurgo, um
mestre da arte hierática” (ibid., p. 159). O teurgo, em outras palavras, é aquele que identifica os
signos e símbolos divinos em diferentes níveis da realidade, compreende a simpatia vertical que
os une em uma mesma série divina, e aplica de modo invocatório este entendimento da simpatia
que une os signos divinos aos deuses.
Uma vez que os deuses semearam seus signos divinos em diversos níveis de realidade,
encontramos diversos níveis de divindades, formando uma hierarquia (como já havíamos visto
anteriormente). Encontramos, igualmente, diversos níveis de prática teúrgica que dizem
respeito a esses diversos níveis de realidade e às divindades a eles correspondentes. Poderíamos
dividir a prática ritual da teurgia, assim, em três níveis distintos: i) material ou externo; ii)
intermediário; e iii) noético/imaterial ou interno. Segundo Jâmblico (c.f. SHAW, 2014, pp. 166-
172), cada um desses três níveis de prática teúrgica a) utiliza um tipo distinto de objeto
sacrificial, b) é adequado a três tipos distintos de almas, c) as conectam com tipos distintos de
divindades, e d) as fazem receber bênçãos correspondentes.
A teurgia material ou externa emprega sacrificialmente signos divinos manifestos em
objetos naturais – como minerais, plantas, animais; é adequada à alma heterokinética que vive
sujeita à natureza do universo e o destino, e que se encarna no mundo com o propósito de
punição e julgamento; a conecta com divindades encósmicas responsáveis pela gestão do
cosmos; e recebe delas bênçãos materiais (como saúde, prosperidade e proteção, para si mesmo
e para os demais: a cidade e etc) e a deificação do corpo216. A teurgia intermediária pode

216
Shaw (2014, pp. 58-62) explica que a encarnação da alma num corpo podia ser vista de duas perspectivas
distintas: do ponto de vista particular, de uma alma particular num corpo particular, segundo o qual a encarnação
é experimentada como uma prisão, e portanto submissão ao destino; e o ponto de vista universal, em que está
presente a universalidade do Corpo do mundo ao qual o corpo particular é integrado, e segundo o qual a encarnação
é experimentada como ato providencial, e portanto liberdade. É desta segunda forma que os deuses encósmicos
(os planetas e estrelas) experimentam sua encarnação (nos corpos planetários/estrelares), e é desta forma que o
teurgo purificado também a experimenta: “através da luz purificadora concedida pelos deuses na teurgia a alma
encarnada era liberada de sua particularidade e estabelecida em seu veículo astral, o augoeides ochema (DM 312,
9-18). Como os corpos esféricos do universo e das estrelas, para os quais a encarnação era simplesmente adorno e
revelação, o corpo esférico adquirido em rituais teúrgicos estabelecia a alma como imortal mas ainda assim
permitia a multidão de atividades nas quais se engaja a alma mortal e encarnada. [...] Entrando na comunidade dos
deuses como um de seus corpos de luz, a alma encarnada não era mais alienada pela matéria nem apaixonadamente
atraída a ela. A encarnação era transformada de um caos psíquico de sofrimento a um cosmos, um adorno do
divino” (ibid., pp. 58 e 62). Ainda, “a adoração de deuses materiais completa a ordem do destino, que permitia à
alma experimentar suas leis como providentes e liberadoras. Uma vez que os deuses materiais eram revelados por
daimons, rituais materiais necessariamente trabalhavam com ordens daimônicas, e uma vez que esses mesmos
daimons governavam sobre os instintos e paixões corpóreas, os rituais que estabilizavam as medidas apropriadas
para se associar com eles também estabilizavam as paixões da alma” (ibid., p. 174).
259
empregar sacrificialmente tanto objetos naturais quanto objetos noéticos, mas se caracteriza
principalmente pelo emprego sacrificial de signos divinos manifestos em objetos matemáticos
– como formas geométricas, números e harmonias217; é adequada à alma intermediária entre o
destino e a providência (ou liberdade), e que se encarna no mundo com o propósito de exercer
e corrigir seu caráter; a conecta com divindades supramundanas, que são intermediárias entre o
cosmos e o mundo inteligível; e recebe delas bênçãos como a purificação e a virtude da alma.
Por fim, a teurgia noética/imaterial emprega sacrificialmente os signos divinos manifestos em
objetos noéticos como os nomes divinos218 (revelados pelos poetas inspirados), os quais eram
ritualmente utilizados através da composição e canção de hinos aos deuses219; é adequada à
alma divina ou noética, que se encarna nesse mundo com o propósito de salvar, aperfeiçoar e
purificar o cosmos; a conecta com divindades dos mundos noéticos220; e recebe delas bênçãos
como a iluminação intelectiva da alma.
Aqui termina o processo de ascensão noética através das séries divinas verticais. Porém,
essa ascensão teúrgica não chegou até à fonte das séries divinas, isto é, aos deuses henádicos.
Este último passo da ascensão, que permitiria ao teurgo unir-se ao Uno/Bem através dos deuses
que são o “ímã” de suas séries divinas correspondentes, se dá através de uma comunhão
silenciosa, além de todo ato e palavra, na pura coincidência com a fé (pistis) dos deuses, a
respeito da qual diz Proclo (Theol. Plat. I, 25.1-15):
O que é, portanto, aquilo que nos une ao Bem? O que é aquilo que causa em nós a
cessação da energia e da moção? O que é aquilo que estabelece todas as naturezas

