Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Clarice Cohn
Universidade Federal de São Carlos
Paper preparado para ser apresentado no Grupo de Trabalho 33, “A Tarefa da
Tradução Cultural em Antropologia”, coordenado por Priscila Faulhaber (MPEG) e
Clarice Cohn (UFSCar) para a 26ª Reunião Brasileira de Antropologia
Porto Seguro, junho de 2008
1
Esse paper elabora questões discutidas na minha tese de doutorado, Relações de Diferença no Brasil
Central – Os Mebengokré e seus Outros, defendida na Universidade de São Paulo em 2006. Agradeço a
leitura e os comentários de Beatriz Perrone-Moisés, minha orientadora, e dos membros da banca
examinadora, Dominique Gallois, Vanessa Lea, Terence Turner e William Fisher Agradeço ainda a Lux
Vidal, a orientadora do Mestrado, e a Aracy Lopes da Silva (in memorium), que viram grande parte
Muitos campos semânticos se apresentam e se cruzam aqui. De um lado, os
índios; de outro, uma multiplicidade de registros não-indígenas. A tradução de cultura
pelos índios tem sido feita nessa interface, e tem não só o conceito antropológico de
cultura como referência, mas também um registro “culturalista” operado pelo Estado,
pela mídia, pela opinião pública – aquele que versa sobre a permanência cultural e o
risco da perda cultural, e fala de coisas como descaracterização, aculturação... Carneiro
da Cunha (1986) aponta há tempos que esse processo está intimamente ligado aos
processos de construção de identidades étnicas, definidoras de sujeitos de direito no
mundo contemporâneo, e que têm a cultura como idioma privilegiado. E, de fato, a
tradução de cultura pelos Xikrin é ladeada por sua constituição como grupo étnico,
comunidade indígena, etc. É nesse contexto que dois termos de grande importância para
eles ganham novos significados e novas aplicações. De um lado, Mebengokré, como se
chamam a si mesmos, reservando alcunhas como Xikrin, Kayapó-Xikrin, ou Xikrin do
Bacajá para as relações estabelecidas com ou intermediadas pelo Estado Nacional e
agentes da sociedade civil, sejam brasileiros ou estrangeiros. De outro, kukradjà,
frequentemente traduzido por cultura, e que fala da e produz a condição mebengokré no
mundo.
Frente à preeminência da lógica da nacionalidade, respondem com uma
identidade étnica reconhecível a se constituir parte da Nação. Mas ela apenas em parte
corresponde a uma concepção e a uma prática de formação e construção de coletivos
humanos. Mebengokré, termo que abrange outros grupos Kayapó e, contextualmente,
também outros índios – em uma aglomeração étnica que visa novamente responder à
lógica da nacionalidade, constituindo assim um índio genérico a ser contemplado pelas
políticas e pelo direito nacionais –, fala de outra coisa, ou de muito mais, do que
simplesmente uma identidade étnica. Por ele, fala-se de uma condição humana no
mundo, de um modo de fazer e se fazer Humano. Esse processo está pautado pelo
kukradjà, que é simultaneamente meio e resultado dessa ação e condição mebengokré.
É, como veremos, por meio do kukradjà que se produz essa condição; e, por outro lado,
os Mebengokré produzem, renovam, contínua e eternamente, kukradjà. Se Mebengokré
dessas questões nascer durante nossas pesquisas sobre aprendizegens e conhecimentos no MARI, e que
comecei a desenvolver ainda na dissertação, e a Denise Fajardo e Phillipe Erikson, que forneceram um
primeiro fórum de debate na RAM de 2007, entre tantas outras pessoas que foram importantes ao longo
de todo o processo e que se saberão contempladas. As pesquisas de campo que fundamentam esse paper
foram realizadas desde 1993 na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, e contou com o apoio do MARI –
Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo e financiamento do CNPq e da FAPESP. Os
erros que persistem são, como sempre, de minha inteira responsabilidade.
