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UERJ

Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Departamento de Filosofia

Ana Rosa Lessa Luz

O Logos Inspirado:
Amor e Retórica no Fedro de Platão

Rio de Janeiro
2009
Ana Rosa Lessa Luz

O Logos Inspirado: Amor e Retórica no Fedro de Platão

Trabalho de Conclusão de Curso de


Filosofia para obtenção do título de Bacharel em
filosofia da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro.

Professor Orientador: James Bastos Arêas.

Rio de Janeiro
2009

2
Ana Rosa Lessa Luz

O Logos Inspirado: Amor e Retórica no Fedro de Platão

Monografia apresentada como pré-requisito para


obtenção do título de Bacharel em Filosofia da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, submetida à
aprovação da banca examinadora composta pelos
seguintes membros:

Professor Orientador: Prof. Dr. James Bastos Arêas

Prof. Dr. Marly Bulcão Lassance Brito

Prof. Dr. Dirce Eleonora Nigro Solis

Rio de Janeiro, RJ – Dezembro de 2009.

3
Aos meus pais Henrique e
Lucimar que me dedicam um amor
maior que a própria vida.

4
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador James Arêas, por ter sido o primeiro a me impulsionar


filosoficamente no âmbito acadêmico e por todo acompanhamento, incentivo e amizade
dados durante toda essa árdua e prazerosa caminhada filosófica;

A Marly Bulcão, por desempenhar além do papel de professora excepcional, me


fazendo descobrir novos caminhos filosóficos e me incentivando, sendo uma mãezona
dentro do meio acadêmico;

Aos meus pais, Henrique e Lucimar, que desde o início me deram um apoio
incondicional e agüentaram todos os meus altos e baixos, mostrando cada vez mais o
amor que me tem e fazendo com que esse amor me possibilitasse um crescimento
impagável;

A minha segunda mãe, Jacqueline Muniz, que a todo o momento esteve ao meu lado
guiando, amando e compartilhando seus ensinamentos e suas descobertas;

A minha irmã Liz, que incondicionalmente faz parte da minha vida, sendo uma das
responsáveis por todo o meu crescimento enquanto profissional e enquanto pessoa;

A mina irmã Marcelli, que além de ser mãe e amiga, me possibilitou sentir um amor que
eu nunca poderia imaginar, um amor que transcende o meu próprio ser, amor
imensurável pelos meus Jahva e João;

A toda minha família, por toda sua dedicação;

Aos meus amigos da UERJ, que caminharam junto a mim sendo força motriz e
essencial nessa etapa da minha vida, meus agradecimentos especiais a Diogo, Marco,
Bruno, Caio, Paola, Roberta, Fabiana, Roberto e Larissa;

A Paraty e aos paratienses, por me dar um refúgio de beleza e tranqüilidade.

Ana Rosa Lessa Luz

5
“Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.”

Friedrich Nietzsche
6
Resumo

Na leitura do Fedro de Platão, diálogo onde é discutida a questão do Belo, vemos


inseridos motes que abordam muitas vezes temas comuns e muito caros à humanidade –
questões ligadas ao sentido da vida, da existência e principalmente do amor à sabedoria.
Ora, se por um lado à filosofia abre um leque de possibilidades de entendimento e
discussão de um tema através de sua abordagem profunda, de outro a leitura de Platão
se encarrega de apresentar a experiência de vida e o pensamento grego antigo –
demonstrados na forma de arte, dando as suas questões a flexibilidade, mobilidade e
erudição, características da dialética platônica. É com vistas a contribuirmos ainda mais
na ampliação desse debate, que este trabalho pretende ser um estudo sobre a
possibilidade de interpretar Fedro de Platão e os demais temas que o abrangem, tais
como o amor, a erótica, a alma, a teoria das idéias, as manias divinas e seus enclaves;
pois acreditamos que, no que diz respeito aos aspectos da antiguidade, Platão é parte
instauradora da própria filosofia, sendo um dos que melhor traduz os conceitos
filosóficos de sua época.

Palavras-Chave: Erótica, Alma, Manias divinas, Retórica.

7
Abstract

During the reading of Plato's Phaedrus, a dialogue where we discuss the question of the
beauty, we inserted motes that explain, so many times, common themes and very
expensive to humanity – like some questions related to the meaning of life, existence
and especially the love of wisdom. Accordingly, on the one hand the philosophy opens
up a range of possibilities for the understanding and the discussion of a theme through
its in depth, on the other hand reading of Plato is in charge of presenting the living and
ancient Greek thought – demonstrated in the art form, giving your questions to
flexibility, mobility and learning, characteristics of the Platonic dialectic. It is with a
view to contributing even more to advance the debate, that this work is intended as a
study on the possibility of interpreting Plato's Phaedrus and other subjects that include,
such as love, erotic, the soul, the theory of ideas, manias divines and their enclaves;
because we believe that, with regard to aspects of classical antiquity, Plato is a
inaugurating part of philosophy itself, one of which best reflects the philosophical
concepts of his time.

Keywords: Erotic, Soul, Manias Divines, Rhetoric.

8
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................ 10
METODOLOGIA ........................................................................................ 12
CAPÍTULO 1 – Das Manias Divinas ........................................................... 13
I. Apolo................................................................................................... 16
II. Dionísio ............................................................................................. 19
III. Musas................................................................................................. 22
IV. Eros .................................................................................................... 26
CAPÍTULO 2 – Da Erótica ........................................................................... 30
I. A Sexualidade (questões morais) ......................................................... 33
II. A Erótica enquanto formação ............................................................ 35
III. Eros: O matrimônio e a relação entre rapazes .................................. 36
IV. Tópicos finais sobre o verdadeiro ser do amor ................................. 40
CAPÍTULO 3 – Da Alma ............................................................................. 41
I. Introdução a Teoria das Idéias ............................................................. 41
II. A Teoria da Reminiscência ............................................................... 45
2.1. Sobre a Imortalidade da Alma .............................................. 45
2.2. O Filósofo, um reminiscente ................................................. 47
2.3. O Mito da Parelha Alada no Fedro ....................................... 49
2.4. O Belo e o Lugar do Filósofo ................................................ 53
CAPÍTULO 4 – Da Retórica ......................................................................... 54
I. O Problema do Conhecimento e a Solução Dialética dada por Platão 54
II. A Arte da Persuasão e o sua pretensão de Verdade........................... 57
III. O Logos Filosófico ............................................................................ 59
IV. A Eficácia da Palavra ....................................................................... 60
V. A Inspiração Erótica e a Verdadeira Arte de Falar ........................... 63
VI. A Dialética enquanto diálogo crítico ................................................ 65
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 67
I. Da Velhice ........................................................................................... 67
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA .............................................................. 69
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 71

9
Introdução

Este trabalho tem como objetivo central apresentar a evolução de minha


pesquisa, no decorrer de todo o curso de graduação, com sua perspectiva metafísica, na
qual foi dada continuidade a compreensão de uma das grandes matérias primas de
Platão. Para isso, a leitura do diálogo Fedro, bem como a apresentação de seminários
sobre o mesmo foi de fundamental importância para a compreensão da teoria platônica
do amor e de sua crítica aos retóricos de seu tempo (sofistas) e dos
conceitos explicitados na temática do projeto desenvolvido.

O Fedro é um diálogo dedicado à exaltação do amor que se alimenta diretamente


da contemplação da idéia de Beleza. É um combate, tanto contra a erótica de seu tempo
quanto um esforço para desmoralizar as composições dos retóricos de seu tempo, e de
apontar o rumo certo para um bom aprendizado da arte de escrever.
É efetivamente o primeiro diálogo platônico passado distante da Polis,
representando o desprendimento dos limites e das muralhas que a entornam; como
forma de demonstrar que cada vez mais as divindades campestres (Ninfas) – como se
acreditava no período – estão a influenciar o Logos socrático, estando este tomado de
um rigor racional que parece ceder, sob essa influência (Ninfolepsia), à liberdade maior
da poesia.
O discurso construído por Sócrates faz uma investigação dos efeitos, na alma de
cada jovem, ao culto das divindades a que se propusera servir a vida toda – trabalhos de
amor perdidos. Relata a importância das loucuras (manias) divinas, afirmando que estas
são a causa dos maiores bens para os homens e incitando a sua respectiva importância,
dentro e fora do mundo da Polis - glorifica a mania divina da profecia, dos mistérios, da
poesia e do amor; mas é para explicar a aspiração inquieta e a febre de possessão do
amor para reminiscência da beleza inteligível, uma inteligência que se desdobra nela
mesma. Como por exemplo, a relevância da loucura das Musas para os poetas e na
juventude em particular; a origem sobrenatural da poesia e dos efeitos benéficos que a
mania das musas provoca nas almas inspiradas pela divindade – a análise das manias
divinas condiz à diferenciação do delírio erótico; delírio propriamente filosófico
endereçado à verdade; por conseguinte, a crítica à retórica sofística, vem propor uma

10
“formulação de uma retórica verdadeiramente filosófica cujo estatuto se funda no
próprio método dialético.”1

O discurso socrático concebido formal e esteticamente segundo a quarta loucura


divina, direcionada ao deus EROS (amor). O Eros é descrito tal como um desejo total,
uma aspiração luminosa, o impulso original levado a sua mais alta potência; à extrema
pureza que é a extrema exigência de unidade. Mas a unidade última é a afirmação do
Ser do amor para além de sua condição atual. Assim, o impulso supremo do desejo
condiz com aquilo que ultrapassa a condição mundana. A dialética do Eros, explicitada
por Sócrates, introduz na vida algo totalmente estranho aos ritmos da mera atração
sexual, um desejo que não decresce jamais, que nada mais pode limitar e, que até
mesmo desdenha e foge à tentação de se realizar em nosso mundo, porque só deseja
abraçar o todo.
O Fedro mostra uma superação infinda, representada pela ascensão do homem
para o seu deus e suas influências; é uma obra que incide num movimento sem retorno.

1
JAMES ARÊAS, A perspectiva filosófica na transposição platônica no Fedro, p.123.

11
Metodologia

Para alcançar os objetivos a que este projeto se propôs a atingir, esta pesquisa
foi composta em quatro partes.
Na primeira delas procuramos levantar o material de trabalho, para decorrente
montagem literária do projeto a ser finalizado – levantamento de dados relacionados ao
Tratado do amor de Lísias e conseqüente refutação Socrática (dentro do contexto das
Manias divinas), indo da erótica e à retórica, dentro do contexto dialético filosófico.
A segunda parte deverá consistir na construção formal e elaboração das partes
constituintes do projeto final – levantamentos de dados referentes à importância moral,
educacional e filosófica relacionados à Erótica Grega e dos dados referentes à crítica
platônica à arte de persuadir.

Na terceira fase do trabalho, foi feita a análise da monografia – junto às


concepções terceiras – visto a sua finalização e entrega para avaliação.

12
Capítulo I: Das Manias Divinas

Para se compreender sobre o amor a erótica e as manias divinas, dentro do


contexto de Fedro de Platão; comecemos pela refutação socrática à carta de Lísias.

Na leitura da carta de Lísias, Fedro conceitua a Eros como a irracionalidade da


paixão, o amor visto como uma doença em que aqueles tomados por ele, são os
primeiros a admitir o estado de insensatez e uma incapacidade de auto-domínio – onde o
amante é arrebatado pela Mania (Maniké – uma loucura particular) que o assola diante
do Belo2, fazendo-o agir imprudentemente; a sair de si. Em contrapartida, argumenta
que o homem que não é dominado pela paixão, se iguala aos que se esquecem dos
próprios interesses e, ao prazer imediato; calmo e calculista. Este, só procura a
satisfação dos desejos sensuais mais baixos, dando a vida em troca de uma fama imortal
que jamais será usufruída (o homem despótico, segundo Platão, que contrapõe a
pseudo-sobriedade à virtude).
Fedro enfatiza, no relato do discurso de Lísias, que os amantes oferecem uma
afeição efêmera, aquela que quando acalmado o desejo, os fazem arrumar um pretexto
para romper com o amado. Nesse caso, o jovem que ama de verdade, pode ser
prejudicial ao seu amado; pois após a satisfação dos seus desejos imediatos ele
abandona seu amado e arrepende-se de suas promessas; enquanto que o não-
apaixonado, por aproximar-se desinteressadamente – sem desejos sexuais –, estabelece
uma relação duradoura com seus respectivos “amados” (230c – 234c). O amante
apaixonado procurará obter do amado o máximo de prazer. Ele odeia tudo o que lhe é
superior e ama tudo o que não lhe opõe resistência. Para satisfazer os seus desejos, ele
procura um jovem de poucas virtudes; pois acentuando suas deficiências tem menos
riscos de perder seus prazeres momentâneos – a fraqueza espiritual do amado permitirá
ao amante exercer o seu domínio tirânico.

2
O belo é descrito como um resplendor de intenso clarão, através do qual a realidade mais elevada e
soberana, causa na alma o amor: a luminosa essência que o fez nascer e elevar ainda mais, conduzindo a
alma ao longínquo princípio de todo o conhecimento. Expressa a relação universal e fundamental
existente entre todas as coisas, tanto na dimensão inteligível, quanto na do sensível; como o grande
mediador que garante a total ligação entre o mais próximo e o mais distante, num universo que há
comunidade entre todos os seres.

13
Aqueles que não se apaixonam, são descritos como os mais capazes de
demonstrar gratidão, de dividir com o amado, não só o gozo da juventude, mas os
haveres da velhice; de oferecer uma amizade linear ao longo da vida – o amado deve
favorecer aquele que não lhe tem amor, aquele que não o faz ceder às instâncias do real
amante. Em contrapartida, para Sócrates amado e amante têm de receber vantagens
recíprocas da relação, sendo aquilo o que se reprova no amante não deve ser contado
como vantagem para o amado.
A teoria de Lísias, equipara a Eros a “um desejo animal que ultrapassa as
considerações prudentes da moralidade convencional”3; diferindo-se da teoria socrática
em que esta é um desejo excessivo de prazer na beleza do corpo, levado para além dos
limites da convicção racional4. Na República, Platão conceitua a Eros como a harmonia
de todos os desejos, quando reorientados; pois os desejos nos guiam inconscientemente
ao prazer, que ao assumir um caráter crescente, torna-se um excesso.

Na primeira refutação socrática à carta de Lísias, ele a denomina “demoníaca”.


Critica a dificuldade de Lísias (sofista) de discorrer longamente sobre um determinado
assunto e ao talento em conseguir falar de uma mesma idéia, “com elegância”5, de
várias formas diferentes. Enfatiza que tal discurso aponta para presença de uma
moralidade do amor, calcada no senso-comum e nos saberes não-filosóficos, sendo uma
peça bem trabalhada, mas carente de um nexo causal entre as partes constituintes.
Segundo Sócrates, esta deveria ser constituída por um todo artisticamente considerado –
com princípio, meio e fim –, no qual as partes estejam em perfeita sincronia umas com
as outras e com a idéia do conjunto.
Após essa crítica estabelecida, Fedro instiga-o a dizer que ele seria capaz de
proferir um discurso melhor sobre tal relação, de forma a refutar Lísias, em absoluto.
Sócrates diz que tal concepção de Eros, encontra-se privada a apreensão da
beleza moral e intelectual da contemplação final da própria beleza, enfatizando a
independência entre o desejo e o prazer; o que torna a convicção de Lísias tendenciosa
ao que seria melhor. Já na teoria socrática – que ao expô-la, no Fedro, diz estar
inspirado pelas Ninfas –, o Eros toma forma de um excesso, sendo o ato de
autodomínio, um refreio aos excessos da paixão. Pois o amante dominado pela paixão é

3
F.M. CORNFORD, Principium Sapientae, p.114.
4
F.M. CORNIFORD, Principium Sapientae, p.114.
5
PLATÃO, Fedro 235 a.

14
escravo do prazer; vê o amado como uma coisa, um joguete – “É um governado que
quer governar”6. Ora, o amor é o desejo pelo Belo, tornando-se necessário fazer uma
distinção entre o desejo do prazer (instintivo e estranho à razão) e o desejo ao que é
melhor (resultado da reflexão) – “(...)amour qui nést que jeunesse et beuté divinisié,
source de toute bonheur, de toute beauté et de toute vertu.” 7 O domínio de si
corresponde ao amor submetido à ordem e à medida – em que o amante procura libertar
o amado filosoficamente, para que ambos se dirijam ao amor à sabedoria, que os
alimentará –, incidindo numa perfeita reciprocidade; onde o amado torna-se amante;
torna-se sujeito do amor.

