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Introdução

O parentesco e o casamento, constituem uma de entre as várias fascinantes áreas pertencentes ao campo da antropologia.
Para os estruturo-funcionalistas em particular, estes são a coluna vertebral da organização sincrónica da sociedade visto que,
nele se fazem presentes as várias esferas da vida social e é aqui onde as relações sociais ganham corpo. É este um tema
clássico em antropologia que muito contribuiu para a compreensão do real social, fundamentalmente, o africano. Já dizia
Radcliffe-Brown que não se pode compreender os aspectos da vida social das sociedades africanas, sem que se recorresse
ao conhecimento dos sistemas de parentesco e casamento aí subjacente.
Gluckman, antropólogo social britânico, participara exaustiva e sistematicamente na colectânea de ensaios comparativos,
gerais e teóricos, dirigidos por Radcliffe-Brown e Forde, contrastando o sistema Zulu e o Lozi, fazendo um estudo
comparativo e evidenciando aspectos como o sororato e a poliginia sororal, vincando os contrastes de um sistema
puramente cognático (os Lozi) e outro de direito paternal (o Zulu) e igualmente, com os Nuer do Sudão, no que se refere á
prática do casamento. Questões como o divórcio, que nos parecem tão modernas, são muito antigas e constitui igualmente
um fenómeno que Gluckman versou sobre ele.
O objectivo do trabalho em alusão, é de proceder á uma análise integral e sistematizada do artigo deste expoente da
antropologia, Max Gluckman. Neste sentido, não se poderá versar sobre o mesmo sem compreender a corrente de
pensamento que cerceou a abordagem deste autor pelo que, procurar-se-á fazer um breve retrato daquilo que foi a sua
linha de pensamento, bem como a abordagem teórica que circundou o estudo acima referido.
A metodologia adoptada para o trabalho, cingiu-se por um lado, numa pesquisa documental ás diferentes fontes
disponibilizadas ligadas ao tema que serão oportunamente apresentadas no quadro das referências bibliográficas, por outro
lado, baseou-se a elaboração deste, na aplicação prática dos conhecimentos adquiridos nesta disciplina.
Retratando o perfil do autor
Não se pretende com este trabalho proceder a apresentação biográfica de Max Gluckman mas, importa referir que este
antropólogo nasceu á 1911 em Joanesburgo, na África do Sul
Teve o seu primeiro contacto com a antropologia na Universidade de Witwatersrand. Os seus trabalhos intelectuais iniciam
em 1939 no instituto Rhodes Livingstone antes de ser o primeiro professor de antropologia social na Universidade de
Manchester em 1949.
1.2. Gluckman e a Escola de Manchester
Desenvolvendo as ideias de Bronislaw Malinowsky e Radcliffe-Brown, Gluckman traz a ideia de Marx de conflito e equilíbrio
social numa perspectiva diferente e inovada ampliando assim o campo teórico da antropologia nos anos 30.
Segundo Kuper (1973), Gluckman ao lado de Leach, fez uso da perspectiva histórica para investigar problemas relativos à
conflitos nas normas e manipulação das regras, procurando analisar a dinâmica dos sistemas sociais. Por conseguinte,
defende Gluckman que o antropólogo social deve estudar períodos de relativa estabilidade quando os sistemas sociais se
aproximam ao estado de equilíbrio visto que, estes não são fruto da simples integração dos grupos às normas mas, da
dialéctica norma vs conflito. Gluckman contrastava os sistemas estáveis com a situação que encontrava no terreno, o que
importava para ele, era que os membros de grupos distintos estavam simbólica e verdadeiramente divididos e opostos em
todos os aspectos; este autor partia de uma análise situacional.
Traços característicos dos Zulu e dos Lozi
Gluckman, procura contrastar os sistemas de parentesco e casamento entre os Lozi e os Zulu.
Os Lozi, constituem um grupo de indivíduos que reside na grande planície do Alto Zambeze, constroem suas palhotas sobre
os montes que se enchem de água durante o verão.
As aldeias são por um lado, habitadas por grupo pequeno de parentes agnates e outros cognates e suas mulheres. Um outro
tipo de aldeia aqui presente, pertence à família real. Os Lozi não reconhecem nem clãs e nem linhagens, apresenta uma
ausência deste grupo orgânico unilinear de parentes. Os Zulu, habitam em grupos de agnates e suas mulheres; a linhagem é
corpórea e seus segmentos se mantêm no tempo, independentemente das mudanças de pessoas. As aldeias estão divididas
em ramos patrilineares. Este povo é descrito como sendo de direito paternal.