217
Shaw (2014, pp. 227-228) explica que diferentes formas geométricas eram compreendidas como constituindo
as ‘formas’ de diferentes deidades, e apropriadamente comparou esse emprego teúrgico de formas geométricas
com as mandalas utilizadas na Índia como ‘receptáculos dos deuses’. Além disso, apontou (ibid., pp. 224-225) que
o emprego teúrgico de números e harmonias também possuía uma dimensão astrológica, uma vez que sua intenção
era pôr em sintonia os números e proporções da alma com os números e proporções do Tempo revelados nos céus,
de modo que “a regulação da energeia ritual com a energeia celeste vincularia os números da alma com suas
unidades inefáveis. Realizando rituais em momentos precisos e de acordo com as constelações apropriadas, a alma
seria unificada [com os deuses celestes ou encósmicos]”. Porém, Shaw inclui essa teurgia através de objetos
matemáticos à variedade noética/imaterial, com o que discordo. Me parece mais adequado à metafísica proclina
que a teurgia que opera através de signos matemáticos seja intermediária e não noética.
218
Jâmblico, segundo Shaw (2014, p. 125), considerava que “os nomes inefáveis [dos deuses] estavam já presentes
na alma na forma de uma imagem indivisa. Jâmblico diz: ‘Nós preservamos completamente na alma a imagem
mística e inefável dos deuses, e através destes [nomes] somos conduzidos acima até os deuses e, quando eleados,
somos conectados a eles tanto quanto possível’. [...] Um nome divino era a energeia audível do deus e quando
invocado o teurgo entrava em seu poder, unindo a imagem divina em sua alma ao divino em si”. Ainda, diz Shaw
(2014, p. 204) que “os nomes dos deuses eram teofanias individuais da mesma maneira que o cosmos era a teofania
universal”.
219
Hinos que, aparte de empregar os nomes divinos, também deviam estar preenchidos de um conhecimento acerca
dos deuses e suas posições hierárquicas.
220
Proclo “mantém que a teurgia só alcança até a fronteira que une os deuses inteligíveis (i.e. aqueles que
pertencem ao nível do Ser) aos [deuses] inteligíveis-intelectivos (i.e. aqueles do nível da Vida), pois é apenas até
este ponto que os deuses são nomeáveis”, pois “o poder deste tipo de teurgia só alcança aqueles deuses que são
nomeáveis, o que implica o uso de nomes divinos” (CHLUP, 2012, pp. 177-178).
260
divinas na primeira e inefável unidade da bondade? [...] É, em resumo, a fé (pistis) dos
deuses, que inefavelmente une todos os gêneros de deuses, de daimons, e de almas bem-
aventuradas ao Bem. Pois é necessário investigar o Bem nem cognitivamente, nem
imperfeitamente, mas entregando-nos a nós mesmos à luz divina, e fechando os olhos
da alma, e desta maneira se tornar estabelecidos na unidade [henada] inefável e oculta
dos seres. Pois um tal tipo de fé como esse é [...] [aquele] de acordo com o qual os
deuses são unificados [entre si], e [também] ao redor de um centro que uniformemente
reúne a totalidade de seus poderes e processões.
Ora, não se trata aqui de fé no sentido de crença em verdades determinadas, nos alerta
Trouillard (apud MACISAAC, 2001, p. 272), mas de um “silêncio unitivo” que, atualizando o
que há de indeterminado em nós (nossa huparxis), fixa a alma na inefabilidade dos deuses e a
estabelece na sua absoluta indeterminação. A fé, portanto, enquanto silêncio unitivo, é a
atividade da pura existência indeterminada (huparxis), a ‘flor da alma’ ou ‘uno da alma’.
Teurgicamente, também este ‘uno da alma’ é compreendido por Proclo como sendo um signo
ou símbolo divino, semeado ao mais inefável núcleo de cada ser, de modo que nos unimos ao
deus a cuja série pertence este signo “através de seu próprio sinal (sunthêma) místico, despindo
de sua própria natureza [da alma] e ansiando ser nada mais que seu sinal e nele participar”
(Theol. Plat. II 8, 56.16-25). A este respeito, comenta Lankila (2010, p. 161):
[todos os seres] perseguem o contato com a primeira causa incausada, renunciando sua
própria natureza no seu desejo de ser idêntico ao signo do Primordial. Em sua ascensão
eles abandonam suas próprias propriedades características que os define como seres
distintos e portanto não-uno (no sentido de existência diferente do Uno em si) e eles
alcançam a mais pura unidade em si mesmos, aquela que em sua natureza é um traço
do supremo Não-Ser (o Uno neles).
O uno-da-alma, em sua atividade de pura fé, é também uma atividade de pura oração
aos deuses. Segundo Shaw (2014, pp. 126-127), Jâmblico considerava que a oração era “a
energeia da imagem divina da alma ansiando por seu original”, como se “o Uno da alma
estivesse sempre num estado de oração, unindo-se a si mesmo”, uma vez que, segundo ele,
“orações sagradas são enviadas aos homens pelos próprios deuses, e elas são as sunthemata
(signos) desses deuses”. De fato, a oração é uma prática teúrgica interna que é parte dos rituais,
mas também é praticada independentemente deles, e cuja culminação suprema é o silêncio
unitivo além de todas palavras. Proclo concede grande importância à prática da oração e
observa, seguindo Porfírio antes dele, que os mais sábios em cada nação “são distinguidos por
sua sabedoria fazem da oração seu interesse particular: os Brâmanes entre os indianos, os Magi
entre os persas, e no caso dos gregos, os melhores dos teólogos, que estabeleceram ritos e
mistérios” (In. Tim., II, 208.17-20). As orações, ele diz (ibid., II, 211.2-7), atrai a nós a
261
beneficência dos deuses e nos unem a eles; conecta o intelecto deles a nós; incita a vontade dos
deuses a partilhar conosco incansavelmente os bens que eles possuem, sendo a “criadora da
persuasão divina” que “estabelece tudo o que é nosso nos deuses”.
Seguindo as instruções dos Oráculos Caldeus, Proclo assinala o caminho da oração em
cinco estágios, que são: 1) conhecimento (gnosis), 2) familiarização (oikeiôsis), 3) contato
(sunaphê), 4) aproximação (empelasis) e 5) união (henôsis) com os deuses. Como o comenta
MacIsaac (2001, p. 272), esses cinco estágios da oração “são de fato cinco diferentes
perspectivas epistemológicas/ontológicas, através das quais a alma passa, culminando na
perspectiva do Uno e das henadas, que é a henôsis”. Nos diz Proclo:
A perfeita e verdadeira oração é conduzida como se segue: (1) Primeiro há o
conhecimento de todas as classes dos deuses às quais a pessoa que ora se aproxima.
Pois [ela] não se aproximaria deles de modo apropriado se não conhecesse as
características de cada um deles. Por esta razão o Oráculo também comanda que as
'concepções aquecidas no fogo' têm primeiro lugar no culto sagrado. (2) Em segundo
lugar, depois disso, vem o processo de familiarização que se dá ao tornar-se semelhante
ao divino no que diz respeito à completa pureza, castidade, educação e disposição
ordenada. Através disto nós dirigimos o que é nosso aos deuses, recebendo sua boa
vontade e submetendo nossas almas a eles. (3) Em terceiro vem o toque, através do qual
fazemos contato com a substância divina, com a mais elevada parte de nossa alma, e
nos inclinamos a ela. (4) Em seguida vem a 'aproximação', pois é assim que o Oráculo
a chama: 'pois o mortal que se aproxima do fogo diretamente possuirá a luz dos deuses',
nos permitindo uma maior comunhão com os deuses e uma participação mais
transparente em sua luz. (5) Finalmente há a unificação (henôsis), que estabelece a
unidade da alma na unidade dos deuses, fazendo com que haja uma única atividade
nossa e deles, de acordo com a qual nós não pertencemos mais a nós mesmos mas aos
deuses, permanecendo na luz divina e circundados em seu abraço. [...] A pessoa,
portanto, que nobremente se encarrega da prática da oração deve propiciar os deuses e
despertar dentro de si mesmo as concepções a respeito dos deuses [...]. Ela deve estar
ocupada sem cessar com o culto da divindade [...]. Ela deve preservar inabalável a
ordem correta de seus atos em relação aos deuses e colocar diante de si virtudes que a
purificam do reino da geração e fazem com que ele ascenda; também a fé, a verdade e
o amor (a renomada tríade), assim como a esperança por coisas boas e a receptividade
imutável à luz divina, e o êxtase separando-a de todas outras preocupações, de modo
que ela seja unida ao deus sozinho 221 e não tente unir-se à unidade enquanto mantém
companhia com a pluralidade. (In. Tim., II, 211.9-29; 212.12-25)

221
Chlup (2012, p. 165), seguindo Butler, sugere que trata-se aqui de uma forma “focalizada” de adoração, em que
o devoto se dirige a uma divindade em particular por vez, e se une a todas elas através desta.
262
Além da coletânea de hinos aos deuses compostos pelo próprio Proclo, ele também nos
deixou um exemplo importante de oração na introdução ao seu Comentário ao Parmênides, na
qual ele se dirige a deuses das mais diversas classes e roga por suas respectivas bênçãos. Ele
diz:
Eu oro a todos os deuses e deusas para guiarem minha mente neste estudo de que me
encarrego – para despertar em mim uma luz brilhante da verdade e expandir meu
entendimento da ciência genuína do Ser; para abrir os portões da minha alma para
receber a orientação inspirada de Platão; e ao ancorar meu pensamento no pleno
esplendor da realidade conter-me da presunção de sabedoria e dos caminhos do erro ao
manter-me em comunicação intelectual com aquelas realidades das quais o olho da alma
é refrescado e nutrido [...]. Eu peço aos deuses inteligíveis plenitude de sabedoria, dos
deuses intelectuais o poder de elevar-me ao alto, dos deuses supracelestiais dirigindo o
universo uma atividade livre e despreocupada com questões materiais, dos deuses a
quem o cosmos é atribuído uma vida alada, dos coros angélicos uma verdadeira
revelação do divino, dos bons daimons uma abundante plenitude de inspiração divina,
e dos heróis uma disposição generosa, solene e elevada. Assim possam todas as ordens
dos seres divinos ajudar-me a me preparar plenamente para partilhar nesta mais
iluminante e mística visão que Platão nos revela no Parmênides... (In. Parm., I, 617.1-
618.2)
Este tipo de propiciação a cada uma das ordens dos deuses, segundo Jâmblico (c.f.
SHAW, 2014, p. 175), fazia da alma um verdadeiro “receptáculo do coral divino”, através do
qual ela se assimilava a toda uma série divina, assim como se unia ao Uno através da henada
que preside essa série, e desta forma se estabelecia nos deuses de maneira segura e infalível222.
Aquele que assim se dedica à prática teúrgica e à oração, por fim, se une aos deuses,
permanecendo e sendo circundado por sua luz, se tornando uma mesma atividade que eles, isto
é, partícipe de sua divina providência – que é o modo de existência, atuação e de conhecimento
dos deuses.
Ora, isso nos põe a importante questão acerca da condição existencial da alma que assim
alcança apoteose na união com os deuses: ela desaparece enquanto alma, se dissolvendo