ganha a roupagem da identidade étnica, kukradjà ganha, na relação intercultural, a
roupagem da cultura. Nesse momento do “culturalismo indígena” (Sahlins 1997), em
que a cultura vira o idioma da indianidade, em que falar de cultura ganha sentido a
partir do registro interétnico que esse empréstimo lexical permite (Carneiro da Cunha
2004), kukradjà ganha novas traduções. Será especialmente interessante perceber que
esse processo tem mão dupla: traduzido por cultura indígena para os não-indígenas,
nesse registro interétnico, o conceito tem também que ser reavaliado e rediscutido no
cotidiano aldeão em que se origina.
Os Mebengokré-Xikrin não estão indiferentes aos riscos que correm com os
alardeados contato e pacificação. Mais mebengokré do que nunca, ou tão mebengokré
como sempre, têm no entanto se visto com desafios que não lhes passam despercebidos.
Os Xikrin do Cateté têm se beneficiado da indenização milionária paga pela Companhia
Vale do Rio Doce, a partir de sua própria lógica social, política e ritual; assim, dentre
outras coisas, como demonstra Gordon (2005), têm feito mais rituais, cada vez mais
suntuosos, que lhes permite produzir mais “pessoas belas”, mas levam o sistema ao
limite do colapso. Por outro lado, trabalhos como os de Turner (1991,1992, 1993)
mostram que os Kayapó-Gorotire têm feito bom uso da imagem que deles se formam ao
se apresentar como sujeitos de direitos específicos e reivindicá-los; sua construção de
uma imagem de indianidade é mesmo midiática, e cinegrafistas kayapó são importantes
na produção dessa imagem. É nesse contexto que os Xikrin do Bacajá lidam com o
desafio de se produzir mebengokré e “índio”, produzir kukradjà e “cultura” (no sentido
aspeado do termo sugerido por Carneiro da Cunha 2004). Só que seus desafios são
outros: se a mídia e a opinião do senso comum com que dialogam se preocupa com sua
“perda de cultura”, com sua aculturação, pensado como o preço que pagam os índios
para sua abertura à história inaugurada pelo contato, o dilema com que se defrontam, a
seus olhos, é exatamente o do esfriamento, quase o congelamento, de seu sistema. Para
os Mebengokré, kukradjà é algo aberto que deve se manter em aberto, há de ser
continuamente renovado, para manter sua potência e melhor produzir novos
mebengokré, pessoas e coletivos (Cohn 2006). Ora, produzir, para si com vistas aos
outros, “cultura” é, nesse sentido, brincar com a sorte: é arriscar o que já está sob risco,
é arriscar o congelamento do kukradjà em um instantâneo que não passa de um
momento do que está em constante fluxo e construção.
Essas novas roupagens e essa reconceituação de kukradjà têm sido amplamente
realizadas, em diversos contextos e situações. Nesse paper, apresento alguns desses
momentos, em que ao menos uma das direções nesse vetor é percorrida, para discutir
como isso tem sido feito por eles. Antes, porém, será necessário apresentar os conceitos
de Mebengokré e kukradjà que estarão em pauta nesses diálogos que os Xikrin do
Bacajá travam conosco ou entre si.
