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“Candomblé se aprende na cozinha”: Conhecimento, Alimentação e a Cozinha dos

Terreiros de Candomblé

Marcos Alvarenga
marcosalvarengajunior@gmail.com

Introdução: a Cozinha de Axé

A proposta é produzir um deslocamento do olhar antropológico dos grandes ritos


e festividades públicas do Candomblé, direcionando este olhar para as atividades da
vida cotidiana e corriqueira que são responsáveis pela produção de identidades e
circulação de ensinamentos dentro dos terreiros. O local privilegiado de observação,
escolhido para dar vida a este trabalho, e que ancora a imersão etnográfica deste ensaio,
foi a Cozinha de Axé. Proponho que a cozinha não seja entendida unicamente enquanto
espaço físico, onde os alimentos são transformados. Mas também, enquanto um
poderoso modelo para pensarmos os valores, símbolos, receitas e técnicas rituais das
comunidades de terreiro. A partir da cozinha é possível ao pesquisador resgatar e
sistematizar os princípios responsáveis por nortear as práticas sociais e rituais dentro
dos terreiros. A cozinha expõe não só pratos e técnicas de preparo, referentes a uma
comunidade ou nacionalidade, mas relações sociais e um conjunto de valores base para
a formação de identidades (Collaço, 2013).
O mais elementar e fundamental passo em direção a construção deste trabalho
foi sistematizar as falas e experiências de lideranças religiosas e iniciados de diferentes
idades1 sobre o que era o Candomblé e o que era torna-se um bom iniciado. Deparei-me,
assim, com afirmações categóricas sobre o Candomblé: “Candomblé se aprende na
cozinha” ou “O Candomblé é a cozinha”. Não somente porque o tempo desprendido
nas dependências da cozinha durante as atividades religiosas é extremamente intenso,
mas, sobretudo, porque alimentar-se para as comunidades de terreiro é muito
importante. Para a comunidade de axé falar a partir da cozinha é ser capaz de esmiuçar a

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A idade nas casas de Candomblé é contata a partir da cerimônia conhecida por dia de dar o
nome, Orunkó ou saída de yawô. Em geral é uma festividade aberta ao público e um momento
muito aguardado por todos. Após a celebração do Orunkó passa-se a contar a idade do iniciado.
Toda a respeitabilidade e hierarquia do culto se dá através dessa medida, a idade de iniciado,
sendo à idade biológica acionada a segunda plano.
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riqueza de ensinamentos que o candomblé pode nos proporcionar, seja enquanto
pessoas, seja enquanto pesquisadores.
Em dias festivos a cozinha é “um dos lugares mais movimentados da casa [...] o
trabalho na cozinha não para, tamanha sua responsabilidade em preparar as comidas
que serão oferecidas aos Òrìsà, assim como as refeições destinadas aos filhos da casa e
também aos visitantes que chegam para as festas” (Caputo, pg. 51, 2012). Alguns
rituais demandam menor tempo de trabalho na cozinha, mas ainda que reduzido, este
trabalho sempre existirá. Tempo e axé desprendem da cozinha, “sem dúvida, no
Candomblé tudo começa na cozinha e nada pode ser comparado à energia que emana
das oferendas aos orixás” (Mãe Stella, prefácio do livro de Raul Lody, 2004).
Dentro da cozinha de axé trocam-se confidências, mexericos, amenidades,
criam-se inovações, produzem-se controvérsias, mas também, circulam informações
preciosas para a formação religiosa dos filhos de santo. A própria estrutura hierárquica
do culto destina um posto de prestígio e grande responsabilidade dentro da cozinha. Às
mulheres mais habilidosas é dado o cargo de Yabassê, a notável encarregada pela
comida ritual. Um cargo concedido unicamente a mulheres, pois se considera o espaço
da cozinha como dimensão simbolicamente pertencente e atrelada ao poder feminino. A
cozinha é domínio santo das Yabás (feminino, mulheres). Em casas mais ortodoxas, a
entrada de homens nas dependências da cozinha de axé é proibida. Em outras, homens
devem pedir Agô (licença) antes de entrar, só entrando se autorizados.
O poder da panela é feminino, está nas mãos das mulheres. São elas as
responsáveis por gerir o espaço da cozinha, por alimentar e servir filhos, amigos do axé
e Orixás. Um trabalho que dentro das relações interpessoais travadas nos terreiros não é
visto com olhares depreciativos. As Yabassês são preparadas para deter um vasto
conhecimento ritual, prático e artesanal que é vital para a manutenção do culto.
Exercem um mister de grandes proporções para a comunidade e as divindades. É sabido
nas comunidades de terreiro que os Orixás comem pela boca dos seres humanos: assim,
quando alimentamos as pessoas estamos cultuando os nossos deuses. (Oduduwa
Templo dos Orixás, página eletrônica, 20162).
É a partir dessa ótica, deste provérbio, que a função e existência das Yabassês e a
ação das mulheres a partir da cozinha deve ser apreendida pelo expectador alheio a essa
realidade. Cozinhar é cultuar, é revitalizar antepassados e orixás. Sem a cozinha não há