222
Segundo Shaw (2014, pp. 175-176), isto é a atitude oposta àquela do neoplatônico Porfírio, que Jâmblico teria
entendido como sendo alguém engajado prematuramente num modo puramente noético de adoração sem que
tivesse estabelecido uma verdadeira fundação, ignorando os deuses e daimons que governam o mundo material.
Desta forma, ainda que Porfírio houvesse atingido uma vez experiência de unificação (henôsis) com o Uno, ele
era sujeito a ataques de depressão e até desejo de suicídio. “De um ponto de vista teúrgico”, ele diz, “Porfírio
carecia uma fundação a segurança (asphalês) e infalibilidade (aptaistos), que vinham de propriamente completar
o ‘receptáculo’ do coral divino. [...] Para alcançar o Uno, a alma devia ser assimilada ao Todo, e isso era realizado
apenas ao honrar ‘todos os deuses’”.
263
indistintamente nos deuses223? Ou apenas experiencia essa dissolução temporariamente, como
num êxtase, e então resume sua existência separada e desprovida de união divina? Me parece
que, no caso da via teúrgica, não se trata de nenhum dos dois, mas algo intermediário: a alma
mantém sua existência enquanto alma, ao mesmo tempo em que permanentemente224
estabelecida na luz e na atividade providencial dos deuses. De fato, Jâmblico (apud SHAW,
2014, p. 130) contrasta as concepções de “apoteose” do platonista Numênio225 e aquela dos
“antigos” (os teurgos), dizendo que no caso do primeiro haveria uma “unificação e identidade
sem distinção da alma com seus princípios”, enquanto no caso dos segundos “a alma é unificada
[com seus princípios] enquanto se mantém distinta como essência226”; ainda, de acordo com o
primeiro a alma liberta do mundo da geração contempla a divina hierarquia e acompanha os
anjos em sua jornada circular, enquanto os antigos supunham que a alma liberta coadministra
o cosmos junto aos deuses e o cria junto aos anjos. Segundo interpreta Shaw (2014, pp. 129 e
131), por mais que alma ascenda ela nunca deixa de ser alma, nunca atingindo uma identidade
absoluta com o deus, ainda que possa ser perfeitamente estabelecida nas atividades de seus
poderes. Em outras palavras, a henosis teúrgica seria uma “unificação na divina generosidade”.
Proclo, num trecho muito significativo (De dec. Dub., 65.1-34) que tomo como chave
para compreender isso, estabelece que apenas as henadas, que são puras unidades, exercem
providência com a totalidade de seu ser, enquanto intelectos e almas divinas exercem
providência na medida em que são unos (em virtude do Uno que os habita), ou segundo sua
huparxis, mas não na medida em que exercem suas atividades próprias qua intelectos e qua
almas ou segundo sua ousía – que são atividades que se dão em virtude do não-uno, de modo
que cada um desses, “tendo algo além do Uno, imita [a providência de algum deus] através do
Uno [...], mas por alguma outra coisa vive de acordo com alguma outra atividade. E enquanto
a existência de cada é em virtude do Uno, o ser [essencial] neles [...] é em virtude do não-uno”
(ibid., 65.29-34). A alma, portanto, em sua unificação com algum deus participa em seu modo
de existência, e no poder e no conhecimento de sua providência, segundo o Uno-da-alma; mas
seu ser essencial alma, e suas atividades próprias, continuam atuando independentes da
atividade providencial do Uno-da-alma. Ele diz (ibid., 65.12-23):

223
Bussanich (1994, p. 5328) sugere uma interpretação da henosis plotiniana em que a alma de fato se merge
completamente no Uno após repetidas experiências passageiras de união, mas cita, também, autores como
Armstrong e Rist, que rejeitavam esta interpretação.
224
É claro, também se poderia supor experiências passageiras de união, mas a união permanente/definitiva me
parece possível no pensamento proclino.
225
E, consequentemente, de Plotino – segundo Shaw observa nessa passagem.
226
Isto é, unificada segundo sua huparxis mas distinta segundo sua ousía.
264
Quando elas [as almas] são estabelecidas no Bem, em virtude do uno (nelas), elas são
ativas num modo divinamente possuído, e junto aos deuses e as classes que são
superiores a ela exercem providência numa maneira transcendente, assim como aqueles
o fazem. E sua providência consiste não em cálculos conjecturais sobre o futuro, como
no caso de nossos assuntos políticos; mas posicionando-se firmemente no Uno-da-alma
e, assim sendo iluminadas de todos os lados pela luz unitária dos deuses, elas veem as
coisas [que estão] no tempo atemporalmente, coisas divididas indivisamente, coisas
[que estão em alguma] localidade de modo não local; e elas não pertencem a si mesmas,
mas àqueles que as ilumina. Esta condição sucede às almas de vez em quando, mas aos
anjos e outras classes anteriores a eles ela é permanentemente presente. É por isto que
aqueles estão sempre exercitando providência, num modo que é melhor que se eles
estivessem ativos segundo a deliberação, uma vez que eles não seguem os passos do
que acontece, mas veem todas as coisas em virtude do uno que é causalmente presente
nos deuses, e ainda que exerçam a intelecção ou a razão [seguem] sem nenhuma
diminuição da atividade providencial.
Ora, a menção aqui ao fato de que às almas essa condição divina só a toma de vez em
quando, enquanto anjos a possuem permanentemente, não necessariamente exclui a sua posse
permanente ao teurgo. Pois temos aqui, de fato, a categorização proclina dos três tipos de almas:
as almas particulares, que participam intermitentemente no Intelecto; as almas daimônicas
(entre as quais estão os anjos), que participam permanentemente no Intelecto; e as almas
divinas, que além de participar permanentemente no Intelecto, também participam numa divina
henada (El. Th., prop. 184), em razão do que são deuses psíquicos227. Se a alma ordinária está
na primeira categoria, e só podemos conceber que ela participa do modo de ser dos deuses
intermitentemente, a alma apoteótica do mestre da arte hierática pode muito bem ser
permanentemente estabelecida em sua participação numa divina henada, se convertendo, assim,
numa alma divina228. Estas almas deificadas são aquelas que adquiriram a virtude
hierática/entusiástica, que Marino (apud UZDAVINYS, 2004, p. 199), biógrafo de Proclo,
atribuiu ao seu mestre dizendo que ele
não conformou sua vida exclusivamente a uma das duas características
apropriadas aos seres divinos, mas a ambas: não apenas ele se elevava em
pensamento ao divino, mas por uma atenção providencial (pronoia) que não era
meramente social, ele cuidava daquelas coisas que eram inferiores.
Esta segue sendo ontologicamente alma, capaz de exercer o pensamento discursivo e a
deliberação da escolha, e sendo intermediária entre o mundo inteligível e o mundo sensível,