2.1 Parentesco e Casamento entre os Lozi e os Zulu
O sistema de parentesco e casamento segundo Radcliffe-Brown (1950: 13), não significa nada mais e nada menos que um
arranjo que permite às pessoas viverem juntas e cooperarem umas com as outras segundo uma certa ordem social.
Do exposto acima, pode-se atrever em afirmar que este sistema envolve a união de grupos e não indivíduos isolados pois
aqui, domina um interesse partilhado por um mesmo grupo de indivíduos. Este sistema, exerce segundo a expressão
malinowskyana, uma função social visto que, desempenha uma função (não vital como diria Malinowsky mas, fundamental)
para a manutenção da coesão / ou da ordem social da estrutura ai subjacente.
Gluckman, argumenta que o sistema de parentesco Zulu é semelhante ao dos Swazi que, segundo Kuper (1950), é um
sistema que apresenta uma família elementar composta por mãe, filho e pai. Estes, são segmentados por um determinado
número de clãs exogámicos, que assentam em uma estrutura genealógica, tendo os membros deste segmento, direitos
sobre o rebanho, sobre a terra e direitos residuais de sucessão.
Tal como entre os Swazi, a obtenção de mulheres por parte do clã exogámico é feita a partir da transferência de gado que
comprova a aceitação legal da família da noiva conhecido por emabeka segundo o costume de ukulobola (Kuper, 1950: 120).
Um conjunto de termos é usado para se auto-designar e, todos eles têm um significado social e a sua explicação encontra-se
ancorada dentro deste sistema, ora vejamos, os irmãos do pai são “pais” dos seus filhos e as suas irmãs, “pais-mulheres”; as
irmãs da mãe são “mães “ e os seus irmãos “mães-homens”. O facto de as irmãs serem consideradas mães pode a meu ver,
encontrar o seu fundamento no facto de estas numa fase posterior cuidarem destes mesmos filhos como se verificará
posteriormente com a realização do sororato.
Tal como já se havia referenciado na descrição das características Lozi, não existe aqui um grupo corpóreo unilinear de
parentes. Existe uma acentuada diferença entre estes, no que se refere às relações de um filho com os parentes de seu pai e
os de sua mãe, não existe grupo dominante de parentes unilinear, quer na linha patrilinear do pai, quer na matrilinear da
mãe, podendo-se assim depreender que a criança pertence à ambos lados, facto que não sucede no sistema Zulu.
Este fenómeno, encontra a sua razão de ser no facto de os Lozi não estabelecerem um modo singular de filiação como os
Zulu e também os Swazi, estes incluem linhas mistas. Diz-nos Gluckman que os Lozi lembram a sua genealogia até quatro
gerações de adultos.
Entre os Lozi, genro e sogra e sogro e nora, abstêm-se mutuamente, não devem sentar-se a sós numa palhota ou em
qualquer outro sítio. Esta relação de distância ou evitamento, fazendo uso do termo Browniano, está intimamente ligado
não só ao exercício mas também, evita o conflito entre eles. Segundo Radcliffe-Brown (1979), estas normas pelas quais o
Homem é obrigado a manter a distância social entre ele e os parentes da sua mulher, mantêm e evita quaisquer tipos de
tensões ou conflitos entre eles, conservando assim, uma relação amigável.
Este fenómeno porém, não se verifica entre os Zulu. No entanto, a nora evita o uso de palavras parecidas com os nomes de
seus afins seniores e mantêm relações de gracejo com os seus cunhados irmãos do seu marido.
Importa ainda referir que entre os Lozi, cada nome de família está relacionado com uma fase histórica Lozi. Certas aldeias
que são construídas sobre as colinas, são conhecidas como distantes antepassados dos Lozi e cada nome é referido á uma
aldeia ancestral num desses montes. A posse do nome de família Lozi, possibilita a um Homem deste povo, apontar para a
sua aldeia e intitular-se um verdadeiro Lozi.