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www.facebook.com/oduduwatemplodosorixas

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Orixá. Não há Candomblé. Das possíveis dimensões e desdobramentos de meu objeto
de analise, gostaria de destacar duas: (i) a organização dos utensílios da cozinha e (ii) e
as transformações que os alimentos sofrem ao serem manuseados e preparados, haja
vista a importância dessas dimensões para a formação dos filhos de santo e o bom
andamento dos rituais. A organização da base material de produção dos alimentos,
seguida pelas transformações e preparo da alimentação, evidenciam o cuidado, a
dedicação, as regras e hierarquias, bem como a estética e a ética que compõem os rituais
religiosos dentro do terreiro. Sendo importante adentrar nessas dimensões para a
compreensão da cozinha de axé e das práticas de culto do candomblé.
Este trabalho encontra-se em andamento e considero o material aqui apresentado
como fruto de uma investigação inicial e exploratória. Agradeço a disposição e atenção do
Babalorixá Djair de Logún Edé3 por ter aberto sua casa e estar contribuindo para o bom
andamento de minha pesquisa. Agradeço também ao Babalorixá Anderson de Ayrá4,
responsável pela casa da qual faço parte como iniciado. Ambos foram receptivos e
carinhosos e tem sido peças fundamentais nas análises aqui contidas. As reflexões que
trago são, pois, fruto de conversas e observações provenientes destas duas comunidades
de terreiro. Ambas as casas são consideradas descendentes do Asé Oxumarê – o Ilê
Òsùmàrè Aràká Àse Ògòdó, conhecido como Casa de Òsùmàrè, localizado em Salvador
Bahia.

Por dentro da Cozinha

A variedade de pratos e sabores produzidos na cozinha de axé é acompanhada


por uma variedade de materiais e utensílios que proporcionam o preparo e a
transformação dos alimentos. Na cozinha dos terreiros vamos encontrar grande
quantidade de materiais de trabalho, tanto para o preparo da comida de axé quanto para
o preparo da comida da comunidade e do público convidado para os festejos. Além de
garfos, facas, colheres, pratos de cerâmica e vidro (familiares às cozinhas das camadas
médias urbanas), encontramos na cozinha dos terreiros materiais artesanais – em
madeira, barro, ferro, vidro e ágata – destinados unicamente ao preparo da comida ritual
e aos iniciados.