***
Produzir e se produzir Mebengokré é um processo complexo que abrange quase
tudo que diz respeito e interessa aos Xikrin. Tomando como fio condutor o ciclo de vida
– uma escolha certamente arbitrária mas que revela novamente as preferências que nós
antropólogos carregamos –, pontuaríamos o início desse processo na concepção e
gestação de um novo ser humano. É a produção de um novo corpo que, nessa nossa
linha narrativa, dá início à produção de uma nova pessoa mebengokré. Esse corpo será
gestado, alimentado, cuidado como a um novo corpo mebengokré. Os cuidados dos
parentes, especialmente dos genitores, a alimentação apropriada e a comensalidade
serão cruciais para o desenvolvimento e fortalecimento do corpo em seus vários
elementos constitutivos e para a fixação do karon, a alma, o duplo, nesse corpo
(Giannini 1991; Cohn 2000a, 2000b). Já é clássico na literatura sobre os Jê que a pessoa
é formada e constituída por corpo mas também pelo nome, que lhe dá, como disse
Melatti (1976), sua personalidade social. As práticas de nominação põem em jogo
outras relações que não a de genitores – os ngêt (MB, FF, etc.) para os meninos, as
kwatui (FZ, MM, etc.) para as meninas –, e significam o partilhar não mais de corpos e
substâncias, mas de nomes e com eles prerrogativas e identidades rituais. Receber um
nome a partir dessa prática e dessa relação é um importante meio de humanização,
assim como o é, retornando à esfera das relações de substância, a aplicação da pintura
corporal (Vidal 1992, Turner 1995). Diversos desses nomes estão associados à
realização de rituais que a literatura denominou rituais de nominação, e que são, de fato,
rituais de confirmação dos nomes recebidos (Lea 1986, 1992) que os torna “belos”, idji
mex. A possibilidade de ser homenageado em um desses rituais está dada não pelo nome
atribuído, mas pela associação desse nome a um ritual de nominação anterior – dito de
outro modo, não é pelo nome que se se faz beneficiário em potencial de um ritual de
nominação, mas o fato de que o nome recebido foi confirmado ritualmente para o
nominador (Lea 1986).
Esse breve resumo da formação de um novo mebengokré coloca em cena as
relações e as práticas vistas por eles como cruciais – as relações de substância com os
genitores, e com elas os cuidados com o corpo dado pelas interdições alimentares, pela
alimentação e comensalidade e pela pintura corporal, que dá ao corpo beleza e o modo
adequado de se apresentar, como formula Vidal (1992). Pelas relações de nominação,
recebe-se o nome – que humaniza e faz mebengokré –, adornos e participação nos
rituais, e a possibilidade de se fazer “belo” pela confirmação ritual de seu nome, tornado
assim um belo nome, idji mex.
Esse processo de formação de pessoas é em grande medida o que faz o kukradjà
mebengokré. Essa é outra palavra polissêmica, que recobre um amplo campo semântico,
e que eles têm vertido para o português como “cultura”, como já notaram Fisher (1991)
e Lea (1986). O termo abrange desde as “coisas” mebengokré – adornos, artefatos,
nomes, rituais –, passando pelos conhecimentos aprendidos e produzidos – nesse
sentido, Fisher (1996) sugere que ele seja uma parte da pessoa –, até uma ética e uma
estética – modos de se apresentar e se relacionar, uma socialidade e um modo de
humanização (Cohn 2001, 2006). O kukradjà está, assim, em todos os lugares e permeia
todo o processo de humanização e de produção de novos mebengokré – por ele se fala
das coisas que produzem mebengokré – adornos, pinturas, conhecimentos, rituais,
relações – dos conhecimentos necessários a essa produção e da ética que a move.
Essa produção contínua e nunca definitiva e acabada de mebengokré diz respeito
tanto a pessoas quanto a coletivos e coletividades. Fala de um modo de ser e de uma
condição (humana) no mundo. Assim, ao contrário de uma imagem de fechamento há
muito difundida pela bibliografia americanista, pela qual os Jê conteriam em sua
sociedade todas as diferenças e identidades2, os Mebengokré pensam e praticam sua
própria condição e constituição como um processo, um fluxo, algo em permanente
produção e jamais acabado. O kukradjà, ele mesmo, é algo a ser permanentemente
inovado e enriquecido, sendo portanto o exato oposto de uma cultura tida como um
repertório finito e fixo de práticas e conhecimentos. A sociedade mebengokré não é
fechada e não prescinde daquilo que este fechamento torna seu “exterior”; sua cultura
não é fixa; sua humanidade é uma constante conquista e fruto de uma produção
interminável. Portanto, também aquilo que aparece como identidades étnicas – e grupais
– é um instantâneo que registra apenas o momento e o fixa à revelia de sua vontade.
