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br (arquitextos)
Muitos autores acadêmicos têm se debruçado recentemente sobre temas e termos correntes
da arquitetura na tentativa de compreender e explicar o processo de projetação. O
aprofundamento recente destas pesquisas e reflexões tem produzido noções sempre mais
didáticas e esclarecedoras, tanto para estudantes e professores como para arquitetos
com interesses teóricos e mesmo para leigos e amantes da arquitetura.
Escola Coreana
Croquis de Mario Biselli
O termo projetação tem sido pouco usado no Brasil, mas é o termo que define a produção
do projeto de arquitetura como um processo. Este processo tem um momento crítico e
imponderável que foge a qualquer metodologia, mesmo quando a projetação estava sujeita
às regras da composição clássica. Este momento crítico é o momento que envolve as
decisões relativas ao que conhecemos por partido arquitetônico, termo que em outros
lugares é também conhecido como estratégia ou conceito.
Bienal de Arte de SP
Croquis de Mario Biselli
Para efeito desta reflexão usarei o termo partido arquitetônico por ser o mais comum
no Brasil e, creio, mais específico do campo da arquitetura do que estratégia ou
conceito, os quais são muito comuns em outras áreas. Com base na experiência pode-se
também dizer que “partido” é o termo comum à linguagem própria dos arquitetos, o
assunto central, senão único, entre arquitetos no âmbito da produção, do julgamento de
concursos de arquitetura, do ensino de projeto, das conversas informais. E não creio
se tratar de um exagero cogitar a exclusividade do assunto, dado que em “partido” se
compreende a discussão de aspectos como estratégia de implantação e distribuição do
programa, estrutura e relações de espaço, todas elas questões centrais para os
arquitetos. Outros temas relativos às atividades criativas – como composição, estilo,
estética etc. – embora tenham sido objeto de interesse da teoria da arquitetura
recentemente, são tratados no âmbito da prática com pudor e desinteresse, senão como
meros epifenômenos.
Autores modernos, como Carlos Lemos, também propõem definições fazendo uso dos termos
“consequência” e “resultado”, nos quais uma ideia de lógica permanece implícita:
b. o clima.
É certo que todo arquiteto defende seu projeto como um produto da aplicação da lógica
face aos dados fornecidos para sua elaboração. Mas, em arquitetura parece que temos
uma lógica para cada projetista, pois se dependêssemos meramente da lógica, o processo
seria universal e já não caberia qualquer preocupação sobre o assunto. Talvez, neste
caso, a ação de projetar e construir já teriam sido integralmente resolvidos pela
indústria, através de seus computadores e máquinas.
Duas publicações recentes abordam estes temas, suas reflexões são a base para uma
compreensão e críticas contemporâneas desta problemática. São elasAdoção do partido em
arquitetura, de Laert Pedreira Neves e Composição, partido e programa – uma revisão de
conceitos em mutação, de Anna Paula Canez e Cairo Albuquerque da Silva, este último se
tratando de uma coletânea de ensaios de vários autores.
Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli
Destes textos emergem duas idéias principais. Em primeiro lugar, a de que o partido é
a idéia inicial de um projeto e em segundo, que esta idéia é uma criação autoral e
inventiva, e artística na medida em que faz uso da composição. Vemos em Neves as
definições nesta seqüência. Em primeiro lugar:
Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli
“Para Lúcio Costa... ao contrário, tomar partido implica dar início a um percurso
inventivo que se traça sobre um campo de relações em constante formação e
renovação, ainda que aos tateios e sujeito a inúmeros e imprevisíveis retornos e
desvios. Tais relações simultaneamente externas e internas ao objeto projetado
implicam a construção de correspondências entre formas e conteúdos, organizando-
se progressivamente em esquemas que conectam partes antes separadas. Este
dinamismo atribui à construção do partido um sentido eminentemente operativo,
antecipador das configurações compositivas que conduzirão à finalização do
projeto” (8).
Todas estas definições, desde as mais simples como as de Neves, às mais sofisticadas,
como as de Rogério de Castro Oliveira, procuram sempre mais elucidar, ilustrar e
compreender o projeto de arquitetura e o momento de adoção do partido arquitetônico.
Nota-se que no âmbito da experiência prática no Brasil, e em face da maneira como o
tema tem sido abordado tradicionalmente, que cada autor, cada arquiteto poderia
igualmente descrever a projetação de maneira muito similar, alterando a ênfase neste
ou naquele aspecto, simplificando ou elaborando mais e mais o texto, mantendo, contudo
a sua essência.
Deste modo pode-se concluir, a partir destes teóricos brasileiros, que o Partido
Arquitetônico é a idéia inicial de um projeto, que a sua formulação é uma criação
autoral e inventiva com base na coerência e na lógica funcional, e que, o partido,
sendo uma prefiguração do projeto, faz da projetação um processo que vai do todo em
direção à parte.
