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MOSTRA D E

CI N EM A
ESCO L A:
CIDAD E
ABER T A

3 - - - 16 /// agosto // 2017


AR TSO M
ED
AM ENIC
:A LOCSE
EDADIC
A TRE BA
Desde 1861, a CAIXA está presente na história de É com essa conjuntura que a CAIXA patrocina a
cada brasileiro, seja na concessão de crédito mostra Escola: Cidade Aberta, que apresenta um
acessível, no financiamento habitacional, no conjunto de longas, médias e curtas de vários países
desenvolvimento das cidades - por meio de e épocas diferentes que trazem a instituição escolar
investimento em projetos para infraestrutura e como foco central de representação, com o intuito de
saneamento básico - seja na execução e fomentar reflexões em torno do sistema educacional
administração de programas sociais do Governo - demarcado, nos últimos anos, por processos de
Federal. contestação. Por meio de exibições, palestra, mesa-
redonda e debates, serão oferecidas atualizações
Como instituição financeira, agente de políticas conceituais e históricas acerca das obras, permitindo
públicas e parceira estratégica do Estado brasileiro, a convergência e o enfrentamento de ideias
sua missão é atuar na promoção da cidadania e do relacionadas à compreensão do espaço escolar
desenvolvimento sustentável do país. A CAIXA enquanto um ambiente de opressão e resistência.
vislumbra em sua atribuição a motivação para estar
presente em todos os momentos da vida do brasileiro, Com este projeto, a CAIXA ratifica a sua política
aproximando-se das suas necessidades e anseios e cultural, a sua vocação social e o seu propósito de
participando das suas realizações. democratização do acesso aos seus espaços e à sua
programação artística. Desta forma, ela cumpre seu
Nesse contexto, nada mais natural que a CAIXA se papel institucional de estímulo à difusão e ao
aproxime da cultura nacional, propiciando acesso às intercâmbio do conhecimento, contribuindo para a
mais variadas manifestações artísticas e intelectuais valorização da identidade brasileira bem como para o
e contribuindo para a preservação do patrimônio fortalecimento, a renovação e ampliação das artes no
histórico brasileiro. Por meio de sua programação nos Brasil e da cultura do nosso povo.
espaços da CAIXA Cultural, presentes em sete
capitais do país, a instituição vem, ao longo das
últimas décadas, viabilizando projetos que promovem
a formação intelectual e cultural da população. O Caixa Econômica Federal ///////
Museu e o Programa Educativo Caixa Gente Arteira
complementam esse esforço na formação de público
e na difusão de saberes e práticas artísticas e
culturais.
ÍN DIC E APRESENTAÇÃO - - - - - 09
ENSAIOS //
Roberto Cotta - - - - - - - - - A Repressão e seus Túmulos - - 22
Leonardo Amaral - - - - A Subversão da Ordem - - - - - 26
Affonso Uchôa - - - - - - - - - - - - Cinema Inocente, Fábulas da Culpa - - - - - - 32
Victor Guimarães - - - - - - - Uma Insurreição Sensível contra a Monotonia - - - - 40
Luiz Carlos Oliveira Jr. - - - - - - - - A Arte de Gazetear - - - 46
Dalila Martins - - - - - - - Desajustes - - - - - - 54
Calac Nogueira - - - - - Vontade e Impotência - - - - - - 58
Maria Chiaretti - - - - - - - - - - - Notas sobre Passe Ton Bac D’abord - - - - 62
Ruy Gardnier - - - - - - - - - - - - O que a Escola Ensina - - - - 68
Hannah Serrat - - - - - Reinventar Abismos - - - - - 74
Francis Vogner dos Reis - - - - - - Smells Like Teen Spirit - - - - - 80
Ursula Röselle - - - - - - - Elefante, ou os Mistérios que o Céu Abriga - - 86

FILMES ///
Abbas Kiarostami - - - - - - - - - - - Duas Soluções para um Problema - - - 96
João Nicolau - - - - - - - Gambozinos - - - - 98
Marcelo Lordello - - - - - - - - - - Nº 27 - - - - - - 100
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub - - - - - - - - Rachachando - - - 102
Terence Davies - - - - - - - - Crianças - - - - - - 104
Jean Vigo - - - - - - - - Zero de Conduta - - - 106
Maurice Pialat - - - - - - - - - - Antes Passe no Vestibular - - - - - - 108
Yasujiro Ozu - - - - - Bom Dia - - - - 110
Leonardo Favio - - - - - - - - - Crônica de um Menino Solitário - - 112
Ana Carolina - - - - - - - - - - - - Das Tripas Coração - - - - - - 114
Gus Van Sant - - - - - - - - Elefante - - - - - - 116
Frederick Wiseman - - - - - - - - Ensino Médio - - 118
Xavier de Oliveira - - - - - - - - - Marcelo Zona Sul - - - - - - 120
Abbas Kiarostami - - - - - - - - Onde Fica a Casa do Meu Amigo? - - - - - 122
François Truffaut - - - - - Os Incompreendidos - - - - - 124
Allan Moyle - - - - - - - - - Um Som Diferente - - - - 126
Laurent Cantet - - - - - - - - Entre os Muros da Escola - - - - 128

PROGRAMAÇÃO - - - - - 130
ATIVIDADES - - - - 134
CRÉDITOS - - - - - 142
AGRADECIMENTOS - - - - - 144
por Leonardo Amaral
e Roberto Cotta

Os dispositivos disciplinares estabelecem, de


acordo com Michel Foucault, as relações de
vigilância e controle social em algumas das
instâncias sistemáticas e discursivas da sociedade.
Em Vigiar e Punir, o filósofo desenvolve um
pensamento que reverbera um modelo de controle
configurado pelo filósofo e jurista britânico Jeremy
Bentham, ao final do século XVIII, que recebia
o nome de “panóptico”1. O modelo em questão
possibilita que um único vigilante observe todos os
prisioneiros, sem que eles possam vê-lo. Desse
modo, a sensação dos prisioneiros (ou pacientes
de um manicômio, ou alunos de uma escola) é de
estarem sob uma constante vigilância e controle.

Para Foucault, portanto, o panóptico seria um


elemento fundamental na construção das relações
de poder também dentro da escola. O sistema

  FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.


1

Petrópolis: Vozes, 2009.


educacional cumpriria uma função de controle e localidade que abandona seus esforços de defesa
de reafirmação de relações hierárquicas impostas e se rende ao inimigo, quando atacada ou invadida.
por um diagrama e uma linguagem discursiva. Assim, a mostra “Escola: Cidade Aberta” remete
Segundo o filósofo, em A ordem do discurso, “todo diretamente a esse clássico incontornável do
sistema de educação é uma maneira política de cinema mundial (que trata de questões políticas
manter ou modificar a apropriação dos discursos, a partir de atos revolucionários pulsantes), na
com os saberes e os poderes que eles trazem medida em que traz filmes que apresentam a
consigo.”2 Desse modo, o ambiente escolar e o instituição escolar sendo questionada ou vista
sistema de ensino podem representar tanto um como um local possível para transformações
lugar de opressão de uma subjetividade, em favor individuais e coletivas. A escola representada
de um modelo pré-estabelecido, como também pelos filmes escolhidos é um lugar propício para
um local de reconfiguração do discurso que dá a o confronto de ações, instituição na qual as
ver novos módulos de resistência e subversão da relações de dominação e resistência se encontram
ordem. impulsionadas por distintas instâncias de poder e
luta.
A escola é uma instituição que tem como princípio
básico proferir o conhecimento. Por conseguinte, As contraposições ao modelo hegemônico de
o professor seria a figura responsável por rigidez da escola estão orientadas, muitas vezes,
12 transmitir esse saber, ao passo que os alunos em jogos de brincadeira que subvertem um tipo 13

representariam aqueles que ainda não possuem de ordem. As travessuras e diabruras feitas pelos
a luz, de acordo com a própria etimologia da estudantes em Zero de Conduta (Zéro de Conduite,
palavra. Assim, existe de antemão uma relação 1933), de Jean Vigo, e em Aniki Bobó3 (1942),
de poder imposta dentro dessa instituição. Não é de Manoel de Oliveira, são expressões de uma
à toa que Foucault traça um paralelo entre quatro anarquia que se volta contra castigos e punições
lugares cujo funcionamento é permeado pelo impostas pela escola. O mundo adulto representa
panóptico: a escola, a fábrica, o manicômio e a uma ameaça à liberdade, algo que também se
prisão. Nos quatro, impera um sistema severo de confirma em Gambozinos (2013), de João Nicolau,
vigília e punição, e a verticalização das relações é que mostra como as fantasias do universo infantil
contraposta por formas horizontais de resistência. são potências diante das impossibilidades do
universo dos mais velhos. A candura da infância
Em Roma, Cidade Aberta (Roma, Città também pode funcionar como metáfora para
Aperta, 1945), de Roberto Rossellini, comunistas a resolução de um problema que se mostra
e católicos italianos se unem para combater as praticamente impossível de ser solucionado (os
tropas nazistas e fascistas que haviam ocupado a conflitos no Oriente Médio), como ocorre em Duas
capital do país. O termo “cidade aberta” consiste Soluções para um Problema (Do Rahehal Barayeh
numa denominação bélica atribuída a uma

3
  Embora fizesse parte da lista original de filmes desta mostra,
  FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no
2
a obra em questão não poderá ser exibida por causa de uma
Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. inviabilidade na obtenção de seus direitos. Mesmo assim, o texto
São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 44. dedicado a ela foi mantido no catálogo.
yek Massaleh, 1975), de Abbas Kiarostami, ou ensaiado por Marcelo, no filme de Xavier de
como uma fortíssima e contundente crítica às Oliveira, Marcelo Zona Sul (1970). Assim como
limitações de um ensino que cerceia expressões Doinel, Marcelo parece não acatar as regras e as
criativas, tal qual acontece em Rachachando (En imposições que apresentam apenas um caminho
Rachâchant, 1982), de Danièle Huillet e Jean-Marie possível para a vida adulta.
Straub.
Em outro filme presente na mostra, Bom Dia
A perspectiva da infância e seu confronto com um (Ohayô, 1959), Yasujiro Ozu radicaliza no trato
mundo de regras e constrangimentos encontram com a solidez e doutrina do sistema educacional
ressonância forte em Crianças (Children, japonês. Dois garotos estabelecem uma pequena
1976), de Terence Davies. A repressão sexual crise na vizinhança ao se recusarem a fazer as
e a violência cotidiana de uma escola rígida e lições de casa para assistirem televisão. Tal qual
doutrinadora acompanham e acanham o caráter Ernesto, personagem de Rachachando, os dois
do personagem do filme, que se mostra impotente alunos se lançam em uma via de contestação
em relação ao que se observa ao redor. Algo inocente das mais fortes em relação a certo tipo
parecido com o que ocorre em Nº 27 (2008), de cultura arraigada em uma sociedade bastante
de Marcelo Lordello, no qual o personagem tradicional. A repressão e a rebeldia também
principal (um garoto secundarista) passa por uma atravessam Crônica de um Menino Solitário4
14 situação constrangedora e é forçado, por colegas (Crónica de un niño solo, 1965), de Leonardo 15

e pela escola, a um enfrentamento radical que Favio. Ao dar um soco no rosto de um professor, o
o oprime ainda mais. Em Onde Fica a Casa do garoto Polín tenta revidar uma extenuante rotina de
Meu Amigo? (Khane-ye Doust Kodjast?, 1987), humilhações sofridas num orfanato. Longe de lá, o
Abbas Kiarostami mostra, através da simplicidade protagonista percebe que os desafios encontrados
objetiva que é peculiar de seu cinema, o modo talvez possam ser tão opressores quanto à
como as imposições sociais e culturais vistas clausura imposta pela instituição. A criança se
nas instituições reconfiguram as relações entre liberta das grades do orfanato, mas é impossível
as pessoas. Ao buscar a casa do amigo para lhe fugir das prisões experimentadas nas ruas.
devolver o caderno, o jovem estudante é movido
por uma única coisa: o medo da repressão. A escola se mostra, muitas vezes, como esse
território minado que determina lugares no mundo
Situações de opressão e doutrinação se repetem que funcionam segundo uma dicotomia entre
inúmeras vezes em Os Incompreendidos o caminho do cidadão “de bem” e o marginal.
(Les Quatre Cents Coups, 1959), de François Em Antes Passe no Vestibular (Passe Ton
Truffaut. Todavia, ao contrário dos outros três Bac D’abord, 1978), há uma definição muito
filmes supracitados, Antoine Doinel, personagem clara: passe no vestibular, siga uma profissão
principal, percorre a outra via que não a do
recalque. Através de uma rebeldia latente, ele
4
  Como os diretos de exibição deste filme foram obtidos somente
busca a fuga como modo de insurgir contra um após a conclusão dos textos que compõem este catálogo, não
houve tempo hábil para a inclusão de um ensaio dedicado a esta
sistema de limitação do sujeito. Algo também obra.
socialmente respeitada e tenha sucesso na vida. e em um conservadorismo na política e na cultura.
A cartilha, todavia, é falha. Não há oportunidade Isso pode ser visto em Um Som Diferente (Pump
para todos e é um ledo engano achar que essa Up the Volume, 1990), de Allan Moyle.
hermenêutica do futuro profissional seja correta.
Os desejos e anseios dos personagens do filme de Por fim, anos 2000. O atentado ao World Trade
Maurice Pialat se mostram bem mais complexos e Center, em 2001, faz com que os Estados Unidos
verdadeiros do que esse tipo de imposição, ainda iniciem um programa de caça ao terror que mais
que ela determine uma estratificação social e uma vez guia o país a intervenções no Oriente
arraste para a marginalidade os sonhos juvenis. Médio. O inimigo é o outro, de acordo com essa
política de contra-ataque. Porém, o terror pode
Sonhos esfacelados como os de uma geração estar em casa, em uma sociedade que não olha e
inteira de jovens estadunidenses. Década de não dá lugar para que seus jovens sejam livres. O
1960, Guerra Fria, Estados Unidos envolvidos bullying e a negação do outro provocam uma forma
em diversos conflitos em países asiáticos. Há de rebatimento, como no caso dos estudantes
um discurso nacionalista que permeia a aura da que decidem levar armas para a escola e atirar
sociedade da nação na época, e que deságua em seus colegas como modo de lidar com uma
também na educação. Hierarquia e ordem são sociedade marcada pela intolerância. Gus Van Sant
palavras fortes e podem ser percebidas em Ensino acompanha, em Elefante (Elephant, 2003), um
16 Médio (High School, 1968), de Frederick Wiseman. dia numa escola secundária de Portland prestes a 17