A necessidade de ter o kukradjà permanentemente inovado é o que os move à
maior parte de suas relações de diferença. Por meio da caça, do xamanismo, das
2
Essa imagem, produzida a partir das primeiras descrições e análises sobre os Jê, especialmente as
realizadas no âmbito do Projeto Harvard Brasil Central nas décadas de 1960 e 1970, é afirmada por dois
modelos comparativos distintos, ou seja, tanto a partir da ênfase na produção da socialidade (Overing
1983-1984) quanto o da “economia simbólica da alteridade” (Viveiros de Castro 1993, 1999).
alianças e da guerra, trazem (o bôx) novos nomes, rituais, cultivares, adornos, músicas e
pessoas – estas, na forma de cativos. Tenho argumentado (Cohn 2004, 2006) que, se os
rituais devem sua potência à capacidade de engajar pessoas na produção de pessoas
belas que ele busca efetivar, como demonstrou Fisher (2003), isso é em grande medida
alcançado por sua inovação, pela incorporação de novos cantos, novas músicas, novos
passos. Assim também, o repertório de nomes transmitidos é menos fixo do que já se
imaginou, e novos nomes são incorporados e inseridos no sistema onomástico,
gradualmente transmitidos e eventualmente confirmados em rituais. Entre os Xikrin do
Cateté, a maior afluência de dinheiro e mercadorias levou a uma maior freqüência de
rituais de nominação, produzindo mais pessoas belas3. Desse modo, enriquecem e
implementam os meios para a produção de pessoas e coletivos.
É tendo por referência esse processo contínuo de construção e produção de
kukradjà que devemos ler algumas traduções feitas pelos Xikrin desses dois termos.
***
3
Mas, como referimos acima, arriscando o potencial de distintividade do kukradjà, uma contrapartida
importante, que produz a beleza das pessoas, e que deve ser buscado mais intensamente, gerando um
aquecimento que, se é plenamente coerente à lógica mebengokré, não deixa de trazer em si o risco de
levar o sistema ao colapso (Gordon 2005).
Lembremos que o mekukradjà de que ele tratava não é um patrimônio fixo ou
estável, mas aquilo que sempre se constrói. Sua curiosidade sobre as nossas coisas ia
além de um interesse em dominar nossos jeitos e atuar em uma mediação intercultural,
atuar como líder e mediador frente ao mundo dos Kuben. Maradona viajou muito, e de
todas as terras que foi trouxe algo para compor o kukradjà. É dele por exemplo uma
importante variação do ritual kuoro kangô, trazido (o bôx) de uma estadia entre os
Xikrin do Cateté, que realizavam esse ritual de que ele participou e realizou também no
Bacajá, com muito sucesso e adesão4. Maradona, enfim, me perguntava muito sobre as
relações sociais tal como nós as entendemos e praticamos, os padrões residenciais, a
vida citadina, a ecologia das cidades – uma verdadeira antropologia. Quando
transcrevíamos e traduzíamos juntos as fitas em que os velhos nos contavam histórias de
guerras e contato, Maradona passou a fazer uma reflexão exemplar de tradução cultural,
frequentemente perguntando-se a que se devia minha dificuldade de compreensão,
ofertando-me as chaves explicativas e interpretativas, explicando metáforas e figuras de
linguagem. Assim também, sempre fazia acompanhar as sessões de transcrição e
tradução por aulas de aritmética, preocupado que estava em aprender a conta da divisão.
Enfim, me conta Maradona que se engaja nesse meu projeto de conhecimento porque
valoriza muito esse meu esforço, de aprender sua língua e cultura, que ele sabe tão raro
entre os Kuben, mas também porque reconhece e entende seu propósito. Afinal, vou ao
Bacajá fazer meu aprendizado, e retorno à minha terra para contar aos meus o que lá
aprendi – coisa que os Mebengokré, me conta, também sempre fizeram. De fato, eles o
fazem, e cada vez mais viagens, visitas, torneiros, cursos de formação e reuniões
políticas interétnicas são meios de fazê-lo (Verswijver 1991, Gordon 2005, Cohn 2006).
