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Copyright © 2005 Neri Pozza Editore, Vicenza

Copyright © 2015 Autêntica Editora

Título original: La potenza dei pensiero. Saggi e c onferenze

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seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

COORDENADOR DA COLEÇÃO FILÓ REVISÃO DA TRADUÇÃO


Gilson lannini Cláudio Oliveira
COORDENADOR DA SÉRIE FILÔ/a GAMBEN REVISÃO
Cláudio Oliveira Aline Sobreira
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Soares
Gilson lannini (UFOP); Barbara Cassin (Paris); PROJETO GRAFICO
Cláudio Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-Rio); Diogo Droschi
Ernani Chaves (UFPA); Guilherme Castelo Branco
CAPA
(UFRJ); João Carlos Salles (UFBA); Monique David-
Alberto Bittencourt
Ménard (Paris); Olímpio Pimenta (UFOP); Pedro
(sobre foto de Christina Bocayuva, realizada
Süssekind (UFF); Rogério Lopes (UFM G); Rodrigo
durante conferência de Giorgio Agamben na
Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP);
Universidade Federal Fluminense, em setembro
Slavojîizek (Liubliana); Vladimir Safatle (USP)
de 2005)
EDITORA RESPONSÁVEL
DIAGRAMAÇÃO
Rejane Dias
Christiane Morais
EDITORA ASSISTENTE
Cecília Martins

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Agamben, Giorgio
A potência do pensamento : ensaios e conferências / Giorgio Agamben ;
tradução de António Guerreiro -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015.
-- (Filô Agamben)

Título original: La potenza dei pensiero : saggi e conferenze


Bibliografia.
ISBN 978-85-8217-345-9

1. Antropologia filosófica 2. Ensaios 3. Poder (Filosofia) 4. Teoria do


conhecimento I. Título. II. Série.

14-08917 CDD-128

Indices para catálogo sistemático:


1. Antropologia filosófica 128

( ^ ) G R U P O A U T Ê N T IC A

Belo Horizonte São Paulo


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Sumário

I. Linguagem

9. A coisa mesma
23. A ideia da linguagem
33. Língua e história
51. Filosofia e linguística
71. Vocação e voz
83. 0 Eu, o olho, a voz
97. Sobre a impossibilidade de dizer Eu

II. História

111. Aby Warburg e a ciência sem nome


133. Tradição do imemorável
147. *Se. O Absoluto e o Ereignis
173. A origem e o esquecimento
185. Walter Benjamin e o demônico
211. Kommerell, ou do gesto
223. O Messias e o soberano

III. Potência

243. A potência do pensamento


255. A paixão da facticidade
281. Heidegger e o nazismo
291. A imagem imemorial
301. Pardes
319. A obra do homem
331. A imanência absoluta

359. Origem dos textos

361. Coleção Filô


363. Série Filô Agamben
'

■ í-
Vocação e voz

O título de minha conferência tenta, com sua figura etimológica,


pensar em língua italiana um termo alemão tal como ele se apresenta
em alguns pontos decisivos da obra de Hölderlin e de Heidegger. Esse
termo é o substantivo Stimmung. Se é verdade que só na linguagem
podemos pensar, se, como dizia Wittgenstein, toda interrogação fi­
losófica pode ser apresentada como interrogação sobre o significado
das palavras, então a tradução é um dos modos mais eminentes de o
homem pensar sua palavra.
Ora, como observou uma vez um grande filólogo, a palavra
alemã Stimmung é precisamente uma daquelas que é costume definir
como intraduzíveis:
Isso não quer dizer que frases como inguter Stimmung sein não pos­
sam facilmente ser traduzidas por essere di buon umore, em italiano,
ou por être en bonne humeur, em francês; e que die Stimmung in diesem
Zimmer não possa ser traduzido em italiano por Vatmosfera di questa
stanza; e Stimmung hervorrufen por creare una atmosfera-, die Seele zu
Traurigkeit stimmen por disporre l’anima alia tristeza, etc., etc.; falta,
porém, nas principais línguas europeias um termo que exprima
a unidade dos sentimentos que um homem experimenta em face
do que o envolve (uma paisagem, a natureza ou algo semelhante)
e funde o dado objetivo com o subjetivo em uma unidade har­
moniosa [...] Um italiano não pode dizer Vumore di un paesaggio
nem la mia atmosfera-, já um alemão pode falar quer da “Stimmung