227
Ou henadas imanentes à Alma.
228
Este ponto não está claro em Proclo. O sugiro hipoteticamente.
265
como toda alma; mas de seu cerne unitário, da ‘flor da alma’ sempre ativa e unida à divina
henada, sempre flui uma atividade divinamente inspirada, que se doa providencialmente aos
seres.
Esse modo de ser da alma divina é melhor compreendido quando se considera a natureza
do entusiasmo ou inspiração divina. O Comentário ao Fedro, escrito pelo neoplatônico Hermias
como notas acerca dos ensinamentos de seu mestre Siriano (também mestre de Proclo), se
revela uma fonte importante a este respeito. Segundo seu testemunho (apud UZDAVINYS,
2004, pp. 188-190), o uno-da-alma é aquilo em nós que “é mais alinhado ao Uno, que
igualmente quer bem a todas as coisas, e sempre se entrega aos deuses”, que unifica toda a alma
ao unificar todos seus poderes e os uní-lo ao Uno; e quando este uno-da-alma é “é excitado aos
deuses, é a partir daí inspirado”. Por esta razão, a loucura divina de que fala Platão, no Fedro,
é nada mais que essa “inspiração (enthousiasmos) que ilumina a alma com luz divina” (CHLUP,
2012, p. 175), através do despertar deste uno-da-alma. Porém, Platão fala de vários tipos
distintos de loucura divina, não apenas de um. De fato, “há diferentes níveis de inspiração ...
dependendo da parte da alma sobre a qual a luz desce” (ibid.). Segundo o testemunho de
Hermias (apud UZDAVINYS, 2004, p. 189) acerca do ensinamento de seu mestre Siriano:
... aquilo que é primariamente, propriamente, e verdadeiramente entusiasmo dos deuses,
é efetuado de acordo com este uno-da-alma, que é mais elevado que a dianoia, e que o
intelecto da alma; o qual em outro momento [quando não inspirado divinamente] está
num estado relaxado e dormente. Este uno, outrossim, sendo iluminado (pelos deuses),
toda a vida da alma é iluminada, e também o intelecto, a dianoia, e a parte irracional
(da alma), e um eco de entusiasmo é transmitido até o próprio corpo. Outros
entusiasmos, portanto, são produzidos ao redor de outras partes da alma [...]. Pois a
dianoia também é dita atuar de modo entusiástico, quando ela descobre ciências e
teoremas num curto espaço de tempo, e num grau maior que outros homens. A opinião,
e da mesma forma a imaginação, são ditas também atuar deste modo quando descobrem
artes, e realizam trabalhos admiráveis, como, por exemplo, Fídias efetuou na formação
de estátuas, e algum outro em outra arte [...]. A raiva, do mesmo modo, é dita atuar
entusiasticamente, quando em batalha atua de modo supernatural. [...] E se alguém,
submetendo-se ao apetite, comesse daquilo que a razão proíbe, e através disso
recuperasse de maneira inesperada sua saúde, poder-se-ia dizer que também o desejo,
neste caso, atuou entusiasticamente, ainda que obscuramente; portanto o entusiasmo é
também produzido ao redor de outras partes da alma.
Portanto, o uno-da-alma é aquilo em nós que é propriadamente inspirado divinamente,
mas irradia sua inspiração às outras potências e faculdades da alma e nelas produz estados de
inspiração correspondentes. Isto se dá devido ao fato de que o uno-da-alma não é a ‘flor do

266
intelecto’, mas a ‘flor de toda a alma’, o centro unitário de todas suas potências e faculdades.
Num fragmento, Proclo (apud CHLUP, 2012, p. 165) faz esta distinção:
Uma vez que o Uno se manifesta de dois modos em nós, tanto (i) como a flor da mais
primária das nossas faculdades [i.e. o intelecto], e (ii) como o centro da totalidade de
nossa essência e de todas as várias faculdades que o circunda, o primeiro apenas nos
conecta ao Pai dos seres inteligíveis; pois é um ‘uno’ que é intelectivo e que é
intelectivamente apreendido pelo Intelecto paterno de acordo com o ‘uno’ nele. É
apenas o ‘uno’ ao qual todas as faculdades psíquicas convergem que é naturalmente
capaz de nos levar àquilo que transcende todas as coisas. É este ‘uno’ que unifica todas
nossas faculdades, por qual razão nós somos profundamente enraizados nele em nossa
essência.
Rosán (1982, pp. 50-51) observa, acerca desta prominência da ‘flor de toda a alma’
sobre a ‘flor do intelecto’, ressaltando que essa segunda, ao contrário da primeira, é a unidade
de
... todo nosso poder consciente, opinião assim como conhecimento, a experiência diária
e mundana assim como a consciência filosófico-religiosa. Considere quão diferente isso
se torna subjetivamente. No caso de alcançar o Uno através da unidade de nossa
inteligência intuitiva apenas, deve haver um afastamento total de nossas distrações
sensíveis, pensamentos mundanos, etc., e a mais intensa concentração sobre a unidade
de nossas mais elevadas ideias como ‘trampolim’ para o Objetivo único, uma técnica
que enfatiza Sua transcendência. Mas no caso da ‘unidade da totalidade de nossa
existência’, há muito pouco do que nós realmente devemos afastar [...]. Não haveria
aqui nenhuma localização precisa da atenção, mas ao invés disso um sentimento
imanente, integrativo de auto-identidade que assim sugeriria uma imanência do objeto
divino, ao menos no momento da união mística. Portanto, ainda que a Realidade Única
seja, como diz Proclo, ‘Absolutamente Transcendente’, ao aproximar-se Dela através
da ‘unidade de toda sua existência’ ele deveria ter experimentado um sentido de
imanência divina de tal modo que todos os aspectos de sua ‘alma’ ... eram integrados
com essa Realidade universal agora muito próxima. Talvez a expressão ‘imanência
integrativa do Uno’ pode ser útil em sugerir a nuance fenomenológica aqui pretendida.
Estabelecer-se na união com os deuses e no seu modo inspirado e providencial de
existência não significa para a alma, portanto, uma anulação das diferentes faculdades que lhe
são próprias, mas sua deificação. A alma divina segue existindo enquanto alma segundo sua
essência, atuando segundo suas potências discursivas e deliberativas, mas de tal modo que estas
são infundidas pela luz da inspiração divina que emana da ‘flor da sua existência’, que é ativada
por sua união com os deuses. Essa luz da inspiração divina, quando emanada às diferentes
faculdades da alma, é recebida por cada uma delas segundo sua própria natureza: o intelecto
em nós (‘a flor do intelecto’) a recebe segundo uma intuição noética inefável, a dianoia através
267
do desdobramento discursivo, e a imaginação através de visões, sonhos, mitos e símbolos
divinos229 (MACISAAC, 2001, pp. 269-270).
Neste sentido é que se deve compreender, segundo Hermias (apud UZDAVINYS, 2004,
pp. 193-195), as quatro formas de inspiração divina citadas por Platão no Fedro, cada uma delas
sendo a manifestação da luz entusiástica em uma parte distinta da alma, operando nela sua
deificação, e formando entre elas uma escada de degraus de deificação. Ainda, cada uma das
quatro opera de duas maneiras: internamente à alma e externamente. A (i) inspiração poética
ou musical, atribuída às Musas, atua nas partes inferiores da natureza da alma, de modo a
conduzi-las do tumulto, da agitação e da perturbação a uma divina sinfonia e harmonia;
externamente, disciplina nossa vida, faz com que nossa fala e ação sejam rítmicas, nos inspira
a cantar poeticamente as vidas dos homens divinos. A (ii) inspiração teléstica ou iniciática,
atribuída a Dionísio, unifica e aperfeiçoa as atividades fragmentadas da alma, tornando-a um
todo, capaz de viver segundo o Intelecto; externamente, purifica corpo e alma de tudo o que é
contaminante e obstáculo à sua inteireza. A (iii) inspiração profética, atribuída a Apolo, faz com
que todas as potências e faculdades da totalidade da alma se voltem ao uno-da-alma e sejam
por ele iluminadas; externamente, “contrai numa unidade a extensão e infinitude do tempo, e
vê, num agora presente, todas as coisas do passado, presente e futuro, e o próprio tempo”,
fazendo com que vivamos de modo irrepreensível segundo a conexão de todas as coisas. E por
fim, a (iv) inspiração erótica, atribuída a Eros, une o uno-da-alma aos deuses; externamente,
faz com que sejamos amantes divinos que atraem a si os jovens e os conduz à visão da
verdadeira beleza divina.
E qual seria o destino escatológico dessas almas divinas, assim unidas à atividade
providencial dos deuses? Ora, havendo se tornado amor e cuidado providencial, tal qual o
filósofo retorno à caverna após haver ascendido até a visão do Sol na República, a alma divina
não abandona ao mundo mas a ele retorna providencialmente. Mesmo que sejam purificadas da
necessidade de reencarnar, elas o fazem livremente, e “descendem à região do devir para o
benefício das almas menos perfeitas e por providência àqueles que precisam de salvação”, e
“neste processo imitam a providência dos deuses, que tem a forma do bem” (In. Alc., 32.10-
15), e o fazem, como enfatiza Chlup (2012, p. 246), “não devido à sua fraqueza, mas a partir de
seu próprio desejo providencial de cuidar dos que estão abaixo de si e oferecê-los ajuda”230.

