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28/05/2019 Ódio em família deve ser nomeado - 28/05/2019 - Vera Iaconelli - Folha

Vera Iaconelli (/colunas/vera-iaconelli/)

Ódio em família deve ser nomeado


As violências se perpetuam em nossos silenciamentos e omissões

28.mai.2019 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/05/28/)

É na família que vivemos as primeiras experiências de amor, de ódio e de


reconhecimento de quem somos. É nela que serão oferecidas as palavras
fundamentais para nomear as experiências subjetivas. Dizer "está com medo,
filho?", para uma criança que recua diante de um cachorro, serve para
acolhê-la e, ao mesmo tempo, para que ela aprenda que aquela sensação de
tremor e frio na barriga se chama medo. 

Há que se confiar no vocabulário apresentado pela família para, mais


adiante, reconhecermos suas limitações. Quanto mais psiquicamente
comprometida a família, mais fechada para a entrada de discursos que
coloquem em xeque sua versão do mundo.

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O ódio, mesmo sendo o afeto que caminha par e passo com o amor, costuma
ser negação. "Odeio meu filho" é uma frase desagradável, mas possível.
Xingar e socar o filho não. Essa diferenciação faz parte do processo de ter um
vocabulário sobre os afetos e de aprender formas civilizadas de lidar com
eles.

O problema não é que sintamos ódio, esse é um fato estrutural humano. O


problema é quando a violência que decorre desses afetos não pode ser
nomeada como tal. Violência é palavra que costuma ser banida do ambiente
doméstico, principalmente quando ela é mais necessária.

Quando a criança vive o ato violento (incluindo abuso sexual) como se fosse
algo natural ou um ato corriqueiro, estamos diante de uma dupla agressão.
Ela poderá ouvir que a mãe que permanece com o marido agressivo o faz por
amor, ou que o pai bate por ciúme, pois ama muito a mãe.  Ouvirá que ela (a
criança) apanha para seu próprio bem ou porque é má. Também poderá
ouvir palavras desmoralizantes em tom de humor. 

Como denunciar o ultraje entre risos? Sentindo-se ultrajada e sem


reconhecimento, a criança perderá a confiança em sua própria capacidade de

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nomear o que sente e reproduzirá essa versão distorcida para si mesma e,


depois, com seus próprios filhos.

A violência doméstica (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606-casos-de-


se perpetua como uma linguagem passada de
violencia-domestica-e-164-estupros-por-dia.shtml)

pais e mães para filhos e só o contato com outras realidades poderá


confrontá-la e permitir que adultos e crianças relativizem essas primeiras
experiências. É aí que entram a escola, os vizinhos, amigos, religiões
tolerantes, a arte e a análise trazendo outras referências e outro vocabulário. 

A violência, que pode ser pensada como o ato daquele que é forte diante de
um fraco, esconde a impotência do agressor diante de seus próprios afetos e
a necessidade de ter alguém sob seu julgo para se sentir minimamente
potente. 

A dita personalidade forte, que grita, "faz e acontece" diz mais respeito ao
gênio irascível que esconde suas dificuldades, do que a fortaleza que se
imagina. Tampouco o que se submete é frágil, apenas está preso na mesma
lógica de ter sido levado a crer que merece aguentar os maus tratos, ainda
que por razões insondáveis.

Em uma família onde a violência é naturalizada, o gesto amoroso e a


demanda por respeito podem causar estranheza, pois denunciam o que está
sendo negado. Respeito, solidariedade, carinho são bem-vindos quando
podemos nomear inveja, ódio, medo, desamparo. 

O que chamamos de violência muda de uma época para outra. Basta lembrar
que bater na esposa já foi —e em muitos lugares ainda é— visto como uma
prática lícita e só recentemente passou a ser nomeada como crime. Embora a
penúria social possa potencializar a violência, psicanalistas sabem o quanto
ela é corriqueira nas classes altas. As violências se perpetuam em nossos
silenciamentos e omissões.

Vera Iaconelli
Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia
pela USP.

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