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de uma paisagem”, quer da “minha Stim m ungAlém disso, a
palavra alemã faz constantemente apelo a gestimmtsein, “estar de
acordo”, o que, implicando certa solidariedade e certo consenso
com algo mais vasto, distingue-a do simples “estado de espírito”.1

A palavra Stimmung, como é evidente por sua proximidade com


Stimme, voz, pertence originalmente à esfera acústico-musical. Ela
está ligada semanticamente a palavras como as latinas concentus e tem-
peramentum e a grega harmonia, e em sua origem significa entonação,
acorde, harmonia. A partir desse significado musical se desenvolve,
sem no entanto jamais perder completamente o contato com o sentido
originário, o significado moderno de “estado de espírito”. Trata-se
assim de uma palavra cujo significado se deslocou, ao longo do tempo,
da esfera acústico-musical - a que estava ligado por sua proximidade
com a voz - para a esfera psicológica.
Não será inútil refletir alguns instantes sobre esse deslocamento.
A história da cultura humana não é, muitas vezes, senão a história de
tais transferências, de tais deslocamentos, e é precisamente porque não
se presta atenção a elas que a interpretação de categorias e conceitos
do passado dá origem, frequentemente, a tantos mal-entendidos. Um
simples exemplo esclarecerá o que quero dizer. Sabemos que amor se
diz, em grego, eras. No entanto, para nós, o amor é um sentimento,
isto é, algo que, por definição, não é claro que coisa seja, mas que
pertence indubitavelmente à esfera psicológica, à experiência interior
de um indivíduo psicossomático. Sabemos em contrapartida que, para
os gregos da época arcaica, Eros era um deus, isto é, algo que pertencia
não à psicologia humana, mas à teologia. A transformação implícita
na passagem de eros a amor diz menos respeito à fenomenologia do
amor, singularmente constante, do que à sua migração de uma esfera
para outra. Nessa migração, o panteão dos deuses gregos ou - mais
tarde - a dimensão trinitária do deus cristão se deslocaram dentro
de nós: esse deslocamento da teologia é aquilo a que chamamos psico­
logia. E é a esse deslocamento que devemos prestar atenção quando
traduzimos eros por “amor”, se não queremos cair no equívoco. Por

1 SPITZER, Leo. Classical and Christian Ideas of World Harmony. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1963. (Tradução italiana: L’armonia dei mondo. Storia se-
mantica di un’idea. Bologna: II Mulino, 1967. p. 9-10).

