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Projeto Banco de Histórias de Trabalhadoras e Trabalhadores e a Economia

Solidária:
uma tecnologia social de valorização da experiência humana

Andrea Paula dos Santos


Drielli Peyerl
Lílian Cruvinel Torres

A criação do Projeto “Banco de Histórias de Trabalhadoras e Trabalhadores


e a Economia Solidária: uma tecnologia social de valorização da experiência
humana” surgiu a partir do Convênio MEC/Sesu 182/2005 firmado entre o
Ministério da Educação e a Universidade Estadual de Ponta Grossa desde o início
de 2006. O Convênio foi fruto da aprovação do Projeto “Práticas Teóricas e
Metodológicas do Trabalho de Campo para a Elaboração de um Diagnóstico
Participativo: Economia Solidária, Educação Popular e História Oral”, contemplado
no Edital do ano de 2005 do Programa de Apoio a Atividades de Extensão em
Políticas Públicas – PROEXT. Esse projeto inicial foi formulado no bojo das
atividades que realizamos desde 2000 relacionadas à economia solidária
(SANTOS & SANTOS, 2004) e especificamente, desde o ano de 2005 como
pesquisadores/extensionistas do Programa de Extensão Incubadora de
Empreendimentos Solidários (IESOL-UEPG), com vistas à elaboração de
Diagnósticos Participativos dos grupos de trabalhadores a serem acompanhados
pela IESOL com o objetivo de criação e consolidação de cooperativas e
associações como alternativa de geração de trabalho e renda no contexto da
economia solidária (SINGER, 2000; GAIGER, 2004).
O projeto atual de disponibilização do Banco de Histórias dos
Trabalhadoras e Trabalhadores e a Economia Solidária é uma tecnologia social de
valorização da experiência humana numa crítica contra a sua destruição no
contexto contemporâneo (BENJAMIN, 1985; AGAMBEN, 2005) que conta com a
parceria do Portal do Cooperativismo criado e mantido pela Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-COPPE/UFRJ) e da ITCP da
Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV/SP). Essas Incubadoras estão
interessadas em contribuir com a proposta de construção de uma Rede Nacional
de Tecnologias Sociais, compreendidas como a reunião de métodos e técnicas de
trabalho junto aos grupos populares com vistas a impulsionar processos de
empoderamento das representações coletivas da cidadania para habilitá-los a
disputar nos espaços públicos alternativas de desenvolvimento que se originam
das experiências inovadoras e que se orientem pela defesa dos interesses das
maiorias e pela distribuição de renda, possibilitando melhoria de qualidade de vida
e inclusão econômica, política e social (CARRION; VALENTIM; HELLWIG, 2006).
Daí o nascimento dessa proposta de parceria com a ITCP/COPPE/UFRJ e
da ITCP/FGV-SP, para a disponibilização no Portal do Cooperativismo da
tecnologia social composta pelo Banco de Histórias de Trabalhadoras e
Trabalhadores e a Economia Solidária (com entrevistas, fotografias e vídeos) e
pelos planos de trabalho detalhados realizados com alguns grupos acompanhados
pela IESOL/UEPG-PR, como início do processo de criação da Rede Nacional de
Tecnologias Sociais. Dessa forma, graças ao Convênio MEC/Sesu com a
IESOL/UEPG, as atividades de produção da tecnologia social do Banco de
Histórias e dos planejamentos/projetos para cada grupo de trabalhadoras e
trabalhadores, passíveis de serem divulgadas e reaplicadas, tornaram-se uma
atividade permanente da IESOL. E, com a parceria da ITCP da COPPE/UFRJ e da
ITCP/FGV-SP, o Portal do Cooperativismo pode ampliar sua ação de divulgar e
dar acesso às informações referentes às tecnologias sociais com práticas e
metodologias das Incubadoras Universitárias voltadas para a Economia Solidária
numa Rede Nacional de Tecnologias Sociais.
Para a construção permanente dessa tecnologia social, ocorre a
capacitação do pessoal que realiza a intervenção social junto aos grupos
acompanhados pela IESOL na Oficina de Metodologia de Diagnóstico, Formação
e Assessorias, realizada semanalmente. A população alvo dessa capacitação é
composta de professores, e alunos de graduação e de pós-graduação,
funcionários de órgãos da administração pública municipal e estadual e
profissionais voluntários que se preparam para intervir na realidade dos grupos
incubados ou em acompanhamento. O material produzido no diagnóstico
participativo tem sido construído através de relatórios de acompanhamento dos
grupos, de fotografias, de coleta de documentos e de entrevistas de histórias de
vida (SANTOS, 1996; SANTOS, RIBEIRO, MEIHY, 1998; MEIHY, 2005). A
sistematização dessa documentação compõe um banco de dados para diversas
áreas do conhecimento humano, favorecendo um olhar interdisciplinar. Além de
atingir o propósito principal da incubadora de buscar garantir por meio dos
processos de incubação, acompanhamento e formação de redes, a geração de
trabalho e renda para os trabalhadores da Economia Solidária.
Foi a partir das tecnologias sociais do Banco de Histórias e dos Planos de
Trabalho de cada grupo, com registros documentais feitos com os trabalhadores
(histórias de vida, imagens fotográficas e audiovisuais da realidade vivenciada
pelos sujeitos em suas comunidades, cadernos de campo) que vem se tornando
possível subsidiar as intervenções a serem realizadas pela IESOL para o
desenvolvimento dos empreendimentos solidários, gerando trabalho e renda para
aqueles que necessitam. Acreditamos que os Diagnósticos Participativos
realizados com os grupos de trabalhadores acompanhados pela IESOL precisam
possibilitar o registro documental, bem como sua guarda em um acervo e sua
disponibilização aos membros da IESOL, aos grupos de trabalhadores que
participam do processo e também aos pesquisadores que se interessem por
estudar a história e a realidade vivida pelas pessoas envolvidas nas atividades da
Economia Solidária.
Por meio dessas práticas como pesquisadores-extensionistas se constatou
na prática cotidiana que as metodologias existentes e tradicionalmente utilizadas
nos processos de incubação e acompanhamento dos grupos de trabalhadores da
Economia Solidária, não dão conta do trabalho proposto. Isto porque tentam
aplicar instrumentos técnicos e metodológicos padronizados sem considerar as
memórias, as identidades e as subjetividades dos trabalhadores associados ou
cooperados. Identidade aqui compreendida como processos em que a noção de
pertencimento e de continuidade histórica dos grupos sociais é construída por