Mas Maradona ressaltava que se fazia ainda mais. Se tendemos a ver no fim das guerras
e na pacificação o recrudescimento de uma prática não bélica – embora nem por isso
não beligerante – de trocas e aprendizagens interétnicas e interculturais, Maradona me
contava de meninos especialmente selecionados para ir morar em outras terras, aprender
kukradjà e voltar para partilhá-lo com os seus. Uma prática de antropologia nativa, com
razões e motivações indígenas: produzir kukradjà.
Discursos políticos são também importantes meios de elaboração desse conceito.
A oratória é para os Mebengokré não só um importante veículo de comunicação, mas
uma marca da maturidade e da masculinidade, uma atuação pública e política, e uma
4
Veja-se Cohn (2004, 2006) para discussões de inovações rituais e do cancioneiro mebengokré-xikrin.
ação no mundo. Falar bem é algo que é aprendido, construído com o tempo, e cada
homem deve vir a dominar a oratória masculina em sua maturidade, quando já pais de
muitos filhos, sogros, avôs. A boa fala é pública, feita ora em reuniões dos homens, no
centro da aldeia, ora para todos, proferida em frente às casas, de madrugada ou ao
entardecer, para ser ouvida nesse momento em que o dia começa ou vai se finalizando.
Por ela se fala de caças e caçadas, de expedições de guerra, de atividades de produção,
das relações entre os humanos, dos acontecimentos da vida aldeã e das relações com os
Outros. Assim se conta mitos, se reconta a história. É a fala também, dessa feita o ben,
que dá início a cada nova fase do ritual, ou marca a passagem das pessoas ao longo da
vida. Inversamente, a fala ruim, kaben punú, a “fofoca”, como traduzem, pode levar a
cisões da aldeia, a guerras, a lutas: é marcadamente anti-social5. A fala é, ainda, como
aponta Verswijver (1991), um dos critérios de legitimação e reconhecimento da
liderança de um chefe.
Foi em um discurso público de um chefe que vi esse tema de novo em pauta.
Dessa vez, porém, em um discurso particular: feito nas imediações de sua casa, para
uma audiência mista, reunindo homens, mulheres e crianças, jovens e velhos, durante o
dia. Sua fala acontece em um momento crítico à aldeia, em que um acirramento do
negócio de madeira os leva a decidir a manter a aliança com a Funai – aliança que,
como eles lembram, lhes custou muito porque, em troca dos presentes prometidos e nem
sempre ofertados, sofreram muitas doenças e foram obrigados a mudanças como a
sedentarização – ou reforçar uma nova aliança que se anunciava, com os madeireiros
que vinham de regiões mais ao sul da área kayapó em busca de florestas ainda ricas em
madeira de lei, com promessas de grande afluxo de dinheiro e mercadorias. Essas
escolhas dividiam a aldeia em discursos mais ou menos desenvolvimentistas,
modernizantes, mais ou menos tradicionalistas.
Esse contexto mesclava de um modo privilegiado as condições para que essa
fala seja ouvida e considerada e pudesse ser inovadora. O chefe Bep-Tok, conhecido por
Onça, assim falou, por mais de duas horas, sobre o kukradjà. Pode-se argumentar que
toda boa fala é sobre kukradjà. É fato. Algumas delas, inclusive, o anunciam, tratam
diretamente desse tema. A fala de Onça, nesse dia, também o fez, mas de um modo que
me cativou especialmente a atenção: nela, ele passava de um discurso culturalista, como
que pautado por temas a eles exógenos, a um discurso caracteristicamente mebengokré.
5
Para a marca de socialidade e moralidade que é expressa e se expressa pela fala, veja-se Seeger (1980),
Turner (1995) e Cohn (2000, 2002).
Por exemplo, Onça exorta a todos, e anuncia que liderará esse movimento, a deixar de
usar roupas e sapatos, a usar o estojo peniano, a deixar de comer a comida dos brancos.