No Banquete, o amor é descrito como não sendo nem beleza nem bondade, não é
nenhuma perfeição nem fim. Ele é, por essência, um élan entre ser e bem. O amor é o
universal desejo da possessão eterna do bem. Tem um esforço natural que implica na
geração na beleza espiritual tanto quanto corporal, cuja inesgotável fonte surge e o élan
da natureza mortal vai de encontro à inacessível eternidade. Esforço cujo incansável
recomeço obtém, por artifício de uma identidade sucessível e fragmentada, a
substituição de uma identidade sucessiva e esfacelada pela eterna e indivisa
continuidade de ser.
O amor sem o domínio de si, sem métrica, sem ponderação, é o amor das almas
desmesuradas, entregues à avassaladora paixão, sem continuidade ou asas. A
reciprocidade da relação entre amado e amante, infere na visão da imagem da verdade e
da beleza, sendo ela mesma a idéia que resplandece entre todas as idéias. Ele vê no que
realmente ama o verdadeiro ser do seu amor. Não é, portanto, o amor que segue quem
ama, e sim quem ama é que “extra-ilumina” o verdadeiro ser do seu amado8.

Decorrido o discurso socrático acerca do amor, Platão afirma ainda, que não
existe só um tipo de Mania que toma os homens – espécie de exaltação; delírio;
possessão divina; excitação exagerada que toma os homens, fazendo-os capazes de
realizar ações excepcionais.
O entusiasmo que toma Sócrates, o faz proferir um elogio ao amor-delírio, da
arte divinatória, profética, ao delírio iniciático; sendo este uma espécie de paixão extra-

6
PLATÃO, Fedro 238 e – 239 a.
7
A. DIÈS, Autour de Platon: Essai de critique eh d‟histoire, p.433.
8
J.A. MOTTA PESSANHA, Platão: As várias faces do amor, p.89.

15
corpórea que leva os homens para fora de si, liberando-os em direção à beleza9. Afirma
ainda, que não existe só um tipo de Mania, e que toda Mania advém dos Deuses, sendo
cada uma delas, específica a uma divindade: Apolo (adivinhação e premonição), As
Musas (poética), Dionísio (frenesis) e Eros (erotismo) –, e que esta seja má, incitando
quatro espécies de loucuras divinas, que são dádivas do céu e causa dos maiores bens.

I. Apolo

A primeira loucura consiste no Estado de Transe; inspiração mântica das


Sacerdotisas nos Oráculos de Delfos – dádiva de Apolo recebida pela alma a partir do
sono (quando o corpo morre e alma encontra-se preparada para revelação plena da
sabedoria). As Sacerdotisas possuem o dom da premonição; passado, presente, futuro;
quando possuídas pelos deuses. Estas precisam estar puras da realização dos prazeres,
para despertarem em si, com supremacia, o terceiro elemento da alma, a Sabedoria –
Platão, na República, explicita a divisão da alma em três partes, ambas intrínsecas ao
desejo: apetitiva (o amor ao prazer sensual), apaixonada (o amor à honra) e a racional (o
amor a sabedoria); influência de qualquer uma delas sobre as demais demonstra um tipo
de homem: o interessado na aquisição de riquezas, o ambicioso e o filósofo10. As
sentenças oraculares, são expressas de uma forma com que os homens não consigam
interpretar, em sua totalidade (podendo ser boas ou ruins) – a partir de tal fato, os
homens referiam-se ao Deus Apolo, como o Deus da ambigüidade.
Era tido tal como mestre da alétheia, o deus divinatório resplandecente da
beleza, dos poderes configuradores, divindade da luz correspondente à experiência
onírica ou do sonho, figurado por experiências ilusórias que se apresentam como
„verdades absolutas‟.
Apolo é o deus solar, o deus de luz. Realiza o equilíbrio e a harmonia dos
desejos, não pela supressão das pulsões humanas, mas por orientá-las no sentido de uma
espiritualização progressiva que se processa graças ao desenvolvimento da consciência.
É o símbolo da vitória sobre a violência, do autodomínio, do entusiasmo, da aliança

9
A inspiração (enthousiasmos) provém de um poder divino.
10
A inteligência se mostra, nesse caso,como a melhor das revelações; sendo prejudica por uma loucura –
Eros –; que só sobre a dominação de outra, seria capaz de restabelecer-se.

16
entre paixão e razão. É a suprema espiritualização, um dos mais belos símbolos da
ascensão humana. Apolo é o Deus Sol que tudo vê, é o mestre da “verdade”; é o rei da
justiça, trazendo alucinações proféticas e transformando suas thémistes numa espécie de
oráculo, revelando palavras “realizadoras”, carregadas de eficácia - “A palavra
thémistes se aplica tanto às palavras de justiça quanto às palavras oraculares de
Apolo; e a potência da deusa Thémis abrange todo o campo da mântica quanto o da
justiça e da vida política.”11

A palavra é de imediato uma realidade, uma realização, uma ação.12

A palavra se desdobra como uma coisa viva, uma realidade natural que brota,
cresce e louva o homem engrandecendo-o. As potências oraculares delimitam um plano
de realidade em que a profecia é o elemento de realização dos acontecimentos da
palavra oracular – e não um reflexo destes. As visões de sonhos, cujas palavras não se
realizam se opõem aos sonhos que “realizam a realidade”. A „verdade‟ institui-se no
desdobramento da palavra mágico-religiosa, apoiada na memória e articulada no
esquecimento (létheia)13, sendo através da potência do verbo poético, que se instituem
as potências do mundo invisível.

A incubação era uma prática mântica apolínea que consistia na indução do


indivíduo ao sono, a um estado de transe, no qual os sonhos se mostravam tais como
portas para a visão do futuro. Apolo era o “deus dos poderes configuradores”; visto que,
no mundo grego, é aquele que governa a forma, à proporção que gera a harmonia e as
belas aparências. Apolo representa a harmonia, a moderação, a ordem e a razão, em
contraste complementar a Dionísio, o deus do êxtase e da desordem – partilha tal função
inspiradora com seu irmão Dionísio, distinguindo-se dele pelo seu caráter mais
equilibrado. É o deus que, tal como um tapume luminoso, tapeia o lado sombrio da
existência; fazendo com que o homem só veja a beleza aparente, como se houvesse um
véu luminoso em que não se vê o fundo. O indivíduo não é comido pela natureza, pelo
devir ou pelo sofrimento. Há uma plasticidade que se contrapõe ao princípio

11
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, p.29.
12
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.36.
13
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.36.

17
“destruidor” dionisíaco. Na tragédia grega, o coro trágico simbolizava o descarrego das
imagens apolíneas. Em contraposição a Dionísio onde o espectador se vê imediatamente
imerso no estado de natureza, Apolo faz o público experimentar a existência, a vida
eterna dentro da renovação das aparências, em que o manto da beleza cobre as
efemeridades da vida – era tido com um espelho para que os gregos mirassem.

Por ser o patrono do Oráculo de Delfos, era considerado o deus dos adivinhos e
profetas; enquanto que a sua ligação com a Medicina se fazia pelo seu poder de atrair
pragas e a morte súbita – “Apolo é ao mesmo tempo deus oracular e deus exegeta. (...)
deus adivinho, deus-médico (mas incapaz de curar), intermediário entre os mortais e os
homens, dos quais ensinou as técnicas da vida em sociedade (...)” 14 Protegia os colonos
em terras estrangeiras, liderava as Musas e era o diretor de seu coro. Recebendo de
Hermes a lira, firmou sua posição como o deus da Música, e era homenageado com uma
forma especial de hino, o peã – sua ligação com a cura advém de sua absorção do antigo
deus curador Peã e as funções curativas estavam ligadas aos cantos que mais tarde
passaram a ser os hinos laudatórios que receberam o mesmo nome, entoados pelos
gregos em cultos. Tanto era o deus da música, da adivinhação, da poesia e da religião
órfica, sendo os seus oráculos expressos em fórmulas diversificadas, passando por
inspirar tanto os adivinhos quanto os poetas.
Sua árvore sagrada era o loureiro. Há relatos que afirmam que alguns sacerdotes
mastigavam loureiro para dizerem as profecias, enquanto outros usavam ramos de
loureiro para aspergir o templo na purificação, ou para purificar a água com o fogo. As
coroas de louro eram muitas vezes oferecidas a alguém que tinha conseguido algo
extraordinário, superando a si mesmo, na procura da areté.
Apolo é o deus dos jovens rapazes, ajudando na transição para a idade adulta,
sendo os rapazes que o acompanhavam, "alunos" do deus na prática da „pederastia‟.
Assim, ele é sempre representado como um jovem, frequentemente nu, para simbolizar
sua pureza e perfeição.

14 14
JEAN-PIERRE VERNANT; PIERRE VIDAL-NAQUET, Mito e Tragédia na Grécia Antiga, p.231.

18
II. Dionísio

A segunda loucura é a dádiva de Dionísio, que é a adivinhação que diz respeito


ao passado e ao presente, diretamente vinculados à Loucura Profética, que infere na
absolvição dos males presentes através da oração e veneração dos Deus, em ritos de
purificação e iniciação. A inspiração dionisíaca é contagiante15, uma vez entre nós, é
capaz de espalhar a Frenesis – as mulheres são tomadas por um furor que as levam a
embebedar-se, a cantar, à homofagia e às praticas sexuais.
Dionísio é o Deus do devir, não possui um eu interior, traz a força criadora
arrastando o homem em êxtases para a experiência de outras vidas – fazendo-o esquecer
de suas amarguras –, experiências que podem ser contraditórias entre si. Conduz à
desmedida, ao Caos (retorno ao mundo primeiro, à origem), ao entusiasmo e à hybris.
Junto a Apolo forma o todo, sendo a harmonia entre os frutos opostos.
Uma das faces do deus Dionísio é que ele pode ser tomado como uma força
divina cuja presença parece inevitavelmente marcada pela ausência. Na tragédia grega a
máscara cênica, correspondente ao deus, ia de encontro a tal aspecto divino; com uma
face única de olhos estranhos; olhos esbugalhados e vagos que fixavam o espectador,
colocando-o em posição de iniciado nos seus mistérios. Dionísio é o deus em que o
homem só pode entrar em contato cara-a-cara, ele finge ser apenas um de seus próprios
fiéis, fazendo-os receber a iniciação durante um confronto decisivo com a própria
divindade – são os olhos inelutáveis que fascinam; é o ver se vendo.
O deus exerce os seus poderes sobre o adulto plenamente socializado, o cidadão
integrado ou a mãe de família no refúgio do lar; introduzindo no seio da vida cotidiana a
dimensão imprevisível do além.
O primeiro aspecto da ambivalência dionisíaca é que, embora seja um deus
autenticamente grego; ou seja, de tão boa origem e de tão grande antiguidade quantos os
demais, ele é determinado como “o estrangeiro”, “o outro”, aquele que perpetuamente
chega do além-mar, ora surgindo na forma de um ídolo trazido pelas ondas com um
aspecto incomum, ora surgindo em pessoa. Suas transformações essenciais são a
metamorfose, o disfarce e a máscara. Uma das características fundamentais, de tal poder

15
A comunicação do místico com o divino se deve a um temperamento anormal, particularmente ardente
e emotivo, o que torna possível aos homens estarem em comunicação com os outros seres possuidores de
caráter igualmente fogoso e animado.

19
divino, é a „facialidade‟. É impossível olhá-lo sem cair imediatamente sob o domínio de
seu olhar; que arrasta os homens para fora de si mesmos.
No culto do deus das bacantes, todos se encontram mascarados. As mulheres ao
saírem do estado de transe extático, manipulam gravemente os recipientes de vinho. Sob
o olhar do deus, aquele ao qual todos os olhares se convergem, as mulheres distribuem o
vinho, considerado uma bebida perigosa e maléfica se absorvida sem as precauções
rituais – visto que Dionísio ensina aos homens a boa utilização do vinho, o modo com
que se deve misturá-lo para fins de domesticação do líquido selvagem que faz os
homens perderem a cabeça, colocando-os para fora de si. Diante da máscara, as
mulheres não consomem o vinho, elas o servem e repartem com dignidade, a bebida
destinada aos homens e deuses.
Assim como o vinho, Dionísio é duplo; terrível ao extremo e infinitamente doce.
Sua presença pode manifestar-se sob duas vias, a união bem-aventurada com ele – em
plena natureza16, onde todo constrangimento é ultrapassado; quando há evasão fora dos
limites do cotidiano e de si próprio –, ou a queda ao caos. A possessão dionisíaca abre
um universo de alegria onde são abolidos os limites estreitos da condição humana,
arrastando os homens hora para baixo, hora para o alto, para confusão do caos ou para
fusão com o divino.
Este último aspecto dionisíaco citado é o delírio feliz e libertador que se apodera
daquele que não recusa o deus (sátiros gesticulantes), que aceita com ele questionar as
categorias, suprimindo as fronteiras que separam o animal do homem, o homem dos
deuses. Em seus rituais, os homens fazem por esquecer os papéis sociais, os sexos e as
idades, dançando sem temor como dançam dois velhos encanecidos das bacantes –
aqueles que se mostram sábios por reconhecerem e aceitarem a loucura divina. Nos
ritos, os homens tornam-se outros oscilando no olhar do deus, ou assemelhando-se a ele
através do contágio mimético – os homens se vestem tal como a divindade a fim de
endossar as marcas do deus, tomando-o para si como a melhor forma de se deixar
possuir; tendo em vista que para o homem ter a visão clara do deus, ele deve ter uma
forma precisa, um aspecto característico de sua natureza, uma “identidade”. Dionísio,
quando se encontra entre os homens está também entre os deuses. É aquele que unindo
o céu e a terra insere o sobrenatural em plena natureza – esse é o objetivo do dionisíaco,
que coloca o homem em contato imediato com a alteridade do divino. No estado de

16
O ritual dionisíaco é realizado em meio à natureza e não em templos sagrados.

20
transe, o homem representa o deus e o deus representa o homem, entre um e outro as
fronteiras se apagam na intensidade da presença divina que, para se mostrar em sua
evidência, primeiro se assegura do domínio de seus olhos, de se apoderar do olhar dos
homens, transformando até o seu modo de vidência. A visão do deus resplandece o seu
interior, e para vê-lo é preciso penetrar num universo distinto onde se reina o outro e
não o mesmo. Tudo se representa na existência presente. Os homens devem aceitar a
condição de mortalidade, saber que não são nada diante das forças divinas. Dionísio não
tem contas a prestar, supremamente suave e terrível, ele brinca de fazer emergir no
homem e em sua volta as múltiplas figuras do outro.
O fato de o seu culto seguir a mascarados desenfreados, então, traduz tais efeitos
de tensão entre termos contrários; tais como selvageria e cultura, realidade e ilusão,
entre outros.
O dionisismo representava, na cultura grega, um corpo estranho devido a sua
exterioridade original. Ele não se assentava em nada num panorama da civilização e
religião verdadeiramente gregas – aquelas referentes ao mundo homérico. Tal completa
alteridade vem de encontro com a própria experiência religiosa dionisíaca, que
implicava na projeção dos homens para fora do mundo, ao êxtase para fora de si em vez
de proporcionar a sua inserção. Os rituais dionisíacos representam ou dão lugar a crises
contagiosas de caráter um tanto que patológico, levando a um verdadeiro misticismo.
No transe e na possessão há um delírio coletivo em que a fuga para fora do mundo
converge para o alcance da plenitude de si, para as práticas da ascese e para a crença na
imortalidade da alma. É a exaltação da alegria, do prazer, do vinho, do amor, da
vitalidade, de toda exuberância desenfreada, orientada para o riso e para a mascarada,
que não segue em direção a pureza ascética, mas a uma comunhão com a natureza
selvagem.
Em análises antropológicas acerca do culto e das formas de possessão e de transe
dionisíacas, pesquisadores afirmam a existência de muitos aspectos opostos que
distinguiriam o estado de transe em dois aspectos distintos. O primeiro consistiria no
fato do indivíduo ser dono de sua iniciativa, afirmando-se tal como “senhor do jogo”.
Isto é, graças aos poderes particulares que ele soube adquirir através de diversos
procedimentos, ele poderia abandonar o seu corpo, como em estado de catalepsia,
viajando ao “outro mundo” e retornando com toda lembrança de tudo o que vivenciou
no supra-celeste. Na Grécia antiga, esse seria o estatuto dos “magos”. Entretanto, devido
a sua disciplina de vida, aos exercícios espirituais, suas técnicas de ascese e suas

21
reencarnações, essas figuras estariam mais correlacionadas ao deus Apolo do que a
Dionísio. Em contraposição a tal aspecto, a segunda forma de possessão corresponde ao
indivíduo que não possui tal capacidade excepcional de ir até os deuses, são os deuses
que, a seu bel-prazer, descem à terra a fim de possuir um mortal, cavalgá-lo e fazê-lo
dançar. O homem tomado pela mania divina não deixa esse mundo, é nesse mundo que
ele torna-se outro pela força que o habita.
No plano do Fedro, na então abordagem das manias divinas, Platão reconhece
como dito anteriormente, duas espécies de manias, o delírio que pode vir a ser uma
doença da qual é preciso se curar, ou um estado divino que teria um valor plenamente
positivo – uma linha de demarcação análoga que separa as práticas de tipo coribântico
do culto dionisíaco. No primeiro caso, então, trata-se de indivíduos doentes, que ao
entrarem no estado de crise (mania), manifestariam em si uma impureza. Estes seriam
vítimas do castigo imposto por um deus que eles ofenderam, que, por conseguinte, os
puniriam via possessão. A cura de tais homens se daria durante um ritual, onde se
identifica o deus cuja vingança se opera, de modo a se realizar um processo de
purificação apropriada para libertar o homem doente de tal possessão maléfica. No caso
do culto a Dionísio, entretanto, não há um deus a se identificar, pois não há doença e os
indivíduos não se encontram envolvidos em uma patologia singular. Aqueles que
entram no estado de transe dionisíaco fazem disso um comportamento social,
ritualizado, controlado, pois este exige certa aprendizagem que não tem a finalidade de
curar uma doença ou um mal, mas obter através do ritual, da dança e da música, uma
mudança de estado.