O célebre documentarista acompanha os vieses encarar uma tragédia devastadora. Reflexos dessa
desse discurso totalizador em apenas mais um dia mesma estrutura contextual podem ser percebidos
de aula numa escola de secundarista da Filadélfia. em Entre os Muros da Escola5 (Entre les Murs,
2008), de Laurent Cantet. Numa escola francesa,
Anos 1990: fim da Guerra Fria, no entanto, período alunos e professores de uma instituição pública
ainda fortemente marcado pelo intervencionismo vivenciam uma rotina demarcada por diversas
dos Estados Unidos em países do Oriente práticas discriminatórias. Num ambiente composto
Médio, sob a justificativa esdrúxula de impedir por pessoas de diferentes etnias, bem como
o surgimento ou manutenção de ditaduras distintos processos de formação, a convivência
sanguinárias. Os interesses econômicos resvalam entre todas as instâncias escolares se apresenta à
em um tipo de doutrinação que vem desde a beira de um colapso.
escola. É preciso ser forte, é preciso ser vencedor,
assim é a imposição nas instituições educacionais. Jogos de poder estão presentes o tempo todo na
Quem está fora disso é o loser, ou seja, um pária sociedade e tem um de seus lugares de disputa a
social. Poucos encontram formas de contestação. instituição escolar. Em um internato feminino, as
A resistência pode estar na criação de uma rádio coisas parecem estar fora do lugar. Ana Carolina,
pirata que inflama os estudantes no combate contra
as perseguições e doutrinas de um modo escolar 5
  Este filme será exibido numa sessão especial promovida pela
Caixa Cultural de São Paulo, voltada para estudantes do ensino
que está totalmente orientado por um contexto médio de escolas públicas paulistanas. Uma vez que a obra não
faz parte da curadoria oficial de filmes da mostra, não haverá um
histórico de um neoliberalismo radical na economia texto específico direcionado à sua análise.
em Das Tripas Coração (1982), mostra como a
subversão da ordem é uma fórmula eficaz de brigar
dentro desses jogos de poder. As violências físicas
e simbólicas presentes no filme revelam como
a escola é um lugar de embates. A ordem está
estabelecida, a doutrina se encontra muito bem
encastelada, a vigilância permanece e a punição
é uma maneira de se manter toda essa estrutura.
Mas é possível resistir e é preciso bradar por seu
lugar. Resistir como uma rocha, com a fluidez de
uma gota d’água.

referências
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula

inaugural no Collège de France, pronunciada em 2

de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola,

2006.

18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da 19

prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.


A REPRESSÃO
E SEUS
TÚMULOS
por Roberto Cotta

Crianças A grande felicidade é que as crianças quando

///// Terence Davies /// 1976 /// Reino Unido crescem esqueçam a instrução, sem o quê os

próprios adultos não se poderiam mais entender.

Aí tens: é ela, a instrução, que provoca o maior mal

Nº 27 no homem...

// Marcelo Lordello // 2008 ////// Brasil Maksim Gorki, O Pastor

Na calada da noite, quando o menino Robert


Tucker amedronta-se diante do caixão que abriga
o corpo do pai, a repressão atinge o grau máximo

Roberto Cotta de evidência em Crianças (Children, 1976), de

///// Professor na Escola Livre de Cinema (ELC/ Terence Davies. A noção estabelecida pela cena

BH), crítico pela revista Rocinante e um dos não poderia ser mais precisa: será impossível

coordenadores do cineclube Cine Sorpasso. livrar-se da opressora figura paterna mesmo

Doutor em Artes pela UFMG, na linha de após sua morte. A reação ao cadáver também

pesquisa Cinema, onde defendeu tese sobre a deixa claro que o regime repressivo vivido na

estilística do pós-guerra em Rainer Werner infância decorrerá numa herança inevitável. Os

Fassbinder. Mestre pela mesma instituição, com traumas perdurarão e, agindo de modo indiferente

dissertação sobre a encenação cinematográfica às adversidades que encara, o adulto Robert

em filmes brasileiros contemporâneos. Integrou sobreviverá aprisionado em caixotes, tal como

as equipes de curadoria do Festival Internacional acontecia quando criança. Os flashforwards que

de Curtas de Belo Horizonte (2014) e do atravessam o filme comprovam esse fato ao nos

Forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e permitirem acompanhá-lo anos depois, fragilizado

Etnográfico (2016). Realizou três curtas- por todas as imposições que lhes foram legadas a

metragens e, atualmente, desenvolve o roteiro do vida inteira. O menino Tucker consegue se libertar

longa-metragem Escombros, contemplado na 7ª de uma instância de poder que o apavora (seu

edição do edital Filme em Minas. pai), mas é aterrorizado pela responsabilidade


precoce que tão logo carregará, assumindo o
lugar do patriarca e tornando-se arrimo de família. possa reprimi-lo, invertendo a percepção em
É nesse momento que temos a certeza de que o torno da ideia de cerceamento. O jovem Luís, um
protagonista sempre habitará um túmulo. adolescente que suja acidentalmente a camisa
após uma dor de barriga, transforma o banheiro
A primeira sepultura mostrada por Crianças é a num jazigo para si mesmo, de modo que possa
escola. O primeiro plano do filme apresenta a funcionar como campo de proteção e isolamento
estrutura solene do colégio onde Tucker estuda. em relação a qualquer tipo de zombaria. O
A instituição é vista de fora, grandiosa, antiga, cômodo, então, torna-se um mundo à parte dentro
repleta de cômodos, cercada por muros. Depois da escola, onde a idolatria à ordem pode encontrar
disso, o personagem passará tempo substancial alguma forma de resistência.
nesse lugar, acuado pelos alunos mais velhos
ou mais robustos, que zombam de seu porte Mas a instrução logo derruba seu muro.
franzino e especulam sobre sua sexualidade. A Pressionado pelos colegas, que querem entrar
violência muitas vezes estoura, atuando como a todo custo, o personagem conversa com o
mecanismo de correção. Robert é agredido pelos coordenador do colégio, explicando-lhe o ocorrido.
colegas, castigado pelos professores e violentado O diálogo é mostrado por entre obstáculos/
pelo discurso de ordem que transborda em cada abismos. Vemos apenas Luís e a parede, enquanto
espaço físico da escola. Dentro do colégio, as ouvimos o coordenador tentar convencê-lo a sair.
24 práticas corretivas são entendidas como forma A porta trancada os separa, mas a persuasão da 25

de instrução. Fora dele, seu mundo parece ainda didática escolar, enfim, consegue proporcionar
mais aprisionador. O protagonista quase sempre sua abertura/ruptura. O rapaz sai desamparado e
está prostrado em ambientes internos: casa, acaba massacrado pelos olhares e chistes durante
quarto, clube, vestiário, sauna, ônibus, sala de o trajeto pelo corredor. Por sua vez, o coordenador
espera, consultório médico. Sem fôlego, Tucker o acompanha como se fosse um verdugo,
se entrega em apatia às regras e hierarquias que conduzindo o adolescente para a sentença de
esses limites espaciais impõem. Por esse motivo, morte. Definitivamente, não há mais qualquer modo
sua expressividade parece ter sido enterrada no de proteção (ou talvez sequer tenha existido), mas,
mesmo caixão onde fora despejado o corpo do pai de fato, agora percebemos que o frágil túmulo
e, lá, talvez para sempre permaneça trancafiada. outrora forjado dá lugar à reputação sepultada de
Como um morto-vivo, o lamento de Tucker se Luís. Aos leões, o personagem é arremessado sem
traduz num solitário grito abafado. dó nem piedade, e a escola o devora antes que
alguma nova jaula possa ser construída. A sala
Já no curta-metragem Nº 27 (2008), de Marcelo de aula se transforma em covil, a cacofonia dos
Lordello, a narrativa se concentra numa situação colegas dilacera o horizonte e somente a imagem
supostamente insólita, na qual o protagonista se de seu rosto espinhento guardará os resquícios
vê obrigado a trancar-se no banheiro do próprio da inocência perdida. A morte, de fato, está
colégio. Nesse sentido, ao menos num primeiro consumada.
momento, a tranca é vista como forma de refúgio.
É preciso dela para se cercar de tudo aquilo que
A SUBVERSÃO
DA ORDEM
Zero de Conduta
//// Jean Vigo /// 1933 // França por Leonardo Amaral

Duas Soluções para um Problema


// Abbas Kiarostami /// 1975 // Irã

Rachachando
// Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ///// 1982
// França

Gambozinos No colégio interno de Zero de Conduta (Zéro de

///// João Nicolau ////// 2013 /// Portugal Conduite, 1933), de Jean Vigo, a disposição das
camas é orientada segundo uma fila que apresenta
clausura vigilante, sendo a representação fiel do
célebre dispositivo analisado por Michel Foucault
em Vigiar e Punir. Os alunos podem, no máximo,

Leonardo Amaral ver a sombra daquele que os vigia. Esse, ao

/// Doutorando em Comunicação Social pela contrário, pode reconhecer suas vozes e deferir

UFMG, onde também fez mestrado (2013-2015) punições exemplares. É o que acontece com um

e graduação (2007-2010). Curador das mostras dos internos, que irrompe contra o sistema de

"Tempos de Kuchar" e "Escola: Cidade Aberta" e forças que ali impera e acaba por ser punido. Mas

membro da comissão de seleção do Festival de eis que a chegada de um novo professor provoca

Curtas de BH (2010-2013), forumdoc.bh (2015) e ações libertárias na escola. O professor rompe

Semana dos Realizadores (2016). Crítico e com uma série de normas de conduta e instaura

ensaísta pela Revista Filmes Polvo (2007-2013), uma comunhão de brincadeiras ao ensino por ele

com colaboração para outras revistas e empreendido. Ele não se furta em imitar o Carlitos,

catálogos. Roteirista, diretor e montador de de Charles Chaplin, no pátio da escola ou de se

curtas e longas exibidos em festivais do Brasil e colocar de ponta-cabeça para iniciar o conteúdo

do exterior. Professor do Curso de Cinema da da aula. Na forma fílmica de Zero de Conduta,

Casa Viva de Educação e Cultura (2014-2015). impera um colapso da realidade e se perpetra um


surrealismo de situações, tais como o esqueleto,
usado nas aulas de ciência, ganhar vida e se colidir não muito divertidas. Um menino de dez anos
com o professor em frente à classe ou mesmo na não se mostra necessariamente interessado nas
caracterização do diretor do educandário, que se brincadeiras dos instrutores e não consegue
mostra uma criança que porta uma barba longa e atrair a atenção de Antónia Josefina, uma das
preta. meninas pela qual nutre um sentimento nobre. Na
diagramação das cenas, o garoto é visto, muitas
Ridicularizar a instituição e propiciar a ação vezes, isolado dos demais, enquanto a garota
subversiva dos alunos é o método do qual Vigo de seus sonhos está quase sempre rodeada
se mostra mais admirador. A montagem do filme pelas amigas ou por alguns dos colegas mais
carrega, mais uma vez, um espírito de rompimento galhofeiros que prometem alcançar aquilo que
com normas e estigmas. Os cortes são inventivos o personagem apenas anseia, mas que jamais
e rompem com um estatuto de um cinema mais consolida. Este, então, se lança na floresta em
clássico. Ao se aproximar da magia orientada busca de seres imaginários conhecidos no universo
por Georges Méliès, objetos e pessoas somem lúdico lusitano como gambozinos. Os gambozinos
e aparecem em cena, câmeras lentas funcionam são uma espécie de peixe ou pássaros invisíveis
como suspensão da realidade e reafirmam um que precisam ser pegos nos bosques da região.
espírito revolucionário que logra êxito no momento O convite à caça dessas pequenas criaturas
em que a escola é tomada pelos alunos. Eles é um modo de ludibriar crianças ingênuas. O
28 libertam o colega que estava de castigo e não investimento de João Nicolau nos aspectos naïves 29