72 FILÕAGAMBEN
isso, o provençal amor - e também o amor dos stilnovistas que se
encontra na linha de divisão entre teologia e psicologia, dá lugar a
tão frequentes equívocos: não é claro, de fato, se aquilo que temos
diante de nós é um cerimonial religioso-soteriológico ou uma aven­
tura amorosa em sentido moderno.
Compreenderão, assim, quão importante é determinar o lugar
em que devemos situar em nosso caso a Stimmung. No parágrafo 29
de Sein und Zeit, Heidegger apresenta a Stimmung - que o tradutor
italiano verte em “tonalità emotiva” —como o “modo existencial fun­
damental”, através do qual o Dasein se abre a si mesmo. Na medida
em que traz originariamente o Dasein em seu Da, o ser-aí em seu
aí, a Stimmung realiza, de fato, a “revelação primária do mundo [die
primäre Entdeckung der Welt]”. O que nela está em questão diz assim
respeito, em primeiro lugar, não ao plano ôntico - o que podemos
conhecer e sentir no interior do mundo, os entes intramundanos -,
mas ao plano ontológico - a própria abertura do mundo. (Nos termos
de Wittgenstein, podemos dizer: não como o mundo é, mas que o
mundo é; ou ainda: não o que se diz em proposições no interior da
linguagem, mas que a linguagem seja.) Portanto, escreve Heidegger,
“ela não vem de fora nem de dentro”, mas “surge no próprio ser-
no-mundo”. “Estar em uma Stimmung”, acrescenta Heidegger, “não
comporta nenhuma referência primária à psique: não se trata de um
estado interior que se exteriorizaria misteriosamente para colorir as
coisas e as pessoas”. O lugar da Stimmung —poderíamos dizer —não
está na interioridade nem no mundo, mas no limite entre ambos.
Por isso, o ser-aí, na medida em que é essencialmente sua própria
abertura, está desde sempre em uma Stimmung, é sempre emotiva­
mente orientado; e essa orientação é anterior a todo conhecimento
consciente, tal como a toda percepção sensível, a todo Wissen [saber],
tal como a todo Wahrnehmen [perceber]. Antes de se abrir em todo
saber e em toda percepção sensível, o mundo se abre ao homem em
uma Stimmung. “E só porque ontologicamente próprios de um ente
que tem o modo de ser do ser-no-mundo em uma situação emotiva,
os “sentidos” podem ser “afetos” e “ter sensibilidade” para aquilo que
se manifesta na afecção”, escreve Heidegger. Mais do que estar em
um lugar, poderemos então dizer que a Stimmung é o próprio lugar
da abertura do mundo, o próprio lugar do ser.

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 73


A Stimmung, todavia, levando o Dasein à abertura de seu Da,
revela-lhe ao mesmo tempo seu ser lançado nesse Da, o fato de estar
desde sempre entregue a ele. Ou seja, a descoberta originária do
mundo que tem lugar na Stimmung é sempre desvelamento - diz
Heidegger - de uma Geworfenheit, de um ser-lançado, a cuja estrutura
é inerente uma essencial negatividade. No parágrafo 40 de Sein und
Zeit, analisando a angústia como Stimmung fundamental, Heidegger
precisa as características dessa negatividade. Em primeiro lugar, tam­
bém aqui o que a angústia revela não é um objeto intramundano
determinável qualquer:
O diante-de-quê da angústia é completamente indeterminado [...]
por isso a angústia não tem olhos para ver um determinado aqui
ou ali de onde se aproxima a ameaça. O que caracteriza o diante-
de-quê da angústia é o fato de que o elemento ameaçador não
está em lugar nenhum [...] ele existe já, mas não está em nenhum
lado; está tão próximo que nos oprime e nos corta a respiração,
mas não está em nenhum lugar. No diante-de-quê revela-se o
“não é nada e em nenhum lugar [nirgends]”.

No ponto em que o Dasein acede portanto à abertura que lhe é


mais própria e, na angústia, coloca-se perante o mundo como mun­
do, essa abertura se revela sempre atravessada por uma negatividade
e por um mal-estar. Se - como escreve Heidegger - o Da está agora
perante o Dasein como “um inexorável enigma”, é porque a Stimmung,
descobrindo o homem como desde sempre lançado e entregue à sua
abertura, revela-lhe, ao mesmo tempo, que ele não é trazido por si
mesmo em seu Da. Escreve Heidegger: “Sendo, o Dasein é lançado,
não é levado por si mesmo em seu Da [...] Existindo, ele nunca volta
atrás em sua condição de lançado [...] Já que ele não colocou o funda­
mento, ele repousa em seu peso, que a Stimmung lhe revela como um
fardo”. E justamente porque o Dasein é aberto ao mundo de tal modo
que ele já não é senhor de sua abertura, essa abertura ao mundo tem o
caráter do estranhamento. “A angústia”, escreve Heidegger, “retira o
ser-aí de seu se sentir em casa no mundo e tem por isso, antes de tudo,
o caráter do estranhamento” (do não se sentir em sua casa: zu Haus).
Devemos pensar aqui em um texto poético que Heidegger tinha
sempre em mente enquanto escrevia Sein und Zeit: As elegias de Duíno,

74 FILÕAGAMBEN
de Rilke. Já nos primeiros versos da primeira elegia, depois da terrível
aparição do anjo, Rilke escreve que os animais sabem bem que
nós não estamos em casa
no mundo interpretado
[wir nicht sehr verlässlich zu Haus sind
in dergedeuteten Welt],

E, na oitava elegia (v. 14-17), evocando a ideia do Aberto (das


Offene), em que o animal olha de olhos arregalados, escreve Rilke que
nós, ao contrário, não temos jamais diante de nós
o puro espaço, onde as flores
brotam sem fim. Para nós é sempre Mundo
e jamais o Em parte alguma sem não [Nirgends ohne nicht].