III. Musas

A terceira é Loucura de Possessão pelas Musas (filhas da memória –


mnemosine17; e fonte de todas as venturas para homens), quando as Deusas se apoderam
de uma alma virgem e delicada, inflamando-a de êxtases (frenesis) no canto e na

17
Filhas da memória: linhagem das cantoras plenas de harmonias, nascidos de uma das potências que
rodeavam o Deus criador, a virgem memória  , que o vulgar, alterando seu nome, chama
mnemosyne.

22
poesia18. As mulheres rememoram o tempo passado para cultuar as atitudes heróicas e
desvendar a origem do mundo e o nascimento dos Deuses poetas19. A vidência dada
pelas Musas se difere do augúrio – a arte do augúrio é referente à reflexão, ao
pensamento humano (oiêsis) –; que consistia no conjunto de conhecimentos voltados à
racionalidade, que possibilitam o presságio do futuro através de uma experiência
empírica. “A palavra do adivinho (...) se põe dos sonhos que realizam a realidade.”20
Mousa é uma das potências religiosas que ultrapassa o homem, no momento em que
este sente, na sua interioridade, a presença da divindade. As “mulheres abelhas”, como
denominadas no hino homérico à Hermes, são potências oraculares que concernem em
dizer a „verdade‟, quando alimentadas pelo mel dourado; entretanto, se encontram-se
privadas deste, procuram desencaminhar, desviar o homem do bom caminho.
A memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como saber
mântico, pela fórmula: „o que é, o que será, o que foi‟. Através da memória, o poeta tem
acesso direto, mediante a uma visão pessoal, aos acontecimentos que evoca; tem o
privilégio de entrar em contato com o outro mundo. Sua memória permite-lhe “decifrar
o invisível.”21 A memória é uma potência religiosa que confere ao verbo poético seu
estatuto de palavra mágico-religiosa. A palavra cantada pelo poeta, dotado do dom da
vidência, é uma palavra eficaz que constitui, por virtude própria, um mundo simbólico-
religioso que é o próprio real. A função do poeta é celebrar os imortais e celebrar as
façanhas dos homens corajosos (heróis). O poeta é capaz de ver a Alétheia, sendo a sua
verdade incontestável; pois se este está verdadeiramente inspirado, se seu verbo está
fundamentado sobre o dom da vidência, sua palavra tende a e identificar com a
“verdade”.22

Sempre que um poeta esta sentado no tripé das Musas, deixa de estar
na posse de seus sentidos.23

18
A poesia era considerada a linguagem da profecia.
19
Dizia-se, aos poetas, estarem tomados pelas musas; Homero e Hesíduo, pois evocavam em suas obras o
imemoriável, sendo capazes de imortalizá-las.
20
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.35.
21
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.17.
22
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p23.
23
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p23.

23
As musas podem revelar falsidades, que se assemelham as verdades –
confundindo os poetas –, dependendo da vontade para revelá-las, mas não deixando, no
entanto, de influenciá-los.
A “verdade” traduz atos e gestos rituais qualificando um tipo determinado de
palavra, pronunciada sob determinadas condições, por um personagem encarregado de
funções precisas. A palavra não constitui um plano do real distinto dos outros, “é a
atitude corporal que confere sua potência à palavra (...). Quando brota, a voz tira sua
força do comportamento gesticular.”24 A palavra é verdadeiramente concebida como
uma realidade natural, uma parte da physis. O logos humano pode tanto crescer quanto
decrescer; enfraquecer – a palavra está sempre submetida às leis da physis, à
fecundidade e esterilidade dos seres vivos.
As três virgens aladas (Musas) se apresentam tais como feitoras da realidade,
onde a instaura cão do „real‟ não se mostra diferente da formulação da “verdade”. As
palavras realizadoras se opõem as palavras sem realização, condizentes àquelas
desprovidas de eficácia, que constituem, no espaço mágico-religioso, um território
encravado. Primeiramente a palavra mágico-religiosa é eficaz, mas a sua qualidade de
potência religiosa introduz aspectos distintos; esse tipo de palavra não se distingue de
uma ação, visto que não há uma distância entre palavra e ato, tal como a palavra não se
encontra submetida à temporalidade – não há vestígio de uma palavra ou ação
comprometida com o tempo. A palavra mágico-religiosa passa fora da temporalidade,
pois ela abarca um presente absoluto, que tal como a memória engloba “o que foi, o que
é, o que será.”25 Em nenhum momento a palavra do poeta busca a concordância dos
ouvintes, ela não visa estabelecer no tempo qualquer encadeamento de palavras que
necessitem de aprovação. Na medida em que ela transcende o tempo dos homens, ela
transcende também os homens – trata-se de uma ação natural cujo efeito não é um
objeto exterior e estranho ao ato que o produziu, mas esta mesma ação em sua
realização.
As musas, tais como deusas da memória inalterável, por não serem anteriores ao
tempo, jamais são tomadas pelo esquecimento. A sua função é reivindicar o privilégio
de dizer a verdade (). Quando dizem a „verdade‟ anunciam
concomitantemente os esquecimentos das desgraças, a tréguas às preocupações.
Provocam um prazer que faz o mortal fugir do tempo cotidiano, das misérias e das

24
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.33.
25
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.36.

24
balbúrdias. O cantor, servente das musas, ao celebrarem os grandes feitos dos homens
heróis ou deuses, esquece de seus desgostos e pesares – a dualidade da poesia vem do
fato dela celebrar tanto os feitos humanos (heróis), quanto à história dos deuses.
Durante o esquecimento-sono, a palavra cantada apaziguadora de preocupações estará
tomada pelo prazer das alegrias, do amor e do sono suave.

Não há dois pólos distintos quando se trata de Alétheia e Léthe, há uma zona
intermediária na qual, reciprocamente, uma se desloca progressivamente à outra; visto
que o prazer estaria exatamente no esquecimento trazido pelas deusas da memória. Ao
beber a água de Léthe, ao mesmo tempo em que o poeta se perde daquilo que é, ele
mantém o privilégio de lembrar-se daquilo que viu e ouviu – já que também se trata da
água de Mnemosyne – e, por conseguinte, adquire a faculdade de ver e ouvir num
mundo onde o ordinário mortal não mais vê ou ouve.
As Musas possuem três nomenclaturas distintas, referentes a cada mulher, sendo
cada nome revelador de um aspecto essencial da função poética. A primeira é Meléte,
aquela que designa a disciplina necessária ao aprendizado do ofício de aedos; “é a
atenção; concentração; o exercício mental.”26 Em seguida Mnéme, referente a função
psicológica que permite a recitação e a improvisação; e, por fim, Aoide, correspondente
`a finalização, o produto, o canto épico, o poema acabado; termo último de Meléte e
Mnéme. Em contrapartida, Cícero atesta, tardiamente, a existência de quatro
nomenclaturas que designariam duas novas funções: Arché, que implicaria no princípio,
o original – tendo em vista que a palavra buscada pelo poeta o original, a realidade
primordial –, Meléte, Aoide e Thelxinoé, que por sua vez se refere à sedução do
espírito; “o encantamento que a palavra exerce sobre o outro.”27
A palavra cantada é indissociável à memória, visto que na Grécia Antiga (sec.
XII ao sec.IX a.C.) a cultura não era calcada e/ou fundamentada sobre a escrita, e sim
sobre a oralidade (tradições orais). Logo, uma civilização que se mostra essencialmente
oral, exige um desenvolvimento da memória, de uma execução muito precisa de
técnicas de memória (mnemotécnica). A memória de um homem é, com exatidão, “o
eterno monumento das Musas”28 encarnado no elogio. Ela não só tem o valor do dom
da vidência que permite a emissão da palavra eficaz; que permite a formulação da

26
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.16.
27
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.16.
28
MARCEL DETIENNE, Os Mestres da verdade na Grécia Arcaica, p.21.

25
palavra cantada, como também é uma palavra que se identifica com o Ser do homem
cantado.

IV. Eros

Pois o que deve guiar os homens por toda sua vida, ao menos os que
pretendem viver belamente, isso nem o parentesco, nem as honrarias,
nem a riqueza, nem nenhuma outra coisa, é capaz de suscitar assim tão
belamente, quanto o Eros. 29

A quarta é a Loucura da EROS (


 ς), aquela que se apodera dos apaixonados;
que arrebatados pela beleza30, acredita caminhar à „verdade eterna (capacidade da alma
de recuperar os conhecimentos revelados antes do nascimento) – a teoria da alma parte
do princípio de que ela se movimenta por si mesma (irracional e desencarnada dos
apetites carnais), pois o que impulsiona é o desejo  ; a Eros, que não consiste
numa força mecânica; sendo o amor uma forma empírica de pensamento que leva o
homem a filosofar31 e proferir discursos (logos), rompendo com as medidas puramente
físicas. O Eros é considerado um deus que se apodera dos homens, provocando neles a
visão e a rememoração  não só da beleza, o mais alto objeto do mundo
inteligível, mas de todos os objetos inteligíveis vistos anteriormente pela alma. É
considerado como tendo nascido na mesma época que a terra, gerado a partir do caos
primitivo. Nasceu do ovo primordial gerado pela noite, um ovo que se dividiu em duas
partes, que deram origem ao céu e a Terra. É uma força fundamental do mundo que
assegura a continuidade das espécies e também a coesão interna do cosmos.
A loucura erótica é uma psychagagé, uma condução da alma, em direção ao que
já é de antemão estabelecido pelo intelecto humano como sendo bom, o melhor, ao que
definitivamente não pertence ao mundo daqui, estando à realidade no supra-celeste.

29
PLATÃO, Banquete, 178 c.
30
A beleza, parte do divino e causa perturbações no amor. Poucos são os homens capazes de diferir a
visão real e pura, daquilo que é contemplado.
31
A filosofia era interpretada socraticamente, como a procura da sabedoria, capaz de explicar a si mesma
quando examinada criticamente.

26
Eros é um deus, que por ser cósmico, empresta aos homens os olhos de deus,
tornando-os temporariamente divinos, pois desviaria o curso mesmo do cosmos; sendo
concebido como exigindo do amante a entregar-se ao transe erótico; apesar de não ser
responsável pela finalidade restrita de encarnar o desejo puramente sexual (a
superioridade do espírito sobre a carne, incide no controle do desejo sexual, e não na
sua extinção) – o amante vê o outro como a divindade vê, pois Eros provoca uma
dissolução total do seu Eu e do Outro, permitindo que o Outro não seja mais um limite,
nem físico nem espiritual para sua passagem; sendo o amor o “lugar” onde justamente
não há nem Outro nem Eu. Há uma contínua satisfação erótica do amor corporal
narcisista para o amor corporal a outros, para o amor das belas ocupações e para o amor
dos belos conhecimentos. A procriação espiritual é tanto quanto a procriação corporal, a
obra de Eros; e a legítima e verdadeira ordem da polis é tão erótica como a legítima e
verdadeira ordem do amor. A sexualidade não é desviada nem impedida de atingir seu
objetivo; pelo contrário, transcende em favor de outros, buscando uma gratificação mais
plena.

O Eu-amante experimenta o sopro ininterrupto do deus nas múltiplas


formas manifestadas da physis em que indiferenciadamente se
ocultam e se desocultam as múltiplas formas do Eu-amante e do
Outro-amado.32

O delírio do amor, então, nasce da rememoração da beleza refletida no amado,


provocando uma série de sensações físicas no amante: estremecimento, emanação de
um calor incomum, revigorando e fazendo crescer as asas „empedernidas‟ da alma – o
desejo do amante é tão pleno que transborda para o amado. A pureza do comportamento
erótico que incidia no relacionamento entre amado e amante consiste não na exclusão
do contato sexual – a realização do verdadeiro amor, consiste na conexão dos amantes
com o verdadeiro objeto do amor, a beleza ela mesma, não descarta o desejo sensual, já
que depende do sucesso seguinte para sua realização –, mas em aspectos espirituais que
eram raros nas relações entre homens e mulheres. Sendo o amor entre pessoas do

32
IRLEY FRANCO, O Sopro do Amor: Um comentário sobre o discurso de Fedro no Banquete, p.97-98.

27
mesmo sexo uma produção de ordem e beleza em seus comportamentos, e não um
desvio da verdadeira sexualidade.

O amor, dentre a erótica grega, não era diferenciado por sexo – não havia uma
demarcação de quem se deveria amar –; não havia um domínio de prazeres entre
homens e mulheres33. Pode-se dizer que os gregos eram bissexuais; ou seja, sem
diferenciação de desejos. Tais como os homens e as mulheres, podiam desejar-se com
uma mesma intensidade; com um mesmo apetite. Os „homens‟ eram desejados e
considerados belos, independentemente do seu sexo. Visava-se o ato do desejo em si, a
pura realização dos prazeres sem discriminação; porém, o amor que envolvia
inteligência, nobreza racionalidade e tradicionalidade, era impreterivelmente ligado ao
sexo masculino.
Nos Banquetes, os homens são instigados a aflorarem seus prazeres e desejos
para que ao sair dali, pudessem desfrutá-los com suas mulheres ou rapazes. Tais
prazeres eram desfrutados com um único homem, ou uma única mulher sem
diferenciações de desejos – buscava-se o outro como „um‟, não haviam apetites
distintos. A relação sexual entre homens era defendida legalmente e pela opinião social
– envolvendo ritos e festas propícias para a sua realização (afloravam as potências
divinas). Os únicos que eram julgados pelos demais, eram aqueles demasiado
interessados e fáceis, sendo denominados efeminados – eram considerados devassos, tal
como Alcebíades é explicitado no Banquete de Platão.
Em Atenas, o ato sexual entre homens era louvável, atribuía-lhe alto valor de
honra. A experiência com outros homens era invariável, progredindo por gerações. O
mesmo desejo que era atribuído às demais coisas (de diferentes demandas) – acreditava-
se que o prazer poderia ser atribuído a tudo que pudesse se desejado –; sendo o apetite
guardado para aquele que se demonstrava mais Belo e Honrado, tendo uma conduta
particular quando direcionado as pessoas de mesmo sexo (homens) – havia uma
estilística própria quando o desejo se referia ao amor relacionado a uma mulher.