se furtam de marcar um novo território e novos da infância conjugam um modo bastante libertário
tempos ao fixar, no teto do colégio, uma bandeira de lidar com as agruras de uma das fases da vida
pirata. marcada, muitas vezes, por dificuldades de lidar
com o outro.
Esses pequenos corsários funcionam como
referências auspiciosas para diversos outros Assim como é característico do cinema de Nicolau,
autores, como, por exemplo, François Truffaut, em a mise en scène minimalista da forma e da atuação
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, conveniada com as canções cantadas pelos atores
1959), ou Maurice Pialat, em A infância Nua transmitem de maneira sutil aquilo que transpassa
(L’enfance Nue, 1968). As reverberações do filme os sentimentos internos dos personagens. Em
seminal de Vigo alcançam, inclusive, o cinema um dos momentos de maior libertação, o menino,
contemporâneo mundial, com aproximações de um com microfone na mão, canta um rap de amor
curta-metragem português, que carrega em seu para a sua musa idealizada. O cinema, aos seus
cerne o espírito libertário dos pequenos diabinhos modos de construção, consegue lidar com as
(assim os define o próprio Vigo) de Zero de ilusões e inocências da infância. Algo que está
Conduta. bastante presente no filme Duas Soluções para
um Problema (Dow Rahehal Baraye yek Massaleh,
Em Gambozinos (2013), de João Nicolau, crianças 1975), de Abbas Kiarostami.
participam de uma colônia escolar de férias e
seus dias são marcados por regras e brincadeiras
O estratagema criado por Kiarostami é bastante François Mitterrand, ex-presidente francês, tem
didático e brilhantemente simples: dois meninos como resposta de Ernesto uma aproximação deste
iranianos se desentendem na escola e iniciam com uma pequena esperança na esquerda política
um movimento de retaliações. Um rasga uma do país; uma imagem de uma borboleta empalhada
página de um livro do colega, o outro destrói a é tida como um crime; um globo terrestre é visto
alça da bolsa do companheiro. Um desfigura o como uma bola de futebol, uma batata e o próprio
boné do amigo, o outro danifica a echarpe do planeta Terra (nada mais prosaico do que esse
camarada. Ao final, em uma cartela com alguns traço comparativo). Ernesto impõe seu gesto
desenhos dos objetos danificados, há a exposição de resistência a cada resposta dada ao diretor
do inventário do conflito: não há grandes espólios do colégio. As preocupações dos pais, que o
dessa pequena guerra. A metáfora escolar de acompanham na inquisição, dão lugar a uma
Kiarostami é a de um país marcado por grandes espécie de apoio resignado ao ato de transgressão
conflitos no decorrer de sua história. A resolução do filho.
e o apaziguamento são possíveis, como pode ser
visto no abraço dos amigos ao final. Uma solução Nos questionamentos do diretor, uma ordem de
aparentemente simples e fácil, mas que demanda imposições sociais pré-estabelecidas são a tônica
uma série de diplomacias. Outra vez, a inocência de um modelo de escola por vezes opressor e
se contrapõe a um cenário impeditivo. Traços anulador da subjetividade: “E agora, o que faremos
30 de uma inocência que é alicerce político de uma com ele? Será que um dia ele saberá ler alguma 31

resistência que podem ser percebidos também em coisa? Conduzir ou não conduzir? Beber e comer?
Rachachando (En Rachâchant, 1982), de Danièle Trabalhar, trabalhar? Enganar-se e não se enganar,
Huillet e Jean-Marie Straub. e tudo o mais?” Infelizmente sim, é a resposta do
pai e da mãe. O breve silêncio que se segue e a
No cerne do filme francês está a negação de ausência de Ernesto no enquadramento dão a ver
um ensino tradicional e impositivo. Ernesto, um um determinismo das coisas que vez ou outra é
jovem garoto, se recusa a continuar a frequentar colocado em xeque. Todavia, gestos de resistência
a escola. Os pais o levam até o diretor, que inicia dão um nó na linearidade do pensamento
uma sabatina com o menino. Ele demanda o recorrente e conservador. Subverte-se uma ordem
porquê de Ernesto não querer se instruir mais, e escolar em nome de novos modos de vida. Rompe-
o ex-estudante responde que não quer continuar se para que se possa seguir, de cabeça erguida.
seus estudos porque eles duram muito tempo e
também porque não valem a pena. Na resposta da
criança, uma busca por novos métodos. O roteiro
do filme é uma adaptação da obra de Marguerite
Duras. A iconoclastia do texto se mantém no
formalismo estético e político tão característico de
Straub e Huillet. Nos quadros fixos e na montagem
rígida, surgem imagens que são iluminadas pelas
palavras do pequeno subversivo: um quadro de
CINEMA
INOCENTE,
FÁBULAS DA
CULPA
Aniki Bóbó
/// Manoel de Oliveira //// 1942 /// Portugal por Affonso Uchôa

Affonso Uchôa
/// É bacharel em Comunicação Social pela
UFMG. Atua como cineasta e curador
cinematográfico. Em 2010 foi programador do À primeira vista, causa certo estranhamento o

Cine Humberto Mauro, e entre 2009 e 2106 fez a nome estampado na cartela de créditos como

curadoria do programa “Curta Circuito”. Realizou diretor de Aniki Bobó (1942): Manoel de Oliveira.

os longas-metragens A Vizinhança do Tigre A temática infantil, o tom de comédia ligeira e o

(2014), vencedor de diversos prêmios, dentre realismo do filme não combinam com a verborragia

eles o Prêmio de Melhor Longa-Metragem na 17a literária, a encenação teatral e as temáticas

Mostra de Tiradentes e o Prêmio da Crítica filosóficas, com toda a solenidade, enfim, do

ABRACINE no 2o Olhar de Cinema, em Curitiba/ cinema que consagrou Oliveira. Se é verdade que

PR, além de ser exibido internacionalmente no alguns adultos não se parecem em nada com as

festival de Hamburgo (Alemanha); e Arábia suas feições de criança, o cinema consagrado de

(2017), exibido internacionalmente em diversos Manoel de Oliveira não levou muito das investidas

festivais como o Festival Internacional de Roterdã de Aniki Bobó. Olhar o filme é como ver uma

(Holanda), BAFICI (Argentina), Indielisboa fotografia em preto e branco de um tempo há muito

(Portugal) e New Directors/ New Films (Estados passado e ver um mundo, um cinema e uma obra

Unidos). de Manoel Oliveira que os anos posteriores se


encarregaram de mudar.

Aniki Bobó acompanha uma turma de crianças


pobres da cidade do Porto. Três “miúdos”,
Terezinha, Eduardo e Carlitos, vivem um precoce
triângulo amoroso. A paixão pela menina leva os
garotos a uma disputa crescente, com algumas canção tocada por um grupo de músicos de rua,
trocas de sopapos, e que tem seu ápice com um acompanhados em coral pela turma de Eduardo
acidente sofrido por Eduardo, pelo qual Carlitos e Carlitos. A rua é o espaço da liberdade, onde,
é injustamente culpado. Primeira incursão de fora da escola (e também da casa), a infância
Manoel Oliveira no longa-metragem, o filme foi pode ser de fato aproveitada. Sem a vigilância
um estrondoso fracasso comercial na época do dos pais, os pardaizinhos se jogam: nadam no
seu lançamento. Esse insucesso repercutiu na rio, pulam de guindastes para grandes mergulhos
carreira de Oliveira, que, depois de Aniki Bobó, e correm pela noite afora brincando de “polícia e
experimentou um hiato cinematográfico de alguns ladrão”. Acima de tudo, a rua é o palco onde se
anos. Seu longa seguinte, Acto de Primavera, foi vive as amizades e os primeiros amores. Aniki
lançado somente em 1963. Bobó documenta uma infância e um modo de viver
na cidade que simplesmente não cabem mais no
Antes de Aniki Bobó, Manoel de Oliveira mundo contemporâneo, permeado pela cidade
começa sua carreira fazendo curtas-metragens ameaçadora e o turismo febril.
documentais. Se é impreciso dizer que essa
experiência tenha deixado alguma influência em Trata-se de um filme de rara adesão ao universo
Aniki Bobó, há de se notar que o filme retira boa das crianças. O mundo dos adultos é representado
parte de sua força da relação direta e lírica com como se olhado pelos miúdos: eles são chatos e
34 a realidade das crianças da cidade do Porto. mandões. A mãe de Carlitos é só xingos e ordens, 35

Protagonizado por atores não profissionais, o filme o vendedor da loja alterna entre os sopapos no
tem grande quantidade de cenas externas, filmadas seu jovem ajudante e as perguntas enxeridas para
na rua, e uma agilidade na maneira de registrar os garotos, o professor é uma ameaça constante.
as brincadeiras da molecada que já fizeram o O mundo dos adultos é o das obrigações e
filme ser considerado um dos precursores do constrangimentos e a escola é o seu símile para
neorrealismo. Tal atribuição é cercada de mistérios as crianças. Acordar para aula é um tormento.
(há certa lenda sobre André Bazin ter visto o filme Na sala, o professor carrancudo pune o aluno
ou não, mas é sobre Georges Sadoul que recai atrasado com as orelhas de burro feitas com papel.
essa relação com os italianos) e também de certa Batatinhas, o trapalhão amigo de Carlitos, delira
imprecisão: a crítica social, fundamental para os com o impossível: se fosse rico, desejaria comprar
neorrealistas, é apenas um pano de fundo no filme a escola. “Pra quê?”, lhe pergunta Carlitos. “Para
de Oliveira. Mesmo filmado e lançado em plena mandar fechar”.
Segunda Guerra Mundial, Aniki Bobó é um filme
doce, no qual mesmo a pobreza e a proximidade Mas Aniki Bobó não é apenas um documento dos
iminente do terrível não roubam o sorriso das costumes e infância de outros tempos. O filme é
crianças. um conto moral que registra os primeiros dilemas
éticos de Carlitos. Já em sua abertura, através
Proto-neorrealista ou não, Aniki Bobó é um filme de um flashforward, vemos a cena do acidente
contaminado pela alma das ruas. “Abre-se a na linha do trem (que nessa primeira aparição é
porta da escola, sai o pardal da gaiola” entoa a montada de modo misterioso, sem dar a entender
muito do que acontece). O filme promove então de ladrão não pode mais ser abandonado quando
a reconstrução desse momento de grande acaba o jogo.
intensidade dramática e vamos acompanhando os
fatos que conduzem àquela fantasmática cena que A “inocência” é um adjetivo comumente associado
assombra todo o filme. à infância. De claro fundo cristão, essa relação se
baseia na ideia de que o mundo é necessariamente
E o que os fatos anteriores ao acidente revelam ruim e as crianças, há menos tempo nele, ainda
é uma espécie de “fábula da culpa” vivida por não tiveram tempo de serem contaminadas. São
Carlitos. Já no começo do filme, ele diz “não tive justamente os elásticos limites entre a inocência
culpa”, ao derrubar um brinquedo de louça da e a culpa que Manoel de Oliveira investiga em
mesa. A frase soa como uma sentença da história Aniki Bobó. Como bom filme de rito de iniciação,
futura do jovem protagonista. Na vitrine de uma a obra deixa a Carlitos uma aprendizagem de
loja simbolicamente nomeada como “Loja das como funcionam as coisas: Carlitos vai descobrir
tentações”, Carlitos perde a sua inocência: rouba que culpa e inocência são, acima de tudo, noções
uma boneca exposta para dar de presente a socialmente compartilhadas. Em outras palavras:
Terezinha. Numa cena de uma precisão sintética, se ninguém te acha culpado, torna-te inocente.
que deixa antever o grande cineasta que é Oliveira, E vice-versa. E Carlitos aprende isso vendo os
Carlitos sorrateiramente esconde a boneca na dois lados dessa moeda. Se na primeira vez, se
36 sua bolsa, que traz escrito em letras imensas a dá bem, escondendo de todos a sua culpa pelo 37

frase “segue sempre por bom caminho”. De noite, roubo da boneca, na segunda, se dá muito mal,
Carlitos completa a sua aventura clandestina: descobrindo na pele o peso assustador que um
andando pelos telhados, Carlitos vai entregar a agrupamento de pessoas em acordo produz.
boneca a Terezinha. A cena é filmada com planos
belíssimos e uma série de ângulos de câmera Matando aula à beira do Rio, Carlitos percebe o
que deixam claro o perigo que o garoto está dono da loja observando a turma. Tomado por um
driblando para entregar o presente. O dono da loja, duplo medo: de ser apanhado por quem ele tinha
quando dá conta do roubo, vaticina “aqui há gato”. roubado e por estar matando aula, Carlitos incita
Carlitos, se esgueirando pelos telhados, rastejando uma fuga coletiva e é seguido por toda a turma.
felinamente, é ele próprio o gatuno. A fuga da molecada segue em disparada até um
barranco, de onde Eduardo escorrega em direção
O passatempo favorito dos amigos de Carlitos à linha do trem. Por coincidência, Carlitos estava
é brincar de polícia e ladrão, de noite, pelas justo atrás de Eduardo antes dele cair. Diante
escuras ruas do Porto. Na divisão dos papéis, das desavenças amorosas dos dois, os colegas
coube a Carlitos ser ladrão. Brincadeira e verdade não têm dúvida e declaram Carlitos culpado pelo
se misturam e o rapaz pede pra não ser ladrão. acidente. À noite, Carlitos é consumido por um
Eduardo, o líder do bando, vaticina: “és ladrão” e terrível pesadelo em que se misturam às suas
Carlitos aceita o papel imposto. Brincando, ao fugir duas culpas: a verdadeira, do roubo, e a que lhe foi
dos “polícias”, o menino se assusta com a própria imputada, de empurrar o colega ribanceira abaixo.
sombra. A brincadeira infantil se adensa e o papel
No sonho, como figura assustadora, o professor
repete “roubar é pecado mortal”.

Devastado pelo desprezo dos amigos, Carlitos


é salvo pelo testemunho improvável do lojista:
“Carlitos pode ter as suas culpas, mas nisto
está inocente”. Inocência perdida, inocência
resgatada: Carlitos recebe o abraço caloroso de
Batatinhas como o sinal da confiança dos amigos
restabelecida. Aniki Bobó é um filme de final feliz,
no qual a lição vem da recompensa: o vendedor
deixa Terezinha ficar com a boneca e o verdadeiro
legado das aventuras é a improvável amizade entre
adultos e crianças.