229
Se encontra, aqui, a explicação do terceiro e mais elevado nível de poesia: a poesia inspirada. Esta não serve
nem para o propósito de educar aqueles que as entende literalmente, nem para o propósito de educar aqueles que
compreendem suas razões, mas para invocar e efetuar os signos divinos na alma do iniciado e o conduzir a estados
de inspiração divina (c.f. In Remp., VI, 180.10-186.21).
230
Ele cita, ainda, a comparação feita por John Dillon entre essas almas divinas e os bodhisattvas do Budismo.
268
Essas almas apropriadamente recebem, por parte dos neoplatônicos tardios, o epíteto de theios
– tal qual Platão, Pitágoras e Jâmblico o receberam (SHAW, 2014, p. 164), pois elas são aquelas
que realizam plenamente aquele que é o propósito pelo qual as almas descem ao mundo do
devir, segundo Jâmblico (apud SHAW, 2014, p. 94): “o propósito da descida da alma é revelar
a vida divina, pois esta é a vontade dos deuses: serem revelados através das almas. Pois os
deuses vêm à aparência corpórea e revelam a si mesmos na vida pura e impecável das almas”.
É significativo, portanto, que mesmo o mais elevado nível da ascensão da alma implica uma
forma de ação, e, portanto, uma inserção na ordem do mundo, um retorno à caverna.
E ainda, a Sabedoria, esse estágio supra-filosófico da paideia, não é nada mais que o
mais elevado nível de autoconhecimento, aquele acesso à divindade que Sócrates anunciou no
Alcibíades I como sendo a culminação final do cuidado de si, segundo Proclo:
De fato, Sócrates corretamente observa no (Primeiro) Alcíbiades, que a alma entrando
em si mesma verá todas as outras coisas, e até a própria deidade. Pois voltando-se à sua
própria unidade, e ao centro de toda a vida, deixando de lado a multidão e a variedade
dos múltiplos poderes que ela contém, ela ascende à mais alta ‘torre de observação’ dos
seres. E como no mais sagrado dos Mistérios, eles dizem, que os místicos a princípio se
encontram com as classes polimorfas (de entidades), que são arremessadas antes dos
deuses; mas ao entrar nas partes internas do templo, imóveis, e guardadas pelos ritos
místicos, eles [os místicos] genuinamente recebem a iluminação divina em seu seio, e
despojados de suas vestes, como dizem, participam de uma natureza divina; do mesmo
modo, como me parece, se dá na contemplação das totalidades. Pois a alma, quando
dirigindo seu olhar a coisas posteriores a si mesmas, vê as sombras e imagens dos seres,
mas quando converte a si mesma desdobra sua própria essência, e as razões que ela
contém. E a princípio, de fato, ela apenas vê a si mesma; mas, quando ela penetra mais
profundamente no conhecimento de si mesma, ela encontra em si mesma tanto o
Intelecto quanto as ordens dos seres. Quando, porém, ela procede a seus recessos
internos, e adentra o santuário oculto da alma, ela percebe com seus olhos cerrados as
classes dos deuses e as unidades dos seres. Pois todas as coisas estão em nós
psiquicamente, e através delas nós naturalmente somos capazes de conhecer todas as
coisas, aguçando os poderes e as imagens das totalidades que nós contemos. E este é o
melhor emprego de nossa energia, ser estendido à própria natureza divina, tendo nossos
poderes em repouso, revolver harmoniosamente ao seu redor, excitar toda a multidão
[dos poderes da alma] a esta união, e deixando de lado todas as coisas que são
posteriores ao Uno, nos tornamos instalados e unidos àquilo que é inefável, e além de
todas as coisas. (Theol. Plat. I, 3.84-110)
Porém, não é o caso que este nível supra-filosófico da ascensão da alma só aparece em
cena nesta suprema transcendência: é a realidade aqui desvelada que, atravessando a alma

269
(racional e irracional), sustenta, ilumina e torna possível todos os níveis inferiores. Essa
‘mística’ já está inscrita na alma desde os primeiros passos da sua educação filosófica, como a
fonte do elã ou eros que move a alma à filosofia, das intuições e noções inatas pelas quais ela
se orienta, pela atenção amorosa-providencial do mestre ao discípulo. Desta forma, os estágios
pré-filosófico e filosófico da paideia neoplatônica têm seu fundamento e apoio, e não apenas
culminação, neste estágio místico, formando uma continuidade ininterrupta entre todos eles.
Não por acaso, a virtude hierática/entusiástica é aquela na qual todas as outras virtudes existem
de maneira unitária, de modo que é a fundação divina e a perfeição de todas as outras (c.f.
BALTZLY, 2017, p. 264). É por esta razão que, apesar de estar além do domínio da filosofia
propriamente dita, é objeto imprescindível da reflexão filosófica neoplatônica.

270
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho emergiu da motivação de estudar o problema do conhecimento de


si no pensamento de Proclo, cuja obra representa a fase lógica231 ou sistemática do
Neoplatonismo. Ao longo do texto procurei situar o problema e compreendê-lo a partir de suas
raízes religiosas, e então seus desenvolvimentos filosóficos em Platão e depois Plotino,
buscando compreender o modo pelo qual se desenvolve através desses momentos distintos do
espírito grego, até desembocar em Proclo e no Neoplatonismo Tardio. Além disso, procurei
esboçar hipoteticamente leituras que permitem vislumbrar algum sentido de comunidade e
afinidade de temperamento filosófico entre os diferentes platonistas, segundo uma lógica
interna que os une num pertencimento a uma posição filosófica paradigmática da qual
representam diferentes versões.
Em Proclo encontramos uma espécie de síntese de milhares de anos pensamento e
espiritualidade helena, numa forma escolástica de filosofia que, apesar de sua faixada barroca,
oculta uma riqueza de reflexões filosóficas de extraordinária madurez, um rigor lógico e
dialético que até Hegel admirou como sendo a sistematização máxima na Antiquidade232, além
de expressões religiosas de incomparável profundidade. Por sua vez, na concepção da alma
autokinética proclina, a forma de “virada ao sujeito” realizada pelo Neoplatonismo,
encontramos concepções que em muitos sentidos antecipam o sujeito autônomo da
modernidade, logrando, porém, preservar a analogia entre os seres que permite à alma mantêr-
se enraizada na ordem significativa do mundo.
Na reconstrução hipotética da paideia Neoplatônica Tardia que propus, se evidencia a
imensa catolicidade desta escola que parece todo-abarcante, capaz de absorver e ordenar
hierarquicamente quase que a totalidade das formas de filosofia, saber, excelência e piedade
que a cultura helênica pensou.
Ao longo do percurso pessoal de estudo e escrita deste trabalho, pude me familiarizar e
aprofundar consideravelmente no pensamento desta tradição, a qual pretendo seguir
desvendando, e espero que o fruto deste estudo possa igualmente contribuir para eventuais
leitores.

231
Como o caracterizou Stanislas Breton (1973, p. 110), em contraste com Plotino, que seria a sua fase intuitiva.
232
C.f. Beierwaltes (1972, pp. 176-177).
271
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Antigas [com abreviaturas]

OLIMPIODORO. Life of Plato and On Plato First Alcibiades 1-9. Traduzido por Michael
Griffin. Londres, Bloomsbury, 2002. [Ol. In Alc.]

PLATÃO. Plato’s Complete Works. Editado, com introdução e notas, por John M. Cooper.
Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1997.

________. Primeiro Alcibíades/Segundo Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes.


Belém, Editora UFPA, 2015.

________. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Editora UFPA, 2011.

________. Fedro. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Editora UFPA, 2011.

________. Diálogos I : Teeteto, Sofista, Protágoras. Tradução, textos complementares e notas:


Edson Bini. São Paulo, Edipro, 2007.

________. Diálogos IV: Parmênides, Político, Filebo, Lísis. Tradução, textos complementares
e notas: Edson Bini. São Paulo, Edipro, 2015.

________. Diálogos V: O Banquete, Mênon, Timeu, Crítias. Tradução, textos complementares


e notas: Edson Bini. São Paulo, Edipro, 2010.

________. Cartas e Epigramas. Tradução, textos complementares e notas: Edson Bini. São
Paulo, Edipro, 2012.

________. A República. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo, Editora Martin Claret, 2009.

PLOTINO. Traités 1-6. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François Pradeau.
Paris, Flammarion, 2002.