Mas os exorta também a fazer como se fazia antigamente: a usar os termos corretos de
tratamento, deixando de lado uma tendência recente de usar os nomes próprios como
vocativos, a trabalhar para sustentar os seus, a tratar os outros com respeito, a fazer os
rituais. Exorta-os também a permanecer na aldeia, a ficar menos tempo na cidade, de
modo a que as pessoas voltem a conviver, e a realizar os rituais. Onça fala para que se
deixe de falar mal, kaben punu, e, finalmente, a acompanhá-lo na produção para os
rituais, deixando de plantar arroz.
Como argumentei em outro momento (Cohn 2006b), o discurso de Onça passa
de um registro inter-étnico, para falar agora nos termos de Carneiro da Cunha, a um
registro eminentemente mebengokré. A recusa ao arroz é um bom exemplo disso: de um
lado, responde a um anseio “tradicionalista” e “culturalista” daqueles com que lidam e
negociam corriqueiramente, e que espera ver nas roças dos índios apenas coisas de
índio. Na lógica mabengokré, porém, essa recusa é exatamente o oposto do que
significaria manter a cultura – afinal, as mulheres aproveitam cada oportunidade para
enriquecer a diversidade de suas roças, em produtos e variedades de cultivares (Fisher
1991, Cohn 2006: 70-79), e a sugestão de Onça de que isso, ao menos nesse caso, não
podia ser feito causou um visível desconforto, com várias mulheres protestando contra
essa ilegítima ingerência em sua atividade agrícola. Por outro lado, ela, por outras
razões, ressoa muito bem na lógica mebengokré: a que rege a nutrição dos corpos de
modo a construí-los verdadeiramente mebengokré. O arroz é um alimento que só pode
ser consumido cozido, e os alimentos cozidos, em contraste com sua prática de assar
carnes e tubérculos, são recusados por serem moles e deixarem os corpos moles e
amolecidos: são como alimentos de crianças, doentes e pessoas em resguardo, pouco
propícios a nutrir um corpo forte e rigoroso. Nesse mesmo registro, mas avançando um
pouco, o tema dos alimentos apropriados para o consumo mebengokré abre o debate
para um outro tema: o das relações adequadas dos Mebengokré entre si, que por ele é
pautada pela exortação de que trabalhem bem, como antigamente, para nutrir aos seus,
assim como para fazer rituais que o tornarão pessoas belas. Sendo assim, em diversos
registros, a recusa ao consumo e ao cultivo de arroz serve a uma crítica no registro inter-
étnico, do tipo “cultura”, e no registro mebengokré, de kukradjà. Toma do tema da
“retomada da cultura” que sempre se lhes cobra e estabelece uma ponte com um
discurso ético e moral que lhes garante o interesse e a cumplicidade de sua audiência,
com a qual compartilha sentidos e significados sobre o kukradjà. Para tanto, opera a
cisão de dois tipos de kukradjà, o deles e o dos brancos, a partir das coisas, de
conteúdos – o que se come, planta, veste – mas também de um modo mebengokré de ser
– como se come, planta, veste. É nessa tensão que opera, é nessa tensão que constrói
para si um lugar de legitimidade como líder e mediador dos seus para com os brancos.