Aeroporto de Florianópolis
Croquis de Mario Biselli
Este conceito de Partido Arquitetônico parece ser um dos traços mais característicos
da herança corbusiana no Brasil:
Quero propor a seguir algumas reflexões sobre estes temas acima citados em busca dos
novos significados e usos destas terminologias, bem como uma compreensão contemporânea
a respeito destes mesmos processos.
Ginásio Barueri
Croquis de Mario Biselli
Quando se usa a expressão “adoção do partido”, deve-se observar o fato de que esta
afirmação pode pressupor uma biblioteca de partidos adotáveis, como se estivessem
todas as possibilidades já dadas e catalogadas. Convenhamos, analogamente, que adotar
um filho é muito diferente de conceber um filho”.
Proponho aqui pensar sob o pressuposto de que o modo como cada arquiteto projeta é
menos relevante do que o resultado final do seu trabalho. A sua metodologia, que é
sempre particular, tem um interesse menor neste momento.
"Venturi prefere os abrigos decorados, porque ele afirma que a sua comunicação é
mais eficaz, embora os arquitetos modernos tenham se dedicado durante muito tempo
a projetar 'patos'. O pato é, em termos semióticos, um signo icônico, porque o
significante (forma) tem certos aspectos em comum com o significado (conteúdo). O
abrigo decorado depende de outros significados – a escrita ou a decoração – que
são signos simbólicos" (11).
Aldo Rossi propõe: a forma fica, a função muda. Por que então a função deve determinar
a forma? A forma deve ser determinada pelo „lugar‟.
A idéia central (ou Partido) pode ser identificada mesmo em situações onde a
configuração funcional é um dado, uma condicionante ou determinante, fato comum quando
em projetos para estádios, ginásios esportivos, teatros e em alguns casos, aeroportos.
Via de regra configurações funcionais rígidas por tradição ou quando o próprio cliente
é a autoridade no que tange às funções, muito comum no ramo das indústrias. Em todos
esses casos, a despeito dos limites, o arquiteto encontrará espaço para introduzir uma
idéia, ora migrando da forma para a matéria (Herzog & de Meuron, Estádio Allianz
Arena, 2005, na Alemanha, e Estádio Nacional "Ninho do Pássaro", 2008, na China), ora
enfocando radicalmente o design (como em Massimiliano Fuksas, no projeto do Aeroporto
Internacional Shenzhen na China, ver AV proyectos 026 2008, p. 46) ou a tecnologia
construtiva (Renzo Piano, Estadio de Bari, 1990, na Itália, e Richard Rogers,
Aeroporto de Barajas, 2006, Espanha), etc.
O que ainda pode ser dito sobre a adoção/ invenção/ formulação do Partido
Arquitetônico, o momento crítico imponderável, a caixa preta?
Igreja Tamboré
Croquis de Mario Biselli
Vamos admitir que os arquitetos fazem projetos e isto é um fato; portanto, em algum
momento um determinado conjunto de informações se torna uma idéia para um edifício. O
campo das idéias em arquitetura implica em um vasto campo de estudo da teoria e da
história, mas este não é o espaço para desenvolver esse tipo de exercício intelectual
e acadêmico. Vamos apenas considerar, de maneira mais simples, que este fato se
relaciona com um fenômeno humano de grande interesse das ciências humanas, por um
lado, e da filosofia, passando no século XX pelo estruturalismo, semiologia e
semiótica: o fenômeno da linguagem, compreendida como manifestação e processo
intrínsecos às diversas mediações sígnicas. A capacidade humana de inventar
linguagens, a possibilidade de inventar distintas linguagens – verbais e não verbais –
e transitar e fazer transposições entre estas (transtextualidade) são os mecanismos do
intelecto típicos da arte e da arquitetura. Compreendida em maior ou menor grau como
linguagem, a arquitetura é uma atividade desta mesma natureza de mediação e
manifestação da idéia (14).
Assim procedem os artistas, um poeta descreve uma paisagem (transposição do ícone para
o texto), um escritor descreve um personagem (ícone para texto), um desenhista
produzindo um retrato falado (ícone para texto e de novo para ícone), e tantas outras
atividades do homem, um artista pintando um retrato (ícone para ícone), um ator em
cena (texto para texto mais imagem), sempre pressupondo interpretação de um conteúdo
numa linguagem seguido de uma expressão em outra.
“Não havia nenhuma razão especial para que os ingleses designassem um animal
de Bull, os franceses o chamassem de boeuf e os alemães de Ochs. [...]
Mas porque a relação entre significante e significado era arbitrária, devia ser
respeitada por todos. Ninguém pode mudar isso unilateralmente; há um contrato
social entre todas as pessoas que falam inglês de que elas devem usar a
palavra bulltoda a vez que quiserem se referir a esse animal específico. Se
alguém usar outra palavra, ou inventar uma nova palavra para esse fim, ninguém o
compreenderá; ele terá quebrado o contrato social. Note-se de passagem que, com
poucas exceções, não existe um contrato social para o significado da arquitetura,
e esta é uma diferença fundamental entre a arquitetura e a linguagem” (16).