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Responsável pelo Ilê Àsé Omi Gbato Jegede localizado em Àguas Lindas, Goiás.
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Responsável pelo Ilê Asé Tumby Layó localizado em Sobradinho, Distrito Federal.
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Em madeira encontramos gamelas, facas, colheres e pilões, em barro
encontramos pratos, copos, quartinhas, alguidares e vasos, em ágata encontramos,
sobretudo, pratos e canecas. Pratos e vasilhas de louça branca também compõe o
repertório de utensílios destinados aos Orixás, em conjunto com os objetos artesanais.
Toda essa variedade convive em sintonia e equilíbrio dentro de um sistema bem
articulado de ideias e práticas – sem que se percam de vista conflitos, sobreposições e
diferenças. Por detrás do manuseio de cada objeto utilizado na cozinha existem
fundamentos e justificativas, amparadas por narrativas míticas, características
individualizantes do Orixá e regras bem estruturadas de etiqueta.
Os utensílios de cozinha não atendem a questões unicamente funcionais e
pragmáticas, sendo constituídos, também, por uma lógica de classificação e uso que é
marcadamente simbólica. “A dinâmica de comer e beber no Candomblé transcende a
ação biológica e se constitui na principal maneira de renovar e estabelecer o axé” (Maria
Stella de Azevedo, pg 17, prefácio ao Livro de Lody, 2004). Assim, o vasto
conhecimento das comunidades de axé alinhavam significados funcionais e simbólicos
para cada utensílio da cozinha. Trata-se de uma organização e disposição de recursos
marcadamente prática e simbólica.
As comidas destinadas a Orixás funfun, por exemplo – Orixás brancos
relacionados à criação do universo e da humanidade, como Oxalá, Yemonjá, Obatalá e
Ori – devem ser servidos sempre em louças brancas. Orixás com características quentes
e dinâmicas como Exu, Ogum, Oxossi, Omolu, Oyá e Ewá, são servidos em recipientes
de barro. Esta classificação geral, como todas as dimensões do Candomblé, não é
absoluta e nem irreversível. Ainda que os integrantes da comunidade de terreiro tenham
sempre a mão esquemas gerais de organização, distribuição e uso de utensílios, sempre
se faz necessário agarrar-se ao contexto e especificidade de cada Orixá e/ou propósito
do ritual.
Em geral, divindades com características dinâmicas e quentes têm seus
alimentos servidos em recipientes de barro. Entretanto, não só as qualidades e
características das divindades importam na hora de organizar e distribuir os utensílios da
cozinha de axé. As narrativas míticas – itan – jogam um importante papel nesse
esquema de distribuição e manejo dos materiais. Xangô é considerado Orixá
proprietário do domínio sobre o fogo, além de rei, portanto, considerado divindade de
características dinâmicas e quentes. Mas, não tem seus alimentos servidos em
recipientes de barro, mas sim de madeira. A relação de Xangô com recipientes de

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madeira se justifica não em relação a suas características e qualidades, mas graças a
uma passagem mítica conhecida pelas comunidades de Candomblé:

Xangô Airá, aquele que se veste de branco, foi um dia às terras do velho Oxalá
para levá-lo à festa que faziam em sua cidade. Oxalá era velho e lento, por isso Xangô
Airá o levava nas costas. Quando se aproximaram do destino, viram a grande pedreira
de Xangô, bem perto de seu grande palácio. Xangô levou Oxalufã ao cume, para ali
mostrar ao velho amigo todo o seu império e poderio. E foi lá de cima que Xangô
avistou uma belíssima mulher mexendo sua panela. Era Oiá! Era o amalá do rei que
ela preparava! Xangô não resistiu a tamanha tentação. Oiá e o amalá! Era demais
para sua gulodice, depois de tanto tempo pela estrada. Xangô perdeu a cabeça e
disparou caminho a baixo, largando Oxalufã em meio às pedras, rolando na poeira,
caindo pelas valas. Oxalufã se enfureceu com tamanho desrespeito e mandou muitos
castigos, que atingiram diretamente o povo de Xangô. Xangô, muito arrependido,
mandou todo o povo trazer água fresca e panos limpos. Ordenou que banhassem e
vestissem Oxalá. Oxalufã aceitou todas as desculpas e apreciou o banquete de caracóis
e inhames, que por dias o povo lhe ofereceu. Mas Oxalá impôs um castigo eterno a
Xangô. Ele que tanto gostava de fartar-se de boa comida. Nunca mais pode Xangô
comer em prato de louça ou porcelana. Xangô só pode comer em gamela de pau, como
comem os bichos da casa e o gado e como comem os escravos. (Narrativa registrada por
Prandi, 2001).