Também as crianças se vêem com essa tensão. Uma vez, seus professores, não-
indígenas, propuseram como atividade em sala que elas fizessem desenhos sobre “coisas
tradicionais”, “de sua própria cultura”6. Distribuídos papel e lápis preto, as crianças se
vêem com o seguinte desafio: imaginar o que seria sua própria cultura aos olhos dos
professores. Esse é um aspecto crucial de sua tarefa: desenhando no espaço escolar,
desenhavam para seus professores, que, evidentemente, tinham uma idéia muito clara
sobre o que seria sua cultura. Cada criança resolveu esse dilema de um modo diferente,
mas algumas recorrências se fizeram perceber. Em primeiro lugar, uma distinção de
gênero: as meninas desenharam pinturas corporais, o que tem se constituído como quase
uma tradição pictórica feminina kayapó, desde que Lux Vidal e Gustaaf Verswijver
coletaram desenhos feitos em papel com jenipapo e o pincel de palmeira pelas mulheres
xikrin do Cateté e mekrangotire7. De fato, elas as desenharam com uma liberdade de
traços e motivos gráficos que as distinguem dos desenhos de mesmo tipo realizados
pelas mulheres. Se estas utilizaram o espaço do papel de modo a representar nele o
corpo pintado e desenham motivos de acordo com os padrões estéticos dessa
modalidade de pintura, transpondo diretamente para o papel seus princípios estéticos, as
meninas dividiram esse espaço em quadrados que contém um ou mais motivos, o que
seria impensável na pintura corporal, dando-se maior liberdade de experimentação e
inovação. Mas sua escolha temática era clara: de sua cultura, expuseram o que há de
mais feminino, a pintura corporal.
Os meninos tiveram maior liberdade de escolha temática. Alguns desenhos
mostravam uma coleção de objetos: máscaras rituais, maracás, cocares, bordunas,
canoas, adornos de algodão e miçanga, arcos e flechas, machados. Claro, um
tradicionalista extremista logo pontuaria que essa coleção não é ela mesma tão
tradicional assim: por exemplo, as máscaras bô são utilizadas no ritual de mesmo nome,
de origem karajá, e canoas só são utilizadas hoje em dia, desde que abandonaram os
6
Uma discussão desses desenhos, e alguns deles, podem ser encontrados em Cohn 2000: 165-172.
7
Deve-se lembrar que entre os Mebengokré são as mulheres que fazem a pintura corporal. Para ver os
desenhos e para uma linda análise deles, cf. Vidal 1992.
igarapés para habitar as margens dos grandes rios. Mas, sabemos, os Mebengokré não
são tradicionalistas nestes termos e as escolhas dos meninos responderam muito bem
aos anseios de seus professores, presenteados com uma verdadeira coleção etnográfica.
Um outro conjunto de desenhos tem como estratégia narrativa representar ações e
atividades: máscaras rituais dançando, homens ornados tocando o maracá em pares, um
grupo pescando, gente indo pegar água, rapazes trazendo as palmas de buriti para a
reunião dos homens, uma pessoa levando o filho ao rio para banhá-lo. Criam assim
situações que apresentam a vida aldeã, o modo mebengokré de conviver e viver: uma
escolha bastante afeita ao que me parece uma concepção mebengokré de kukradjà, e
portanto um modo privilegiado de representar “sua cultura”. Esses desenhos guardam
algumas particularidades frente ao que denominei “desenhos espontâneos”, de tema
livre, feitos fora da escola, para mim. Nestes, poucas vezes se criam situações, e os
elementos são organizados pelo papel ao girarem-no para acrescentar novos elementos
(o desenho escolar segue uma orientação vertical, respeitando o formato do papel na
exata forma da leitura). Os temas e elementos representados mudam também: dentre os
preferidos, animais, como a onça, o tatu, peixes; o campo de futebol com seus jogadores
e a bola; a aldeia em seu formato circular; caminhões e tratores puxando a madeira;
barcos a motor; aviões; e uma casa em que pessoas são vistas pelos cômodos banhando
em seus chuveiros... Para os professores, nada de animais: quando seres animados são
representados, são pessoas, em seus afazeres cotidianos, dançando no ritual, pescando,
caçando. Para os professores, também, nada de objetos de brancos – que no entanto são
largamente desenhados quando se lhes dá a liberdade de desenhar qualquer coisa que
lhe cative a atenção e o interesse. O desafio das crianças, de apresentar em forma de
desenho sua cultura para os professores não-indígenas, nos mostra um outro exercício a
partir dessa tensão, vivida, no Bacajá como em tantas aldeias do país, desde cedo.