_________. Traités 7-21. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2003.

_________. Traités 22-26. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2004.

_________. Traités 27-29. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2005.

_________. Traités 30-37. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2006.

_________. Traités 38-41. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2007.

_________. Traités 42-44. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2008.
272
_________. Traités 45-50. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François
Pradeau. Paris, Flammarion, 2009.

_________. Traités 51-54. Traductions sous la direction de Luc Brisson et Jean-François


Pradeau. Paris, Flammarion, 2010.

_________. Tratados das Enéadas. Tradução por Américo Sommerman. São Paulo, Polar
Editorial & Comercial, 2007.

_________. Enéada III.8 [30]: Sobre a natureza, a contemplação e o Uno. Introdução, tradução
e comentário por José Carlos Baracat Júnior. Campinas, Editora Unicamp, 2008.

PORFÍRIO. Auxiliaries to the Perception of Intelligible Natures. Tradução de Thomas Taylor.


In: Select Works of Porphyry. Londres, J. Moyes, 1823.

PROCLO. Alcibiades I (Comentário ao). Traduzido e comentado por William O’Neill. The
Hague, Springer-Science+Business Media Dordrecht, 1971. [In Alc.]

________. On Plato’s Cratylus. Traduzido por Brian Duvick. Ithaca, Cornell University Press,
2007. [In Crat.]

________. On Providence. Traduzido por Carlos Steel. Londres, Bloomsbury Publishing Plc,
2007. [De Prov.]

________. Commentary on the first book of Euclid’s Elements. Traduzido por Glenn R.
Morrow. Nova Jersey, Princeton University Press, 1992. [In Eucl.]

________. Commentaire sur la République : tome I. Traduzido por André-Jean Festugière.


Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1970. [In Remp.]

________. Commentaire sur la République: tome II. Traduzido por André-Jean Festugière.
Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1970. [In Remp.]

________. Commentaire sur la République: tome III. Traduzido por André-Jean Festugière.
Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1970. [In Remp.]

________. Comentary on Plato’s Timaeus: volume I. Editado e traduzido por Harrold Tarrant.
Cambridge, Cambridge University Press, 2006. [In Tim., I]

________. Comentary on Plato’s Timaeus: volume II. Editado e traduzido por David Runia.
Cambridge, Cambridge University Press, 2008. [In Tim., II]

________. Proclus’ Commentary on Plato’s Parmenides. Traduzido por Glenn R. Morrow e


John M. Dillon. New Jersey, Princeton University Press, 1987. [In Parm.]

________. Ten Problems concerning Providence. Traduzido por Jan Opsomer e Carlos Steel.
Londres, Bloomsbury Publishing Plc, 2012. [De dec. Dub.]

________; DODDS, Eric R. The Elements of Theology. Tradução, introdução e comentários


por E.R. Dodds. Oxford, Oxford University Press, 1963. [El. Th.]

273
________. The Theology of Plato. Traduzido por Thomas Taylor. Frome, The Prometheus
Trust, 1995. [Plat. Theol.]

UZDAVINYS, Algis. The Golden Chain: an Anthology of Pythagorean and Platonic


Philosophy. Bloomington, World Wisdom Inc., 2004.

Fontes Modernas

ADDEY, Crystal. The Daimonion of Socrates: Daimones and Divination in Neoplatonism. In:
The Neoplatonic Socrates, Edited by Danielle A. Layne and Harold Tarrant. Filadélfia,
University of Pennsylvania Press, 2014.

ADDEY, Tim. The Unfolding Wings: the Way of Perfection in the Platonic Tradition.
Westbury, The Prometheus Trust, 2011.

ALBERT, Karl. Platonismo: Caminho e essência do filosofar ocidental. São Paulo, Edições
Loyola, 2011.

ALEXANDRAKIS, Aphrodite. Neoplatonic Influences on Eastern Iconography: A Greek-


Rooted Tradition. In: Neoplatonism and Western Aesthetics, Edited by Aphrodite
Alexandrakis. Nova Iorque, State University of New York Press, 2002.

BAL, Gabriela. Silêncio e Contemplação: uma introdução a Plotino. São Paulo, Paulus, 2007.

BALTZLY, Dirk. The Human Life. In: All from One: a Guide to Proclus. Edited by Pieter
d’Hoine and Marije Martijn. Oxford, Oxford University Press, 2017.

BARACAT Jr., José Carlos. Introdução, tradução e comentário à Enéada III.8[30] de Plotino.
Campinas, Editora Unicamp, 2008.

BERNABÉ, Alberto. Hieros Logos: poesia órfica sobre os deuses, a alma e o além. São Paulo,
Paulus, 2012.

BEZERRA, Cícero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis, Editora Vozes, 2006.

_____________________. Dionísio Pseudo-Aeropagita: Mística e Neoplatonismo. São Paulo,


Paulus, 2009.

BORDOY, Francesc Casadesús. Fedro 247c: Hyperouranios topos, el sagrado y filosófico


reino del ser. In: Redes culturais nos primórdios da Europa: 2400 anos da fundação da
Academia de Platão. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016.

BOURGEOIS, Bernard. Hegel: os atos do espírito. Tradução de Paulo Neves. São Leopoldo,
Editora Unisinos, 2004.

BRETON, Stanislas. Actualité du Néoplatonisme. In: Études Néoplatoniciennes. Lausanne,


Revue de Théologie et Philosophie, 1973.

BURKERT, Walter. Greek Religion. Cambridge, Harvard University Press, 1985.

274
BUSSANICH, John. Rebirth Eschatology in Plato and Plotinus. In: Philosophy and Salvation
in Greek Religion, Edited by Vishwa Adluri. Berlin/Boston, De Gruyter, 2013.

________________. A Metafísica do Uno. In: Plotino. Editado por Lloyd P. Gerson. Traduzido
por Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo, Ideias & Letras, 2017.

________________. Mystical Elements in the Thought of Plotinus. Aufstieg un Niedergang der


Romischen Welt II, v. 36, 1994. pp. 5300-5330.

BUTORAC, David D. Proclus’ Interpretation of the Parmenides, Dialectic and the Wandering
of the Soul. Dyonisus, vol. XXVII, 2009. pp. 33-53.

CASORETTI, Anna Maria. O Surgimento da Ascética da Alma na Antiguidade Grega: Orfismo


e Pitagorismo. Dissertação de Mestrado em Filosofia pela PUC-SP, São Paulo, 2014.

CHLUP, Radek. Proclus: an Introduction. Cambridge, Cambridge University Press, 2012.

CLARK, Stephen R. L. Corpo e alma. In: Plotino. Editado por Lloyd P. Gerson. Traduzido por
Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo, Ideias & Letras, 2017.

____________________. Plotinus: Myth, Metaphor, and Philosophical Practice. Chicago, The


University of Chicago Press, 2016.

COLAPIETRO, Vincent M. Peirce e a abordagem do Self: uma perspectiva semiótica sobre a


subjetividade humana. Tradução de Newton Milanez. São Paulo, Intermeios, 2014.

COOMARASWAMY, Ananda Kentish. Figures of Speech Or Figures of Thought?: The


Traditional View of Art. Bloomington, World Wisdom, Inc, 2007.

CORNFORD, Francis M. Principium Sapientiae: the Origins of Greek Philosophical Thought.


Cambridge, Cambridge University Press, 1952.

______________________. From Religion to Philosophy: a Study in the Origins of Western


Speculation. Nova Iorque, Harper & Brothers Publishers, 1957.

______________________. Plato’s Cosmology: The Timaeus of Plato. Indianapolus, Hackett


Publishing Company, 1997.

DAY, Jerry. Voegelin, Schelling and the Philosophy of Historical Existence. Columbia,
University of Missouri Press, 2003.

DETIENNE, Marcel. Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. São Paulo, Editora Martins
Fontes, 2013.

DIAMOND, Eli. Hegel on Being and Nothing: Some Contemporary Neoplatonic and Sceptical
Respones. Dionysius, Vol. XVIII, Dec. 2000. pp. 183-216.

DUHOT, Jean-Joël. Epicteto e a Sabedoria Estóica. São Paulo, Edições Loyola, 2006.

EMILSSON, Eyjólfur Kjalar. A cognição e seu objeto. Plotino. Editado por Lloyd P. Gerson.
Traduzido por Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo, Ideias & Letras, 2017.

275
________________________. Plotinus. Londres, Routledge, 2017b.