Procuremos agora recapitular as características dessa Stimmung,


dessa abertura originária ao mundo que constitui o Dasein, e —se
pudermos —situá-la em seu lugar. A Stimmung é o lugar da abertura
originária do mundo, mas um lugar que não está em nenhum lugar,
já que coincide com o lugar próprio do ser do homem, com seu
Da. O homem - o Dasein —é essa sua abertura. E, no entanto, essa
Stimmung, esse acordo originário e essa consonância entre Dasein e
mundo, é, simultaneamente, uma dissonância e uma desafinação, um
ser-desorientado e um ser-lançado. O homem é, pois, sempre antecipado
por sua própria abertura ao mundo.
Por que, devemos agora perguntar, a abertura da Stimmung tem
esse caráter de cisão e de dissonância? O que é que nela está em jogo?
De que acordes e entonações se trata, se a única “entonação” possível
tem a forma de uma dissonância?
Devemos refletir um momento sobre o caráter fundamental,
sobre o caráter de arche que Sein und Zeit atribui à Stimmung e à angús­
tia como Stimmung fundamental. Um único estado de espírito, uma
única paixão, uma única Stimmung tem na Antiguidade semelhante
privilégio e semelhante caráter de princípio: o thaumazein, o espanto,
que segundo uma antiquíssima e constante tradição é o arche do filo­
sofar. Registremos, em primeiro lugar, de passagem, uma diferença
fundamental: a abertura original pertence, para os gregos, à esfera
ótica - thaumazein é theasthai, olhar —, enquanto para Heidegger e, em

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 75


geral, para nós, modernos, ela se situa na esfera acústica (Stimmung, de
Stimme, voz). Essa é a dívida da modernidade para com o judaísmo,
em que a revelação é sempre um fenômeno acústico. Recordemos
que na Bíblia se lê: “O Eterno vos falou do fogo. Vós ouvistes uma
voz de palavras, mas formas, figuras d’Ele não as vistes, exceto a voz”
(.Deut., 4, 12).
Em que sentido devemos entender o carácter acústico da Stimmung
e sua relação com o espanto e com os outros pathe da filosofia grega?
O próprio Heidegger relaciona o tratamento que dá à Stimmung com
a teoria dos pathe na Grécia clássica, sublinhando como a primeira
elaboração sistemática sobre as emoções não foi conduzida no âmbi­
to da psicologia, mas na Retórica de Aristóteles. Ora, na Retórica de
Aristóteles, a tematização das paixões é conduzida naturalmente no
interior de uma teoria do discurso convincente, e portanto em estreita
relação com a linguagem. Mas a intuição dessa proximidade entre
paixões da alma e linguagem, entre pathos e logos, caracteriza tam­
bém a mais ampla reflexão que o pensamento grego pós-aristotélico
dedicou ao problema: a dos estoicos. Deve-se a Crisipo a formulação
radical, para nós desconcertante, à primeira vista, segundo a qual as
paixões, porque mantêm uma relação essencial com o logos, podem
produzir-se apenas no homem. O homem incorre nas paixões porque
é um animal falante; é um animal apaixonado porque é um animal
rationale. As paixões, segundo os estoicos, não são de fato um fenôme­
no natural, mas uma forma de krisis, de juízo, e, por conseguinte, de
discurso. Apontadas essas premissas, examinemos agora a definição
que os estoicos dão da paixão: ela é pleonazousa horme e hyperteinousa
ta kata ton logon metra. A tradução corrente é: “impulso excessivo,
que transgride a medida da linguagem”. Horme vem de ornymi, que
tem o mesmo étimo que o latino orior e origo e significa: “provenho,
nasço, origino”. A definição apresenta assim uma proveniência, uma
origem que excede a medida da linguagem. Os estoicos dizem que
essa horme é apeithes logo, “não passível de convencer pela linguagem”,
e afirmam que todo pathos é hiastikon, “violento”. Mas o que é que está
em questão nesse provir e nessa violência? Se recordarmos que, para
os estoicos, o pathos não é um elemento natural irracional, mas está
ligado ao logos, então o que exerce violência não é senão a linguagem,
a origem excessiva só pode ser a da própria linguagem. Nos fragmentos dos