E o maior sinal do laço entre adultos e crianças,


miúdos e crescidos, inocentes e pecadores é o
próprio filme. Poucas vezes um filme, na história
38 do cinema, conseguiu ser tão devotado às crianças
quanto Aniki Bobó. Mais que um tema, a infância
é a matéria e o olhar do filme. Numa sequência de
beleza ímpar, na noite do acidente com Eduardo,
os amigos se reúnem novamente na mesma rua
em que brincam toda noite para lembrar o amigo
ferido. Melancólicos, os meninos olham pro céu
e um deles conta que ouviu dizer que, quando
uma pessoa morre, nasce uma estrela. Os amigos
iniciam uma discussão sobre a morte, a vida, Deus
e o diabo, e vemos então um raro momento em
que as verdades mais fundamentais são discutidas
e pensadas por crianças. Aniki Bobó mostra o
mundo e a vida vivenciados e fabulados pelas
crianças. Deveria ser essa a definição de filme
infantil.
UMA
INSURREIÇÃO
SENSÍVEL
CONTRA A
MONOTONIA
Bom Dia por Victor Guimarães
///// Yasujiro Ozu /// 1959 ////// Japão

Victor Guimarães Numa paisagem saturada por linhas retas –

//// Crítico na revista Cinética desde 2012. Foi portas, janelas, soleiras, telhados, antenas, fios

professor no Centro Universitário UNA e na e, claro, cercas –, as figuras humanas mal se

Universidade Positivo, um dos coordenadores do divisam no horizonte. Apequenados diante da

FestCurtasBH (2014) e programador de mostras profusão geométrica que os envolve, um grupo

como “Sabotadores da Indústria” (SESC de meninos caminha em direção à escola. Na

Palladium/BH) e “Argentina Rebelde” (Caixa sequência seguinte, é a presença assimétrica

Cultural/RJ). Tem ensaios publicados em revistas das crianças que se agiganta no quadro: na

como Senses of Cinema, Desistfilm e La Furia divertida competição de flatulência, o ruído agudo

Umana. É autor de O hip hop e a intermitência dos peidos perturba o silêncio da paisagem. Os

política do documentário (PPGCOM/UFMG, planos iniciais não deixam dúvida disso. Bom Dia

2015). Doutorando em Comunicação Social pela (Ohayô, 1959), de Yasujiro Ozu, é um filme sobre o

UFMG. embate entre dois vetores sensíveis: de um lado, a


continuidade, o cálculo, a normalidade que constitui
a pacata vida de um subúrbio japonês; de outro, a
fratura, o desvio, a força de disrupção dos anseios
daqueles que já não podem compactuar com
os padrões restritivos que, para os olhos novos,
limitam a potência dessa mesma vida.
Se o conflito entre regra e subversão é a base insurreição gestual coletiva. Os filhos pequenos de
dramatúrgica dos melhores filmes sobre a uma das famílias da vizinhança, mais interessados
instituição escolar – de Zero de Conduta (Zéro em acompanhar o campeonato de sumô do que
de Conduite, 1930), de Jean Vigo, a Um Som em estudar inglês, se revoltam contra a ausência
Diferente (Pump Up the Volume, 1990), de Allan de televisão em casa e operam uma passagem ao
Moyle, de Crônica de um Menino Solitário (Crónica ato. Se no início era o ruído gracioso e artificial do
de um Niño Solo, 1964), de Leonardo Favio, a peido que rompia com a calmaria do alto da colina,
Rachachando (En Rachâchant, 1982), de Danièle a partir do conflito em torno da compra da televisão
Huillet e Jean-Marie Straub –, no Japão o motivo a ruptura se inverte: agora é o voto de silêncio das
é definidor de toda a tradição cinematográfica crianças insurretas que vem rachar a sonoridade
nacional. O enfrentamento da rigidez da sociedade dominante do falatório entre os vizinhos.
japonesa ressoa nos cotidianos fraturados de Mikio
Naruse, traduz-se nas composições dialéticas O levante dos meninos se dá em franca
do tratado sobre o país que é O Enforcamento contraposição ao vazio das palavras — eles não
(Kôshikei, 1968), de Nagisa Oshima, encontra entendem porque os adultos insistem em dizer
seu espelhamento crítico mais radical no filme ohayô (“bom dia”) o tempo inteiro quando na
estrutural que é A.K.A Serial Killer (Ryakushô verdade não têm nada a dizer, e por isso calam —,
Renzoku Shasatsuma, 1969), de Masao Adachi, à repetição da comida (“peixe frito e missohiro de
42 espatifa-se na anarquia libidinal dos pinku eiga e novo?!”), à higiene impecável da casa, em suma, 43

penetra a harmonia deteriorada das coreografias contra a ritualidade inexorável da rotina, essa que
mortais de Takashi Miike. Em Ozu, menos do é uma das constantes mais duradouras em todo
que uma guerra declarada — como nas células o cinema de Ozu. Embora essa família ocupe
terroristas de Kōji Wakamatsu —, o embate é um lugar privilegiado na narrativa, Bom Dia é um
quase sempre uma luta subterrânea, que acontece relato coral, um afresco sobre uma vizinhança
no terreno da gestualidade cotidiana, em plena ao mesmo tempo absurdamente uniforme (a
superfície da vida ordinária. Seu campo de batalha arquitetura do bairro é o palco para uma das
é a epiderme tensa dos corpos, a violência melhores gags chaplinianas do filme, quando
quase sempre contida, mas que explode nos um pai chega bêbado à noite e dorme na casa
gestos raivosos das mulheres dos filmes finais, errada) e subterraneamente plena de diferenças:
magistralmente analisados por Shigehiko Hasumi1. o emaranhado de casas que favorece a coesão da
comunidade e amplifica o poder de vigilância sobre
A diferença de Ohayô é que o confronto não se os filhos é o mesmo que se transforma em labirinto
concentra em um singular gesto pregnante — como ideal para a fuga das crianças de uma casa à
o momento emblemático em que Shima Iwashita outra. Como sintetiza Jonathan Rosenbaum,
atira a toalha em frente ao pai em A Rotina Tem “em Ozu, como em Jacques Tati, as expressões
seu Encanto (Sanma No Aji, 1962), o filme póstumo das formas sociais e as expressões das formas
de Ozu —, mas participa de uma verdadeira

1
  HASUMI, Shigehiko. Ozu’s angry women. Rouge, 4, 2004.
cinematográficas são dois lados da mesma componentes de um embate que se alastra por
moeda” . 2
toda a matéria fílmica.

Bom Dia é considerado um remake de Meninos Como escreveu recentemente David Bordwell,
de Tóquio (Otona no Miru Ehon - Umarete wa Ozu tinha “uma mente de engenheiro, um olho de
Mita Keredo, 1932), uma das obras-primas da era pintor e uma empatia humana de romancista”3.
silenciosa de Ozu. O dia a dia do subúrbio, o hiato Em Bom Dia, as três qualidades indissociáveis
entre gerações, a relação de estranhamento com se materializam a cada plano, nesse conto
o mundo escolar, vários dos motores dramáticos sobre uma série de atentados rebeldes contra
que atravessam o filme de 1933 retornam a monotonia visual e sonora do cotidiano. Com
transformados no de 1959. À primeira vista, seria sua incomparável arte das composições, Yasujiro
possível cogitar que esse retorno se dá numa Ozu nos lembra que o mundo – seja ele um
forma mais leve, como uma versão soft do filme bairro suburbano no Japão ou uma escola em
anterior: a greve de fome contra a debilidade do qualquer lugar – é sempre uma questão de forma.
pai em face do patrão, filmada em sóbrio preto e E que para transformá-lo é preciso começar,
branco, se torna o protesto pela compra de uma inevitavelmente, por uma rebelião contra seus mais
televisão retratado em apetitosas cores Agfa. arraigados pressupostos sensíveis.
Outra maneira de pensar esse retorno, no entanto,
44 é perceber como a dramaturgia de Bom Dia se 45

espalha por toda a superfície sensível do filme, em referências


operações que integram à ficção popular alguns BORDWELL, David. Good morning from Ozuland.

dos procedimentos comumente vinculados ao Observations on Film Art, May 10, 2017. Disponível

cinema de vanguarda. O quadriculado onipresente em: http://www.davidbordwell.net/blog/2017/05/10/

das roupas, dos papéis de parede, das toalhas de good-morning-from-ozuland/

mesa, não é apenas um indício de uma direção HASUMI, Shigehiko. Ozu’s angry women. Rouge,

de arte pronunciada, mas um dos componentes 4, 2004.

essenciais do implacável mundo sensível contra ROSENBAUM, Jonathan. Good Morning: structures

o qual os personagens vão se insurgir; quando o and strictures in suburbia. The Criterion Collection,

jovem casal decide usar pijamas o dia todo, uma May 15, 2017. Disponível em: https://www.criterion.

simples escolha de vestuário se torna um atentado com/current/posts/4543-good-morning-structures-

contra a normalidade; as incontáveis rimas visuais, and-strictures-in-suburbia.

os inúmeros sobreenquadramentos, a simetria


cerrada das composições, o vermelho que salta
de um plano a outro sem razão aparente não são
apenas elementos de um estilo inconfundível, mas

2
  ROSENBAUM, Jonathan. Good Morning: structures and 3
  BORDWELL, David. Good morning from Ozuland.
strictures in Suburbia. The Criterion Collection, May 15, 2017. Observations on film art, May 10, 2017. Disponível em: http://
Disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/4543- www.davidbordwell.net/blog/2017/05/10/good-morning-from-
good-morning-structures-and-strictures-in-suburbia ozuland/
A ARTE DE
GAZETEAR
por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Os Incompreendidos
// François Truffaut // 1959 //// França

Luiz Carlos Oliveira Jr.


// Doutor em Meios e Processos Audiovisuais
pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP), sob
orientação do Prof. Dr. Ismail Xavier, com período Na primeira cena de Os Incompreendidos, já

sanduíche na Université Sorbonne Nouvelle - entendemos tudo que precisamos entender sobre

Paris 3 (orientador: Prof. Dr. Philippe Dubois). a visão de François Truffaut a respeito da escola:

Autor do livro A mise en scène no cinema: do a sala de aula, tal como representada por ele, é

clássico ao cinema de fluxo (Papirus, 2013). um campo de batalha onde se repõem as relações

Atuou como crítico de cinema na revista de força que marcam as experiências de vida

eletrônica Contracampo no período 2002-2011, nas sociedades disciplinares. As desavenças do

participando do corpo editorial de 2004 em adolescente Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud)

diante. Curador das mostras de cinema “Vincente com seu professor fazem aflorar um espírito de

Minelli - Cinema de Música e Drama” (CCBB-RJ e controvérsia, uma vocação para o atrito, que foi a

SP, 2011) e “Jacques Rivette - Já Não Somos marca registrada da vida do próprio diretor do filme.

Inocentes” (CCBB-RJ e SP, 2013). Já colaborou


para as revistas Bravo!, Cult, Interlúdio, Paisà e Se a escola se revela esse lugar de puro embate,

Foco e para o Guia Folha - Livros, Discos e em casa, junto à família, Antoine tampouco

Filmes. Ministrou cursos e oficinas em espaços aprende muita coisa: sua relação com o pai é de

como Centro Cultural Banco do Brasil, um afeto superficial e efêmero, ao passo que,

CineSESC, Cine Humberto Mauro e Fundação com a mãe, tem constantes querelas fundadas

Getúlio Vargas. no excesso de cobrança e na falta de carinho que


ela demonstra. O único aprendizado positivo de
Antoine se dá com a literatura de Balzac (para
quem ele faz uma espécie de santuário, acendendo
uma vela ao lado da foto do escritor), na amizade – ainda que cômicas em muitos aspectos –
com René, seu melhor amigo e companheiro de lembranças de infância e adolescência que Truffaut
aventuras extracurriculares, e, sobretudo, nas salas evoca.
de cinema.
A origem do filme foi um roteiro intitulado La Fugue
As cenas em que Antoine mata aula para ir ao D’Antoine, que narrava um episódio específico da
cinema são, ao mesmo tempo, uma confissão adolescência de Truffaut, “quando fizera gazeta
autobiográfica e uma declaração de princípios certo dia na escola da Rua Milton por ter esquecido
do jovem Truffaut, então realizando seu primeiro de fazer um trabalho de casa imposto como
longa-metragem: a verdadeira escola, para ele, castigo. No dia seguinte, a desculpa que apresenta
foi a cinefilia, as salas de cinema que frequentou (‘Minha mãe morreu’) chama naturalmente a
assídua e obsessivamente, e seu verdadeiro atenção, e seu pai vai a seu encontro em plena
mestre foi o grande crítico André Bazin, que, tal aula para aplicar-lhe uma monumental bofetada”1.
qual um pai adotivo, colocou-o sob a asa e o A cena, assim como muitas outras de igual teor
introduziu na redação dos Cahiers du Cinéma no biográfico, é reproduzida em Os Incompreendidos,
começo dos anos 1950. Lá, trabalhando na célebre num dos muitos momentos do filme que levariam
revista, Truffaut encontraria Godard, Chabrol, Truffaut a enfrentar o profundo descontentamento
Rohmer, Rivette, em suma, a turma com quem de sua família. Obviamente, seus pais não
48 formaria, no final da década, a linha de frente da apreciaram a forma como o filho retratou a relação 49