Outro aspecto de maior destaque no estudo realizado por Gluckman no que se refere ao parentesco, está no contraste
existente entre os Zulu e os Lozi em que, contrariamente aos Lozi, os direitos de um Homem Zulu à sucessão, residem
somente na linhagem agnática e o casamento entre agnates reconhecidos como tais, dentro de uma certa escala é proibido.
Proíbem também o casamento de um Homem com uma mulher da linhagem da sua mãe.
Entre os Lozi com um sistema de parentesco dogmático, o direito matrimonial proíbe o casamento entre quaisquer pessoas
cognaticamente aparentadas dentro de um certo grau.
3.1. O Casamento Sororal
A análise levada à cabo por Gluckman, fornece uma forte comparação entre os Lozi e os Zulu no que respeita ao sororato e a
poliginia sororal. Tanto em uma quanto na outra sociedade, a poliginia é evidente. Porém a poliginia sororal ou o sororato só
se assiste entre os Zulus que, aprovam o casamento com duas irmãs mais novas da mulher aumentando assim, a
solidariedade do grupo familiar. Esta irmã mais nova se torna subordinada de modo que ela passa a ter uma companheira
que comparticipará dos seus labores e dos cuidados extremos para com os filhos, sem que seja de uma co-mulher estranha.
Os Lozi, no entanto, opõem-se ao casamento mesmo com a irmã classificatória da esposa, argumentam que a concorrência
e rivalidade entre duas co-mulheres pode destruir as relações que devem existir entre as irmãs. A esposa e os parentes
protestam vivamente este acto e as mulheres abandonam aos seus maridos, caso estes contraiam este tipo de casamento
pois, as mulheres não podem ser postas na posição de competir pelos favores de um Homem ou os seus filhos de
competirem pelas suas heranças em ambas linhas.
O fundamento para a existência desta grande diferença é encontrada nas estruturas sociais visto que, entre os Zulu existe
uma unidade do grupo dos germanos, com a sua implicação na substituição do irmão tanto no exercício de actividades como
também para fazer filhos, caso seja estéril, o mesmo sucede para o caso das irmãs. Este facto é por conseguinte secundário
entre os Lozi, a solidariedade do grupo de linhagem encontra-se patente simplesmente entre os Zulu.
Neste sentido, Gluckman inicia a sua análise não pelo contacto de casamento mas, pela sua dissolução visto que, a
instabilidade entre os Lozi e a sua estabilidade entre os Zulu mostram a diferença entre os complexos matrimoniais, o que
serve de base para toda uma série de regras.
Entre os Zulu, este tipo de matrimónio é aceite pois, as irmãs ajudam-se umas às outras e é pouco provável que o divórcio
de uma irmã estrague o casamento de outra ou que a sua competição pelo marido conduza à um divórcio. O casamento
segundo Gluckman, une fortemente as linhagens.
Entre os Lozi, todo o casamento é potencialmente instável que uma irmã co-mulher ficaria provavelmente envolvida no
conflito que se levantasse de uma disputa com a sua irmã e a competição conduziria à um divórcio ou de uma ou de outra.
Sumariamente entre os Zulu, o casamento afasta uma mulher do seu grupo de parentes para o do seu marido, o “amor de
irmãs” é um nó adicional entre as co-mulheres. Entre os Lozi, a principal ligação de uma mulher permanece com os seus
próprios parentes e não com os parentes do seu marido e o “amor de irmã” não deve ser posto em perigo.
3.2. Casamento entre os Zulu de Natal e os Nuer do Sudão
Os Zulu de Natal e os Nuer do Sudão descritos por Evans-Pritchard, têm o mesmo tipo de casamento e formam o mesmo
tipo de famílias. Tanto uma quanto outra, têm famílias leviráticas, quando morre o marido e deste é escolhido um parente
para viver com a viúva e os filhos, ele gera mais filhos para o falecido e, este não paga o gado para o casamento. No entanto
é necessário tal como defende Evans-Pritchard, discernir o casamento levirático, em que o falecido continua a ser marido da
viúva sendo também seus filhos que futuramente não pertencerão ao homem que com ela viverá da sucessão da viúva, em
que se espera que a viúva case ou seja mesmo compelida a isso, com um parente do homem falecido.