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estoicos que foram conservados, não encontramos em nenhum lugar
uma afirmação tão explícita, mas ela é a única que não contradiz a
premissa da teoria estoica das paixões, do “animal racional” como
único “animal apaixonado”. Em todo caso, tal como a Stimmung, no
próprio momento em que conduz o Dasein em sua abertura, revela-
lhe que ele se encontra nela na situação de estranho, também a teoria
estoica das paixões aponta para uma desconexão, um excesso que se
produz na relação entre o homem e o que lhe é mais próprio, isto é,
o logos, a linguagem.2
Podemos, neste ponto, formular a seguinte hipótese: a teoria das
paixões, das Stimmungen, é desde sempre o lugar em que o homem
ocidental pensa sua relação fundamental com a linguagem. Através
dela, o homem ocidental —que se define a si mesmo como animal
rationale, o ser vivo que é dotado de linguagem —procura captar o
arthros, a articulação entre o ser vivo e a linguagem, entre zoon e logos,
entre natureza e cultura. Mas essa conexão é, ao mesmo tempo, uma
desconexão, essa articulação é, na mesma medida, uma desarticulação:
e as paixões, as Stimmungen, são o que se produz nessa desconexão, o
que revela esse desvio.
E se a voz é —segundo uma antiga tradição que define a lin­
guagem humana como phone enarthros, voz articulada - o lugar em
que se dá essa articulação entre o ser vivo e a linguagem, então o que
está em questão na Stimmung, o que se encena nas paixões, podemos
dizer que é a in-vocação da linguagem, no duplo sentido de se situar em
uma voz e de chamada, de vocação histórica que a linguagem confia
ao homem. O homem tem Stimmung, é apaixonado e angustiado
porque se mantém, sem ter uma voz, no lugar da linguagem. Ele está
na abertura do ser e da linguagem sem nenhuma voz, sem nenhuma
natureza: ele é lançado e abandonado nessa abertura e deve fazer desse
abandono seu mundo, e da linguagem, sua voz.
Se voltarmos agora ao texto de Heidegger de onde partimos,
então tanto o tema da Stimmung como o aparecimento, nos parágrafos

2 Hyperteino não é “transgrido”, mas é, antes de tudo: “tendo ao excesso; coloco-me


no máximo estado de tensão”. A tradução literal da definição dos estoicos é esta:
“origem excessiva que tende ao extremo as medidas segundo o logos”. Em hyperteino
(cf. teinó, tonos) existe assim uma imagem acústico-musical (tonos = tensão da corda
que corresponde à altura de um som).