Nouvelle Vague, movimento de renovação do com eles (o cineasta, depois de o filme ser
cinema francês que teria enorme impacto sobre lançado, trocou cartas ressentidas com o pai, nas
a história do cinema como um todo. Nas páginas quais o acusa de negligência e afirma até mesmo
dos Cahiers, por meio de textos perspicazes, desprezá-lo).
enérgicos e, não raro, ferozes, a Nouvelle Vague
começaria a ganhar forma, antes mesmo de os Embora a narrativa seja autobiográfica, Truffaut
jovens críticos passarem à realização de filmes. Na transmuta todas as suas memórias em ficção e em
ponta de lança do processo, achava-se François nenhum momento tenta usar o tom confessional ou
Truffaut. Por mais que tenha tentado negar essa semidocumental como muleta estética. Tampouco
função, ele foi rapidamente considerado o líder se tem aqui um exagero sentimentalista ou uma
do novo cinema, sobretudo depois da força e da chantagem emocional: a abordagem dramática
celebridade que ganhou com a repercussão de Os é quase plana, sem sobressaltos, objetiva.
Incompreendidos. Recheado de pequenos eventos, de passagens
quaisquer da vida de Antoine, o filme se apresenta
Por uma ironia do destino, Bazin havia falecido como um elogio do tempo morto – não o tempo
um dia após o início das filmagens (não à toa, o desperdiçado, jogado no vazio, e sim esse tempo
filme é dedicado à sua memória, como informa que ganhamos quando nos dispensamos de certas
uma cartela inicial). Eis por que um ar de luto
perpassa Os Incompreendidos e se soma à tristeza
1
  BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge. François Truffaut
já presente por conta das duras e melancólicas – uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 176.
tarefas para nos dedicarmos a outras, a exemplo temporal e espacial da cena. Truffaut convida a
da fruição de um bom filme. cena a se impor por si mesma, as ações devendo
adquirir consistência material na tela por um
Há, por um lado, uma crueza, quiçá uma crueldade processo imanente de familiarização dos atores
na maneira como Truffaut reduz sua mise en scène com o espaço. Ele pode ter sido mau aluno na
à descrição fenomenológica da adolescência, escola, mas, de tanto trocar a sala de aula pela
lidando de maneira quase indiferente (e não era sala escura, acabou aprendendo bem a lição de
a indiferença a marca da modernidade de Manet, Murnau, Renoir, Orson Welles, Buster Keaton,
segundo Bataille?) diante dos eventos que filma. Fritz Lang, ou seja, o domínio do espaço fílmico
Jacques Rivette qualifica Os Incompreendidos e a capacidade de torná-lo o receptáculo de um
como “o triunfo da simplicidade”, num texto em que drama que, por mais interior que possa vir a ser, só
compara os pequenos gestos desencadeadores consegue se expressar pelas relações exteriores,
de vertigens de memória no filme de Truffaut às pelos corpos, pelas mudanças verificadas nas
invocações proustianas do “tempo perdido” da realidades aparentes das coisas.
infância.2 Por outro lado, essa simplicidade resulta,
na verdade, de uma depuração do olhar, de uma Rodado em preto e branco e Cinemascope, Os
arguciosa consciência dos meios cinematográficos Incompreendidos contou com um dos melhores
de organização de um espaço – o que não pode se diretores de fotografia então em atividade na
50 dar senão em função das limitações estruturais da França, Henri Decaë, que antes trabalhara 51

câmera e da dialética entre campo e fora de campo com Jean-Pierre Melville (um dos poucos
daí derivada – e de apreensão dos movimentos cineastas franceses da “velha guarda” admirados
e gestos que os corpos filmados realizam nesse pelos nouvelle-vaguianos) e Claude Chabrol
espaço. (companheiro de Truffaut nos Cahiers). Com o
amparo da experiência profissional de Decaë,
A sensação de assistirmos a um registro direto Truffaut pôde se atirar com mais segurança a
e não elaborado é só falsa impressão. Basta ver algumas ousadias técnicas e utilizar alguns dos
as cenas no apartamento em que Antoine mora procedimentos que se tornariam recorrentes no
com os pais, onde a exiguidade do espaço não cinema moderno dos anos 1960: filmagens rápidas,
constringe a potencialidade cênica de Truffaut, atores amadores ou iniciantes, predominância de
pelo contrário: nessa situação desconfortável tomadas externas em locações reais (mais do que
(como relataram os que trabalharam no filme, não em estúdio), opção pela luz natural, equipamentos
foram fáceis as intermináveis diárias com a equipe mais ágeis, recursos técnicos mais econômicos.
espremida naquele apartamento), ele se prova
um encenador de talento, utilizando os planos de Interessante observar como Truffaut já anunciara
longa duração e os enquadramentos em formato – numa pequena nota publicada em julho de
Cinemascope como estratégias de alargamento 1953, isto é, logo que começaram a existir filmes
em Cinemascope – parte do programa estético
que colocaria em prática anos depois com Os
  RIVETTE, Jacques. Du côté de chez Antoine. Cahiers du
2

Cinéma, n. 95, maio de 1959, p. 38. Incompreendidos:


Toda obra é mais ou menos a história de um uma extensa documentação sobre a psicologia
homem que anda, e se andará bastante com o dos adolescentes e a delinquência juvenil, além
Cinemascope. [...] Se concordarmos que todo de ter consultado membros dos juizados de
aperfeiçoamento se dá no sentido da eficácia pelo menores e do ministério da educação. Não por
acréscimo de realismo, devemos concluir que acaso, paralelamente ao sucesso de público e
o Cinemascope é um aperfeiçoamento, o mais bilheteria, o filme se transformou num fenômeno,
importante desde a invenção do cinema sonoro.3 funcionando como mote na imprensa para um
debate sobre educação dos adolescentes, infância
Os Incompreendidos, pode-se dizer, é a história problemática, desajuste social. Estava aberto o
de um adolescente que anda (não custa lembrar caminho para um legado imenso de obras que têm
que os três últimos planos do filme consistem em Os Incompreendidos como referência principal,
Antoine correndo e depois andando, acompanhado incluindo excelentes filmes como Infância Nua
por travellings). E seu acréscimo de realismo (L’enfance Nue, 1968), de Maurice Pialat, cujo
reside num senso da duração e da observação, protagonista se chama François em homenagem
numa atenção aos detalhes sem precisar isolá- a Truffaut (que é ainda o produtor do filme), e O
los do contexto geral da cena, como naquele Jovem Assassino (Le Petit Criminel, 1990), de
momento em que Antoine (como seus pais sempre Jacques Doillon.
lhe pedem) leva o lixo até a lixeira do prédio e,
52 após esvaziar o recipiente, retira o jornal que 53

o forrava, sujando a mão com o chorume que referências


dali escorre: há uma fisicalidade na sensação BAECQUE, Antoine de; TOUBIANA, Serge.

que essa cena desperta, uma visão concreta da François Truffaut – uma biografia. Rio de Janeiro:

realidade corpórea do mundo, que nos aproxima da Record, 1998.

experiência vivida pelo protagonista do filme. RIVETTE, Jacques. Du côté de chez Antoine.

Cahiers du Cinéma, n. 95, maio de 1959.

Oscilando entre a ternura e a crueldade, o olhar de TRUFFAUT, François. En avoir plein la vue. Cahiers

Truffaut capta uma série de pequenas situações du Cinéma, n. 25, julho de 1953.

como essa, de simples interações do personagem


com os objetos à sua volta, configurando, no
final, um sólido retrato de um dos períodos mais
difíceis da existência, que envolve muitas vezes a
dificuldade do adolescente de encontrar seu lugar
no mundo e de se adaptar a quadros institucionais
cerceados por instâncias de autoridade que amiúde
se provam hostis. Para atingir a justeza de olhar
e a carga realista que desejava, Truffaut reuniu

3
  TRUFFAUT, François. En avoir plein la vue. Cahiers du
Cinéma, n. 25, julho de 1953, p. 23.
DESAJUSTES
por Dalila Martins

Ensino Médio
// Frederick Wiseman ///// 1968 // Estados
Unidos

Looks like nothing’s gonna change

Everything still remains the same

Dalila Martins I can’t do what ten people tell me to do

////// É pesquisadora e crítica de cinema. So I guess I’ll remain the same, listen.

Bacharel em Audiovisual e Mestre em Meios e Otis Redding, (Sittin’ On) The Dock of the Bay1

Processos Audiovisuais pela ECA-USP, onde


atualmente desenvolve doutorado sobre a obra Ensino Médio (High School, 1968) integra a longa

de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. É editora série de documentários em que Frederick Wiseman

da Revista Zagaia, redatora da Revista Cinética e perscruta a lógica social do funcionamento de

eventual colaboradora do periódico La Furia instituições num notável paralelo com as análises

Umana. Integra o grupo de pesquisa História da do micropoder em proliferação naqueles anos —

Experimentação no Cinema e na Crítica (CNPq). seguramente um indício da necessidade premente

Possui também alguns trabalhos em vídeo, de se aprender a ver. Os exemplos são múltiplos

dentre eles NU (2011), em coautoria com Carlos e se estendem até hoje: hospício, delegacia de

Fajardo. polícia, escola, hospital, campo de treinamento do


exército, monastério, vara de infância e juventude,
núcleo de pesquisas científicas, estado de bem-
estar, indústria frigorífica, mercado da moda, loja
de departamento, hipódromo, educação especial,
centro de capacitação para deficientes, base da
aeronáutica, parque, estação de esqui, zoológico,
academia de dança, companhia de teatro,

1
  Parece que nada vai mudar / Tudo ainda continua igual / Eu
não posso fazer o que dez pessoas me mandam fazer / Então,
eu acho que continuarei o mesmo, ouça. Trecho de uma música
de Otis Redding, (Sentado na) Doca da Baía.
projeto de habitação, arena, legislativo, cabaré, Com efeito, o modelo de vida tradicional que o
universidade, museu, bairro, biblioteca etc. estabelecimento de ensino reproduz é atingido
apenas tangencialmente pelas transformações
Na superfície do filme, através de um registro de radicais da década de 1960. Há, porém, dois
simulada neutralidade que tanto reputa o cinema momentos em que a contingência se torna
direto — gênero convencionalmente definido por distúrbio: quando o jovem de óculos escuros
aquilo em que nele se ausenta: sem cartelas, declara desprezo pelos colegas alienados e sugere
sem entrevistas, sem voz over, sem intervenção a existência da equipe de filmagem numa ligeira
—, observa-se o desenvolvimento progressivo asserção — rara quebra de transparência — e na
do cotidiano da Northeast High School da emocionada leitura da carta de um ex-estudante
Filadélfia, com ênfase na hierarquia inexorável que presta serviço militar no Vietnã com ingênuo
entre seus professores, funcionários, pais e orgulho — imagem derradeira.
alunos. Não obstante, a economia do dispositivo
— uma câmera diligente e um gravador portátil Em High School, Wiseman opera uma aglutinação
a acompanhar episódios cuja ocorrência deles de acontecimentos avulsos, ao mesmo tempo em
independe —, manifesta um teor crítico. Decerto, a que os dispõe de modo a ralentar o presente de
mera presença do aparato não deixou de perturbar um período letivo — estruturação que designa o
as situações da rotina colegial, ainda que em domínio contínuo da entidade em questão. Assim,
56 grau mínimo. Portanto, chega-se ao limiar de numa engenhosa contra-intuição da arte engajada, 57

uma reflexividade anunciada. Todavia, é mediante transfere-se a incumbência de deslocamento para


a montagem que esta tendência do dispositivo o gesto da câmera e do gravador que procuram
adquire sentido, até o ponto de singularização por recônditos sinais de indisciplina nos rostos
da obra enquanto abdicação incitatória. Tudo e nas mãos. Ora, tomar distância da vigência do
transcorre como se a rebeldia paulatina tematizada dado não pressuporia uma atitude assertiva — no
em High School denunciasse o próprio método extremo, uma tese audiovisual? Inversamente, são
wisemaniano. A canção de Otis Redding inserida as captações que assumem o risco de interromper
na abertura extradiegeticamente denota a força a atualidade coesa organizada na ilha de edição.
de resistência implícita na realização do cineasta E esta alteração sistêmica complexifica o conteúdo
em larga escala: diante da irredutibilidade do da objetividade factográfica.
status quo, nada a fazer senão insistir na própria
hesitação.

Tal exercício de contumácia se torna evidente nos


instantes em que o zoom titubeia ao concentrar a
atenção em determinado detalhe. Estes desvios
mecânicos se intensificam junto às sequências
de modesta contestação das normas por parte
de alguns poucos, como no caso do garoto que
acata a detenção imposta sob tímido protesto.
VONTADE E
IMPOTÊNCIA
Marcelo Zona Sul
// Xavier de Oliveira ////// 1970 // Brasil por Calac Nogueira

Calac Nogueira
//// Crítico de cinema, pesquisador e cineasta.
Escreveu para a revista Contracampo e publicou
ensaios em diversos catálogos de mostras e
festivais de cinema. Atualmente escreve para a Marcelo tem 16 anos e não se contém em si.

Revista Interlúdio. É graduado em Cinema Acorda aos trancos, distribuindo pontapés,

pela UFF e mestrando em Meios e Processos atrasado, o caos. Vai à escola. Ele namora Renata,

Audiovisuais pela ECA/USP. Foi curador, sua colega, com quem passeia pelas ruas de

produtor e organizador do catálogo da Copacabana: as calçadas, as vitrines das lojas, as

retrospectiva “Fritz Lang — O horror está no lanchonetes, a praia. Essa Copacabana dos anos

horizonte” (CCBB DF, RJ e SP). Dirigiu os 1970 não mudou tanto, na verdade ela continua

curtas Os Invasores (2013) e Cinefilia (2016). igual. Enfim, Marcelo é essa pura energia caótica
da adolescência, esta vontade de ser, esta pura
vontade. Stepan Nercessian, então com 15 anos,
está contagiante. Seu Marcelo é a carioquice em
pessoa: malandro, insubordinado, zomba de tudo e
de todos. Copacabana.

