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RESUMO: Este artigo toma como objeto dois textos da fortuna crítica da obra de Carlos
Drummond de Andrade, “Dificuldades no caminho”, de Davi Arrigucci Jr., e “Áporo”, de
Décio Pignatari, ambos analisam o poema “Áporo”, publicado em A Rosa do povo. A
comparação entre as análises parte de um breve levantamento sobre a formação intelectual e
acadêmica de cada um dos críticos para justificar as interpretações do poema realizadas pelos
dois autores. Décio Pignatari, publicitário, semioticista, tradutor e professor na área de
Comunicação, integrou o trio concretista ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos,
seguidores da tradição mallarmaica. Davi Arrigucci Jr., por sua vez, tem sua formação em
Letras, é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada e crítico de
literatura, além de escritor de ficção. Considerando sempre a formação dos dois autores, a
presente análise visa justificar seus diferentes pontos de vista a respeito do mesmo objeto
literário.
Estudo
(...) o breve poema pode ser destacado como um ponto alto, não só pela qualidade
em si, mas pelo caráter exemplar com relação ao conjunto da obra.
(ARRIGUCCI JR., 2002. P. 76)
1
CAMPOS A, CAMPOS, H, PIGNATARI, D. Teoria da Poesia Concreta. 2ª Ed. Editora Brasiliense. 1973.
2
Idem, p. 67.
3
http://www.pucsp.br/pos/cos/cepe/semiotica/semiotica.htm, acesso em 25/11/2011.
ESTUDOS| A MARgem, Uberlândia, n. 11, ano 6, jul-dez. 2016
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Drummond, por exemplo, encontra-se em um livro que não trata somente de literatura ou
poesia. O livro Contracomunicação (1973) traz entrevistas, depoimentos, textos sobre o
ensino na área de comunicação entre eles um plano pedagógico de um curso de Comunicação,
um texto a respeito do papel da TV Cultura nos campos do ensino, da educação e da cultura.
Além de conter onze crônicas de futebol, de autoria própria, textos sobre artes visuais e
histórias em quadrinhos intercaladas aos textos. Ele é dividido em seis partes, sendo somente
a terceira voltada exclusivamente à literatura.
Davi Arrigucci Jr., por sua vez, é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura
Comparada, graduou-se em Letras e na mesma área obteve o título de Doutor. Escreveu
crítica literária durante toda vida, e hoje é também escritor de ficção. Durante sua formação,
teve como referência os estudos de teoria literária de Eric Auerbach, Leo Spitzer e Dámaso
Alonso4.
Porém, foi a leitura da “Introdução”, do livro Formação da Literatura Brasileira, de
Antonio Candido, que proporcionou uma diretriz conceitual a Arrigucci Jr. pela qual pode
desenvolver seu método de análise e interpretação de textos. Para ele, o ponto fundamental
trazido pelo livro é
(...) a concepção do texto como resultado, cuja relativa autonomia não dispensa para
sua compreensão crítica os fatores externos – psíquicos e sociais – que o motivaram
e podem estar presentes nele como componentes estéticos da forma significativa,
atuantes nas projeções de seus significados. Essa concepção permite adotar uma
estratégia maleável e móvel de abordagem dos textos. (...) superando tanto o
formalismo, limitado à absolutização da autonomia estrutural, quanto o
reducionismo sociológico, a proposta de leitura de Antonio Candido é integradora e
procura se adequar a uma obra de arte que resulte ela própria da integração coerente
das contradições da experiência histórica, sendo, por isso mesmo, capaz de nos
proporcionar a experiência estética da estrutura. (ARRIGUCCI JR., 2010, P. 213)
4
Segundo o próprio crítico indica em seu ensaio “Questões sobre Antonio Candido” in O guardador de
Segredos - Ensaios, 2010
5
ARRIGUCCI, D. “Questões sobre Antonio Candido” in O guardador de Segredos - Ensaios, 2010.
***
Áporo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se
6
PIGNATARI, D. O que é comunicação poética - 9ª edição. 2005.
7
Idem. P. 10.
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10
8
ARRIGUCCI, Davi. “Dificuldades no caminho” in Coração Partido – uma análise da poesia reflexiva de
Drummond. 2002. P. 79
9
Epígrafe retirada de um tratado intitulado História natural popular, de Dr. J. Ph. Anstett, 1894, II.
10
ARRIGUCCI, Davi. “Dificuldades no caminho” in Coração Partido – uma análise da poesia reflexiva de
Drummond. 2002. P. 81.
11
Idem, p. 82.