O Eros, então, toma forma do desejo pelo Belo; a beleza contemplada além da
visão clara e real; o amor pelo conhecimento e pela sabedoria, que incide para além do
tempo presente e da experiência terrena, dividindo-se em duas formas de mistério: os

33
Não é adequado utilizar o termo homossexualidade para se referir a relação entre homens na Grécia
antiga.

28
Mistérios Menores – que envolvem a não sobrevivência do indivíduo – e os Mistérios
Maiores – que consistem no „adestramento‟ da alma e do corpo, de forma simultânea;
na imortalidade das idéias, onde a música torna-se instrumento de demonstração da
paixão pela beleza contemplada em si mesma; o desejo revertido da bondade, sob
aparência do Belo34, em que o amor deve se desprender do objeto e da individualidade.
È a tradução de um modo de experiência que traz consigo duas naturezas do
homem: a do “eu” divino e a do animal aprisionado. Pois está enraizado naquilo que o
homem compartilha com os outros animais: o impulso sexual. Todavia, também fornece
o impulso dinâmico que encaminha a alma na busca de uma satisfação que transcenda a
experiência terrena.
Um dos passos da alma para saída da doxa, para chegar à episteme, é a realização
do caminho do Belo, pois as idéias são fundamentos das coisas e, estas são norteadas
por este (ascendendo através dele) – o Belo é um aspecto do Bem (“kalo gathéa”). A
natureza e origem da alma imortal e fundamentada no amor ao mito, tendo ela
contemplado as planícies divinas da alétheia graças a Eros se ligou da doxa à
episteme35.

34
O belo no sentido moral e intelectual; quando a alma une-se à beleza, tornando-se imortal e divina;
como um prazer que incide em si e para si; como aquilo que é prazeroso.
35
Há uma espécie de integração, significativa no tema da imortalidade da alma, onde esta passa a ser
atingida apenas ao nível do mito e unicamente à custa de um tratamento da alma irracional, como
preservando após a morte e retendo seus apetites carnais em um estado desencarnado.

29
Capítulo II: Da Erótica

Na História da Sexualidade II, O Uso dos Prazeres, Focault pretende constituir


uma história da “sexualidade”, inicialmente se detendo a noção cotidiana e recente do
termo; sua evidência familiar, contexto teórico e prático. Almeja fazer uma análise da
relação do termo com o desenvolvimento de diversos campos do conhecimento,
estabelecidos por um conjunto de regras e normas e, com as mudanças subjetivas
relacionadas à conduta, deveres, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos – onde os
indivíduos se reconhecem tal como sujeitos de uma “sexualidade” enquanto uma
experiência histórica singular. Para tanto, se faz necessário à análise dos três eixos que
a constitui: “a formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que
regulam a sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se
reconhecer com sujeito dessa “sexualidade.”
Para descrição de tal reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito sexual
(desejante e do desejo) torna-se importante à realização de uma genealogia através da
análise histórica e crítica; no sentido de realizar as práticas pelas quais os indivíduos
foram levados a prestar atenção em si mesmos; a se reconhecer enquanto sujeito do
desejo – realização de uma hermenêutica do desejo (uma hermenêutica de si) para se
compreender a forma com que o indivíduo moderno poderia “fazer a experiência dele
mesmo enquanto sujeito de uma sexualidade.”36 Logo, é necessário a análise dos “jogos
de verdade”; aqueles através dos quais o homem se constitui historicamente enquanto
experiência, para que se descubra por através de quais jogos que o indivíduo se
reconhece tal como homem de desejo. Constata-se, então, que é através dos jogos
consigo mesmo que tal reconhecimento se dá; pois este se mostra como um exercício de
si.

No retorno da época moderna até a Antiguidade, o estudo histórico do


comportamento sexual levanta uma questão do por que este seria o objeto de uma
preocupação moral, e do por quê tal cuidado ético de si se mostra mais importante do
que a atenção moral a outros campos. Segundo Focault a resposta seria imediata, porém
daria como solução o que seria a própria questão: “é que eles são objeto de interdições

36
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.11.

30
fundamentais cuja transgressão é considerada falta grave.”37 Devido a essa resposta,
tornou-se relevante à realização da diferenciação entre a interdição ética e a
problematização moral – a causa da atividade sexual ser constituída no campo da moral
e, paralelo a ela, a problematização ética do cuidado de si (análise do homem do desejo
entre uma arqueologia das problematizações e uma genealogia das práticas de si).

Na análise dessa diferenciação, torna-se fundamental o estudo histórico das


“artes da existência”; das “técnicas de si” (estética da existência e tecnologias de si,
respectivamente) – estudo de como se dão as problematizações em que o ser se dá e as
práticas através das quais elas se formam. Ou seja, de que maneira, na Antiguidade, o
comportamento sexual foi problematizado através das práticas de si; “pondo em jogo os
critérios de uma estética da existência.”38
Focault realiza a diferenciação da “moral sexual”; do valor do próprio ato
sexual; que no cristianismo é associado ao mal (pecado) e na Antiguidade seria dotado
de significações positivas. No cristianismo o ato sexual se delimitava a um parceiro
legítimo (monogamia), tinha uma finalidade exclusivamente procriadora (valorização da
virgindade de ambos os sexos, antes do casamento) e havia uma desqualificação das
relações entre indivíduos do mesmo sexo – item exaltado na Grécia antiga. Nos textos
do século XIX, os homossexuais eram descritos como efeminados (expressões e
morfologia femininas do corpo), sendo considerados por essa descrição desqualificadora
como uma ofensa à natureza – uma “mentira sexual.”39 Nota-se aí, a dificuldade social
em se integralizar a inversão dos papéis sexuais e a relação entre indivíduos do mesmo
sexo.

Na Grécia antiga, apesar do amor entre dois homens ser “livre”, não se aceitava
o efeminamento dos rapazes, que por sua vez eram tomados como aqueles que
almejavam somente a satisfação dos seus desejos sensuais, não podendo, portanto, ser
um verdadeiro objeto de amor. Enquanto que no cristianismo a idéia da renúncia sexual
para decorrente experiência da verdade e do amor era louvável, na Antiguidade havia o
“domínio de si”, “uma forma de sabedoria” que colocava os homens “em contato com
algum elemento superior à natureza humana.”40 – relação entre a abstinência sexual e o
acesso à verdade.

37
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.14.
38
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.16.
39
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.21.
40
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.22.

31
Não se pode concluir, entretanto, que a moral cristã do sexo tinha a sua pré-
formação no pensamento antigo, já que na reflexão moral da Antiguidade é formada
uma temática da “austeridade sexual, em torno e a propósito da vida e do corpo, da
instituição do casamento, das relações entre homens e da existência da sabedoria.”41
Na Antiguidade a reflexão moral acerca do comportamento sexual não é endereçado às
mulheres, trata-se de uma moral de homens evidentemente livres – onde as mulheres só
aparecem a título de objetos, subordinada aos homens. Encontra-se aí, um dos pontos
mais relevantes da reflexão moral; ela não é direcionada “para os dois sexos, ela é uma
elaboração de conduta masculina feita do ponto de vista dos homens e para formar a
sua conduta”42 – direitos, poder, autoridade e liberdade. Esses temas relacionados a
austeridade sexual são como uma estética do exercício do poder na pratica da liberdade
do sexo masculino.

Ao término desse tópico, Focault levanta a questão da philia, que quando ao


término da fase viril dos jovens, o vínculo amoroso entre rapazes encontra-se destinado
a desaparecer e a se converter, devido a uma necessidade moral e de utilidade social; ou
seja, quando legítimo, aquele amor era convertido a uma relação de amizade; aos laços
de philia que transcendem a durabilidade da relação calcada à vontade pelo desejo,
apagando as dessimetrias da relação erótica entre homem e adolescentes.

Por que a definição de um estilo austero na prática dos prazeres? Primeiro é


impreterível entender o termo “moral”, que condiz com o “comportamento real dos
indivíduos em relação às regras e valores que lhe são propostos”43 – moralidade dos
comportamentos. Mais que isso, a moral seria o ato de conduzir-se; “a maneira pela
qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos
elementos prescritivos que constituem o código”44 da ação – onde o indivíduo atua
como sujeito moral da ação e não só como agente da mesma.

A austeridade da conduta moral, deste modo, concerniria na determinação da


substância ética; na forma com que o sujeito se constitui como matéria principal da sua
conduta moral. Há também uma diferenciação que diz respeito à elaboração do trabalho

41
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.23.
42
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.24.
43
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.26.
44
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.27.

32
ético que se efetua sobre si mesmo, tendo em vista a transformação de si em sujeito
moral de sua própria conduta – “uma ação moral tende a sua própria realização.”45

Uma ação só pode ser dita moral, se tiver relação a si; se calcada na constituição
de si enquanto “sujeito moral” com modos de subjetivação, uma ascética e
principalmente com as práticas de si. Visto isso, para fazer uma história da moral é
necessário realizar uma história das moralidades, dos códigos e do sujeito de conduta
moral – instauração e desenvolvimento das relações consigo, para reflexão sobre si. As
práticas de si, então, são elaboradas através dos “exercícios pelos quais o próprio
sujeito se dá como objeto a conhecer”46, das formas de relação consigo e as práticas que
possibilitam a transformação do próprio ser .

Focault termina a introdução, falando de suas pretensões de marcar em traços


gerais a maneira pela qual o comportamento sexual foi refletido pelo pensamento grego
clássico, como campo de apreciação e escolhas morais; utilizando-se do “uso dos
prazeres” para distinguir todos os modos de subjetivação referentes às relações entre
rapazes decorrentes das práticas de si.

V. A Sexualidade (questões morais).

(...) o mesmo prazer e o mesmo desejo levam o erasta e o erômeno um


para o outro; se ele é, por natureza, uma metade de macho, o rapaz
amará os homens: terá prazer em dormir com os machos e a ficar
entrelaçados com eles (sumpeplegmenoi).47

Não é prudente a utilização dos termos “tolerância” e “homossexualidade”,


quando tratamos da relação entre rapazes na Grécia Antiga; pois trata-se de uma
experiência mais do que de uma noção definitiva de sexualidade, tendo em vista da na
diferenciação do amor para com uma pessoa do próprio sexo e do amor para com uma

45
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.28.
46
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.30.
47
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.204 – referente a passagem 191 e, do
Banquete.

33
pessoa do sexo oposto – não havia tal fronteira. As práticas do prazer eram consideradas
moralmente, o homem que não se entregava aos seus prazeres (senhor de si) que era
criticado diante da sociedade – era o homem tirano, que se utilizava do domínio de si
para refrear seus prazeres. Tal como aqueles que se impediam da realização dos
prazeres, os homens que eram demasiadamente efeminados e devassos, também eram
mal vistos – como, por exemplo, Alcebíades não era reprovado por suas relações, mas
por ter desviado os maridos de suas esposas em sua juventude; causando danos a ambos.
Pode-se dizer que os gregos eram “bissexuais”, se considerarmos que na
juventude os rapazes se relacionavam (inclinações naturais) e, na fase adulta (de
preferência) voltavam-se para as mulheres48 a fim de construir as relações de philia. A
livre escolha entre ambos os sexos significava uma mesma intensidade de desejo, já que
ele era relacionado à beleza do outro desejado; o amor por aquele que era
verdadeiramente belo, independente do seu sexo – apesar do amor mais antigo, nobre e
racional, que se liga a aquisição de maior vigor e inteligência, é aquele direcionado aos
rapazes.
Nos banquetes, os homens ascendiam os seus apetites (independente de suas
respectivas idades) para depois irem gozar com o verdadeiro ser de seu amor – uns
juntos às mulheres e outros junto aos rapazes49. Os homens podiam distinguir o prazer
ao qual eram mais ligados, o que era levado em consideração era a legitimidade de seus
apetites; o verdadeiro desejo; a verdadeira inclinação – o domínio de si, dentre a
legitimação do desejo marcava os traços de caráter.
O amor pelos rapazes era “uma prática culturalmente valorizada por uma
literatura que a cantava, e por uma reflexão que fundamentava sua excelência.”50-
apesar de excluir aqueles demasiadamente efeminados e devassos (nem todas as práticas
sexuais são boas e honradas).

48
São duas formas de desejos; duas pulsões.
49
Ir gozar com homens ou mulheres, eram duas formas de se obter prazer, e não prazeres distintos, sendo
regidos pela conveniência individual em certos momentos da existência. O homem não precisava de uma
natureza diferente para se relacionar com o mesmo sexo, mas estimava-se uma conduta moral distinta
daquela que se referia a uma mulher.
50
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.170.

34
II. A Erótica enquanto formação.

A relação entre homens era „privilegiada‟ (núcleo de problematização), por


englobar uma diferença etária e de status entre parceiros – é uma relação que pode ou
não ser entre dois jovens ou dois adultos (amadurecidos filosoficamente), desde que
englobe duas classes de idades, dos quais um dos parceiros não tenha terminado de todo
a sua formação (ainda não tenha um status definido). Não podemos deixar de considerar
que o jovem era m objeto erótico de alto valor; tendo em vista que as relações entre eles
não eram condenadas moralmente, “eram consideradas totalmente naturais e até
mesmo parte de sua condição”51. A relação entre dois homens amadurecidos é que era
alvo de críticas, devido à relação de atividade e passividade entre ambos; já que a
passividade era característica do mais jovem.
Todavia, a relação que convém a nós analisar, é aquela que envolve um homem
mais velho (que desenvolve um papel moral, social e sexual mais ativo) e um jovem
(que ainda não atingiu o seu status).
O amor grego entre rapazes está ligado à prática da educação e ao ensino
filosófico – justificando, então, os motivos da diferenciação de idades –; fazia parte da
formação dos mais novos, davam-lhe forma, interesses e valores dentre as regras
impostas nesse processo que era uma espécie de ritualização do objeto de experiência. A
união dependia de “condutas oportunas e convenientes”52, que faziam “dessas relações,
um domínio cultural e moralmente sobrecarregado”53; para que as relações obtivessem
uma forma bela, de valores estéticos e morais válidos – convenções e regras de
comportamento responsáveis pela durabilidade das relações, e pela integração das
mesmas em atividades e „relações anexa‟.
Pontuemos, então, as obrigatoriedades contidas no vínculo entra rapazes,
considerando que falar apenas que tal amor era livre não se mostra suficiente, pois deixa
escapar o essencial da relação por abdicar das diferenças que englobam tal
comportamento sexual e seus propósitos.

51
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.173.
52
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.175.
53
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.173.

35
Erasta (amante):
 Tem a posição da iniciativa.
 Tem de mostrar o seu „ardor‟ e moderá-lo.
 Presta serviços ao amado, esperando uma justa recompensa.

Erômeno (amado):
 É o amado cortejado.
 Não deve ceder com facilidade.
 Deve evitar conceder favores (às cegas) por interesse – sem por a prova o valor
de seu parceiro.
 Deve demonstrar reconhecimento ao seu amante.

III. Eros: O matrimônio e a relação entre rapazes.

Por mais que a erótica grega seja explicitada, em grande parte no que se refere
ao amor entre os homens, existem diferenças e pequenas equivalências na relação destes
com as mulheres (matrimônio). Estas se demonstram profícuas para serem explicitadas,
tendo em vista que o Eros, como dito anteriormente, não tem divergência de influências
quando se trata de sexos iguais ou distintos, regendo ambos os relacionamentos de uma
mesma forma, já que se trata do amor pelas coisas belas em si.