Primeiro filme de Xavier de Oliveira, Marcelo Zona


Sul (1970) é uma tentativa comercial. É um filme
“para as matinês”, um dos primeiros esforços de
que se tem lembrança para explorar o potencial do
público adolescente. Teve trilha sonora composta
especialmente para o filme. O cartaz quem assina
é Ziraldo. É um filme de classe média, uma espécie
de versão adolescente, bem comportada, censura
livre de Copacabana me Engana (1968), de Antônio
Carlos da Fontoura, feito dois anos antes. É um
filme saudável: Marcelo não é um “delinquente” A abertura que Xavier de Oliveira dá às cenas da
(mesmo que a escola e o pai o tratem como tal), é recepção em casa e do final na Avenida Brasil é o
um adolescente absolutamente comum. O grande que confere a Marcelo Zona Sul um ponto de vista
drama? Matar aula para um passeio nas Paineiras, maduro, não deslumbrado sobre a adolescência. A
chegar um pouco mais tarde em casa, infernizar adolescência não é um universo fechado na própria
a escola, não ter medido as consequências. Não ludicidade, ao contrário: ela é confrontada com um
ter reprimido essa vontade e essa energia da mundo maior e mais amplo que a ultrapassa. Fica
adolescência dentro de si. patente aqui a impotência do personagem, o que
carrega o filme de um ar um tanto melancólico.
O tom pop do filme é contrastado com um olhar No final tudo dá errado, todos os planos são
firme sobre a adolescência, que é pensada abortados, até mesmo Renata o troca por um
aqui como drama da impotência. Marcelo é um rapaz mais velho. Mas tudo também é provisório, a
personagem que extravasa energia, que é pura adolescência é este lugar onde as coisas, apesar
vontade de poder. Quer fazer o que der na telha. da dor, não precisam ser definitivas.
Mas a essa energia o filme irá contrapor justamente
cenas que estabelecem limites, que fixam seu lugar Como projeto comercial, Marcelo Zona Sul deu
no mundo. Não apenas por meio da repressão certo: o filme saiu-se bem nas bilheterias, e Xavier
direta da escola e da família, mas num sentido de Oliveira emendaria na sequência com André,
60 existencial mais amplo: a vontade confrontada com a Cara e a Coragem (1971), filme de tom muito 61

a própria impotência. diferente, de uma simplicidade cortante, sem o


apelo pop de Marcelo Zona Sul. Mais tarde faria
Começa pela cena do jipe enguiçado, o primeiro O Vampiro de Copacabana (1976), seu filme mais
fracasso: apesar da imaginação em improvisar conhecido, testemunho de uma classe média
a capota, Marcelo não sabe o que fazer para oprimida na própria mediocridade. Já Marcelo
tirar os amigos da roubada em que os colocou. Zona Sul ficaria um tanto esquecido, muito por
Em seguida, numa das melhores cenas do filme, conta do perfil mais comercial e adolescente. Não
a recepção em casa, pelo pai, dos colegas de é que a história tenha sido injusta (ela sempre é),
trabalho em comemoração à sua promoção “pelos que seja preciso recuperar tesouros, obras-primas
28 anos de serviços prestados”. Um patético show enterradas e desconhecidas do cinema nacional.
de horrores do mundo adulto que se insinua sobre O que é preciso questionar é a própria ideia de
Marcelo: o pai, no melhor estilo puxa-saco, tenta tesouro. Recompor outras histórias do cinema
arranjar um emprego para Marcelo junto ao chefe, brasileiro, em particular aquelas voltadas para o
que nem lhe dá trela — depois todos se retiram cinema popular. Há gente, pouca mas empenhada,
para assistir à novela. Termina, por fim, na cena trabalhando nisso atualmente. Esperamos que dê
da Avenida Brasil, a desolação de ir aos limites frutos.
da cidade para se dar conta dos próprios limites.
Marcelo é pura energia, mas não pode tudo:
não vai para São Paulo, precisa esperar crescer,
precisa esperar o tempo passar.
NOTAS SOBRE
PASSE TON
BAC D’ABORD
Antes Passe no Vestibular
// Maurice Pialat //// 1978 /// França

por Maria Chiaretti

Maria Chiaretti
/// Pesquisadora e programadora de cinema, é
mestre em Teoria e História do Cinema pela Não saímos de um plano de Pialat

Université Paris 8 Vincennes / Saint-Denis e no estado em que entramos.

doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais O mal está feito.

na ECA-USP onde desenvolve, sob orientação Jean Narboni, Le mal est fait1

de Ismail Xavier, pesquisa sobre cineastas


improvisadores dos anos 1960-1970. Após abandonar sua carreira de pintor, com pouco
mais de quarenta anos, Maurice Pialat realiza seu
primeiro longa-metragem: Infância Nua (L’enfance
Nue, 1968). Dez anos mais tarde, nasce Antes
Passe no Vestibular (Passe Ton Bac D’abord,
1978). Em entrevista concedida aos Cahiers du
Cinéma na estreia do filme, o cineasta diz ter a
impressão de estar condenado a refazer a cada
vez seu primeiro filme. Passe Ton Bac D’abord
seria o produto deste sentimento2. O que nos faz
pensar na frase de Rivette, “é sempre o método
com o qual filmamos que cria o verdadeiro
assunto”: se o filme é a metáfora da sua própria
fabricação, a ficção reflete as condições de
realização. Com um orçamento bastante reduzido,
entre janeiro e maio de 1978, Pialat elege um
universo desencantado de adolescentes que
cursam o fim do ensino médio de uma cidade

1
  In: Cahiers du Cinéma, nº 304, setembro de 1979, p. 6.
2
  In: Cahiers du Cinéma, nº 304, setembro de 1979, p. 7.
francesa de Nord-Pas-de-Calais. Desde o fim dos circulam temas, situações e atmosferas que,
anos 1960, Lens atravessava uma crise econômica somadas, resultam num retrato pungente daquele
causada pelo declínio da mineração de carvão. De momento. Apesar da indicação do vestibular do
certa forma, o desencanto da geração de Passe título, são raras as cenas que ocorrem no ambiente
Ton Bac D’abord é partilhado pelo próprio cineasta, escolar, que aparece, por metonímia, no tampo
tingindo as relações entre as personagens de pichado da carteira que abre o filme e que volta
uma crueza raramente vista no cinema. Menos quase no fim. A fisicalidade da superfície riscada,
do que o olhar de Pialat, muitas vezes acusado com desenhos, palavras e frases sobrepostas ecoa
de pessimista, desencantada é a própria vida, na fisicalidade turbulenta dos corpos, acentuada
que uma câmera sóbria parece se contentar em pela câmera.
registrar.
Assim como o de Jacques Rozier e de Jean
Pialat retorna à cidade em que filmou Infância Nua Eustache, o cinema de Pialat se inscreve numa
para se deter ao pequeno mundo de jovens que certa linhagem tributária do cinema direto, que
transitam num circuito fechado que vai da casa tem Jean Rouch como o seu patrono. A vida deixa
de seus pais ao café-hotel Caron. Essa dialética de ser representada pelo cinema (à maneira de
entre um mal-estar junto à família biológica e a um modelo) para ser nele apresentada em estado
procura de uma família substitutiva (o grupo de bruto, por assim dizer. Como sugeria Jean-Louis
64 amigos) é outro aspecto que aproxima Passe Comolli, o surgimento do direto forçou o cinema 65

Ton Bac D’abord do seu primeiro longa, e que inteiro a se redefinir, atuando como um revelador.
continua a marcar seu cinema. A família não é um Essa relação com o presente das filmagens implica
lugar de felicidade, e isto está claro no discurso em temporalidades singulares que as transformam
de Agnès, que usa o casamento com Rocky para numa aventura coletiva. Pialat conjuga a
sair da casa dos pais, na fuga momentânea de disponibilidade física dos seus colaboradores com
Elisabeth e Philippe ou na partida de Bernard uma precisão de posicionamento da câmera, que
e Patrick para Paris. O filme se constrói a partir acaba por potencializar o plano único. Lembremos
de uma constelação de personagens entre os a sequência na sala de estar na casa de Elisabeth,
quais a câmera e a narrativa distribuem sua na qual, postada ao fundo, a câmera acompanha
atenção. Trata-se de um filme não apenas sobre quase imóvel a crise histérica de sua mãe; ou o
a adolescência, como queria Pialat, mas também plano belíssimo na praia, no qual Bernard revela
sobre os sentimentos e os gestos precisos daquele para a garota que acabara de conhecer que se
ambiente. sente culpado pela péssima relação que possui
com o pai doente.
O cineasta não dá mais razão a uma geração do
que à outra, seu cinema é regido pelo coração Grande parte do filme se passa à noite ou em
e pelo feixe de sentimentos que ele é capaz lugares fechados, como as casas de família, o
de experimentar. Cheio de arestas, Passe Ton café Caron, um salão de festas, um quarto de
Bac D’abord agencia blocos de sequências hotel, um supermercado. O raro momento solar,
relativamente autônomas, por entre as quais na viagem dos amigos ao balneário de Bray-
Dunes (a 100 Km de Lens), parece reforçar, por um cinema no Sábado se tiver alguém para ficar

contraste, o futuro sombrio que paira sobre a com as crianças.

agitação desencantada daqueles jovens. No café, Mãe: O que mais você quer? É a vida.

vemos amores que nascem, disputas provocadas Patrick: Sim, é a vida. Não, não é a vida.

por ciúmes, conversas sobre desejos de mudança,


e nestas cenas de grupo constatamos a força Apesar de Patrick e Bernard seguirem para Paris, o
dos jovens atores não profissionais (com exceção filme se fecha com o mesmo discurso do professor
de Elisabeth, interpretada pela atriz Sabine de filosofia que o abrira, seguido de um plano
Haudepin, todos os outros garotos guardam seus de Elisabeth grávida dentro de casa. O círculo
nomes próprios), que parecem não se curvar aos se completa, voltamos ao começo, não há fuga
imperativos da ficção. Apesar de Pialat afirmar que possível. Como diria a canção de Belchior, “ainda
80% do roteiro havia sido escrito previamente, os somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
diálogos e os gestos guardam uma autenticidade
e um frescor impensáveis sem uma cumplicidade
mútua entre cineasta e atores. referências
NARBONI, Jean. Le mal est fait. In: Cahiers du

A sequência do casamento de Agnès é exemplar Cinéma, nº 304, setembro de 1979.

deste cinema baseado na libertação dos corpos


66 dos atores, cujos gestos revelam subjetividades 67

não explicitadas na narrativa. Durante quase


10 minutos, acompanhamos os atores vivendo
plenamente aquela comunhão, o que é reforçado
pela fisicalidade dos longos momentos de dança
em que todas as gerações se misturam e partilham
pontualmente uma joie de vivre. Por contraste,
Pialat encadeará a sequência à cena da briga
entre mãe e filha na sala de estar, onde não por
acaso, ambas estarão fazendo os preparativos do
casamento de Elisabeth na cena final. Talvez a
crueza abissal dos modos de ver o mundo esteja
nas breves conversas que se passam nas cozinhas
das famílias, onde os pais cobram respostas
imediatas dos seus filhos sobre o que planejam
para o seu futuro. Nesse sentido, a última conversa
entre Patrick e a mãe é exemplar:

Patrick: Eu não quero acabar como Annick,

casado aos 19 anos, com dois filhos, acordando

cedo para trabalhar, comer e dormir. Talvez pegar


O QUE A
ESCOLA ENSINA
Das Tripas Coração
// Ana Carolina /// 1987 // Brasil por Ruy Gardnier

Ruy Gardnier
// É jornalista, pesquisador e crítico de cinema e
música. É fundador e editor da revista eletrônica
de cinema Contracampo e do blog Camarilha dos
Quatro, dedicado à música. Trabalha como
pesquisador do Acervo Audiovisual do Circo
Voador. Trabalhou anteriormente como
pesquisador no Tempo Glauber e na Cinemateca A escola, nos dizem, serve para ensinar, para

do MAM. Foi curador de retrospectivas dos formar. Isso ela não faz necessariamente,

cineastas Julio Bressane e Rogério Sganzerla, e mas pode fazer. No entanto, e mesmo

da mostra “Cinema Brasileiro: Anos 90, 9 independentemente dos conteúdos a serem

Questões”, entre outras. Editou os catálogos das ensinados para ensejar uma formação, há um

mostras retrospectivas dos cineastas John Ford, pressuposto inerente ao processo que é aquilo

Samuel Fuller e Abel Ferrara. É professor da que é “ensinado” antes de tudo: a disciplina,

Escola de Cinema Darcy Ribeiro e crítico de a ordenação, a compostura. Estar na escola é

cinema para o jornal O Globo. ter que obedecer a uma série de protocolos de
comportamento, aprender a reprimir necessidades
básicas (ir ao banheiro, por exemplo) e adaptar-
se a um ambiente hierárquico e desigual de falas,
em que o chefe do saber (o professor, o diretor,
o bedel) domina o fluxo do discurso e da ordem.
Em segundo lugar está a própria ideia do que seja
formação, e hegemonicamente acaba vencendo
a concepção de que formar é preparar o lugar
(preexistente) na sociedade adulta para aqueles
que em breve chegarão nela. Assim, formar é
conformar.
Em todos os delírios, extravazamentos e (além do ensaio da cerimônia e de uma missa,
devassidões que compõem a continuidade só há duas breves situações de sala de aula
narrativa de Das Tripas Coração (1982), as envolvendo professores ensinando, ou tentando
questões da disciplina e da conformação estão ensinar, algo a suas alunas), mas de cenas de
presentes — só que mostradas em seu avesso. momentos recreativos em que o desvario — a
Ambientado num colégio de moças de família, libido indiscriminada, o sentimento desgarrado
o filme utiliza-se de uma narrativa onírica — o de culpa, o instinto de rebeldia — toma conta dos
sonho é do interventor recém-chegado à escola comportamentos.
para uma reunião — para encenar toda uma gama
de desejos proibidos e recalcados de alunas, Um dos eixos marcantes do filme é o das alunas
professoras, faxineiras e demais funcionárias, quando estão entre si. Muito distantes dos anjinhos
incluindo aí o próprio interventor que se transmuta dóceis que o imperativo social tenta determinar,
em professor desejado por todas as mulheres que elas são seres imaginativos, libidinais e cruéis,
frequentam aquele espaço. devaneando o entrelace amoroso com o professor
garanhão, tocando-se umas às outras, fumando
Das Tripas Coração começa com a chegada de no banheiro, cantando musiquinhas de baixo calão
um piano à escola. Independentemente do que ou exercitando a agressividade maltratando as
ele é como instrumento musical, numa escola de colegas mais castas (como nas cenas em que
70 moças ele é acima de tudo um operador simbólico cortam os cabelos de Maria Padilha ou forçam a 71

de virtude — uma mulher virtuosa é aquela que colega mais bobinha a fugir para o telhado). Um
aprendeu piano. O instrumento, porém, nunca tanto próximo ao estilo de Buñuel (pensemos
exercerá sua função real, e passará o filme a nos aristocratas de O Anjo Exterminador (El
ser transportado, com dificuldade, de corredor Ángel Exterminador, 1962) transformando-se
em corredor do suntuoso prédio. Outro piano, em selvagens à medida que a penúria brota), o
sim, será tocado, numa espécie de ensaio para inconformismo de Ana Carolina se exerce pela
uma cerimônia de cunho patriótico (as diretoras encenação patente de todos os desejos que se
discutem se será tocado o “Hino à Bandeira” ou mantêm latentes por contra da repressão social
o “Hino da Independência”). Nesse ensaio, a e da necessidade da construção de uma imagem
aura solene de nobreza — envolvendo o piano, pública. Das Tripas Coração se refestela em
o bel canto, o patriotismo, a institucionalidade da quebrar essa imagem e rir diante dos cacos.
cerimônia — será vilipendiada pela ironia grotesca
e exagerada da encenação. Em uma rara cena de Em sua segunda metade, o filme passa a assumir
funcionamento normal (“normal”) de uma escola, um tom progressivamente mais exagerado e
Ana Carolina deixa claro o recado: ela está ali irrealista. Entra em ação outro dos eixos principais,
para denunciar, através de seu humor muito envolvendo o triângulo amoroso entre o professor
particular, o regime de disciplinação dos corpos Guido (Antônio Fagundes) e duas professoras, a
operado pelas instituições de ensino. A verve da liberada Renata (Dina Sfat) e a culpada Miriam
cineasta, no entanto, não funcionará a partir da (Xuxa Lopes). As cenas são vividas em meio
paródia de situações protocolares de uma escola a declamações poéticas, desentendimentos,
rivalidades e agarramento entre os três, até um
momento de clímax dramático e histérico em
que eros e thanatos literalmente fazem a escola
(bom, ao menos um aposento dela) pegar fogo.
Em paralelo, as faxineiras, um faxineiro, um padre
e um sindicalista também se esfregam entre si
o tempo todo, tentando a todo momento chegar
às vias de fato. O sonho devasso do interventor
é como uma situação em que o princípio de
realidade freudiano fosse dissolvido e todos
os conflitos subconscientes fossem levados ao
primeiro plano. Só são resguardadas ‒ e mesmo
assim parcialmente ‒ as duas diretoras mais
velhas, instâncias assépticas da ordem e dos bons
costumes.