Foi assim, então, que Xangô, Orixá de grande influência política e prestígio –
afinal era um rei querido por seu povo – foi castigado pelo velho Oxalá e condenado a
comer como os animais e os escravos. Graças ao seu descuido, foi eternamente
condenado a comer em recipientes de madeira, associados aos animais de casa e ao
gado, bem como a condição de submissão dos escravos. Tendo conhecimento desse itan
a comunidade do terreiro organiza e prove o material necessário para cumprir a sentença
do velho Oxalá.
A partir da narrativa registrada por Prandi (2001), que apresenta variações na
forma e sentido como é narrada pelos filhos e pais de santo, é possível perceber como as
dimensões práticas (e funcionais) dos utensílios da cozinha de axé não estão dissociadas
dos significados simbólicos e, também, míticos atribuídos a eles. A gamela cumpre não
somente a função de recipiente propício para receber o Amalá, mas atende a severa

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determinação de Oxalá a Xangô, que deve ser obedecida por seus fiéis. Outra dimensão
da narrativa mítica que abre um profícuo campo de análise, e em larga medida reforça
as bases deste trabalho, é a posição de destaque que a comida (em última instância a
alimentação) desempenha dentro da narrativa.
Xangô Airá trazia dentro de si uma missão e um propósito, carregar Oxalá em
suas costas, pois este era lento e velho, até os festejos comemorados por seu povo em
sua cidade. Mas, quando se aproximaram do destino, avistaram a grande pedreira de
Xangô, bem perto de seu grande palácio. Orgulhoso que era de seu poderio, e querendo
compartilhar com Oxalá os frutos de suas conquistas enquanto rei, Xangô levou Oxalufã
ao cume, para ali mostrar ao velho amigo todo o seu império. Não contava Xangô Airá,
no entanto, que dali de cima daquele cume fosse avistar uma belíssima mulher mexendo
sua panela. Era Oiá! Preparando o amalá do rei. Xangô não resistiu a tamanha
tentação, teve fome. Sentiu arder dentro dele não somente o desejo por seu alimento,
mas o desejo e o apetite sexual por Oiá. Oiá e o amalá! Era demais para sua gulodice,
depois de tanto tempo pela estrada. Xangô perdeu a cabeça e disparou caminho a
baixo, largando Oxalufã em meio às pedras, rolando na poeira, caindo pelas valas.
Xangô e Oxalá são considerados dentro da narrativa como velhos amigos.
Somente um motivo muito forte seria capaz de ocasionar o rompimento do laço de
amizade entre ambos, ocasionando o total rompimento dos propósitos iniciais
estabelecidos pelo rei – levar Oxalá aos festejos. E dois elementos foram os
responsáveis por desvirtuarem Xangô: o amalá (a comida) e a belíssima mulher que é
Oyá (o desejo sexual). Por um lado a narrativa demonstra a importância do comer e da
alimentação para Xangô, trata-se de um Orixá que aprecia alimentar-se, a ponto de
comprometer antigas amizades e sérios propósitos. Por outro, demarca muito bem o
intenso apetite sexual de Xangô. Não se trata, pois, somente em satisfazer-se com
comida farta e de qualidade, mas de possuir belas mulheres.
O que interessa para os propósitos da presente analise não é tanto o caráter do
desejo sexual apresentado por Xangô neste itan, mas sua voracidade em relação à boa
comida – tratada dentro dos termos da narrativa como gulodice. Isso demarca a
importância que o ato de comer representa, em primeira instância, para os Orixás e seus
filhos, em segunda, para a filosofia das religiões de matriz africana – principalmente o
Candomblé – e, em última instância, baliza a centralidade da cozinha nas comunidades
de terreiro. Sem a cozinha de axé, com seu espaço devidamente sacralizado por objetos,
posturas e ritos, não seria possível alimentar os Orixás e a comunidade, como