O homem de início pensou sobre as coisas, depois começou a pensar sobre o próprio
pensamento, principalmente depois de Descartes, que levou tudo para dentro do
intelecto (“je pense, donc je suis” – Discours de la Méthode, 1637). Com os arquitetos
não haveria de ser diferente. Em meio a dificuldades de solução para um projeto o
arquiteto freqüentemente se interroga sobre seu pensamento, seu método (que em
projetos anteriores funcionara tão bem!).
Mas o projeto de arquitetura, embora circundado de problemas técnicos e profundamente
vinculado ao uso, é por natureza um processo criativo avesso a enquadramentos,
formatações, metodologias ou fórmulas. Permanece, portanto, e como desde sempre,
aberto à infinita inovação, ao espírito dos tempos, à antecipação de tendências, à
revisão de paradigmas, e, no pólo oposto, a novas visitas e itinerários
interpretativos pelas tradições do passado.
Torres Empresariais na Rua Afonso Brás
Croquis de Mario Biselli
notas
1
BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979,
p. 40.
2
LEMOS, Carlos. O que é arquitetura. São Paulo, Brasiliense, 2003, p. 40-41.
3
Alfonso Corona Martinez. Prefacio. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque
(org). Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação. Porto Alegre,
Ritter dos Reis, 2010, p. 35.
4
AMARAL, Cláudio Silveira. Descartes e a caixa preta no ensino-aprendizagem da
arquitetura. Arquitextos, São Paulo, n. 08.090, Vitruvius, nov. 2007
<www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/194>.
5
NEVES, Laert Pedreira. Adoção do partido na arquitetura. Salvador, Edufba, 1998, p. 15.
6
Idem, ibidem, p. 9.
7
OLIVEIRA, Rogério Castro de. Construção, composição, proposição: o projeto como campo de
investigação epistemológica. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Op.
cit., p. 35.
8
Idem, ibidem, p. 16.
9
ACAYABA, Marlene Milan. Brutalismo caboclo e as residências paulistas.Projeto, São Paulo,
n. 73, 1985.
10
FUTAGAWA, Yukio. Modernism Architecture of Brazil. GA Houses, Tóquio, n. 106, p. 8. No
original em inglês:
“Throughout the periods before and after the World War II, Brazilian architecture went
through some unique development conducted by the creative works of those pioneering
architects such as Lucio Costa, Alfonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Lina Bo
Bardi. The principle of the modernism was fostered and adapted to the unique, local
conditions and contexts of Brazil, as if the idea of the modernism sympathized with
Brazil´s tropical climate and the culture of the people who reside there. Later on, a
unique and original form of the architecture only found in Brazil has brought to light,
which goes beyond the original modernism movement.
The military regime founded in 1964 brought a 20 years of cultural stagnancy to Brazil, but
at the same time that also caused their architecture field to be isoladed from the
postmodernism movement that had involved all over the world at that time. Consequently
Brazil has become one of the rarest countries that remain with the legitimate successors of
the modernism movement, and this background strongly affected to produce today´s young
architects following the modernism priciple among new generations”
11
JENCKS, Charles. The Language of Post-modern Architecture. Nova York, Rizzoli, 1977, p. 45.
No original em inglês:
“Venturi would prefer more decorated sheds, because he contends, they communicate
effectively, and modern architects have for too long only designed „ducks‟. The duck is, in
semiotic terms, an iconic sign, because the signifier (form) has certain aspects in common
with the signified (content). The decorated shed depends on learned meanings – writing or
decoration – which are symbolic signs.”
12
SPADONI, Francisco. Rossi: figura, memória e razão. In: Informe arqlab(boletim informativo
do Laboratório de Arquitetura do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Belas
Artes), São Paulo, n. 1, fev. 1998, p. 3.
13
SUMNER, Anne Marie. Prefácio. In: Gridings, Scalings, Tracings and Foldings in the work of
Peter Eisenman. Catálogo de exposição. São Paulo, Masp, 1993.
14
Abordagens acerca do mesmo fenômeno, ver:
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites I (1980). In: NESBIT, Kate (org.).Uma nova agenda
para a arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 172-177.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites II (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p.
177-182.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p.
183-188.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p.
183-188.
TSCHUMI, Bernard. Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica (1988). In:
NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 188-191.
16
BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura. In
NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 153.
sobre o autor
Mario Biselli é arquiteto formado pela FAU Mackenzie, mestre em Arquitetura e Urbanismos
pela mesma instituição. É sócio do escritório Biselli & Katchborian arquitetura e professor
do Departamento de Projeto da FAU Mackenzie