Se para os Mebengokré kukradjà é o que os faz humanos e os diferencia dentre
os humanos, sendo também o que todos os humanos compartilhamos – e os brancos têm
seu kukradjà assim como os demais índios e os Mebengokré – , é no entanto esse que
efetivamente os faz e produz verdadeiramente humanos, Mebengokré. A multiplicidade
de kukradjà no mundo não só era conhecida, desde sempre, pelos Xikrin, como
reconhecida e valorizada – é em um contexto do que hoje chamamos de diversidade
étnica e cultural que seu kukradjà floresce adequadamente, acrescida de novidades
trazidas, saqueadas e aprendidas, de seus Outros. Mas os Mebengokré se resguardam
algo de particular, e tudo isso deve operar para melhor os produzir nessa sua condição
única e particular no mundo. Tudo que trazem deve ser tornado mebengokré – tudo
pode vir a compor seu kukradjà, mas para isso deve ser tornado kukradjà. Nomes e
adornos passam a circular de acordo com regras expressas de transmissão e uso, cativos
aprendem a língua e os modos mebengokré, novos cantos, cultivares, alimentos
industrializados, mercadorias servem à produção de pessoas belas na comensalidade, na
nutrição de seus corpos, nos rituais. A multiplicidade de kukradjà sempre esteve em
tensão – necessária fonte, a diversidade tem de ser reduzida para que sirva ao que deve,
à contínua produção de pessoas e coletivos mebengokré. Nessa sua eterna busca de se
fazer belos, os Mebengokré sempre se viram com a diferença cultural e a produção para
si de sua cultura. Essa tensão é então sua velha conhecida, e é a partir dela que eles
navegam entre um discurso e uma prática tradicionalista e abertos. Se o discurso
tradicionalista do Estado, o culturalismo que tão frequentemente rege a identidade
étnica e indígena, vem a compor esse quadro, podemos nos tranqüilizar – afinal, lidar
com a diferença para melhor se fazer a si mesmo é o que eles sempre fizeram – mas
devemos nos manter atentos – afinal, aqui sua lógica se encontra com outra, e isso tudo
passa a operar em um registro inter-étnico que faz diferença. A tensão é a mesma, mas é
também maior. O maior risco está, exatamente, em ver a produção de “cultura”
suplantar a de kukradjà, e vê-lo congelado, fixo, e então impotente a fazer o que deve:
produzir, sempre, pessoas mebengokré, e fazê-las belas.
O fato é que é a partir dessa tensão que os Mebengokré têm podido, muitas
vezes com sucesso, ser o mesmo mudando, a partir de sua lógica, inovando o kukradjá
mas o mantendo, o produzindo, sempre mebengokré. A resposta está em suas mãos, mas
não pode ser aplicada sem riscos: sempre mudaram para se manter mais os mesmos,
mas exatamente porque essa mudança sempre foi regrada e controlada. Seus vizinhos do
Cateté temem, conta-nos Gordon (2005), que possam vir a estar “virando branco”,
comendo comida de branco, se vestindo como branco, agindo e se relacionando como
brancos... Não sendo tradicionalistas como grande parte das pessoas com que lidam são,
recusando-se a fixar e congelar seu kurkradjà, os Xikrin precisam no entanto dos meios
e do tempo para tornar as coisas dos outros suas próprias. A tensão, enfim, não é, como
nunca será, só conceitual: são desafios que o mundo contemporâneo lhes apresenta de
um modo novo, e que eles têm podido responder a partir de suas lógicas e modos de
atuação, mas que sabem ter que fazê-lo atenta e cuidadosamente, porque esse novo
registro inter-étnico frequentemente os desloca do centro das ações e decisões,
obrigando-os a se rever e refazer. Parte importante desse processo é se rever e se
produzir como índios, Xikrin, membros e portadores de uma cultura indígena própria, o
que eles fazem traduzindo cultura e kukradjà, para si como para os outros, em um
sempre inventivo modo de reinventar a si mesmos.