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prescrevem os mitos e as preferências (qualidades e características) de cada divindade.
É assim que se pode considerar a cozinha como um espaço “tão significativo como o
peji” (Lody, pg 10, 2004).
A cozinha torna-se espaço importante, e plenamente integrado a todo ritual
dentro do Candomblé, não só por (i) satisfazer o desejo pelo alimento, tanto de Orixás
quanto de pessoas dentro da comunidade – atendendo a funções fisiológicas – mas por
(ii) proporcionar e restituir o equilíbrio das relações através da comida e da alimentação.
Após o castigo, enviado pelas mãos do velho Oxalá, que atingiram diretamente o povo
de Xangô. O rei, muito arrependido, mandou todo o povo trazer água fresca e panos
limpos. Para reparar os danos acarretados pela poeira e pelas valas. [Xangô] ordenou
que banhassem e vestissem Oxalá. Oxalufã aceitou todas as desculpas e apreciou o
banquete de caracóis e inhames, que por dias o povo lhe ofereceu.
Como forma de tentar restabelecer o que havia sido comprometido pelo descaso
e falta de compromisso de Xangô, todo o povo do reino ofereceu um verdadeiro
banquete ao velho Oxalá, por dias! Para recompor a relação anteriormente estabelecida,
de velhos amigos, foi necessário não somente limpar as vestes e o corpo de Oxalá, mas,
sobretudo, servi-lhe um banquete. Em gratidão pelo alimento ofertado e pelos cuidados
desprendidos, Oxalá perdoa Xangô, mas sem, contudo, esquecer a gravidade do
descaso. É assim que seu velho amigo lhe impõe o castigo de só poder comer em
gamela de pau, como comem os bichos da casa e o gado e como comem os escravos.
Sem o cuidado com as vestes e o corpo do amigo e sem os banquetes, servidos por dias,
Xangô não teria logrado o perdão do velho Oxalá. Aceitar os repetidos banquetes foi
sinal de empatia e comprometimento com quem doa. A amizade foi restaurada, mas a
lembrança do descaso ficou marcada para sempre através da presença e utilização da
gamela no culto a Xangô.
O castigo de Oxalá a Xangô nos conta, também, que utensílios destinados
inicialmente à cozinha de axé, como as gamelas de pau, não se restringem ao espaço
físico da cozinha. Adentram aos quartos de culto e aos pejis, compondo os
assentamentos dos Orixás. Segundo os comentários de Prandi (2001) sobre o castigo de
Xangô, “o mito justifica o assentamento de Xangô em recipientes de madeira, sobretudo
gamelas.” (pg 544). Mas não somente neste caso entram os elementos da cozinha nos
quartos de axé. Em algumas casas os assentamentos de Oxalá e das Yabás são
adornados com pratos de louça e colheres de pau. Enfeitá-los assim, não é somente
questão estética, mas uma das maneiras de ressaltar a importância da alimentação para

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os terreiros e suas divindades. Tais pratos e colheres, explicaram-me certa feita, eram
utilizados para partilharem o alimento votivo das divindades entre seus devotos. Assim,
tanto o alimento quanto os utensílios estavam carregados de axé. A própria constituição
dos assentamentos de determinados Orixás remete para a cozinha e à alimentação,
Xangô, como vimos, é assentado em uma gamela de madeira, Oxum, Oxalá, Iemanjá e
Oyá são assentados em sopeiras ou panelas de barro, Omolu é assentado em uma
cuscuzeira – sendo todas essas configurações dependentes das características e
qualidades de cada Orixá.
Rituais, expressões litúrgicas, o tempo que se passa dentro da cozinha, narrativas
míticas e objetos de cozinha que se tornam objetos sagrados, nos dão fortes indicativos
da centralidade da comensalidade e da alimentação para as comunidades de terreiro. O
que para o observador alheio a este universo se apresenta como trivial, como as colheres
de pau, dentro das casas de Candomblé torna-se objeto sacro. Compondo alguns
assentamentos e sendo objetos imprescindíveis para preparar e servir a comida daqueles
que estão sendo iniciados ou passando por obrigações, as colheres de pau são objetos
que funcionam como marcadores simbólicos responsáveis por organizar as dimensões
de sacralidade e poluição. As comidas votivas devem ser preparadas unicamente com
colheres de pau, o que as separa das comidas preparadas para o público em geral – que
podem ou não serem preparadas com colher de pau.
Em relação a sua força dentro da filosofia candomblecista, dizem os mais velhos
que antigamente o som de uma única colher de pau que caísse no chão da cozinha,
durante o preparo dos pratos, era capaz de provocar o transe nos iniciados mais novos.
As colheres de pau, a sua maneira, chamavam os Orixás. Podendo serem equiparadas,
neste quesito, à força dos atabaques e ao poder do emí (hálito) do Babalorixá ou
Ialorixá, que através das palavras de encantamento (efó), chamam as divindades para o
Ayé (mundo terreno) provocando o transe. Assim, os utensílios que “proporcionam o
fabrico dos pratos assumem valores especiais, não apenas pelos seus significados
funcionais, mas, também, pelos simbólicos” (Lody, 2004).
São estes os objetos responsáveis por levarem a cabo as transformações físicas e
espirituais dos alimentos dentro da cozinha de axé. Por mais que entre o repertório e os
materiais que as cozinhas disponham para o preparo dos pratos estejam presentes
utensílios considerados modernos – como fogões industriais, geladeiras,
liquidificadores, fornos elétricos, etc – há uma valorização pelos objetos considerados
artesanais e tradicionais (Lody, 2004). Utensílios como o pilão de madeira e