meio de memórias e de subjetividades também em construção a partir das lutas
sociais, políticas e econômicas e suas contradições e ambigüidades no presente
(POLAK, 1992; BOURDIEU, 1997; CASTELLS, 2002; GROS, 2004; FOUCAULT,
2004; CANCLINI, 2005; BAUMAN, 2005; HALL, 2006).
Graças ao debate constante sobre a necessidade de renovação das
metodologias das Incubadoras universitárias e a busca de um horizonte
metodológico próprio, este Projeto garantiu a instalação permanente da Oficina de
Metodologia de Diagnóstico, Formação e Assessorias - Equipe de Incubação,
favorecendo a organização em reuniões semanais com oficina permanente,
aprendendo a produzir as teconologias sociais por meio de documentação variada
e a refletir sobre a utilização das mesmas nos processos de acompanhamento e
incubação. Pois, é praticamente impossível fazer um trabalho de extensão da
magnitude do que é proposto na IESOL, que tenha permanência e caráter
realmente transformador da realidade dos grupos de trabalhadores, se não houver
produção constante de tecnologias sociais que qualifiquem os processos e os
debates e, por sua vez, os profissionais formados e em formação para realizá-lo.
Professores, assessores e acadêmicos constataram que a pesquisa, o
ensino e a extensão estão indissoluvelmente ligados e que, somente através da
valorização das tecnologias sociais relacionadas ao trabalho de diagnóstico com
histórias de vida atravessando os processos de formação e de assessorias, é que
se aprende na prática a fazer um bom trabalho, dentro e fora da Universidade para
que a formação acadêmica seja mais ampla e para que os trabalhadores possam
conseguir viver melhor. O desenvolvimento cotidiano de tecnologias sociais
favorece a criticidade dos pesquisadores-extensionistas. Isso tem sido
fundamental para nossa equipe, para os trabalhadores (que em nossa região
quase nunca tiveram visibilidade da sua história e das suas demandas) e para o
desenvolvimento de políticas públicas nos municípios em que atuamos (Ponta
Grossa, Porto Amazonas, Tibagi e Ortigueira).
Atualmente, há na IESOL a compreensão coletiva de que, quando o
Convênio MEC/Sesu for encerrado, continuaremos atuando em várias frentes a
partir da renovação metodológica proporcionada pela produção do Banco de
Histórias e dos Planos de Trabalho com cada grupo acompanhado/incubado.
Dessa forma, o Banco de Histórias, e os diagnósticos e Planos de Trabalho com
os grupos, continuarão a existir como tecnologias sociais e instrumentos de
trabalho (para pesquisa, formação, assessorias) que se propuseram a criar novas
metodologias necessárias para as Incubadoras no movimento da Economia
Solidária. É importante ressaltar que foram realizadas mais de quarenta
entrevistas de histórias de vida com cinco grupos de trabalhadores, as quais
ofereceram bases para o diagnóstico participativo, destacando os seguintes
aspectos.
Em geral, os grupos acompanhados têm um perfil de funcionamento bastante
problemático, com níveis de conflitos diversos, mas que transitam da dependência
das prefeituras/igrejas e da baixa e/ou grande rotatividade/oscilação na
participação das pessoas até a exploração do trabalho de uns por outros. Os
grupos têm dúvidas e/ou problemas quanto às formas de configuração legal, têm
problemas de viabilidade econômica e nos processos de trabalho, quanto à forma
precária como eles são organizados, à forma de apresentação dos produtos e à
garantia de sua qualidade, ao cálculo do seu custo, ao não atendimento de uma
pesquisa de demanda, à não eficiência de estratégias de comercialização, à não
disponibilidade de infra-estrutura e recursos adequados, entre outros problemas.
Em relação ao perfil dos trabalhadores e trabalhadoras dos grupos
destacamos que trabalhadores manifestaram orgulho, satisfação pessoal e certa
realização profissional ao desenvolver seus trabalhos nos grupos de maior
configuração solidária. Essa informação contrasta com histórias de trabalho em
geral relacionadas à desvalorização de seus fazeres e saberes e repletas de
exploração. Nesse sentido, as práticas econômicas solidárias têm favorecido a
inclusão, econômica, social, política e cultural desses sujeitos, que sentem
diferenças entre as situações que vivem atualmente nos grupos e o contexto de
isolamento a que estavam submetidos antes de ingressarem nos mesmos.
Em geral, os trabalhadores e as trabalhadoras estão nas faixas etárias dos
20/30/40 e 50 anos e têm: condições precárias de sobrevivência com baixa
qualidade de vida, remuneração baixa ou inexistente, escolaridade baixa ou
inexistente, formação profissional baixa ou inexistente, locais de moradia nas
periferias das cidades ou na zona rural, com parentes agregados, situação de
migração do campo para a cidade e de cidades menores para maiores, situação
de desemprego, situação de trabalho informal com vários “bicos”, situação de
dependência de algum tipo de serviço de assistência social, tais como: Bolsa
Família, Bolsa Escola, entre outros, situação de chefia de famílias com vários
filhos em idade escolar que de alguma forma são incorporados às atividades de
trabalho dos pais, problemas pessoais, familiares e de relações de gênero de
gravidade, tais como: casamentos e gravidez na adolescência; violência
doméstica contra mulheres e crianças; famílias desagregadas/reconstituídas;
filhos que pararam de estudar para trabalhar; avôs que criam netos
abandonados/deixados pelos pais; problemas de saúde que vão da depressão às
doenças laborais, ausência de condições adequadas de trabalho na sede dos
grupos ou em casa, quando o trabalho é desenvolvido ali, ausência de recursos
que garantam a ida e a permanência no cotidiano do trabalho, tais como
transporte, alimentação e cuidado de crianças, ingresso nos grupos por
necessidade econômica e falta de outra alternativa de trabalho, consciência baixa
ou inexistente da gravidade de suas condições de vida e de trabalho.
A partir dessas considerações, afirmamos como muito oportuna à realização
desse projeto, pois, por meio dele, deu-se à valorização do desenvolvimento de
tecnologias sociais no contexto de uma metodologia permanente da atuação da
Equipe de Incubação. Propiciou, assim, a renovação das metodologias de
Incubação fortalecendo nosso processo de amadurecimento e de
profissionalização do trabalho na IESOL. Por fim, a meta principal é contribuir com
a construção da Rede Nacional de Tecnologias Sociais, em parceria com a
ITCP/COPPE-UFRJ e com a ITCP/FGV-SP.

Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2005.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
BOURDIEU, Pierre. (org.) A Miséria do Mundo. Petrópolis, Vozes, 1997.
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos. 5ª. ed., Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
CARRION, R. M.; VALENTIM, I. V. L.; HELLWIG, B. C. (orgs.) Residência solidária. Vivência de
universitários com o desenvolvimento de uma tecnologia social. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2006.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. (A Era da informação: economia, sociedade e cultura,
vol. 2) 3a ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002.
FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
GAIGER, L. I. (org.) Sentidos e experiências da Economia Solidária no Brasil. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2004.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
GROS, Fredric (org.) Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola, 2004.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. 11a ed., Porto Alegre: DP&A Editora, 2006.
MEIHY, J. C. S. B. (org). Manual de história oral. 5a ed., São Paulo: Loyola, 2005.
POLLAK, Michel. “Memória e Identidade social”, Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5. n. 10.,
1992. pp. 200-215.
SANTOS, Andrea Paula dos. Ponto de Vida. Cidadania de Mulheres Faveladas. São Paulo: Ed.
Loyola, 1996.
______; RIBEIRO, Suzana Lopes Salgado & MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Vozes da Marcha
pela Terra. São Paulo: Loyola, 1998.
______& SANTOS, Nilce Ribeiro dos. “A Educação Básica e Profissional na Economia Solidária
Catarinense”. In Trabalho e trabalhadores no Vale do Itajaí: uma leitura crítica. (Rita de Cássia
Marchi, org.) vol. 1, Blumenau, SC: Ed. Cultura em Movimento, 2004, pp. 117-146.
SINGER, Paul. A Economia Solidária no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.

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