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 77


seguintes de Sein und Zeit, de uma Voz da consciência se iluminam de
uma nova maneira. A relação etimológica entre Stimmung e Stimme,
vocação e voz, adquire aqui seu sentido próprio. Na abertura originária
do Dasein, surge agora o apelo silencioso de uma Voz da consciência,
que impõe uma compreensão mais originária dessa mesma abertura,
tal como tinha sido determinada através da análise da Stimmung. Mais
tarde, em Was ist Metaphysik? e, sobretudo no posfácio acrescenta­
do à quarta edição da conferência, a recuperação do tema da voz é
agora completa. A Stimmung da angústia só é aqui compreensível
em referência a uma lautlose Stimme, a uma voz sem som, que “nos
põe de acordo [stimmt] no terror do abismo”. A angústia não é, pois,
senão die von jene Stimme gestimmt Stimmung, a “vocação acordada por
aquela voz”. E a voz sem som é a voz do ser, que chama o homem à
experiência “do espanto dos espantos: que o ente é”.
Passemos agora ao segundo texto sobre a Stimmung que tínha­
mos nos proposto interrogar. Trata-se de um escrito em prosa de
Hölderlin que tem como título “Über die Verfahrungsweise des poetischen
Geistes”, que podemos traduzir por “Sobre o procedimento do espí­
rito poético”; mais precisamente, de um breve apêndice a esse texto:
“Wink für die Darstellung und Sprache”, “Indicação sobre a exposição
e a linguagem”. Como o título sugere, Hölderlin reflete nesse texto
sobre sua poética e nos apresenta, por assim dizer, uma fenomeno-
logia do espírito poetante. Isso não tem nada a ver, porém, com o
que tradicionalmente se entende por poética de um autor. Na arte
poética, o poeta toma sua poesia como tema, determinando-lhe a
forma e os conteúdos. A poética se situa na dimensão de um programa
e pressupõe, portanto, como já aberto esse lugar do poema e como
já constituído o eu poetante, a partir dos quais somente algo como
um programa ou uma intenção pode nascer. A dimensão a que esse
texto nos conduz é mais originária que a de uma poética, porque o
que nela está em questão é o próprio advir da linguagem poética, seu
ter-lugar. E é nessa dimensão, que não é simplesmente uma dimensão
de linguagem, que encontramos novamente, em função decisiva, o
conceito de Stimmung. Hölderlin distingue aqui da matéria e da forma
da obra uma dimensão que ele define como “formal-material” ou
“espiritual-sensível”, a que chama Grund des Gedichts, razão ou fundo
da poesia - razo de trobar, poderíamos traduzir, retomando o antigo

78 FILÕAGAMBEN
vocabulário poético provençal (recordemos que a língua alemã é
aquela que mais fielmente conservou o vocabulário poético medieval
nos próprios termos com que designa a atividade poética: dichten e
Gedicht derivam do latim medieval dictare, dictamen, que indicam o
próprio centro da composição poética). Hölderlin diz dessa dimensão
que ela deve constituir a passagem (Übergang) entre a matéria sensível,
o que é expresso e representado, e o espírito (Geist) e a elaboração
ideal. E só esse elemento intermediário que, escreve Hölderlin, “dá à
composição poética seu rigor, sua solidez e sua verdade, e o preserva
do perigo de a livre elaboração ideal se tornar uma maneira vazia e a
exposição expressiva, uma coisa vã”. Para definir essa dimensão que
não pertence propriamente ao vivido nem é simplesmente linguagem,
mas constitui o único centro a partir do qual se poderá produzir a obra
poética, Hölderlin faz intervir o conceito de Stimmung. O homem - diz
ele —deve sair da simples vida, da “infância originária [ursprüngliche
Kindheit]”, e se elevar ao puro eco (reine Widerklang) dessa vida e dessa
infância, que ele define precisamente como uma Stimmung pura e
sem matéria (stofflose reine Stimmung), ou ainda como um sentimento
transcendental (transzendental Empfindung). E nesse momento central
que se abre o espaço em que se situa o acontecer próprio da palavra
poética. Escreve Hölderlin: “Precisamente nesse instante em que o
vivo sentimento originário, purificado até se tornar pura Stimmung
aberta a um infinito, encontra-se como infinito no infinito, como um
todo espiritual em um todo vital, é nesse instante que a linguagem
é pressentida”. E tal como a vida tinha se espiritualizado em pura
Stimmung e em puro sentimento, também agora a Stimmung se torna
palavra viva e real, “onde espírito e vida são iguais dos dois lados”, diz
Hölderlin, e como “obra conseguida e criação” ela “encontra a vida
originária na forma mais alta e conhece o que encontrou”.
A prova de que é essencial para Hölderlin a determinação dessa
dimensão, apenas na qual pode acontecer a pura palavra poética, está
no fato de ele, para defini-la, ter necessidade de opô-la às catego­
rias próprias de seus amigos de Tübingen: Hegel e Schelling. Com
efeito, ele escreve que ela, não podendo ser mera tensão vital, não
pode tampouco ser consciência e reflexão (porque assim se perderia a
vida —e aqui Hölderlin visa a Hegel), nem uma “intuição intelectual
com seu mítico e plástico sujeito-objeto” (porque então se perderia