EUZEBIO, Marcos Sidnei Pagotto; AFONSO, Edson da Silva. Relações entre a noção de
“Cuidado-da-Alma” e o “Conhecimento de Si” no Primeiro Alcibíades. São Paulo, Hypnos, v.
38, 2017. Pp. 93-108.

FESTUGIÈRE, André-Jean. Contemplation et Vie Contemplative selon Platon. Paris, Librarire


Philosophique J. Vrin, 1975.

FLAMAND, Jean-Marie. Plotin: le sommeil de l’âme et l’éveil à soi-même. Paris, Camenae


nº5, 2008.

FORTIER, Simon. The Prolegomenon to Proclus’ Platonic Theology: an Introduction,


Translation and Commentary of chapters 1-7 of Book I of the Platonic Theology. Tese de
Doutorado. Québec, University of Laval, 2014.

GAZOLLA, Raquel. Do olhar, do amor e da beleza: um estudo sobre o estético em Platão no


Fedro e no Timeu. In: Estudos Platônicos: Sobre o ser e o aparecer, o belo e o bem. Org. Marcelo
Perine. São Paulo, Edições Loyola, 2009.

GERSH, Stephen E. Kinesis Akinetos: A Study of Spiritual Motion in the Philosophy of Proclus.
Philosophia Antiqua, v. 26. Leida, Brill, 1973.

GERSON, Lloyd P. From Plato to Platonism. Ithaca/Londres, Cornell University Press, 2013.

_______________. Knowing Persons: a Study in Plato. Oxford, Oxford University Press, 2003.

_______________. Epistrophe pros heauton: History and Meaning. Documenti e Studi Sulla
Tradizione Filosofica Medievale 7, 1997. pp. 1-32

GORDON, Jill. O mundo erótico de Platão: das origens cósmicas à morte humana. São Paulo,
Edições Loyola, 2015.

GRIFFIN, Michael. Introduction. In: Olympiodorus: Life of Plato and On Plato First Alcibiades
1-9. Londres, Bloomsbury, 2015.

________________. Universals, Education, and Philosophical Methodology in Later


Neoplatonism. Uncorrected first draft of chapter forthcoming in R. Chiaradonna and G.
Galluzzo (eds.), Universals in Ancient Philosophy. Pisa, Edizioni della Normale, 2013.
Acessado em 03/07/2018 em:
https://www.academia.edu/4480785/Universals_Education_and_Philosophical_Methodology
_in_Later_Neoplatonism

GRIMALDI, Nicolas. Sócrates, o Feiticeiro. São Paulo, Edições Loyola, 2006.

GUTHRIE, W.K.C. The earlier Presocratics and the Pythagoreans. Cambridge, Cambridge
University Press, 1962.

________________. Socrates. Cambridge, Cambridge University Press, 1971.

HADOT, Ilsetraut et Pierre. Apprendre à philosopher dans l’Antiquité : l’enseignement du


‘Manuel d’Épictète’ et son commentaire néoplatonicien. Librairie Générale Française, 2004.
276
HADOT, Pierre. O que é a Filosofia Antiga? São Paulo, Edições Loyola, 1999.

_____________. Plotinus or The Simplicity of Vision. Traduzido por Michael Chase. Chicago,
The University of Chicago Press, 1993.

_____________. Plotin, Porphyre: études néoplatoniciennes. Paris, Les Belles Lettres, 2010.

_____________. Exercices spirituels et Philosophie antique. Paris, Éditions Albin Michel,


2002.

HELMIG, Cristoph. Proclus on Epistemology, Language, and Logic. In: All from One: a Guide
to Proclus. Edited by Pieter d’Hoine and Marije Martijn. Oxford, Oxford University Press,
2017.

HANKEY, Wayne J. Why Heidegger’s “History” of Metaphysics is Dead. American Catholic


Philosophical Quarterly, Vol. 78, No. 3, 2004.

__________________. Self and Cosmos in becoming deiform: Neoplatonic paradigms for


reform by self-knowledge from Augustine to Aquinas. In: Reforming the Church before
modernity patterns, problems, and approaches. Ashgate Pub., 2005a.

__________________. Philosophical Religion and the Neoplatonic Turn to the Subject. In:
Deconstructing Radical Orthodoxy: Postmodern Theology, Rhetoric and Truth. Routledge,
2005b. Pp. 17-30.

__________________. Re-evaluating E.R. Dodds’ Platonism. Harvard Studies in Classical


Philology 103, 2007. Pp. 499-541.

__________________. Jean Trouillard: Authentic Neoplatonism in a French Seminary. A


preface for the Trouillard Translation Project Website. 2017. Acessado em 20/07/2018 em:
https://www.academia.edu/31119354/Jean_Trouillard_Authentic_Neoplatonism_in_a_French
_Seminary_Preface_for_the_Trouillard_Translation_Project

HARTMANN, Nicolai. A Filosofia do Idealismo Alemão. Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 1983.

HEGEL, G.W.F. Ciência da Lógica: 1. A Doutrina do Ser. Petrópolis, Editora Vozes, 2016.

_____________. Curso de Estética – o Belo na Arte. São Paulo, Martins Fontes, 2009.

IERODIAKONOU, Katerina. Syrianus on Scientific Knowledge and Demonstration. 2008.


Acessado em 13/07/2018 em:
https://www.academia.edu/3677790/Syrianus_on_scientific_knowledge_and_demonstration

LANKILA, Tuomo. Hypernoetic Cognition and the Scope of Theurgy in Proclus. Arctos 44,
2010. pp. 147-170.

LAYNE, Danielle. The Character of Socrates and the Good of Dialogue Form: Neoplatonic
Hermeneutics. In: The Neoplatonic Socrates, Edited by Danielle A. Layne and Harrold Tarrant.
Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 2014.

277
________________. Involuntary Evil & the Socratic Problem of Double Ignorance. The
International Journal of the Platonic Tradition vol. 9, 2015. pp. 27-53.

________________. Proclus on Socratic Ignorance, Knowledge and Irony. In: Socrates and
the Socratic Dialogue, (ed.) A. Stavru and C. Moore. Leiden, Brill, 2017.

LEBEDEV, Andrei. Idealism in Early Greek Philosophy: the Case of Pythagoreans and
Eleatics. In: Theory and Practice, Edited by V. Sharova, E. Trufanova, A. Yakovleva. Moscou,
Russian Academy of Sciences, IPhRAS, 2013. Pp. 220-230. Versão expandida acessada em
20/10/2017:
https://www.academia.edu/13100733/Idealism_Mentalism_in_Early_Greek_Philosophy_Pyth
agoras_Parmenides_Heraclitus_and_others

________________. Parmenides, ΑΝΗΡ ΠΥΘΑΓΟΡΕΙΟΣ. Monistic Idealism (Mentalism) in


Archaic Greek Metaphysics. In: Indo-European Linguistics and Classical Philology – XXI.
Наука, São Petesburgo, 2017. Pp. 493-536.

LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Petrópolis, Editora Vozes, 2011.

LIMA VAZ, Henrique C. de. Platonica. São Paulo, Edições Loyola, 2011.

____________________. Contemplação e Dialética nos diálogos platônicos. São Paulo,


Edições Loyola, 2012.

LONERGAN, Bernard J. F. Insight: A Study of Human Understanding (Revised Edition). São


Francisco, Harper & Row, 1978.

LORTIE, François. La doctrine de l’intellection dans la philosophie de Proclus. Thèse en


cotutelle doctorat en philosophie. Quebec, Université Laval ; Paris, École Pratique des Hautes
Études. 2015.

MACISAAC, Gregory. The soul and discursive reason in the philosophy of Proclus. A
dissertation submitted to the Graduate School for the degree of Doctor of Philosophy. Indiana,
University of Notre Dame, 2001.

_________________. Projection and Time in Proclus. In: Medieval Philosophy and the
Classical Tradition. Routledge, 2005. p. 80-99.

_________________. Soul and Virtues in Proclus’ Commentary on Plato’s Republic.


Philosophie Antique, nº 9, 2009. pp. 115-143.

_________________. The Nous of the Partial Soul in Proclus’ Commentary on the First
Alcibiades of Plato. Dionysius, v. 29, 2011. pp. 29-60.