O bom tom, a “elegância”, é algo que Ana Carolina


abomina — com justeza, porque é o equivalente
72 artístico da conformação. Estilisticamente o filme
procede por acumulação de situações hiperbólicas,
de intencional “mau gosto” (conversas de duplo
sentido, palavrões, metáforas sexuais evidentes),
produzindo situações hilariantes a partir do
confrontamento com os tabus que a sociedade
“de bem” detesta ver expostos tão frontalmente.
Das Tripas Coração opera o gesto de jogar para
fora todos esses tabus, jogá-los para a tela com
toda a violência que eles são frequentemente, na
sociedade, recalcados para dentro. Não à toa, o
filme termina com o piano se espatifando no pátio,
ao som do “Hino Acadêmico”. O verdadeiro ensino,
nos diz Ana Carolina, é o contra-ensino.
REINVENTAR
ABISMOS
por Hannah Serrat

A imagem de uma porta fechada, que balança


suavemente enquanto os créditos iniciais de Onde

Onde Fica a Casa do Meu Amigo? Fica a Casa do Meu Amigo? (Abbas Kiarostami,

///// Abbas Kiarostami //// 1987 // Irã 1987) são apresentados, parece prenunciar
certo transbordamento da infância contida pelas
restrições que a cercam. Ao som de muitas vozes
e gritos infantis, típicos dos intervalos no ambiente
escolar, por alguns instantes, a porta parece que

Hannah Serrat será aberta e volta a se fechar continuamente

/// É pesquisadora, crítica e realizadora de até que o professor chegue para abri-la de uma

cinema. Concluiu seu mestrado em Comunicação vez e colocar ordem na sala. Ele irrita-se com a

Social pela UFMG, interessada pelos modos de bagunça, lembra que as crianças prometeram ficar

aparição e de enunciação dos povos periféricos quietas até que ele voltasse e, aos poucos, a sala

no cinema. É crítica colaboradora da revista se silencia e cada uma delas vai para o seu lugar

Rocinante e, em 2014, foi curadora do Festival sentar-se em silêncio. O professor indaga sobre

Internacional de Curtas-Metragens de Belo quem as mandou sentar e elas levantam-se. Em

Horizonte. Em 2015, realizou Retalho, seu seguida, ele pede que elas sentem-se de novo e

primeiro filme. é obedecido prontamente. É apenas ele, portanto,


que deve ordenar os corpos e as vozes de seus
alunos. “Não falem a não ser que eu pergunte!”, ele
sentencia. Antes disso, pouco depois de chegar,
o professor vai até a janela e a fecha. O plano informações atravessadas, o filme acaba por
aberto, que registra a sala em diagonal, mostra-nos construir um tipo de espaço labiríntico, que faz
de um lado, as crianças sentadas em silêncio em a criança andar em círculos, encontrar pessoas
seus lugares e, do outro, o jardim, com o sol e as homônimas ao seu colega, descobrir que em uma
plantas, separados pelas janelas de vidro. Aqui, a única região escondem-se uma multiplicidade
sala de aula; lá, o mundo. de lugares. O trajeto inventado por Kiarostami
entre um povoado e outro trata, assim, de alargar
Terminada a aula, as crianças correm enérgicas os espaços, que não poderiam ser contidos
para fora da escola, sobem em cima de um carro nem mesmo pelos enquadramentos do cinema
de boi, brincam com as rodas, adulam os burros (privilegiando pequenos movimentos de câmera
perto dali, tropeçam, levantam e seguem a vida panorâmicos alternados com a composição de
de volta para casa e para os deveres junto a seus planos mais abertos). Como bem observa Jean-
pais. Pouco depois, um deles, o pequeno Ahmad, Claude Bernardet1, o cinema de Kiarostami dedica-
descobre ter levado para casa por engano o se a filmar, em grande medida, espaços externos,
caderno de Nematzadeh, um colega da sua classe com raro interesse pelos interiores, preferindo
que o professor ameaçara expulsar da turma, caso as janelas móveis dos carros à estabilidade e ao
ele chegasse no dia seguinte novamente com o recolhimento das casas que pouco se associam
dever escrito em uma folha de papel avulsa. Aflito, com o que o crítico identifica em seus filmes como
76 Ahmad tenta explicar à sua mãe o engano e a uma “poética do deslocamento”, de certo modo, 77

grave consequência que o amigo sofreria, mas ela intimamente ligada à sensibilidade do realizador
não lhe dá ouvidos, ordenando a ele uma série pela própria poética do mundo.
de tarefas domésticas. Sem ser compreendido
e preocupado com o amigo, o menino decide Quase ao fim do filme, sem conseguir adentrar
fugir em direção ao povoado vizinho de Poshteh, a casa de seu amigo, a fazer o dever de casa
onde Nematzadeh morava, sem saber, no abaixado sobre o chão de seu quarto, Ahmad é
entanto, qualquer referência sobre a localização surpreendido pelo vento forte que repentinamente
da casa onde o colega vivia. O filme dedica-se abre a janela, sacode os lençóis sobre o varal e
a acompanhar as andanças dessa criança, que balança as folhas de seu caderno no chão, como
percorre os dois povoados, encontrando entre eles se a força do mundo fosse capaz de perturbar,
homens e mulheres pouco dispostos a ali também, o acolhimento e a tranquilidade do
escutá-lo e crianças atarefadas. Em meio ao menino já no interior de casa. Vemos, por alguns
mundo de obrigações e cerceamentos impostos instantes, o vento a agitar os lençóis enquanto
pelos adultos, é preciso insistir nas buscas, a mãe do garoto esforça-se por recolhê-los. No
nas descobertas e nas linhas de fuga entre os plano seguinte, em oposição a esse, o interior da
caminhos. sala de aula dá lugar ao silêncio e a quietude dos
alunos sentados à espera do professor. Ele chega
Ao nos apresentar a procura do menino pelas
ruas da cidade, cada vez mais perdido e a
  Cf. BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São
1
encontrar moradores capazes de oferecer apenas Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 45.
e, desta vez, abre as janelas antes de começar a inventividade e da liberdade das crianças. Resta
aula. Apesar da sequência que dá início ao filme ao filme de Kiarostami nos oferecer a imagem
aparentemente se repetir, há, de imediato, uma de uma árvore solitária no alto de um morro (tão
reconfiguração da experiência escolar, que ganha presente em suas fotografias anteriores) e traçar
relevo com a última cena do filme, na qual algo até ela um longo caminho em ziguezague para que
da vida vem se insinuar em meio ao caderno do seja possível, ali, reinventar abismos e reconstruir
garoto. passagens. Como comenta Kiarostami:

Há um trecho de uma entrevista concedida, em Nessa aldeia, antes da nossa chegada, não havia

certa feita, por João Guimarães Rosa que parece quase nada. (...) Não havia nem bazar, nem casas,

nos lançar diretamente à construção da infância nem colina para o mato crescer. Reconstruímos

pelo filme de Kiarostami. Ele dizia: tudo. Fomos nós que traçamos o caminho em

ziguezague. Aparentemente, ele não leva a lugar

Não gosto de falar de infância. É um tempo de nenhum, mas na realidade chega a toda parte! 3.

coisas boas, mas sempre com pessoas grandes

incomodando a gente, intervindo, comentando,

perguntando, mandando, comandando, referências


estragando os prazeres. Recordando o tempo BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de

78 de criança, vejo por lá um excesso de adultos, Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 79

todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo 2004.

de soldados e policiais do invasor, em pátria KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que

ocupada2. eu sei de mim. São Paulo: Cosaq Naify; Mostra

Internacional de Cinema de São Paulo, 2004.

Em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, as ruas, os LIMA apud FERRAZ, Luciana Marques. A Infância

quintais das casas, as sacadas, a escola são todos e a velhice: percursos em Manuelzão e Miguilim.

espaços habitados por um excesso de adultos, 2010. 185 f. Tese (Doutorado). Universidade de

com seus desmandos e sua apatia aos desvios São Paulo, São Paulo, 2010.

infantis, com exceção do velho marceneiro que o


menino encontra pelo caminho e que se dispõe
a acompanhá-lo (um belíssimo retrato desse
encontro entre a urgência da infância e os pesares
da velhice). Ahmad, aos seus oito anos, assim
como Miguilim, personagem de um dos contos
de Rosa, também parecia estranhar o mundo dos
adultos, tão conflituoso e duro, longe da leveza, da

2
  João Guimarães Rosa em entrevista a Ascendino Lima.
In: LIMA apud FERRAZ, Luciana Marques. A Infância e a
velhice: percursos em Manuelzão e Miguilim. 2010. 185 f. Tese   KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que eu sei de mim.
3

(Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. São Paulo: Cosaq Naify; Mostra Internacional de Cinema de
44. São Paulo, 2004, p. 224.
SMELLS LIKE
TEEN SPIRIT
por Francis Vogner dos Reis

Um Som Diferente Um Som Diferente (Pump Up the Volume, 1990),

//// Pump Up the Volume ////// Allan Moyle ///// de Allan Moyle, é uma dessas pérolas do cinema

Estados Unidos norte-americano que tem sua economia política


aliada, com graça, à sua audácia narrativa e ao
despojamento estilístico, sem marca, sem grafismo
autoral. O que isso quer dizer? O filme é menos
uma expressão do senhor diretor-autor, e mais

Francis Vogner dos Reis uma manifestação própria e de exceção da cultura

///// É mestre em Meios nas suas regras fabulares, sua linguagem, seu

e Processos Audiovisuais na ECA-USP, crítico de modo de aproximação e empatia. E é justamente

cinema, foi colaborador de diversas revistas aí, nessa simplificação de meios, que reside a sua

brasileiras e estrangeiras, entre elas a Revista grandeza e eficiência. A palavra “eficiência”, que

Cinética. É curador da Mostra de Cinema de pode ser maldita em outros casos, aqui (e em boa

Tiradentes e outras mostras da Universo parte do grande cinema dos EUA) assume seu

Produção como Cine Ouro Preto e Cine BH. Pelo caráter de precisão porque sugere que se “acertou

CCBB fez a curadoria das mostras Jacques o seu alvo”. Não temos dúvidas do que o filme trata

Rivette e Jerry Lewis. É roteirista do filme O Jogo na sua aventura, construindo um jogo de forças

das Decapitações, de Sergio Bianchi, co-roteirista no microcosmo de uma comunidade no meio-este

de O Último Trago, de Pedro Diógenes, Luiz americano. O filme tem lado, tem um ponto de

Pretti e Ricardo Pretti, e Os Sonâmbulos, de vista e sabemos qual é e nos engaja com uma

Tiago Mata Machado. persuasão irresistível.