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA Dfl PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 79


a consciência - e aqui ele visa a Schelling), mas uma pura Stimmung,
um puro sentimento transcendental. Por isso é importante que essa
Stimmung seja preservada de toda intrusão estranha, e que o poeta,
como escreve Hölderlin,
não aceite nesse momento nada como dado, não parta de nada de
positivo, que a natureza e a arte [...] não falem antes de existir para
ele uma linguagem, ou seja, antes que se torne conhecido e assuma
para ele um nome o que agora em seu mundo é desconhecido e
sem nome, precisamente porque foi confrontado e reconhecido
conforme [übereinstimmend] sua Stimmung. Se, de fato, antes [...]
existisse já em uma forma determinada uma qualquer linguagem
da natureza e da arte, ele não se encontraria, justamente por esse
fato, em sua esfera de ação, sairia de sua criação, e a linguagem
da natureza e da arte [...] viria antes, na medida em que não é
sua linguagem.

Também nesse documento excepcional da tradição poética oci­


dental, tal como no texto de Heidegger que analisamos, a Stimmung
é a condição para que o homem possa, sem ser precedido por uma
linguagem estranha, proferir uma voz própria, encontrar a própria pa­
lavra. Já no início da tradição da lírica moderna - na poesia provençal
e stilnovista e na dos Minnesänger - essa condição residia em uma
Stimmung. Que ela se chamasse Amor, amor ou Minne, em todo caso
designava a experiência da morada da palavra no princípio, a situação
do logos na arehe. O que está em jogo na Stimmung é a possibilidade, para
o homem falante, de experimentar o próprio nascimento da palavra,
de apreender, assim, o ter-lugar daquela linguagem que, antecipando-o
constantemente, atira e destina o homem para fora de si, para uma
história e uma tradição. Só se o homem pudesse apreender a própria
origem da função significante que sempre o antecipa se abriria para
ele a possibilidade de uma palavra livre, de uma linguagem que fosse
verdadeira e integralmente a sua linguagem. Só em uma tal palavra
o projeto filosófico de um pensamento sem pressupostos e o projeto
poético de uma palavra absolutamente própria e original poderiam
encontrar sentido e realidade. Liberdade pode de fato significar apenas
liberdade em relação à natureza e em relação à linguagem. Se a lin­
guagem nos libertasse da natureza só para nos lançar em um destino
histórico em que o destinador incessantemente se antecipa, a nós e

80 FILÕAGAMBEN
r escapa, não existiria liberdade para o homem. A liberdade só seria
possível para o homem falante se ele pudesse pôr a claro a lingua­
gem e, apreendendo-lhe a origem, encontrar uma palavra que fosse
verdadeira e inteiramente sua, isto é, humana. Ou seja, uma palavra
que fosse a sua voz, tal como o canto é a voz dos pássaros, o fretenir
é a voz da cigarra e o zurro é a voz do burro.
Mas pode a Stimmung, tornando-se Stimme, dar à linguagem
um lugar e, desse modo, torná-la própria ao homem, ao animal sem
voz? Pode a apaixonada vocação histórica que o homem recebe da
linguagem se transformar em voz? Pode a história se tornar natureza
do homem? Ou não se limita ela antes a pôr o homem perante sua
ausência de voz, sua afonia, colocando-o assim puramente e de ime­
diato perante a linguagem?

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 81


0 Eu, o olho, a voz

A Roger Dragonetti, que abriu a


via a toda leitura de Valéry.