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equipamentos como o fogão a lenha são revestidos de uma valorização positiva pelas
comunidades de terreiro. Principalmente por permitirem um maior contato e
envolvimento na preparação da comida, no caso do pilão, ou contato maior com fontes
naturais, como o fogão a lenha e suas chamas.

Sobre as transformações que sofrem os alimentos

Sem querer esgotar a grande variedade de alimentos e sua organização e


distribuição dentro dos terreiros, compus uma pequena tabela com os principais
elementos encontrados em momentos rituais distintitos de ambas as casas investigadas.
Organizei os alimentos em 4 grandes grupos para uma melhor visualização da riqueza
da culinária ritualística. Na primeira coluna trago as categorias e na segunda coluna
exemplos dessas categorias facilmente encontrados dentro das casas de axé:

Milho (Branco/canjica; Vermelho/galinha;


Cereais / grãos / sementes Pipoca; Espiga) Feijões (Fradinho e
Preto); Amendoim; Arroz com casca;
Semente de Girassol;

Mandioca; Milho (Branco; Vermelho);


Farinhas Fubá ou Flocos de Milho; Feijão
Fradinho; Pipoca (esfarelada);

Papas Milho (Branco; Vermelho; Espiga); Feijão


fradinho;

Tubérculos / raízes / frutas Cará; Inhame; Batata doce; Gengibre;


Maças, peras, uvas.

Ao pensar nas transformações sofridas pelos alimentos é importante ter em


mente a que e para quem se destina o prato a ser ofertado. A depender da finalidade e
do destino do prato, os alimentos podem ser: (i) torrados (ii) cozidos (iii) fervidos (iv)
fritos ou (v) servidos crus. Grãos e sementes assim como os Tubérculos e raízes são os
elementos que comportam uma variedade maior de ações de transformação. Sendo

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elementos mais versáteis, podem ser torrados, cozidos, fervidos, fritos e servidos crus,
diferente das papas que são sempre cozidas em água ou em algum líquido. As farinhas
podem ser cozidas ou servidas cruas, sendo cozidas transformam-se em papas. Frutas
são servidas, geralmente frescas (portanto cruas), mas é possível que sejam servidas
fritas (como as bananas), e se considerarmos o quiabo como fruta este ainda pode ser
fervido ou cozido. Podemos construir um esquema nos seguintes termos:

CRU FERVIDO TORRADO COZIDO FRITO


x x x x - Grãos
x - - x - Farinha
- - x - Papas
x x - x x Frutas
x x x x x Tubérculos