Pode-se dizer que na relação heterossexual, havia um interstício


significativamente menor (no caso da mulher), tanto ao espaço quanto ao próprio sujeito
atuante e constituinte da sociedade grega. Enquanto que na relação entre homens e
mulheres há uma divisão espacial, estabelecida pela vida matrimonial; ou seja, ao passo
que há uma estrutura espacial dúbia, onde os conjugues eram minuciosamente
distinguidos, na relação em que se envolvem dois rapazes há um “jogo aberto”, no que
se refere à existência de um espaço comum entre os mesmos – espaço com uma
liberdade limitada e vigiada, no entanto com um deslocamento livre. Tal abertura
também se dá, a partir do momento em que se constatava que o homem, na sua posição

36
social como tal, não podia ser submetido a qualquer “poder estatuário”54; logo, os
enamorados não podiam infringir o livre arbítrio do outro amado como ocorria às
mulheres – o mais doce do prazer entre rapazes, era o conceder voluntário do outro; a
sua vontade; o encantar-se. A relação entre homem e mulher se equivale ao status que o
primeiro adquire, tanto no ato de governá-la, quanto no de governar o seu patrimônio e
o todo ao se entorno; a relação conjugal não deveria se estranha nem a Eros nem a
Afrodite, pois a presença dos prazeres físicos no casamento era acompanhado do
princípio de não dever tratar a esposa tal como amante. A relação entre o ato sexual e o
casamento vinha de encontro à funcionalidade da geração de sucessores, não havendo
razão para que os homens reservassem seus prazeres sexuais somente para a própria
mulher – o casamento, segundo Platão, era tomado tal como uma forma de fornecer à
cidade os filhos como forma de substituição e conservação da força do homem. A
obrigação de manter o uso dos prazeres no casamento era uma maneira de exercer o
domínio sobre si mesmo, domínio este “obrigatório” para autoridade que o sujeito
deveria exercer na cidade. A ética conjugal, por conseguinte, não estava fundada na
virtude de reservar os prazeres sexuais unicamente para o casamento, e sim pelo saber
dominar-se a si próprio esperando o momento de provar o prazer do sexo.

Na ocorrência de uma relação de um homem maduro com outro mais jovem, a


ética dos prazeres implicaria, por sua vez, na aceitação da liberdade, do consentimento e
da recusa do outro amado.

Que Prazer, por exemplo, trocar olhares com um amigo que vos
corresponde! Que encanto em suas perguntas! Que encanto em suas
respostas! Até mesmo as querelas e as desavenças são plenas de
canduras e atrativos. Mas gozar de um rapaz apesar dele próprio é
mais pirataria do que amor.55

Outra problemática a ser discutida, é o limite de idade em que os jovens são


ainda considerados como parceiros legítimos na relação de amor. Na Grécia antiga o
que demarcava tal questão de tempo era o nascimento dos pelos faciais, que rompiam o

54
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p176.
55
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p176.

37
fio dos amores. Após essa primeira fase de amadurecimento, tanto o homem (já
amadurecido) que mantinha laços amorosos quanto os rapazes que insistiam em
continuar a desempenhar o papel passivo no relacionamento após a sua fase viril
(adolescência); eram criticados moral e socialmente por guardarem por muito tempo os
seus amados, impedindo-os a emersão das relações de philia – há uma analogia direta
entre as posições sociais e a forma de relações sexuais, referidas as posições de
dominante e dominado, passividade e atividade e a penetração exercida e recebida. Não
convinha para o jovem viril, que se entregasse a passividade e se deixasse dominar, sem
resistência, as complacências do seu parceiro. A honra de um rapaz está relacionada
exatamente em sua temperança (sophrosune); que corresponde ao maior valor moral de
um jovem, por implicar numa discriminação dos contatos físicos; aquilo que não o faz
ceder ou se submeter aos seus apaixonados. “No que diz respeito à passividade da
mulher, ela marca muito bem uma inferioridade de natureza e de condição; mas ela
não deve ser reprovada como conduta, posto que é, precisamente, conforme ao que a
natureza quis e ao que o status impõe.”56

Por sua juventude e por ainda não ter alcançado o seu status viril, o jovem tinha
tal papel “inferior” na relação sexual, posição passiva; o que fazia dele objeto de prazer.
Entretanto, ele não pode sentir prazer só em vista da volúpia de seu amado; o rapaz
deve sentir prazer só através da admiração, reconhecimento e afeição do seu amor. Há
uma rendição, onde o jovem cede às instâncias do amado para que dele receba a
aprendizagem do ofício de homem e uma amizade longínqua – o amor pelos rapazes
tinha de comportar determinados elementos que fundamentavam um vínculo definitivo;
o vínculo de philia.

Encaixamos um discurso (...), uma espécie de hino mítico, equilibrado


e piedoso, em louvor de Eros, nosso comum senhor protetor dos belos
adolescentes.57

56
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p191.
57
PLATÃO, Fedro, 265 c.

38
A valorização cultural dada ao tempo da adolescência vem de encontro à beleza
particular dos jovens, seguida das marcas da sua evolução. Na moral sexual, o corpo
juvenil tem um encanto próprio, estimado como o melhor objeto de prazer. Não era a
beleza feminina da jovialidade dos corpos a causa da sua valoração, e sim o vigor e
ardor juvenil. A virilidade dos rapazes espelhava o seu valor pessoal – o valor do sujeito
social que iriam se tornar – e do valor do amor que eles tinham, refletidos na marca
física que simbolizava a legitimidade da capacidade de suscitar o desejo.

O comportamento dos jovens aparece enquanto domínio sensível na divisão


daquilo que é vergonhoso ao que se mostra conveniente; sobre o amor que lhe é
devotado à conduta que por ele deve ser mantida. A idade que constitui a faz de
transição para a fase madura, é tal como uma fase de prova do seu valor, tendo em vista
que este se encontra num período altamente desejável, e que sua honra ainda encontra-
se fragilizada. “A conduta moral do jovem deve sua importância e a atenção que todos
devem lhe reservar ao fato de que ela é, aos olhos de todo mundo, prova
qualificadora.”58

Ao término da fase viril dos jovens, o vínculo amoroso estava destinado a


desaparecer e a se converter, devido a uma necessidade moral e de utilidade social; ou
seja, quando legítimo, aquele amor era convertido a uma relação de amizade; aos laços
de philia que transcendem a durabilidade da relação calcada à vontade pelo desejo,
apagando as dessimetrias da relação erótica entre homem e adolescentes. Amado e
amante, nesse momento, passam a relacionar-se pela semelhança de caráter e forma de
vida, compartilhando pensamentos e a existência numa benevolência mútua – é no ardor
do amor que os laços de philia59 começam a desvelar-se.

Em contrapartida, seguindo tais reflexões sobre o amor, o Eros não se encontra


limitado às relações de mesmo sexo (homens). Ele igualmente pode caracterizar as
relações com uma mulher; já que o Eros pode unir os „homens‟ independentemente do
sexo, pois como dito anteriormente, o prazer está vinculado e diretamente relacionado
ao desejo pelo Belo; pelas coisas belas e pelos belos conhecimentos. O que distingue o
casamento da relação com rapazes, não é à força do amor ou a sua reciprocidade, mas a
moral matrimonial e a ética social do homem casado – já que estas na exigem,
necessariamente, uma relação do tipo do Eros (o que não implica na sua inexistência).

58
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p.183.
59
Uma amizade igualitária, recíproca e duradoura.

39
O que fundamenta, ou deveria fundamentar, o homem maduro na Grécia antiga, é a
manutenção da descendência que acaba por definir tanto as regras matrimoniais, quanto
as que definem o rompimento do amor juvenil. No entanto, quando se trata da
imposição de tais regras sociais, logo se explicita a divergência da maneira de se portar
de um homem, da fase da virilidade para a fase da maturidade. Na relação entre um
homem e um rapaz, as regras de conduta são estipuladas dentro da relação, “na
natureza do movimento que os leva de um para o outro, e da afeição que os liga
reciprocamente”60.

Conclui-se, então, com a importância de ressaltarmos a posição de


independência mútua dos enamorados, visto que a erótica implica exatamente no
domínio de si (tanto do amante quanto do amado) – capacidade de instaurar um
domínio de si mesmo. A mutualidade estabelecida entre amante e amado, acaba por
constituir uma erótica do objeto amado, ou no mínimo do objeto amado enquanto
processo de formação de um sujeito de conduta moral.

IV. Tópicos finais sobre o verdadeiro ser do amor.

No relacionamento entre homem maduro e homem viril; jovem em fase de


formação cabia ao primeiro (amante) realizar o cortejo para o seu amado, utilizando-se
do domínio de si – mesmo se o desejo que o assolasse o arrebatasse apesar dele. Quando
o Eros o toma, dirigindo-o diretamente para verdade, que o amante se torna mais
desenvolvido no percurso do amor e, por conseguinte, melhor qualificado para guiar o
seu enamorado, ajudando-o a não cair nos prazeres baixos daquele desejo sem métrica,
sem ponderação. O amante, então, acaba por tomar forma de um „mestre da verdade‟, na
medida em que ensina o outro a triunfar sobre seus próprios desejos – sobre si mesmo –
passando ao seu amado a arte das práticas de si e, conseqüentemente, ocupando o lugar
(que se torna mútuo) de enamorado; de objeto de amor do seu amado. É a sabedoria do

60
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p179.

40
„mestre‟ que marca o verdadeiro ser do seu amor, pois é ele que “sabe verdadeiramente
amar o verdadeiro que convém amar.”61
O domínio-de-si corresponde ao amor submetido à ordem e à medida – em que o
amante procura libertar o amado filosoficamente, para que ambos se dirijam ao amor à
sabedoria, que os alimentará –, que incide numa perfeita reciprocidade; onde o amado
torna-se amante (sujeito do amor).
Aquele que mais sabe dominar os seus desejos sensuais imediatos é o mais alto
objeto do amor; a quem os jovens podem se dirigir, pois ele o conduzirá o seu amor até
a verdade. O amor sem o domínio-de-si é o amor das almas desmesuradas, entregues à
avassaladora paixão. A reciprocidade da relação entre amado e amante, infere na visão
da imagem da verdade e da beleza, sendo ela mesma a idéia que resplandece entre todas
as idéias. Ele vê no que realmente ama o verdadeiro ser do seu amor.
A ascese erótica é aquela que se dá da beleza de um corpo para à beleza dos
corpos, da beleza dos corpos à beleza da alma, das ocupações e das leis, das ciências, a
essas alturas de onde se descobre um oceano de beleza, onde o pensamento sobe e se
fortifica, se alarga a uma filosofia que não é estreita, para descobrir, enfim, e conquistar
o cimo supremo, a ciência única cujo objeto é a beleza em si, incorporal eterna,
absoluta, única, de quem todas as belezas participam na sua oscilação entre o nascer e o
perecer, sem que o seu incessante devir altere em nada sua imutável e impassível
existência.

61
Michel Focault, História de Sexualidade II: O uso dos Prazeres, p211

41
Capítulo 3: Da Alma

I. Introdução a Teoria das Idéias.

Aquele lugar é ocupado pelo ser que é realmente, incolor, sem figura e
invisível, que pode ser contemplado somente pelo piloto da alma, isto é,
a inteligência, e com o qual se ocupa o gênero do conhecimento
verdadeiro.62

Ao analisarmos os termos gregos, tanto quanto ς, veremos que ambos


derivariam do termo que significa “ver”, a forma visível das coisas, a forma
exterior e a figura que se capta pelo olhar; ou seja, aquilo que é visto. Entretanto, para
Platão, idéia seria “algo que constitui o objeto específico do pensamento, para o qual o
pensamento está voltado de maneira pura, àquilo sem qual o pensamento não seria
pensamento.”63 A idéia platônica é absolutamente o ser verdadeiro, abarca aquilo que é
dito tal como a “forma” interior, a natureza específica ou essência de algo. É a estrutura
metafísica ou essência das coisas de natureza inteligível, a realidade íntima das coisas, a
mais alta forma metafísica do Ser.

Na compreensão da teoria das Idéias platônicas, se faz importante explicitar que


a tradição, a cultura grega antiga, era calcada quase que totalmente na visão; ou como
dirá a filosofia moderna, no vício da ocularidade. Logo, não é de se admirar que a teoria
das Idéias platônicas constituísse a expressão mais significativa da mais alta
peculiaridade grega – traços espirituais supremos da cultura da época.
As Idéias são “o originário qualitativo imaterial”64, são realidades de caráter
metafísico e não físico. Ou seja, aquilo que é captado com os olhos do corpo são formas
físicas e, o que é captado com os “olhos da alma” são formas inteligíveis; essências
puras – as essências eternas do bem, do verdadeiro, do belo, do justo; é o que o homem
consegue ver ou fixar quando na pura dimensão do inteligível. O „ver‟ intelectivo
implica na Idéia.
62
PLATÃO, Fedro 247 c – e.
63
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.61.
64
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.63.

42
As Idéias são fundamentadas segundo seis características básicas, que podem ser
encontradas ao longo dos escritos platônicos. A primeira é a inteligibilidade, tendo em
vista que a Idéia é o objeto do inteligível, só podendo ser captada através deste – tal
característica é fundada sobre os raciocínios, numa realidade que capta somente com o
raciocínio, sendo esta a realidade das Idéias platônicas; a sua inteligibilidade se
contrapõe ao sensível estando acima dele, fazendo com que estas só possam ser
captadas pela “inteligência”. Logo em seguida, vem a incorporeidade, que coincide com
a primeira em larga medida. A idéia tem uma dimensão incondizente e/ou contrária à
experiência do mundo sensível; enquanto as realidades sensíveis são corpóreas,
corruptíveis, relativas e múltiplas, a realidade inteligível (Idéias) é incorpórea, é uma
realidade estável, eterna e absoluta, é a unidade. A terceira característica é o fato das
Idéias serem dadas tal como o ser no sentido pleno, por condizerem com aquilo que é
verdadeiramente e absoluto. Os três demais aspectos são a imutabilidade, a perceidade
– o ser das Idéias é puramente inteligível e incorpóreo; não nasce nem perece, sendo em
si e por si num sentido pleno – e a unidade, que tem relações muito estreitas com as
demais características.
Podemos firmar então que, visto que as Idéias são eternas, elas não perecem ou
nascem simplesmente “são”, imunes a todo e qualquer tipo de mudança. As Idéias são
em si e por si, é uma unidade sintetizadora da multiplicidade das demais coisas que dela
participam.

Enquanto as coisas belas têm um caráter de modificabilidade, aquelas que são


sensíveis e particulares, o Belo em si, são imutáveis, pois se modificássemos a Idéia a
tornaríamos outra em relação a si mesma. Ou seja, o Belo em si é a causa verdadeira do
Bel sensível, o que faz com que ele necessariamente não possa se tornar o feio – a
modificação do Belo em si, implicaria na destruição total da beleza participada, no
desaparecimento de toda beleza empírica, pois se comprometida a “causa”
comprometido o “causado”. Se a verdadeira “causa” mudasse, ela perderia o seu caráter
de verdade, não sendo a razão última do Ser. As Idéias, então, não poderiam ser
relativas ao sujeito; logo, não podem ter uma realidade que é impelida pela mudança,
implicando numa firmeza e numa estabilidade estruturais – sua natureza absoluta.
A Idéia constitui uma multiplicidade unificada; por conseguinte, o verdadeiro
conhecimento é aquele que unifica a multiplicidade, “que reúne a multiplicidade

43
sensorial na unidade da Idéia da qual depende.”65 Tal característica é que evidencia a
diferença entre o homem comum e o filósofo; visto que o primeiro se garra à
multiplicidade sensorial, repelindo o caráter unificador da Idéia, e o segundo “enxerga”
e capta o múltiplo no Uno – “Quem sabe ver o conjunto é dialético, quem não sabe não
o é.”66

As realidades físicas são mescladas com o não-ser, enquanto as Idéias são Ser
num sentido puro e total.
As Idéias possuem tanto um caráter de transcendência quanto de imanência. A
sua transcendência condiz exatamente com o fundamento da sua imanência; a sua razão
de ser. Ou seja, as Idéias não poderiam ser a causa verdadeira do sensível se não o
transcendesse e, por isso, são fundamento de sua estrutura ontológica imanente. É a
transcendência das Idéias que qualifica a sua configuração de “causa verdadeira”. O
mundo das Idéias transcende o sensível, não de forma a separá-los, mas num sentido da
causa metaempírica; isto é, da causa verdadeira. Logo, há de se convir que as Idéias
tenham um caráter de imanência, pois implicam naquilo que permanece idêntico a si,
aquilo que faz com que cada coisa seja ela mesma e não outra, o que fixa as coisas em
sua própria natureza as tornando inteligíveis.

Se assim é, é necessário admitir que há uma forma de realidade que


sempre é da mesma maneira, que não nasce nem perece, que não
recebe em si algo vindo de fora nem ela mesma passa para outra coisa,
invisível nem podendo ser captada com outro sentido. E foi essa
realidade que coube à inteligência contemplar.
E também é preciso admitir que, homônima e semelhante a essa
realidade há uma outra sensível, que nasce e continuamente se move,
que se origina num lugar e dali mesmo desaparece. Ela é apreendida
pela opinião acompanhada de sensação.67

65
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.7.
66
PLATÃO, República, Livro VI, 484 b.
67
PLATÃO, Timeu, 51 b – 52 a.