O filme de Allan Moyle é um teen movie, norte-americana, critica o automatismo das escolas
tendência popular na década de 80 que somava e sugere que seus ouvintes “não esqueçam de
a fascinação do contemporâneo à idealização comer cereais com garfo e fazer o dever de casa
dos tipos adolescentes. Esse cinema tem um no escuro”. Corta para os créditos que aparecem
mito na cinematografia americana, tendo como sobre a movimentação matinal no ônibus escolar
principal emblema os filmes de John Hughes. amarelo e nos corredores da high school. A
Já em Um Som Diferente, realizado em 1990, o princesa é levada de carro pelo pai, o punk
tom e o gesto são outros. São mais obscuros. debocha, os rapazes com jaqueta de esportistas
Se nos melhores exemplares de filmes de high se destacam na multidão, os freaks confabulam
school dos anos 80 o desvio possível era burlar pelos cantos, e as autoridades – pais, inspetores e
as regras dentro do sistema, aqui o que vai se diretora - mantém a ordem e o controle. Por mais
impor é a desestabilização do próprio sistema. que as cenas do cotidiano matinal sejam comuns a
Doce terrorismo. O colorido oitentista do gênero é quem viu os filmes teen oitentistas, a atmosfera é
substituído por uma paleta de cores mais escura, o outra, ainda divertida, mas ocre, sem inocência.
subúrbio solar desaparece e dá lugar à penumbra
de interiores noturnos e solitários; não há mais O prólogo determinou uma perspectiva política
o pop festivo e emerge Richard Hell (do punk mais dura e menos frugal do que filmes de
setentista), Leonard Cohen e as notas pesadas rebeldes carismáticos como Curtindo a Vida
82 e melancólicas do proto-grunge; a ansiedade Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off, 1986) e 83

pela primeira transa não é assunto, mas sim a Picardias Estudantis (Fast Times at Ridgemont
masturbação; a festa se faz como um complô na High, 1982) e, por isso, quando chegamos às
calada da noite contra o mundo opressor (o mundo cenas do cotidiano na escola, algo está fora do
dos adultos). São os anos 90 anti-yuppie, anti- lugar. A ordem parece suspeita. Um rapaz de
elogio do primeiro emprego. O loser não lamenta nome latino, Luis Chavez e uma garota, Cheryl,
a dificuldade de inserção social, mas se vinga da são chamados pelo inspetor e levados à diretora, e
cultura que exalta o winner. O quarto, a misantropia desaparecerão sem que possamos saber o motivo
e a música obscura se tornam um laboratório até o fim do filme, quando é revelado que foram
de rebeldia. É esse ambiente e esse momento expulsos arbitrariamente por não se adequarem às
histórico que daria à luz em pouco tempo ao álbum exigências da diretora.
Nevermind (Nirvana, 1991) e à canção Creep
(Radiohead, 1993). A identidade secreta do radialista maldoso Happy
Harry Hard-on é Mark Hunter (Christian Slater),
O prólogo não deixa dúvidas: não é mais possível rapaz tímido e isolado. Escondido dos pais
um acordo com a ordem. Há de se fazer feio transmite do seu quarto um programa diário às 22
e errado. Vemos os telhados de casas de um horas que faz crítica aos modos do subúrbio, ao
subúrbio no Arizona à noite e a voz um pouco país, à escola. Mark Hunter e Happy Harry Hard-on
distorcida de um radialista provocador. A câmera são análogos ao doutor Jeckyll e ao senhor Hyde
ansiosa explora a paisagem. A voz se apresenta (o médico e o monstro). A verborragia provocativa
como Happy Harry Hard-on e ironiza a afasia de Happy Harry Hard-on é um desrecalcamento
da frustação e do ódio juvenil de subúrbio. É Mais do que uma fábula sobre a rebelião juvenil,
inspiração e espelho ao mesmo tempo. É uma o filme trabalha o paradoxo libidinal da rebelião. O
pane na máquina ideológica da high school. Na arco do personagem Happy Harry e de sua recém-
pele (na voz) de Happy Harry, o tímido Mark simula namorada Nora (Samantha Mathis) é o da tomada
masturbação ao vivo, tira uma chinfra da hipocrisia de consciência. Uma consciência que não é só a
de figuras conservadoras e provincianas, toca seu tomada do conhecimento, mas um conhecimento
tema Everyboy Knows, de Leonard Cohen. Excita que gera responsabilidades. Ou seja: a rebelião
os adolescentes e revolta pais e mestres.Seus é um processo ativo de conhecimento e revolta.
interlocutores-ouvintes estão longe do olhar dos É a liberação de energias vitais e perigosas. A
pais, sozinhos ou em dupla, carros estacionados rebelião é bela, mas também é destruidora (e
em locais ermos ou na solidão dos seus quartos auto-destruidora). É como se Happy Harry/Mark,
(o bunker adolescente por excelência). Ele recebe ao liberar toda a carga libidinal sua e de seus pares
cartas e ligações, todos com pseudônimos. via transmissão de rádio pirata, liberasse eros e
tanathos. Ao colocar a rádio pirata sobre um jipe
As transmissões de Happy Harry Hard-on rendem em movimento para despistar a polícia, ele entende
alguns dos momentos mais bonitos do filme porque que não há mais volta. Não há conciliação. A
se estabelece uma relação dinâmica de fala e rebelião é também contrair uma responsabilidade
escuta em uma sociedade que perdeu (ou nunca pelas vicissitudes do desmonte das intricadas
84 teve) essa capacidade. Essas sequências se fazem tramas do poder. Um Som Diferente não se 85

como uma espécie de inventário de retratos dos resolve em um happy endind, mas é uma aventura
personagens que, em silêncio, se desestabilizam: que termina em andamento. A rebelião só está
a princesa que queima seus dotes e seu rosto, começando.
o solitário que declara seu suicídio ao vivo, o
garoto homossexual que relata um bullying, e o
próprio herói, que sente as sérias implicações – e
responsabilidades - de sua influência junto aos
seus pares. A poética dos primeiros planos nesses
retratos dialógicos é de uma beleza discreta e
desconcertante porque tensiona os sentimentos
mais radicais do filme.

A provocação aos pais e mestres rende


perseguição política com expulsão de alunos e
demissão de professora que toma partido dos
rebeldes. Happy Harry Hard-on deixa de ser um
ente e passa a ser uma espécie de evento coletivo.
A promoção do caos é incontornável, e aí Happy
Harry/Mark sai de sua célula (de seu casulo virtual)
e ganha a rua.
ELEFANTE, OU
OS MISTÉRIOS
QUE O CÉU
Elefante ABRIGA
// Gus Van Sant // 2003 //// Estados Unidos
por Ursula Rösele

Ursula Rösele
// É Mestre em Comunicação pela FAFICH-
UFMG e Doutoranda em Cinema pela Escola de
Belas Artes-UFMG. Foi crítica de cinema pela
Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br). Foi Em A Sombra de uma Dúvida (Shadow of a Doubt,

membro da comissão de seleção da Competitiva 1943), de Alfred Hitchcock, Charlie visita sua

Brasileira do Forumdoc.bh em 2010, membro do família. Quando de sua chegada à estação, o trem

Júri da Competitiva Brasileira do FestcurtasBH que o traz produz uma espessa nuvem negra que

em 2011, e das Competitivas Brasileira e por instantes toma todo o céu de Santa Rosa. A

Internacional em 2012, 2013 e 2014. Trabalhou trilha, em consonância com a satisfação de sua

como assessora da Gerência de Cinema da sobrinha em recebê-lo, não alerta o espectador

Fundação Clóvis Salgado (2011-2013). Atua acerca do que o céu parecia prever. Em Cabo do

como docente no Centro Universitário UNA Medo (Cape Fear, 1991), de Martin Scorsese, Max

(Graduação e Pós-Graduação). Cady, após ter passado 14 anos preso por estupro,
é libertado e sai em busca de vingança. A câmera
o registra de frente e, ao sair da prisão, vemos o
céu todo tomado pela iminência de uma terrível
tempestade que anuncia o terror que está por vir.

Elefante (Elephant, 2003) inicia com um contra-


plongée do céu. Enquanto ouvimos a voz de jovens
no extracampo, as nuvens passam aceleradas
e o azul vai escurecendo aos poucos até ser
tomado por um breu total. Após um corte, ainda em
contra-plongée, a câmera em movimento registra,
lentamente, árvores na calçada até acompanhar ou se apenas a rotina estudantil pode ser a
um carro desgovernado pela rua. propulsora desse tipo de atitude destrutiva). Ele
também não abandona de todo algumas sutilezas
Gus Van Sant faz uma espécie de releitura da (nem tão sutis assim) que demarcam uma
última hora que antecedeu os tiroteios na escola diferença entre os dois rapazes e o restante dos
Columbine, em Colorado, Estados Unidos, onde personagens ao revelar o quarto de um deles e sua
dois alunos mataram 13 pessoas e se suicidaram rotina (documentário sobre o nazismo que passa
em seguida em 1999. O fato, esgotado pela mídia, na TV, videogame violento etc).
ganhou contornos diversos. De uma investigação
incessante pela mente dos dois assassinos até Van Sant escolhe uma escola americana e
se tornar uma das bases da reflexão acerca do seleciona alunos para o processo seletivo de seu
bullying nas escolas, este acontecimento foi filme. Interessa a ele, talvez, demonstrar o caráter
retratado no cinema por Van Sant e também pelo universal de um espaço escolar e desse período
documentarista Michael Moore. Este último optou complexo. Essa intercessão entre infância e idade
por ampliar a discussão desse fato para o mal-uso adulta, onde a vida, de fato, parece estar em
das armas de fogo nos EUA, em comparação com constante estado de suspensão. Para tal, recorre a
o Canadá. alguns clichês (a jovem nerd, o casal “rei e rainha
do baile”, as patricinhas, o artista, o jovem com
88 Já Van Sant recria a última hora em torno da pai alcoólatra) e a uma liberdade processual: os 89

escola no dia do tiroteio não para esclarecer fatos personagens mantêm seus nomes reais, escolhem
ou oferecer subterfúgios para a compreensão suas roupas e não seguem um roteiro pré-
da motivação dos dois rapazes. Seu movimento determinado.
guarda algo de etéreo, abstrato. Somos levados a
uma espécie de estado de suspensão no qual esse Em 2007, a cineasta brasileira Maria Augusta
acontecimento sofrerá alguns loopings na narrativa Ramos, diante da impossibilidade legal de revelar
e a nós serão apresentadas as várias perspectivas o rosto e os nomes dos menores infratores, cujo
de ações aleatórias ao fato em si. julgamento era revisitado pelo dispositivo de seu
filme Juízo (2008), recorre a jovens da mesma
Considerando que a mídia concedeu diversas comunidade, que recebem a incumbência de
tonalidades a este acontecimento, disseminando, interpretar o papel do garoto ausente. Em uma
inclusive, uma série de fatos inverídicos (de acordo cartela inicial, o documentário avisa: “Neste
com o desdobramento das investigações) —, filme, eles foram substituídos por jovens de três
Van Sant parece partir do desconhecimento da comunidades do Rio de Janeiro habituados às
situação. A (re)leitura de uma experiência, vista de mesmas circunstâncias de risco social”. Tudo ali
fora, sempre guardará algo de uma objetividade ‘parece’ com o “real”, exceto pela presença desses
distanciada ou da perspectiva subjetiva de quem rapazes, que trazem consigo uma espécie de aura
a narra. Ao diretor não parecem interessar fatos dos corpos ausentes e, talvez justamente por este
específicos (tais como uma possível família fato, contribuam para a carga mais realista dessa
disfuncional que justifique a revolta dos assassinos reconstituição.
Ao responder em entrevistas acerca do título Ao escolher uma janela de exibição que foge
de seu filme, Van Sant, ao invés de recorrer à aos padrões contemporâneos (1,37:1) do cinema
referência homônima e evidente dirigida por Allan Hollywoodiano (Cinemascope), Van Sant parece
Clarke (1989), cita uma parábola budista na qual nos dizer que decidiu tomar emprestado esse
um grupo de homens cegos é convidado pelo evento para tentar nos inserir em uma experiência
príncipe a apalpar um elefante e descrevê-lo. A quase onírica de revisita apartada da lógica
cada um é reservada uma parte de seu corpo e no espetacular. Não é sobre ninguém em especial,
momento em que é solicitado que o descrevam, mas acerca de todos. Não é o elefante, mas um.
eles se atêm ao pedaço que tocaram, reduzindo o Em cada parte, vemos sob uma perspectiva, no
todo (elefante) em suas partes. entanto, aos personagens é concedido um tempo e
importância muito próximos.
Van Sant tinha em mãos um acontecimento real já
remontado à exaustão pela mídia e reconfigurado Ao não unificar, centralizar, especificar
pelo olhar parcial de Michael Moore. Decide (principalmente no conteúdo), Van Sant realiza
transformá-lo em obra cinematográfica e opta não um movimento centrífugo que eleva seu filme a
por afastar-se de todo do que é da ordem factual, uma condição muito mais justa. Tal como esboça
mas de buscar, assumindo um desconhecimento Oliveira Jr.: “Já não se trata de encenar o evento,
elementar de figura não participante da experiência mas de explorar os efeitos de estrutura derivados
90 original, uma espécie de ambiência, o que havia do dispositivo arquitetado pelo diretor. O filme 91

ali de universal e acessível e, assim como Maria promove uma experimentação de ambiências,
Augusta Ramos, recorre à semelhança para buscar um transporte fluido do olhar, que tem por tarefa
uma essência fidedigna possível. permitir um reconhecimento sensorial do espaço”3.

Procedimento comum aos documentários, antes Finalizo esta breve reflexão remontando a duas
de cada trecho no qual o filme acompanha seus cenas envolvendo o fotógrafo da escola (Elias).
personagens, vemos seu nome na tela preta em No início do filme, ele pergunta a um casal se
cada excerto de Elefante. Não vemos Rachel, pode fotografá-los para seu portfólio e um deles
Richard, Daniel, Sean ou Lance1, mas Elias, Carrie, questiona se seu trabalho envolve “pessoas
Benny, Jordan, Nicole2. Na impossibilidade de nuas”, ao passo que ele nega. Ao final, quando
vermos o massacre em Columbine, vemos um os assassinos o encontram na biblioteca, ao
massacre construído ficticiamente num espaço vê-los portando armas, Elias aponta a câmera e
real, por alunos reais, que se relacionam a partir “atira”4 primeiro. A câmera de Van Sant o filma
da elaboração de circunstâncias típicas ao seu frontalmente enquanto tira a foto dos dois.
universo rotineiro.

3
  OLIVEIRA, Jr., Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: do
clássico ao cinema de fluxo. Campinas: Papirus, 2013, p.10.
1
  Nomes reais de algumas vítimas do massacre. 4
  Referência ao termo americano shot, que serve tanto para
2
  Nomes reais de alguns personagens do filme Elefante (2003). “tiro” quanto para “tirar uma foto”.
Não é sobre desnudar-se diante da câmera, mas
olhá-la, ser visto por ela, transitar por entre os
limites que ela abarca através de uma mise en
scène que, impossibilitada de dar conta do todo,
potencializa suas partes.

Na última cena do filme, a câmera torna a fitar o


céu, em contra-plongée. As nuvens espessas dão
lugar a um céu azul e o sol, discretamente, anuncia
seu renascer. E tudo continua, dentro e para fora
dali.

referências
OLIVEIRA, Jr., Luiz Carlos. A mise en scène

no cinema: do clássico ao cinema de fluxo.

Campinas: Papirus, 2013.

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catálogo desenvolvido em PythonTM

composto na tipologia Helvetica

impresso em papel offset 90g/m2 na gráfica O Lutador

em Belo Horizonte, 2017 — tiragem 1000 cópias

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