Para além da família levirática, têm a família legal simples (ou composta quando tem mais de uma mulher), que é formada
por um Homem e por uma mulher por quem ele deu o gado do casamento e pelos filhos e igualmente a família natural que
é rara entre os Zulu, composta por um Homem que vive com a sua concubina e os seus filhos.
Tal como os Nuer, os Zulu têm o casamento de espírito que se efectiva de duas formas, a primeira, se um homem estava
noivo e morreu, a sua noiva deve casar com um dos parentes dele e conceber filhos para o falecido, como se ela fosse viúva.
A segunda, um homem pode “acordar” um parente morto que nunca esteve noivo, casando em seu nome com uma mulher
e produzindo filhos para ele. Uma outra forma de casamento predominante nestas duas sociedades, é o casamento entre
duas mulheres, dando por ela, o alembamento e a primeira será pater dos filhos de sua mulher, gerados por algum parente
desta mulher-marido e os filhos pertencerão à linhagem agnática desta.
Entre os Lozi nenhuma destas práticas de casamento entre mulheres, do fantasma e ainda o levirático são comuns.
3.3. O Alembamento
Todas as formas de casamento acima descritas, dependem das consequências legais que fluem do gado que um Zulu dá pela
sua noiva. De acordo com Gluckman, o gado faz dele o pater de todos os filhos dela, seja ou não o genitor.
O objectivo do alembamento é a obtenção dos filhos, e os Zulu dizem que no passado eles só começavam a pagar o gado
depois de ter nascido o filho. O efeito desta regra é de conferir estabilidade ao casamento legal.
Argumenta Gluckman, que se uma mulher morre antes de dar à luz filhos, ela não preencheu a finalidade para que o gado
do casamento tinha sido dado, ainda que tenha trabalhado e prestado serviços sexuais, e a família deve substitui-la por pela
irmã mais nova ou, então, deve devolver o alembamento. O casamento Zulu constitui assim, uma união longa e duradoura
que se estende aos parentes, acima de todas as linhagens agnáticas.
Entre os Lozi, o alembamento dá ao homem, o direito de afastar outros homens de sua mulher e o direito de a vigiar.
Segundo o direito Lozi, a entrega do alembamento é essencial para transmitir os direitos sobre a pessoa da esposa. O
pagamento do alembamento não confere à um Lozi o direito a todos os filhos da mulher, como dá a um Zulu.
Sumariamente Gluckman transmite a ideia de que tanto entre os Lozi, quanto nos Zulu, o casamento concede o direito ao
homem de vigiar os movimentos da sua esposa. Entre os Zulu, ele tem também direito a todos os filhos da mulher, e este
direito fica-lhe a pertencer para sempre e ao seu grupo agnático, depois da sua morte. Assim, o casamento Zulu, transfere
incondicionalmente a fertilidade de uma mulher para o grupo agnático de parentes do seu marido, e um elemento essencial
do contracto é ela ter filhos.
É todo este conjunto de diferenças que permitiu que Gluckman contrastasse os sistemas Zulu e Lozi e obtivesse
posteriormente uma matéria ideal para que pudesse materializar a comparação.
Conclusão
Analisado e esmiuçado o artigo de Max Gluckman, pôde-se depreender que este pai fundador da escola de Manchester,
proporcionou a disciplina antropológica não só um repertório de referencial etnográfico mas também, um elenco
paradigmático de temas e questões. Gluckman, faz uma antropologia rica, que não rotula nem aos Zulu e muito menos aos
Lozi, procura sim compreender como se procede a dinâmica interna destas sociedades, respeitando os seus hábitos e
costumes. A riqueza deste artigo, está na forma como é por Gluckman manuseada a informação e transmitida. Ao mostrar o
vincado contraste existente entre os Zulu e os Lozi, oferece uma forma diferente e fascinante de olhar para o funcionamento
destas duas sociedades e porque não dizer também para a realidade moçambicana, visto que, vários aspectos por ele
levantados são de certa forma característicos deste país. Uma vez mais, materializou-se a máxima de Radcliffe-Brown
segundo a qual, para se compreender qualquer aspecto da vida social de uma sociedade africana, deve-se conhecer a sua
organização de parentesco e casamento, visto que, Gluckman analisou todo um conjunto de direitos e deveres costumeiros
nas relações sociais subjacentes nestas sociedades que fundam e legitimam a ordem social destas mesmas sociedades.

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