44
O dualismo de Platão, então, é tomado como a expressão da transcendência,
configura-se na admissão da existência de uma causa supra-sensível, devido a
impossibilidade em possuir uma razão de Ser total de si mesmo.

II. A Teoria da Reminiscência.

2.1. Sobre a Imortalidade da Alma.

Segundo Platão, a alma humana tem a capacidade de conhecer as „coisas‟


imutáveis e eternas, entretanto, para poder captar tais coisas, esta deve ter,
necessariamente, uma natureza análoga a elas; ou seja, a alma deve ser também
imutável e eterna. Primeiramente, devemos partir do fato de que existem dois planos de
realidade, o sensível, que corresponde aquilo que nunca permanece nas mesmas
condições – o que abrange um caráter de modificabilidade –, e o inteligível, referente ao
que permanece imutável.
Visto isso, podemos afirmar, então, que tais realidades descritas se assemelham
a dois componentes do homem, respectivamente, corpo e alma.
A alma é imutável. Entretanto, quando esta se encontra apoiada nas percepções
sensíveis, pode se confundir devido à mutabilidade dos objetos aos quais se refere
(opera). Em contrapartida, quando a alma consegue elevar-se e voltar-se sobre si mesma
não faz mais errar ou confundir, encontrando nas Idéias „puras‟ o objeto adequado a se
conhecer. Logo, quando „pensa‟ nos objetos imutáveis ela assim o é.

(...) quando a alma e o corpo estão juntos, é a alma que domina e


governa, ao passo que o corpo obedece e é dominado pela alma; ora, é
característica do que é divino comandar; logo, a alma é afim do
divino, enquanto o corpo é afim do mortal.68

Partindo do pressuposto de que as idéias contrárias não podem combinar-se entre


si e permanecerem juntas, pois assim se excluiriam mutuamente, podemos afirmar que o

68
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.186.

45
mesmo acontece quando tentamos relacionar a Idéia de alma às coisas sensíveis que
participam essencialmente de tais Idéias. Ora, a alma tem como caráter primordial a
vida. E sendo a morte o seu contrário, ela não pode estruturalmente abarcar em si morte
(do âmbito do sensível) e vida, o que faz dela, então, imortal.
Quando um corpo morre a alma se retira para outro lugar. E justamente devido a
esse caráter estrutural e essencial de vida, a alma não pode acolher a morte, visto que a
Idéia de vida e morte se excluem. A alma é a Idéia de vida, é e dá vida; sendo, portanto,
incorruptível, imortal e eterna. A alma é uma realidade estruturalmente indestrutível.
Quaisquer que sejam os males que venham a afetar o corpo, não a atingirão; pois o mal
do corpo é alheio a alma, não podendo destruí-la.

(...) quando a corrupção que lhe é própria e o mal que lhe é próprio
não são capazes de matar e destruir a alma, dificilmente o mal que está
ordenado para destruição de outra coisa poderá destruir a alma ou
outra coisa diferente daquela para a qual está ordenado. (...) Quando,
pois, uma coisa não perece de mal algum nem próprio nem estranho, é
evidentemente necessário que tal coisa exista sempre; e se sempre
existe, é imortal.69

No Fedro, a alma é deduzida a partir do desvelamento do conceito de psyché, tal


como princípio de movimento. A alma é imortal, pois move a si mesma; pois tudo o que
movimenta outrem, ou é movido, quando o movimento cessa; deixa de viver. È o
princípio de movimento que não pode começar a existir ou destruir-se. É a causa (aitia)
que transcende o ser e é capaz de modificá-lo.

Só o princípio não é gerado; muito ao revés disso: dele,


necessariamente, é que se origina tudo o que nasce, ao passo que ele
mesmo não provém de nada, porque se se originasse de alguma coisa,
não seria princípio. Ora, uma vez que nunca nasceu, terá também de
ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer, nem ele poderia
renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser
verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí, ser

69
PLATÃO, República, 610e – 611a.

46
princípio de movimento o que se movimenta a si mesmo; donde se
colhe que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob
pena de cair e parar todo o céu e toda geração, que nunca mais
encontrariam outra fonte de vida e de movimento.70

A alma é a dimensão inteligível, meta-empírica e incorruptível do homem.


A tese defendida por Platão, acerca da imortalidade da alma, se situa no
problema do “caminho” em que ela percorre após o abandono do corpo. Tal
problemática desenvolvida, entretanto, não seria tão profícua se limitada ao recurso do
logos sozinho, fazendo com que o filósofo recorresse ao mito para explicitá-la de forma
a abranger toda sua profundidade e clareza – o que faz com que o problema não seja
redutível ao logos, mas seja sustentado, de alguma forma, pelo próprio logos.
Só se pode falar numa apreensão tão plena e total, que alcança o invisível e a
criação de todas as coisas, através do mito; pois este envolve toda dinâmica do
aparecimento da realidade – tanto sensível quanto inteligível. A profundidade de tal
questão desenvolvida, não teria uma representação escrita a sua altura, se não através do
deste. Lidar com o mito, em Platão, é lidar com o princípio de realidade, causa de todas
as coisas – uma liga que só se pode ter quando na dimensão do mito. Logo, deve-se
aceitá-lo da maneira em que ele se apresenta, não querendo desmitificá-lo. O mito é um
tipo de logos falso, por não corresponder a nenhuma situação real ou realidade concreta,
mas, no entanto, diz a verdade. Ele é falso em tudo o que ambienta, entretanto, constitui
uma verossimilhança que tem poder e valor de verdade – capacidade mítica de gerar e
dizer verdades.
O mito é uma fala verdadeira, pois atemporalmente é possível de ser
experimentado; ele consegue alcançar qualquer momento histórico. O mito é um convite
ao pensar, sendo experimentado na medida em que fala da vida dos homens; na
turbulência que implica no agir. Não se trata de uma história para se acreditar ou não,
trata-se de apreender o mito devido ao seu alcance da profundidade da vida humana.
Platão não tem a pretensão de educar as almas, pois a condição de filósofo é dada
anteriormente, tendo em vista que não se escolhe “em vida” ser virtuoso, filósofo ou
não.

70
PLATÃO, Fedro, 245d – e.

47
2.2. O Filósofo, um reminiscente.

A teoria da Reminiscência explicitada por Platão é o ponto de partida para o


pensamento. A reminiscência coloca uma série de problemas, sendo um deles o
problema da memória; o filósofo tal como um reminiscente, sendo capaz de evocar um
tipo específico de memória (de certa forma involuntária) que o liga a esse passado que
em alguma medida ele foi levado a esquecer. O reminiscente tem uma espécie de
vestígio desse passado que é despertado; como por exemplo quando da visão da beleza
– a visão da Beleza vai despertar a reminiscência e vai fazer com que a alma entre nesse
processo de começar a ligar uma coisa com a outra; então, ela vai poder fazer essa
ascensão sinóptica da multiplicidade para a unidade, da beleza dos corpos para beleza
em si. A visão do belo é capaz de despertar a reminiscência e acionar na alma essas
ligações que vão permitir a ela, partindo da multiplicidade sensível – da beleza dos
corpos sensíveis – para a idéia da Beleza em si; da qual o corpo evoca ou invoca a
reminiscência. Então, essa paralisação que a beleza traria, é devido ao acionamento à
reminiscência da beleza em si – essa contemplação do belo o que levaria a pensar na
beleza em si.

O mito da reminiscência está fundamentado na teoria das Idéias; na apreensão da


unidade, do universal, dessa totalidade explicitada tal como uma anterioridade
ontológica das coisas em si mesmas; uma condição de possibilidade da apreensão do
conhecimento. Conhecer é recordar; tudo o que aparece resguarda um aparecimento da
“realidade”. A rememoração é o retorno daquilo que foi obscurecido, no sentido de que
o esquecimento também está contido a lembrança na medida em que se lembra do que
foi esquecido – a verdade é um arrancar desse esquecimento; se apresentando na sua
pura emergência. A rememoração é a memória da totalidade que foi encoberta pelo véu
das aparências, que tomou a alma na sua reencarnação. Logo, quando se apreende algo,
esse ato nos faz recordar daquilo que de antemão já estava presente na alma; faz-nos
rememorar o “em si” – que não paira separadamente à apreensão sensível. Uma coisa é
a causa (inteligível), outra coisa é aquilo sem o qual tal causa não seria princípio de
abertura de nada – a causa enquanto campo de abertura para que o real seja. O homem
já nasce com o conhecimento das Idéias. A alma conhece a totalidade de tudo o que há
sob a terra e tudo o que há sob o Hades. Quando a alma se „reencarna‟, aquele

48
conhecimento da totalidade se retrai fazendo com que aquilo que não nos chega
iluminado pela percepção, nos apareça obscuro.
A nossa apreensão do singular sempre nos ultrapassou, pois esse estado singular
já foi plantado anteriormente. Quando eu apreendo alguma coisa, ela já o era de
antemão. Toda compreensão da realidade já nos ultrapassou; antes de se compreender o
particular há uma ultrapassagem do todo – quando se conhece, se reconhece o que de
antemão já se sabia. Maior e menor, alto e baixo são noções articuladas à totalidade de
todas as coisas. Em cada apreensão particular, a totalidade já se deu, tanto que a visão
de uma coisa faz emergir ao mesmo tempo a „não-coisa‟.
A reminiscência supõe uma visualização inteligível das Idéias, mas esta depende
diretamente das realidades vistas pela alma – visão anterior. A capacidade menor ou
maior de rememoração é estabelecida segundo hierarquias devido ao caráter de cada
alma; ou seja, segundo a capacidade de alcançar a si mesmo no sentido dos limites da
condição humana – tendo em vista que o que está em jogo é o caráter. Essa capacidade
de alcançar a si mesmo seria tal como a possibilidade em se decidir sobre algo e ficar
feliz com esse algo que é a própria existência – no caso da escolha da vida em que se
quer levar, no momento em que a alma encontra-se pronta para reencarnar.

2.3. O Mito da Parelha Alada no Fedro.

A teoria da reminiscência platônica abrange dois significados distintos, se a


analisarmos segundo obras específicas. No Fédon, Platão explicita que as almas que
„viveram‟ no sub-celeste e que se mostraram excessivamente ligadas às paixões e aos
prazeres mais baixos, não conseguem se separar dos corpos inteiramente. Tais almas,
com medo do seu julgamento no Hades, ficam a vaguear como fantasmas até que,
atraídas pelo desejo corpóreo, reencarnam em corpos cuja baixeza do teor da vida moral
corresponda a sua vida precedente – podendo tanto ser em homens quanto em animais.
Após a alma se desprender do corpo ela vai até o Hades, onde é julgada segundo
unicamente ao critério de justiça; ou seja, os sinais de justiça e injustiça que a alma traz
em si. Como descrito no Górgias, o juízo seria proferido por uma alma despojada do
corpo sobre outra de igual valor, numa dimensão puramente espiritual – um juízo que
incidiria na interioridade. Aqueles que foram justos ao longo de suas vidas, que se
preocupavam com a virtude para além das tarefas vãs da vida – e neste aspecto se

49
encaixam, sobretudo, os filósofos –, levariam uma vida feliz nas Ilhas dos Bem
aventurados. Enquanto os que tivessem um comportamento contrário a virtude da
justiça, seriam punidos no Hades.

Todavia, na República é apresentado um segundo gênero de “reencarnação” que


implica numa limitação temporal em que as almas residem no Hades ou nas Ilhas dos
Bem aventurados. A vida ultraterrena, então, deveria ter uma duração de mil anos para
aquelas almas que viveram de forma virtuosa (filósofos) – tendo em vista que aqueles
que não procederam deste modo, que cometeram crimes hediondos e incuráveis,
receberiam uma punição indo para além do milésimo ano.
Transcorrido esse tempo, as almas deveriam reencarnar-se.
O processo de reencarnação teria início numa planície, em que as almas se
concentrariam para aguardar a decisão acerca do seu futuro. Lá, os deuses e a
„necessidade‟ propõem às almas o seu destino; que, por sua vez, não eram impostos a
elas, e sim “entregues à liberdade das próprias almas.”71 Ou seja, as almas eram livres
para escolher se queriam viver segundo à virtude ou segundo o vício. Seria mais sensato
dizer, entretanto, que a escolha dependeria do conhecimento ou da filosofia, que se
tornaria a força que salvaria o homem.
Depois de escolhidos os destinos, as almas bebem das águas do esquecimento,
indo aos corpos e vivendo o destino de sua escolha.

No Fedro, Platão desenvolve uma visão ainda mais complexa acerca da


reminiscência. Em sua “origem”, a alma estaria junto aos deuses e viveria uma vida
divina. Esta, só cairia na terra por decorrência de uma “culpa”.
A natureza da alma demonstra pelo argumento do movimento, e sua tripartição
traduz na metáfora da parelha alada as realidades inteligíveis, onde as almas aladas são
ditas seguidoras de Zeus até a abóbada do céu contemplando, no supra celeste. Toda
essa contemplação das realidades inteligíveis é descrita com as imagens e o formulário
dos espetáculos de iniciação dos mistérios – coro bem aventurado das almas que
reproduzem cortejo dos iniciados, visão completa e absoluta, imóvel e bem-aventurada
sobre uma luz pura, que evoca essas imagens móveis dos deuses ou dos heróis sobre
uma cena maquinada, sobre um jogo de sombras e de luzes, cujo se animam

71
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.198.

50
provavelmente à descrição graduada da estrada infernal feita para emprestar as
diferentes classes de iniciados.

A alma humana é ambivalente e segue no “lugar supra-celeste” (247c-e), o


cortejo dos Deuses – contempla as diferentes maneiras de idéias eternas; em particular à
beleza –; oscila entre o racional e o instintivo, sobre a tensão e o conflito de dois
ímpetos opostos, representados através do mito descrito, tal como uma parelha alada
puxada por dois cavalos, de impulsos diversos, e guiada por um cocheiro.
A alma relativa aos apetites, rebelde desmesurada; e que só se submete à força
(cavalo alado bravo). A alma relativa aos desejos espirituais, que almeja se dirigir ao
que é contrário da Terra, ao topo do céu (cavalo alado brando). É dócil e tende ao bem,
“é companheira da opinião verdadeira” (253d-e) e fácil de ser conduzida por palavras. O
cocheiro representa a razão e os dois cavalos se apresentam em dois âmbitos diversos.
Um, o de boa raça, almeja saciar-se na planície da verdade para contemplar, junto aos
deuses, o Ser no supra celeste. O outro, selvagem e arredio, puxa sempre para baixo, o
que faz com que as almas que por ele são dominadas, percam suas asas. As almas que
conseguem domar o cavalo ruim e ver o Ser, ou ao menos parte dela, continuam a viver
ao lado dos deuses; porém, aquelas que não chegam à planície da verdade entram num
conflito pelo qual as suas asas se quebram, tornando as almas pesadas e, por
conseguinte, fazendo-as se precipitar sobre a terra.

Uma vez que as almas conseguem vencer as resistências do cavalo que puxa
para Terra, elas se colocam acima do céu, para dali poderem contemplar toda a
realidade fora do mesmo. Esse cavalo que puxa, é exatamente esse cavalo que impede a
ascensão da alma, pois ele é preso e ligado as coisas terrenas. O cavalo bravo que é,
portanto, difícil de ser conduzido, curiosamente aparece na questão do Eros, já que o
Eros tem diretamente um lado ligado a essa parte ligada a eputhimia (apetite); que é
exatamente essa vontade que está ligada também ao desejo sexual. Mas não só a
eputhimia vem ligada a esse desejo, como também à gula e à avareza – a Eros que
também é relacionada à econômica e a dialética, através da questão do excesso; da
Hybris.
A alma do filósofo é a que melhor consegue visualizar as Idéias, ela consegue,
segundo a sua natureza, controlar os impulsos contrários guiando a parelha alada de
maneira equilibrada. O filósofo tem inteiramente o comando dos dois cavalos, o que é

51
uma tarefa árdua, pois para tanto teria de se ter um poder de concentração imenso –
como, por exemplo, uma pessoa com facilidade para aprender não aceitará uma
educação continuada, a não ser que por muito esforço, sendo facilmente corruptada para
outro caminho. O filósofo aprende a lidar com os cavalos, pois sabe os cavalos que tem;
enquanto que um „cocheiro‟ desatento não sabe lidar com tais impulsos distintos.