Sobre a versatilidade das ações, cozer é a ação de transformação mais comum e


fritar é uma ação mais restrita. Quase todos os tipos de alimentos são cozidos, mas nem
todos eles são ou podem ser fritos. Pese as especificidades de cada Orixá, de cada
contexto no qual as comidas são preparadas e dos recursos disponíveis na comunidade,
o cozido funciona como um denominador comum entre os Orixás, seguido pelo cru.
Levar em consideração os recursos disponíveis na comunidade é de suma
importância para entender a composição do banquete das Divindades do panteão afro-
brasileiro. Nem sempre os ciclos de produção, distribuição e abastecimento das feiras e
mercados está de acordo com o ciclo de festas anuais das comunidades de terreiro.
Assim, em determinadas épocas será demasiado custoso comprar certos tipos de frutas
ou certos tipos de tubérculo, ao que os filhos de santo imediatamente recorrem a uma
substituição do elemento a ser ofertado. Por isso é de grande importância o
conhecimento da variedade de elementos e a variedade de gostos entre os Orixás. Mas
essas substituições apresentam grandes limites. Nem tudo pode ser substituído, pois
cada elemento carrega uma mensagem ou finalidade que é destinada para compor o
enredo do prato através do qual a mensagem é enviada a espiritualidade. Os pratos são
recheados de significados, sendo capazes de nos contar uma história. Saber organizar os
elementos de cada prato a fim de atingir determinado objetivo, ter este conhecimento de

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causa, faz parte do saber tradicional das comunidades de terreiro. Conhecimento que é
resguardado pelo segredo e pelas paredes da cozinha.
A dinâmica de escolha, manejo e elaboração de alimentos muda conforme o rito
em analise. Se o foco de analise passa a ser um ebó ou um bori os arranjos e
possibilidades de combinação de preparo sofrem algumas alterações. No Tumby Layó
mensalmente é preparado o Amalá para Xangô que é cozido e servido ainda quente.
Certa feita, contudo, após uma intuição do Babalorixá do terreiro, o Amalá foi
preparado com os mesmos elementos habitualmente constituintes do prato, mas, foi
servido absolutamente cru – sendo elaborada uma mensagem muito específica para
Ayrá. Em outros momentos, foram adicionados outros elementos ao Amalá cozido,
produzindo uma nova mensagem a ser decodificada pelo Orixá através do enredo que os
elementos compõem dentro do prato.
Outras transformações também são interessantes de serem observadas. No que se
refere às transformações que os alimentos passam dentro e fora da cozinha de axé o
observador deve estar atento a trajetória destes elementos até seu destino final. O Ado é
uma farinha de milho torrado e pilado temperada com açúcar mascavo. É um quitute
que serve em especial à Oxum. Os grãos de milho vermelho (milho de galinha) são
selecionados e limpos, deixados de molho em uma bacia com água fria. A intenção é
que os grãos chupem a água e inchem. Após esse procedimento, que demanda algumas
horas, ele é torrado até ficar bem crocante, sendo então pilado para produzir uma
farinha. Pilar é uma atividade que requer tempo, força e braços. É uma tarefa cansativa
para os mais desacostumados, como eu, mas muito bonita de ser observada. Um tempo
e espaço proporcionado pela cozinha para ensinamento e aprendizado que dificilmente é
possível durante as cerimônias rituais. Que demandam uma continuidade e, portanto,
não podem ser interrompidas para explicações.
Semelhante aos grãos de milho, as sementes de feijão fradinho são postas de
molho e podem ser torradas, como já mencionado. Mas também são postas de molho até
soltarem a casca e depois trituradas formando uma papa de coloração relativamente
clara e homogênea. Devidamente temperada, esta massa de feijão fradinho pode ser frita
em azeite de dendê transformando-se em Acarajé ou envolta na folha de bananeira e
cozida em água transformando-se em Abará. Nesse processo a coloração e propriedades
dos alimentos mudam. Encontramos assim, na cozinha de axé, alimentos com uma base
comum de composição, mas que atendem a demandas diferentes. Essas transformações
são permeadas por todo um processo artesanal e ritual de produção que é partilhado pela