_________________. Proclus: Philosophy as the Exegesis of ‘Sacred’ Texts. In: Philosophy


and the Abrahamic Religions: Scriptural Hermeneutics and Epistemology, Edited by Torrance
Kirby, Rahim Acar and Bilal Baş. Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Publishing, 2013.

_________________. Non enim ab hiis que sensus est iudicare sensum. Sensation and Thought
in Theaetetus, Plotinus and Proclus. The International Journal of the Platonic Tradition, vol. 8,
2014. pp. 192-230.

278
MARSOLA, Mauricio Pagotto. Plotino e o Ceticismo. DoisPontos v. 4, n. 2, 2007.

MARTIJN, Marije. Proclus on Nature: Philosophy of Nature and Its Methods in Proclus’
Commentary on Plato’s Timaeus. Londres, Brill, 2010.

MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os Pitagóricos. São Paulo, Paulus, 2000.

MCKIRAHAN, Richard D. A Filosofia antes de Sócrates. São Paulo, Paulus, 2013.

MENN, Stephen. Self-motion and reflection: Hermeias and Proclus on the harmony of Plato
and Aristotle on the soul. In James Wilberding & Christoph Horn (eds.), Neoplatonism and the
Philosophy of Nature. Oxford Up, 2012. pp. 44—67

MERLO, Vicente. Os ensinamentos de Sri Aurobindo: o Yoga Integral e o Caminho da Vida.


Tradução de Gilson César Cardoso de Sousa. São Paulo, Editora Pensamento, 2010.

MORAVCSIK, Julius. Platão e Platonismo: Aparência e realidade na ontologia, na


espistemologia e na ética. São Paulo, Edições Loyola, 2006.

MORGAN, Michael L. Platonic Piety: Philosophy & Ritual in Fourth-Century Athens. New
Haven, Yale University Press, 1990.

__________________. Plato and Greek Religion. In: The Cambridge Companion to Plato,
Richard Kraut (ed.). Cambridge, Cambridge University Press, 1992. pp. 227--47

MORGAN, Vence G. Simone Weil and the Divine Poetry of Mathematics. In: The Christian
Platonism of Simone Weil, Edited by Jane Doering and Eric Springsted. Indiana, University of
Notre Dame Press, 2004.

MOURTLEY, Raoul. From Word to Silence, Volume 1: The Rise and Fall of Logo, 1986.
Acessado em 13/03/2018 em: http://epublications.bond.edu.au/word_to_silence_I/

NARBONNE, Jean-Marc. A Metafísica de Plotino. Tradução: Mauricio Pagotto Marsola. São


Paulo, Paulus, 2014.

NASR, Seyyed Hossein. Three Muslim Sages. Cambridge, Harvard University Press, 1997.

OLIVEIRA, Lethicia Ouro. O mundo como estátua dos deuses eternos sobre o termo ágalma
no passo 37c do Timeu de Platão. Rio de Janeiro, AnaLógos, v. 1, 2016. Pp. 80-89.

OLSEN, Scott A. Plato, Proclus and Peirce: Abduction and the Foundations of the Logic of
Discovery. In: Neoplatonism and Contemporary Thought – Part One. Edited by R. Baine Harris.
Albany, State University of New York Press, 2002.

O’MEARA, Dominic. Platonopolis: Platonic Political Philosophy in Late Antiquity. Oxford,


Oxford University Press, 2005.

OTTO, Walter F. Teofanía: El Espíritu de la Antigua Religión Griega. Madrid, Editorial Sexto
Piso, 2007.

PERL, Eric D. The motion of Intellect on the Neoplatonic reading of Sophist 248e-249d. The
International Journal of the Platonic Tradition, v. 8, 2014. pp. 135-160.
279
PINCHARD, Alexis. L’expérience du beau et la séparation des Formes chez Platon. Palestra
no Centro "Kairos kai Logos", Universidade de Aix-en-Provence, 2009. Acessado em
20/10/2017:
https://www.academia.edu/873822/Lexp%C3%A9rience_du_beau_et_la_s%C3%A9paration
_des_Formes_chez_Platon

PUENTE, Fernando Rey. Exercícios de atenção: Simone Weil, leitora dos gregos. São Paulo,
Edições Loyola, 2013.

PRADEAU, Jean-François. Présentation, traduction et notes à le Traité 30 (III.8) de Plotin.


Paris, Éditions Flammarion, 2006.

RAPPE, Sara. Autoconhecimento e subjetividade nas Enéadas. In: Plotino. Editado por Lloyd
P. Gerson. Traduzido por Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo, Ideias & Letras, 2017.

REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo. História da Filosofia Grega e Romana, vol. I.


São Paulo, Edições Loyola, 2012.

_______________. Platão. História da Filosofia Grega e Romana, vol. III. São Paulo, Edições
Loyola, 2014.

_______________. Plotino e Neoplatonismo. História da Filosofia Grega e Romana, vol. VIII.


São Paulo, Edições Loyola, 2014b.

_______________. O Saber dos Antigos: terapia para os tempos atuais. São Paulo, Edições
Loyola, 2014c.

_______________. Aristóteles. História da Filosofia Grega e Romana, vol. IV. São Paulo,
Edições Loyola, 2015.

RICOEUR, Paul. Ser, Essência e Substância em Platão e Aristóteles. São Paulo, Editora
Martins Fontes, 2014.

RIGGS, Timothy. Authentic Selfhood in the Philosophy of Proclus: Rational Soul and its
Significance for the Individual. The International Journal of the Platonic Tradition, vol. 9, 2015.
pp. 177-204.

RIST, John. Plotino e a filosofia cristã. In: Plotino. Editado por Lloyd P. Gerson. Traduzido
por Mauricio Pagotto Marsola. São Paulo, Ideias & Letras, 2017.

ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Petrópolis, Editora Vozes, 2005.

RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental, Livro 1: A Filosofia Antiga. Rio de


Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2015.

ROSÁN, Laurence J. Proclus and the Tejobindu Upanishad. In: Neoplatonism and Indian
Thought. Edited by R. Baine Harris. Albany, State University of New York Press, 1982. pp.
45-62.

SCHELLING, F. W. J. Filosofia da Arte. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo,


2010.

280
SCHINDLER, D. C. Plato’s Critique of Impure Reason: on Goodness and Truth in the
Republic. Washington D.C., The Catholic University of America Press, 2008.

SCHÄFER, Christian (org.). Léxico de Platão. São Paulo, Edições Loyola, 2012.

SHAW, Gregory. After Aporia: Theurgy in Later Neoplatonism. In: The Institute of Global
Cultural Studies, 1992. Pp. 57-82.

_____________. Theurgy and the Soul: the Neoplatonism of Iamblichus (2nd edition).
Kettering, Angelico Press, 2014.

SIORVANES, Lucas. Proclus: Neo-Platonic Science and Philosophy. Edinburgh, Edimburgh


University Press, 1996.

SWARUP, Ram. The Word as Revelation: Names of Gods. New Delhi, Voice of India, 2001.

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: a construção da identidade moderna. Tradução: Adail


Ubirajara Sobral e Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo, Edições Loyola, 1997.

_________________. Hegel: Sistema, Método e Estrutura. É Realizações Editora, São Paulo,


2014.

TOFIGHIAN, Omid. Rethinking Plato’s Theory of Art: Aesthetics and the Timaeus. Literature
Aesthetics 19 (2), December 2009. Pp. 25 – 40.

TROUILLARD, Jean. L’Un et l’Âme selon Proclus. Paris, Les Belles Lettres, 1972.

VASILAKIS, Dimitrios. Neoplatonic Love: The Metaphysics of Eros in Plotinus, Proclus and
Pseudo-Dyonisius. Tese de Doutorado apresentada em King’s College. Londres, 2014.

VETÖ, Miklos. La Métaphysique Religieuse de Simone Weil. Paris, L’Harmattan, 2014.

WAGNER, Michael F. Plotinus, Nature and the Scientific Spirit. In: Neoplatonism and Nature:
Studies in Plotinus’ Enneads. Edited by Michael F. Wagner. Nova Iorque, State University of
New York Press, 2002.

WALBRIDGE, John. The Leaven of the Ancients: Suhrawardi and the Heritage of the Greeks.
Albany, State University of New York Press, 2000.

WEIL, Simone. Oeuvres. Paris, Gallimard, 1999.

281

Você também pode gostar