Quando as almas perdem as “asas”, elas habitam os corpos, que por sua vez,
procuram recupera-las e partindo dos objetos sensíveis – mimesis – vai resgatando a
visão inteligível das essências, através de etapas em que se dão esse retorno72. O retorno
mais rápido é feito pelo “homem que foi amigo leal do saber, ou que amou os jovens
com um amor filosófico” (249 a); “porque só o pensamento filosófico é alado” (249 c),
sendo o amor filosófico o único capaz de reconduzir à beleza - como se a alma antes de
habitar os corpos; ou seja, antes de perder as asas, tenha tido a experiência da total
contemplação da beleza em si – as asas da alma se desenvolvem na medida em que se
alimentam do Belo e do Bem, extraídos da planície da verdade.

A razão de tanto empenho de contemplar a Planície da Verdade, está


no fato de nascer justamente naquele prado o alimento adequado para
a porção mais nobre da alma e de nutrir-se com isso a natureza das
asas que confere à alma mais leveza.73

A philia é um intermédio, ela revela o Bem primeiro e absoluto. O verdadeiro


amante é aquele que sabe percorrer todos os degraus até o Bem, até alcançar a visão
suprema, a visão daquilo que é absolutamente Belo. A sophía, é própria daquele que
“não é nem sábio nem ignorante, não possui o saber, mas a ele aspira, está sempre
procurando e o que encontra sempre lhe escapa e deve buscar mais além, justamente
como faz o amante.”74

72
Na República as etapas da alma se dão de forma racional – matemática da linha divina – e na forma
dramática – na alegoria da caverna.
73
PLATÃO, Fedro, 248b – c.
74
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.219.

52
2.4. O Belo e o Lugar do Filósofo.

Esse transluzir da beleza ideal no Belo sensível inflama a alma, que é


tomada pelo desejo de levantar vôo para voltar para o lugar de onde
desceu. Esse desejo é, justamente, Eros que, com o anélito
transcendente do supra-sensível, faz renascer na alma suas antigas
asas.75

De todas as Idéias a primeira a ser avistada, por ser a mais brilhante de todas, foi
a Idéia de Belo – a beleza em si. Nesse sentido, pode-se dizer que o filósofo tem a
capacidade de experimentar um “nada”, não num sentido negativo, tendo em vista que
este “nada” se demonstra tal como lugar de produção criativa; o princípio de realidade
inteiro, o lugar da verdade, do acontecimento da totalidade, sendo o próprio Belo que é
lugar nenhum – o filósofo como aquele que “conhece” a totalidade. É o puro poder
fazer, lugar da ação, da prontidão, que não é ocupado por coisa alguma. O Belo como a
experiência desse “nada” que é a verdade, a totalidade – não num sentido quantitativo,
mas quando em vista do olhar para as coisas iguais em si mesmas.
O amor é um dos meios para rememoração, é dirigir-se a uma realização, e agir é
dirigir-se ao Belo. O Belo em si não é nenhum produto ou objeto, é uma condição de
possibilidade das coisas belas serem belas (tõ kalõ ta kalà kalà). Um manancial
instaurador; originalidade de tudo o que é Belo. È a totalidade, pois é a pura
possibilidade de, a partir dela, tudo ser chamado de Belo. É um exercício ontológico
devido ao caráter de possibilidade daquilo que concretamente (Idéias) já se dá – o
filósofo é o primeiro a realizar tal exercício. É o se dar conta de alguma coisa que já está
acontecendo sempre. Não se trata de uma possibilidade no sentido da alternativa, mas
no sentido do poder mesmo – o que faz com que essa possibilidade seja um tanto
trágica, na medida em que ela não pode vir a não-ser. Logo, é o processo de atingir o
Belo, o lugar do desejo pelo Belo, que caracteriza este estado de prontidão do filósofo.
O filósofo que está no lugar do fazer. E é justamente por esse ser o seu lugar, que ele
encontra-se mais perto dos deuses e, conseqüentemente, o seu período de reencarnação
é menor.

75
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.222.

53
A visão da beleza exterior incita o filósofo, desfruta nele a reminiscência que
atualmente ele só dimensiona como uma virtualidade. Um acontecimento que escapa as
determinações do presente e o preenche com a anterioridade das Idéias. A contemplação
do belo instaurou uma nova dimensão de realidade sensível, revela sua vinculação com
a totalidade.
Nesse sentido, o filósofo se apresentaria tal como um horizonte de instauração,
que se dá toda vez em que ele emite algo. É por esse motivo que o filósofo é
considerado o mais virtuoso dentre os homens, pois o seu lugar é o lugar de todo
acontecimento, de toda possibilidade que implica num poder de instauração.
Acontecimento onde tudo é reunido; lugar da totalidade, da verdade que é o encontro
com o Ser.
Logo, podemos concluir que o acontecimento que implica no lugar do filósofo, é
o permanecer no instante para desempenhá-lo de algo que não cessa em adiantar-se ou
atrasar-se, onde aquilo que se desempenha é um tema; um sentido construído por aquilo
que constitui o acontecimento. O lugar do filósofo seria o deixar-se levar pelo
acontecimento; o ficar nesse meio sem extremidades. Que seria uma realidade última, a
última atualidade da natureza da essência, no que concerne ao devir de sua reinvenção
constante.

54
Capítulo 4: Da Retórica

I. O Problema do Conhecimento e a Solução Dialética dada por Platão.

Sendo a alma imortal e tendo renascido muitas vezes, e já que viu


todas as coisas, as deste mundo e a do Hades, nada há que não tenha
apreendido; assim sendo, não é surpreendente que ela seja capaz de
recordar-se a respeito da virtude e a respeito das outras coisas que
conhecia também precedentemente.76

Platão foi o primeiro a abordar o problema do conhecimento – como se dá e como


se difere o conhecimento inteligível e sensível – em toda sua clareza e compreensão;
apesar de que em seus diálogos as soluções propostas se mostrem sempre em aberto. Um
importante diálogo que podemos encontrar respostas acerca da questão do conhecimento
é o Mênon; onde o conhecimento é afirmado tal como anamnese; ou seja, uma
rememoração que faz com que emirja a aquilo o que de antemão existe no interior da
alma. Na obra, são explicitadas duas maneiras pelas quais o ato de conhecer se apresenta.
A primeira é de caráter mítico-religioso e implica na imortalidade da alma; no fato de ter
renascido várias vezes. Assim sendo, a alma conheceu e viu toda realidade na sua
totalidade; “a realidade do além e a realidade do aquém.”77 Logo, é de fácil
compreensão que a alma conheça e aprenda, pois ela simplesmente tira de si mesma a
verdade que possui substancialmente desde sempre – esse é o movimento de
rememoração; a reminiscência da alma (ς.

(...) se alma possui como suas próprias, verdades que não aprendeu
antes da vida atual, que estão encobertas, mas podem ser desveladas à
consciência, quer dizer que ela já as possui como próprias desde
sempre, antes do nascimento do homem no qual agora se encontra: a

76
PLATÂO. Mênon, 81c-d.
77
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.154.

55
alma é então imortal e, mais ainda, em certo sentido permanece no ser,
assim como a verdade.78

Os dados fornecidos pela experiência (conhecimento sensível) não condizem, de


modo perfeito, a todo conhecimento que possuímos; há um desnivelamento claro na
„fusão‟ de ambos. A experiência só nos fornece conhecimentos imperfeitos, que quando
interiorizados em nossa alma, encontram os conhecimentos perfeitos respectivos a eles.
Platão afirma que os conhecimentos que não advém dos dados sensíveis, não provém
senão de dentro de nós. Tal conhecimento (inteligível) não é criado segundo a formação
do sujeito enquanto tal, ele o “encontra”; o “descobre”, tudo em vista do que este se
impõe absolutamente ao próprio sujeito.
A nossa alma que se encontra de posse dos conhecimentos perfeitos; e é da pura
possessão da nossa alma que tais conhecimentos são “recuperados” de maneira explícita
como reminiscência; que, por sua vez, “supõe estruturalmente uma impressão na alma
por parte da Idéia, uma visão metafísica originária do mundo ideal que permanece
sempre mesmo se velada na alma de cada um de nós.”79
As idéias são tidas tais como realidades absolutas que, por meio da reminiscência
(ςse impõe como objeto da mente. Ou seja, o conhecer só se faz possível
na medida em que temos na alma uma intuição originária daquilo que é verdadeiro.
Na República, Platão demonstra os estágios e os modos específicos do ato de
conhecer, partindo do princípio de que todo e qualquer conhecimento é proporcional ao
Ser, de modo que somente o que é plenamente Ser é perfeitamente cognoscível. Há duas
formas de conhecimento explicitadas na República. A primeira é referente à doxa (,
que é a mais baixa devido ao fato de ter por objeto o sensível; esta pode ser verdadeira e
reta; entretanto, nunca poderia conter em si a garantia da própria retidão, permanecendo
sempre lábil (o sensível ao qual se refere). A segunda forma de conhecimento é referente
à episteme (, sendo a mais alta por ter como objeto o supra-sensível. Platão
atribui a cada forma de conhecimento, dois graus distintos. A doxa é dividida em
imaginação ( e em crença (ς; enquanto a episteme divide-se na forma de
conhecimento mediano ( e em intelecção pura (ς. De acordo com tal

78
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.154.
79
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.159.

56
princípio, cada grau e forma de conhecimento são relacionados a um grau e forma
correspondentes à realidade e ao Ser.
A eikasia corresponde ao grau sensível referente às sombras e às imagens
sensíveis das coisas; enquanto a pistis concerne às coisas e aos próprios objetos
sensíveis. Em contrapartida, a dianoia e a noesis se referem, uma ao conhecimento das
realidades matemático-geométricas – também pode ocupar-se com os elementos visíveis,
se caracterizando, sobretudo pelos conhecimentos matemáticos, considerados
ontologicamente intermediários –, e a outra à dialética pura das idéias, que corresponde
ao conhecimento, via dialética, do mundo das Idéias e do princípio supremo e absoluto
da Idéia do Bem (o uno; incondicionado).
O homem comum, segundo Platão, se detém na primeira forma de conhecimento;
a doxa, enquanto que os matemáticos elevam-se à dianoia e os filósofos têm a
possibilidade de ascender à noesis e a “ciência suprema”. O proceder que interliga
intelecto e intelecção, que é ao mesmo tempo discursivo e intuitivo, é a dialética; sendo o
filósofo o dialético. Há uma dialética ascendente que conduz às Idéias à Idéia suprema e,
uma dialética descendente que segue o caminho oposto; indo da Idéia suprema ou Idéias
Gerais às Idéias particulares nelas contidas; em que a partir de um método diairético faz
com que se compreenda a trama complexa das relações numéricas que unem as partes ao
todo – a primeira abraça a multiplicidade na unidade até chegar à unidade suprema,
enquanto a segunda faz o caminho inverso.
Mais do que a descrição do processo dialético em si, então, como explicitado
anteriormente e a seguir, os diálogos platônicos apresentam na dimensão da oralidade um
quadro completo da dialética em suas conexões essenciais; estando a doutrina da
reminiscência se apresentando como justificação e comprovação – enquanto fundamento
lógco-metafísico – da própria possibilidade da maiêutica socrática.

II. A Arte da Persuasão e o sua pretensão de Verdade.

Mas, amigo quem sabe não falamos mal da arte dos discursos mais do
que o devido? Talvez ela possa dizer-nos: Que pretendeis, gente
admirável, com essa conversa vazia? Eu não obrigo ninguém que não
conheça o verdadeiro a aprender a falar; mas, se meu conselho tem

57
algum valor, que ele adquira a verdade antes de tomar-me nas mãos.
Mas o que proclamo em alta voz é o seguinte: quem conhece a
verdade não poderá, sem mim, persuadir ninguém segundo as regras
da arte.80

A retórica, na antiguidade clássica, era um fator de grande importância, pois tinha


uma força política e civil de primeira ordem; na medida em que os sofistas pretendiam
ser mestres e educadores ético-políticos das novas gerações; se apresentando, então,
como mestres da retórica.
Platão, por sua vez, pretendeu ao longo de suas obras contextualizar e estabelecer
a essência e o valor de verdade da retórica (dita como tal) instituída pelos sofistas. O
filósofo afirmava, ainda, que a retórica deveria ser considerada segundo razões de todo
análogas àquelas pelas quais a arte deve ser condenada. A retórica é a contrafação da
verdade. Tal como a arte tem a pretensão de retratar as coisas sem delas ter verdadeiro
conhecimento; imitando puramente as suas aparências; a retórica, através do método
persuasivo, pretende convencer o homem acerca de tudo, sem ter conhecimento algum.
A retórica cria crenças ilusórias. O retórico é aquele que, devido a sua habilidade
persuasiva, joga com o discurso que encontra-se calcado nas aparências da verdade; em
verossimilhanças e não na verdade em si mesma. Tanto quanto acontece na arte, a
retórica se dirige a pior parte da alma; àquela que é crédula e instável; suscetível de
emoção e sensível ao prazer. Pode-se dizer que o retórico lida com o falso para além do
artista, tendo em vista que esse último ao menos representa as aparências do verdadeiro,
enquanto que o retórico tem a malícia do conhecimento calcado num falso saber.
A filosofia dialética deve corromper e substituir a retórica, no que diz respeito ao
seu caráter de verdade. No Fedro, Platão explicita que na arte dos discursos; enquanto
retórica, é reconhecido um direito à existência, entretanto, sob a condição que se submeta
à verdade e, por conseguinte, à filosofia. E para alcançar a verdade, pela qual a retórica
teria de se submeter, se faz necessária a aprendizagem da doutrina das Idéias e a dialética
– “seja no seu momento ascendente que leva do múltiplo ao uno, seja no seu momento
descendente e diairético que ensina a dividir as Idéias segundo as articulações que lhe
são próprias.”81 –, e conhecer a alma; visto que a arte da persuasão se dirige

80
PLATÃO. Fedro. 260d-e.
81
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.176.

58
necessariamente à alma. Só se pode construir uma arte verdadeira de persuadir por
discursos, conhecendo a natureza das coisas e a natureza da alma humana.

III. O Logos Filosófico.

Platão afirmava que, apesar da sua Filosofia ser fundamentalmente escrita, a


oralidade era a forma “ideal” para a passagem de conhecimento, tendo em vista que os
escritos devem ser entendidos de maneira limitada por não poderem comunicar ao leitor
algumas coisas essenciais, tanto do ponto de vista do método quanto do conteúdo.
Segundo Reale, Nietzsche sustenta que:

O escrito possui a sua significação somente para aquele que já sabe,


como meio de recurso à memória (...), deve ser o meio que é o melhor
em segundo grau para conduzir aquele que não sabe do saber(...). De
acordo com Platão, o escrito em geral não tem uma finalidade de
ensino e de educação, e sim a finalidade de ativar a memória daquele
que já é educado e já possui o conhecimento.82

A escritura só faz aumentar a aparência (doxa) do saber não fortalecendo a


memória, mas oferecendo meios para trazer à memória aquilo que de antemão já era
conhecido pela alma. O escrito é sem alma, sendo incapaz de defender-se sozinho
contra críticas, exigindo sempre a intervenção constante do seu autor. O discurso oral, e
só ele, é capaz de penetrar na alma daquele que o apreende, sendo o discurso escrito
apenas uma imagem daquele que se encontra na dimensão da oralidade. Para ser
conduzido, segundo as regras da arte, o escrito implica no conhecimento da verdade
dialéticamente fundada e, por conseguinte, implica no conhecimento da alma daquele ao
qual se dirige – há um jogo metódico pelo qual quem escreve deve-se submeter.
Por definição, a palavra é um aspecto da realidade; é uma palavra eficaz. No
entanto, a potência da palavra não se encontra apenas orientada para o real, ela se
mostra, da mesma forma, irrevogavelmente tal como uma potência sobre o outro. Logo,

82
GIOVANNI REALE, História da filosofia grega e romana III: Platão, p.14.

59
a potência da palavra se mostra perigosa, visto que pode ser tomada como a ilusão do
real. Ou seja, a sedução da palavra é tal que pode se fazer passar pela realidade; o logos
pode impor objetos que se assemelhem à realidade confundindo-se com ela, sendo,
entretanto, não mais do que uma imagem vã. Este fato levanta uma nova questão, traz
um problema fundamental pertinente à relação entre palavra e verdade. A ambigüidade
da palavra, então, torna-se pólo de reflexão sobra à linguagem tal como instrumento do
pensamento racional, onde há, por um lado, o problema da potência da palavra sobre a
realidade e, por outro lado, o problema da potência da palavra sobre o outro –
perspectiva fundamental no desvelamento retórico e sofístico.