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comunidade de terreiro. Um modo de produção (transformação) perpassado por uma
multiplicidade de sentidos e significados. Se grãos que serão transformados em farinha
e depois em papa são destinados ao Acarajé ofertado a Oyá os sentimentos e os sentidos
contidos nessa produção diferem da produção dos grãos que se tornarão o Abará
destinado a Obá.
Na classificação apresentada no começo desta reflexão não entraram outros
elementos que podem ser agrupados na categoria de temperos. Optei por separa-los dos
demais por estes apresentarem especificidades e usos importantes para a compreensão
das atividades sagradas dentro da cozinha e dentro da comunidade. São considerados
temperos o camarão seco, mel, sal, bebida alcoólica, água, azeite de dendê, azeite de
oliva (comumente chamado de azeite branco ou doce) e cebola. Todos estes itens
acompanham o preparo dos pratos que são ofertados, sendo alguns deles responsáveis
também por temperar os assentamentos dos Orixás, antes de receberem o ejé (sangue)
proveniente do sacrifício, e prepararem as esteiras sob as quais deitam os iniciados
durante determinados rituais. Assim, os temperos são utilizados tanto dentro da cozinha
quanto dentro dos quartos de santo.
A água ocupa uma posição interessante. É um elemento base para o sistema
religioso, assim como o ejé. Sendo de propriedade fria, diferente do ejé considerado
quente, a água é um elemento apaziguador. É com a água que os iniciados esfriam seus
corpos. Na cozinha a água serve de base para o preparo de boa parte dos pratos, como o
acaçá, o abará e para cozinhar os grãos e tubérculos, como feijões, milhos, inhame e
batata doce. Mas, durante rituais, serve também para temperar os assentamentos dos
Orixás junto com o sal, o mel, o vinho, o azeite doce e o azeite de dendê.
Na cozinha os temperos são um dos responsáveis por diferenciar a comida
sagrada da comida profana. O que irá diferenciar a massa do acarajé de Oyá do prato
servido na rua, por exemplo, não é somente o comportamento em relação ao preparo
(contrição, devoção, respeito, ritual), mas o tempero que a comida leva. O acarajé
servido a Oyá é temperado com pó de camarão seco, cebola triturada e pouquíssimo sal.
Sendo dispensados por Oyá o coentro, o molho de pimenta, a pimenta do reino, a
cebolinha, o recheio de vatapá, etc.
A lida na cozinha de axé requer dos iniciados grande habilidade e sensibilidade,
pois é repleta de nuances que escapam aos olhares e ouvidos desatentos. Estar envolvido
nas atividades da cozinha, junto dos irmãos e parentes mais velhos, ajuda a desenvolver
e aprimorar as capacidades cognitivas e técnicas responsáveis por apreender tais

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diferenças imperceptíveis aos olhares não treinados. Trabalhar na cozinha é prepara-se,
é domesticar mãos, olhos e ouvidos, sendo em última instância, lócus privilegiado para
formar-se um bom filho de santo. Pois sensibilidade e habilidades manuais e técnicas
são requeridas em várias dimensões do terreiro.

Conclusão

Falar a partir da cozinha das casas de matriz africana é, sem dúvida, falar sobre
aspectos rituais e simbólicos. Como vimos, os alimentos selecionados e preparados,
sofrem consideráveis transformações físicas e espirituais por meio de uma apurada
técnica ritual. Os ritos de preparo dos alimentos e, posteriormente, as práticas de
comensalidade que integram a alimentação nesses espaços, são dimensões importantes
para a compreensão dos rituais dos povos tradicionais de terreiro. Contudo, minha
proposta foi de elaborar uma reflexão inicial tendo em vista o desafio de ir além da
dimensão do ritual e da comensalidade, alargando as fronteiras interpretativas que a
cozinha das casas de culto aos Orixás pode nos proporcionar. Espero produzir um
deslocamento do olhar antropológico dos grandes ritos e festividades públicas,
direcionando o olhar para as atividades da vida corriqueira, registrando a estética
cotidiana das práticas que são responsáveis pela produção e reprodução de identidades
dentro dos terreiros. A cozinha de axé é um espaço onde circulam conhecimentos e
energias espirituais imprescindíveis para a formação religiosa dos filhos de santo, onde
laços de solidariedade e confiança são estabelecidos. Através dela é possível apreender
o dinamismo das comunidades de terreiro e resgatar valores e princípios responsáveis
por nortear as atividades e a vida dentro de uma comunidade religiosa.

Referências

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

COLLAÇO, Janine Helfst Leicht. In: Revista Habitus. Goiânia, v. 11, n.2, p. 203-222,
jul./dez. 2013.

LODY, Raul. Santo Também come. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

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PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001.

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