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antiloquência do pseudo-castiço: Eis que, Oh razão, Presto”. Arrigucci Jr., por sua vez, crê
que a escolha das redondilhas menores, nas quais se moldou o soneto, faz parte do modo
particular do poeta lidar com a tradição. Assim como o tema mitológico da metamorfose,
Drummond faz uso da forma fixa, porém, os atualiza por meio da dramatização de “uma cena
direta, narrada no presente” tendo sempre alguma correspondência com sua experiência
histórica.
Ambos consideram o ritmo do poema um elemento fundamental em suas análises.
Contudo, para Pignatari ele se revela mais claramente quando traduzido em termos de
compasso, admitindo a diferenciação feita por Sérgio Buaque de Holanda entre ritmo e
compasso. Essa tradução evidencia compassos de uma valsa que entre outras funções pode
servir também como comentário irônico à forma tradicional do soneto. Davi Arrigucci Jr., no
entanto, relaciona o ritmo regular da primeira estrofe, na qual é narrada a ação insistente do
inseto em cavar a terra, com o trabalho do próprio poeta, também insistente e difícil. Mas
somente na segunda estrofe a figura do sujeito lírico que contempla a ação do inseto e reflete
sobre o seu próprio trabalho aparece. “Caminho difícil do saber e do mito, „Áporo‟ é também
o árduo percurso da poesia tal como se espelha na consciência do poeta, debruçada sobre o
próprio fazer sem saída”.12
As diferentes considerações sobre o ritmo do poema fornecem uma pista sobre o que
pode ser relevante à interpretação do mesmo, segundo a abordagem de cada um dos críticos.
Pignatari reserva um espaço pequeno em seu texto, onde fala acerca de possíveis relações
entre o poema e o contexto histórico ou entre a obra em que foi publicado. Enfatiza que estes
outros níveis de interpretação “nada podem acrescentar-lhe de essencial”13.
Observa-se, contudo, que Pignatari sugere que tais níveis podem somente estar ligados
à situação do país na época e a fatores decorrentes dela. Não indica a possibilidade de ligação
com o contexto por meio da figura do poeta, como faz Arrigucci Jr. Este aponta que a reflexão
do poeta sobre suas dificuldades e limitações resulta na comparação de todo seu trabalho
incessante com um inseto, reduzindo, então, a si próprio e seu trabalho. O pano de fundo
histórico pode ser percebido “através da negatividade que penetra a alma do poeta,
materializando-se na perspectiva com que encara sua própria atividade”.14
12
P. 89
13
PIGNATARI, D. “Áporo” in Contracomunicação. São Paulo: Editora Perspectiva. 1973, p. 137.
14
ARRIGUCCI, Davi. “Dificuldades no caminho” in Coração Partido – uma análise da poesia reflexiva de
Drummond. 2002. P. 99.
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12
Arrigucci Jr. não diz que o poema brota da realidade, mas ao invés disso, fala sobre a
possibilidade de se conhecer “como uma consciência verídica da história pode brotar de
repente do interior do mito (...) buscando através da dificuldade, a solução formal adequada
para a expressão de uma real experiência histórica”.15 Ele articula a forma e o conteúdo, este
podendo se relacionar com a realidade histórica a partir da reflexão e dos sentimentos do
próprio poeta e não à maneira reducional de representação de tal realidade.
Apesar de Pignatari e Arrigucci Jr. concordarem sobre a qualidade inquestionável da
obra de Drummond, eles não são influenciados pelos mesmos fatores. Cada um, a seu modo e
segundo seu viés analítico, destaca o que considera mais importante na obra e também no
trabalho em si do poeta:
Sinto-me aventurado a acreditar que o poeta fez do papel o seu público, moldando-o
à semelhança de seu canto, e lançando mão de todos os recursos gráficos e
tipográficos, desde a pontuação até o caligrama, para tentar a transposição do poema
oral para o escrito, em todos os seus matizes16.
(PIGNATARI, 1987, p. 17)
O modo como Drummond captou na forma de seus versos, com o que trazia de mais
íntimo em sua individualidade sensibilíssima, o sentimento de seu tempo é que faz
dele o grande poeta que é.
(ARRIGUCCI JR., 2002, p. 103)
Referências bibliográficas
15
Idem, p. 95.
16
Sobre a passagem da poesia oral, que era declamada diante de um grupo por um poeta-declamador oficial o
qual era perfeitamente compreendido por todos em suas entonações e intenções, à escrita que transformou tais
declamações em monólogos, Décio fala sobre a atitude de Drummond.