A transmissão oral da verdade, que se efetua sob a perspectiva de um


saber secreto de tipo exotérico que autorizava a fala inspirada,
substitui-se, nos quadros da cidade, a prática sofista da ilusão
redigida.83

Assim sendo, vamos tratar, aqui, da Retórica e de suas relações com os discursos
proferidos anteriormente, nos questionando sobre a crítica realizada pelo filósofo, como
a retórica é colocada a serviço da filosofia e em que medida a técnica que a envolve
depende da inspiração divina.

IV. A Eficácia da Palavra.

Comecemos, então, a partir do ponto em que Sócrates conceitua o ato de


discursar, contrapondo-o ao que fazem os Sofistas (“retóricos” de sua época).

A primeira questão tratada é que para se realizar um discurso é preciso ter


conhecimento sobre aquilo que está sendo dito em prol de sua autenticidade enquanto
verdade. Os Sofistas se servem da persuasão, utilizando o domínio que têm sobre a
linguagem para discursar sobre uma mesma coisa, com uma mesma ênfase ou

83
JAMES ARÊAS, A perspectiva filosófica na transposição platônica no Fedro , p.124.

60
intensidade – não se baseiam num conhecimento verdadeiro, mas no senso-comum. “A
perversão da retórica transforma a escrita em técnica de simulação e converte a
habilidade oratória em exploração verbal e persuasiva do verossímil.”84 Através de
uma lógica da ambigüidade, contrariam o que deveria ser indissociável no interior de
um discurso; a ligação entre dizer, pensar e ser – limitam-se a uma taltologia do logos,
que é voltado sobre si mesmo. A eficácia alcançada pelo discurso, entretanto, não
significa que tais “retóricos” tinham o conhecimento real do assunto que tratavam, eles
não tinham a preocupação de se interrogar sobre suas referências – calcavam-se na
probabilidade, no verossímil para o estabelecimento de suas conclusões que, de
antemão, eram estabelecidas –; utilizando-se da potência da palavra como uma arma
para persuadir pessoas tão ignorantes quanto eles. “O estatuto da verdade se transfigura
e se perde em sua migração da enunciação para o enunciado.”85
O Elogio de Helena elaborado por Górgias, como por exemplo, nos mostra o
papel dos sofistas enquanto pharmakon, pois se trata de um elogio à própria potência do
logos, onde o autor se propõe a refutar o falso (pseudos) que ele mesmo construiu. É a
demonstração direta da lógica pluralizante utilizada; da bipolaridade sofista engendrada
no princípio de contradição.
Os sofistas são plenos de astúcias e armadilhas. Uma característica essencial na
crítica realizada à sofística é a importância dada à memória. Segundo Platão eles
possuíam o dom de uma memória forte () e de um espírito penetrante
() – precisão e clareza nas imagens e uma destreza natural na conduta
prática que se encontram nos seres dotados de memória (phrónesis).

Que frutos tal retórica poderia semear sob estas condições? Só o conhecimento
da realidade comum não basta para persuadir o filósofo, segundo as regras da retórica.
Pois a arte da palavra necessita a aquisição irremediável de um caráter estritamente
verdadeiro; de outro modo não poderia ser denominada de arte. Um homem só pode
falar sobre alguma coisa, se estudar profundamente filosofia – “A retórica é a arte de
conduzir as almas por meio da palavra.” (261 b); é a arte de ter uma influência sobre as
almas (psykhagogía). Sócrates dá o exemplo dos oradores nos tribunais, que contestam
o que é justo ou injusto86; logo, quem obtém esse resultado por meio da arte, também

84
JAMES ARÊAS, A perspectiva filosófica na transposição platônica no Fedro , p.124.
85
JAMES ARÊAS, A perspectiva filosófica na transposição platônica no Fedro , p.124.
86
O orador sabe de antemão o que quer provar, persuadindo o seu interlocutor, por verossimilhança, à
conclusão por ele ambicionada.

61
fará aparentar que o que está sendo defendido é de igual valor – deve-se ter um
embasamento conceitual verdadeiro; advindo da filosofia, para que se possa fazer
quaisquer julgamento de valor. A retórica, tal como a arte da controvérsia – de aplicação
genérica para tudo o que se fala – provoca ilusão, por possibilitar um discurso sobre
mesmo; elogiando-o ou massacrando-o.

(...) quem quiser enganar os outros,sem deixar-se iludir, terá de


conhecer exatamente a semelhança e a dessemelhança das coisas.87

Aqueles que enganam os outros e não se deixam iludir, devem conhecer


particularmente as semelhanças e as diferenças do que está sendo tratado, pois se estes
não conhecem a verdade encontram-se condenados ao erro pelos efeitos das primeiras –
o sofista se afana do rasto da opinião (aparência; do não-ser), por desconhecer a
verdadeira arte da retórica. A partir desse contexto, Sócrates retoma a carta de Lísias do
princípio, para que junto a Fedro possam identificar em que consiste erro e a
conseqüente falta de arte em seu discurso, vinculando às hipóteses em que a retórica
poderia mostrar-se mais eficiente88.
O Tratado do Amor de Lísias começa pelo fim; pela conclusão que o orador
chegou e pretende que todos cheguem – como o amante deve se portar com seu amado –
fazendo com que as outras partes do discurso se desenvolvam “numa grande
embrulhada”89. A crítica socrática consiste na dificuldade do sofista em discorrer
longamente sobre um determinado assunto e ao talento em conseguir falar de uma
mesma idéia de diferentes formas. Enfatiza que a carta encontra-se calcada nos saberes
não-filosóficos, sendo uma peça bem trabalhada, mas carente de um nexo causal entre
as partes constituintes – poderiam ser encaixadas em quaisquer esfera do discurso.
Segundo Sócrates, esta deveria ser constituída por um todo artisticamente considerado,
no qual as partes estejam em perfeita sincronia com a idéia do conjunto.

87
PLATÃO, Fedro 262 a.
88
Sócrates acredita estar influenciado pelas Musas, que concederam a pronunciação de todo seu discurso,
considerando que o mesmo se diz “jejuno na arte de bem falar” (262 d). Acredita que foi devido à
inspiração que o tomou, que o possibilitou falar sobre o amor e a erótica.
89
PLATÃO, Fedro 264 b.

62
(...) todo discurso precisa ser construído como um organismo vivo,
com um corpo que lhe seja próprio, de forma que não se apresente
sem cabeça nem pés, porém com uma parte mediana e extremidades
bem relacionadas entre si e com o todo.90

Afim de não mais aborrecer Fedro, através da crítica ferrenha a construção do


discurso de seu adorado Lísias, o diálogo socrático passa à análise da arte da
eloqüência91; tendo em vista que os dois argumentos explicitados sobre a relação entre
amado e amante – em que “um pretende que só deve ceder às instâncias do indivíduo
que ama, e o outro, às de quem não revele amor” (265 a) – se contradizem
reciprocamente, fazendo com que Sócrates retomasse a idéia das Manias Divinas e,
principalmente, aquela referida ao amor.

V. A Inspiração Erótica e a Verdadeira Arte de Falar.

Pois o que deve guiar os homens por toda sua vida, ao menos os que
pretendem viver belamente, isso nem o parentesco, nem as honrarias,
nem a riqueza, nem nenhuma outra coisa, é capaz de suscitar assim tão
belamente, quanto o Eros. 92

É através da inspiração erótica que podemos nos aproximar ou nos afastar da


verdade, “encaixamos um discurso (...), uma espécie de hino mítico, equilibrado e
piedoso, em louvor de Eros, nosso comum senhor e protetor dos belos adolescentes.”93
Sócrates acredita que a coesão e clareza contidas no seu discurso sobre o amor – ou
seja, consegue concentrar todos os elementos constituintes do discurso feito em uma
única idéia, ressaltando por definição o conhecimento que almeja passar –, foram
devido à loucura erótica que o tomou, pois só ela permite que o homem se compare ao

90
PLATÃO, Fedro 264 c.
91
Que é tão capaz de enraivecer como de acalmar.
92
PLATÃO, Banquete, 178 c.
93
PLATÃO, Fedro 265 c.

63
que ele tem de divino em si, para, assim, possa contemplar a verdade que se encontra no
supra-sensível.
O papel do orador consiste exatamente nessa divisão de idéias a serem
demonstradas, porém centralizando-as numa tese geral; reduzindo o “elemento
irracional da alma”94 num só corpo. Lísias peca exatamente por não ter analisado o
termo „loucura‟ em toda sua complexidade significativa: a loucura de origem humana
(condenável moralmente) e a loucura que designa uma dádiva divina (fonte dos maiores
bens).

Sócrates declara-se apaixonado pelo processo que engloba a construção do


discurso filosófico – a arte do bem falar e do bem pensar –; da Dialética, que é o mais
belo processo que a arte pode se apropriar. O que se fala por falar; aquilo que os sofistas
emitem é chamado pejorativamente de retórica, já que podemos considerar a dialética
como uma porção restante da mesma. O ensinamento é como o amor se faz e não se
vende. A verdadeira arte de falar deve respeitar uma justa medida; “nem concisão, nem
prolixidade”95, deve-se conhecer a verdade sobre aquilo que se deseja emitir.

(...) em vez de censurar, o que é preciso é desculpar os que por


desconhecimento da dialética, não estão em condições de definir o que
seja retórica. Com toda sua ignorância, por haverem
encontrado casualmente uns poucos conhecimentos,
pensam que descobriram a retórica, e pelo fato de transmitirem a
outras pessoas essas mesmas noções, estão convencidas de que lhes
ensinaram a arte de bem falar.96

A dialética é o caminho da alma para que se possa alcançar a beleza e a justiça,


base para todo ensino verdadeiramente filosófico – conhecimento da alma e amor à
verdade, na busca dos princípios eternos.

94
PLATÃO, Fedro 265 e.
95
PLATÃO, Fedro 267 b.
96
PLATÃO, Fedro 269 c.

64
Ao passar por todas estas definições ambicionadas a colocar a retórica a serviço
do conhecimento filosófico e verdadeiro, Platão – utilizando-se do discurso socrático –,
parte do divino para dirigir o debate para um campo epistemológico e ético, opondo-se
aos oradores de sua época. A retórica, portanto, depende da dialética, que por se
esforçar em atingir o verdadeiro, depende do verossímil procurado por ela, que depende
„diretamente‟ de valores que são da ordem do inteligível (levando em consideração que
o homem não é a medida de todas as coisas).

VI. A dialética enquanto diálogo crítico.

Ao longo de suas obras, Platão define a retórica sofista como um longo discurso
contínuo, que visa persuadir os seus ouvintes por meios de vários procedimentos que se
sustentam uns aos outros, fazendo com que o retórico impressione pelo conjunto da
obra, mais do que pela solidez de cada argumento explicitado. Entretanto, quando em
vista do método dialético, cada raciocínio se desenvolve pouco a pouco, sendo cada
passo testado e confirmado pela concordância do interlocutor, só havendo uma
passagem para a „tese seguinte‟; para uma segunda argumentação, quando a primeira for
apreendida corretamente; quando a adesão daquele a quem se dirige garante a verdade
de cada elo da argumentação.
No caso do diálogo erístico, há uma preocupação única em se vencer
adversário, o que implicaria numa total indiferença em relação à verdade. Tal retórico é
motivado pelo desejo de vencer; de deixar o interlocutor „embaraçado‟, fazendo com
que o seu ponto de vista pessoal injustificado, e não a verdade, triunfe.

Predigo-te que este jovem, seja qual for a sua resposta, será obrigado a
contradizer-se.97

O diálogo crítico, característica eminente do discurso socrático, o interlocutor


trata-se de testar uma tese, na tentativa de demonstrar a sua incompatibilidade com as

97
PLATÃO. Eutidemo. p. 113ss.

65
outras argumentações formuladas por ele. A coerência interna do discurso é que fornece
o critério para investigação, ou ainda, interrogação crítica, que serve de alicerce para se
testar a compatibilidade argumentativa. Quando o diálogo deixa de ser crítico para
adentrar no caráter verdadeiramente filosófico98 – adquirindo um interesse construtivo
para além da coerência interna do discurso –, os interlocutores procuram entrar num
consenso conceitual sobre aquilo que de antemão foi considerado dialeticamente
verdadeiro.
O diálogo filosófico é impreterivelmente dialético, é ele que determina as
características do método dialético – “nele a concordância dos interlocutores poderia
servir de ponto de partida para argumentação, não porque se trataria de um concurso
de duas opiniões divergentes, mas porque essa concordância seria a expressão de uma
adesão generalizada às preposições em questão.”99 O método dialético é o método de
toda filosofia que pretende dar conta das considerações inesgotáveis do saber filosófico.

98
Neste momento, me refiro a questão da total explicitação da veracidade argumentativa.
99
CLAÏM PERELMAN. Retóricas. p. 52.

66
Considerações Finais

Ao passar por temas essenciais, intrínsecos às Manias – o martírio vivido pelo


amante, a vidência, os poetas, os Deuses, os desejos, a erótica, a alma, a imortalidade, o
amor, a frenesis e a sabedoria –, podemos concluir que a concepção do significado da
Eros (amor), em sua totalidade e abrangência, vai além de uma mera paixão sexual e de
uma composição poética; envolve todo o desejo; uma vontade de se obter aquilo que é
verdadeiramente Bom (como um homem virtuoso, adequado à sua natureza e função).

I. Da Velhice.

Uma das questões ainda muito caras e pouco exploradas, pela filosofia
contemporânea, é o problema da velhice do filósofo antigo quando no viés de toda
formação de si. Depois de todo conhecimento adquirido e passado, ao longo da vida, em
que medida o filósofo faria parte da formação dos jovens e, em que medida se dá o
cuidado de si? O Eros permaneceria tal como um foco de problematização para a
velhice?

Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se


canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém é demasiado jovem
ou demasiado velho para alcançar a saúde de espírito (...). A filosofia
é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo
sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se
foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas
que estão por vir.100

100
EPICURO. Carta sobre a felicidade. Trad. e apresentação A. Lorencini, E. Del Carratore. São Paulo:
UNESP, 2002.

67
Na Grécia antiga, haveria um enaltecimento da velhice. O ancião representa o
sábio, devido ao seu conhecimento e comportamento de vida. A velhice era tida tal
como uma sabedoria necessária para o bem viver. Platão tinha a referência dos anciãos
tais como referência de sabedoria, era ele que defendia e propagava o conhecimento.
Lao-Tsé (604-531 a.C.), filósofo e historiador chinês, percebe a velhice como uma
etapa superior e de alcance espiritual. A velhice como um tempo no qual o homem é
libertado do seu corpo por intermédio do êxtase do ápice de conhecimento – a velhice
enquanto caminho para o homem se desprender da materialidade terrena e tornar-se
espírito, vivendo eternamente livre.
A sabedoria da velhice faria, então, com que o homem tenha autoridade sem a
necessidade de ser autoritário, visto que o sábio justificaria sua autoridade não por ser
sábio, mas por agir com sabedoria, dando exemplos e ensinando. A sua história de vida
seria o seu seu referencial.
Na velhice não haveria, necessariamente, a abdicação dos prazeres corporais;
entretanto, outros prazeres são descobertos e transcendem os prazeres materiais dando
lugar aos prazeres da alma. Com o tempo, os prazeres intelectuais resplandecem sobre
os corporais – o alcance da justa-medida como uma grande aliada para que se tenha uma
maior valorização.
Logo, a velhice seria o momento de ter uma vida mais plena e de maior
contemplação – um período de preocupação em se passar adiante a riqueza intelectual e
espiritual que foram adquiridas durante toda vida.

Deixemos em aberto, então, estas questões que julgo importantíssimas para um


desenvolvimento posterior a esse projeto que, acima de tudo, pretendeu ser uma análise
do percurso filosófico platônico, no Fedro, acerca da própria atividade filosófica , da
experiência da vida do filósofo na antiguidade.

68
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