O Eu e o olho, 1
A figura reproduzida na página anterior se encontra no Capítulo V
da Dióptrica, que tem como título “Das imagens que se formam sobre o
fundo do olho”. Descartes se serve dela para ilustrar a seguinte experiência:
Tomando o olho de um homem que acabou de morrer ou, na
falta dele, o de um boi ou algum outro animal de grande porte,
cortai com destreza até o fundo as três peles que o envolvem, de
modo que uma grande parte do humor M, que aí se encontra,
fique descoberto, evitando, porém, que alguma parte se derrame;
depois, tendo-o coberto com um corpo branco, tão transparente
que a luz o atravesse, como, por exemplo, um pedaço de papel
ou uma casca de ovo, RST, colocai esse olho no buraco de uma
janela, feito de propósito, como em Z, de modo que ele tenha a
parte da frente, BCD, voltada para qualquer lugar onde existam
diversos objetos, como VXY, iluminados pelo sol, e a parte de trás,
onde está o corpo branco RST, virada para o interior do quarto,
P, onde vos encontrais e no qual não deve entrar nenhuma luz a
não ser a que puder penetrar através do olho, cujas partes, desde
C até S, são transparentes, como sabeis. Feito isso, se olhardes
para o corpo branco RST, vereis, não certamente sem admiração
e prazer, uma pintura, que representará muito ingenuamente em
perspectiva todos os objetos que estão no exterior.11

1 DESCARTES, René. Œuvres de Descartes. Edição de Charles Adam e Paul Tannery.


Paris: Léopold Cerf, 1902. v. 6. p. 115.

83
O que Descartes quer provar com essa experiência é uma teoria
da visão segundo a qual todo ato de visão é, na realidade, um juízo
intelectual do sujeito pensante; não visão concreta, portanto, mas um
ego cogito me videre, um “eu penso ver”, uma reflexão do Eu a partir dos
signos sensíveis pintados sobre o fundo do olho. O verdadeiro sujeito
da visão, o eu pensante, encontra-se assim, em relação ao olho, em
uma posição análoga à do homem barbudo da ilustração - esse homem
que, surgindo não se sabe de onde na obscuridade de seu observatório,
observa através de uma casca de ovo as imagens que se formam sobre
o fundo de um olho arrancado de uma órbita cadavérica.
Quem é esse homem barbudo? Evidentemente, tal personagem
não tem realmente lugar em nosso cérebro. O ego cogito é desprovido
de extensão e imaterial, e em nenhum caso sua união com o corpo
pode ser configurada desse modo. Descartes o sabe bem, já que es­
creverá no capítulo seguinte:
Não nos devemos convencer [...] de que é através da semelhan­
ça que a pintura faz com que percebamos os objetos, como se
existissem em nosso cérebro outros olhos, com os quais não
pudéssemos percebê-los.2
O homem barbudo não é o Eu; ele não existe, é uma ficção; mas
é graças a essa ficção que é possível abrir um espaço ao Eu pensante
e conceber sua relação com a sensação.
Através do desdobramento irônico que a imagem opera, o olho
que olha se torna o olho olhado, e a visão se transforma em um ver­
se a ver, em uma representação no sentido filosófico, mas também no
sentido teatral do termo.
Esse homem barbudo da ilustração da Dióptrica, que, fechado
em seu teatro de sombras, observa as imagens no fundo do olho, é
um estafeta que anuncia o aparecimento do Monsieur Teste, como se,
recortando-se na chapa, a água-forte tivesse fixado com três séculos
de antecedência o perfil incerto dessa “personagem perfeitamente
impossível” (Œuvres, II, 138)3 da qual sabemos que “não pode existir
nenhuma imagem certa” (Œuvres, II, 63).

2 DESCARTES. Œuvres de Descartes, Ibid., p. 130.


3 As Œuvres de Valéry (Paris: Gallimard, t. I, 1957; t. II, 1960, Bibliothèque de la
Pléiade) são citadas com a sigla Œ seguida do volume e do número de página; os
Cahiers (Paris: Gallimard, t. I, 1973), com a sigla C seguida do número de página.

84 FILÕAGAMBEN
O E u e o o lh o , 2
Nas Observaçõesfilosóficas, Wittgenstein propõe uma experiência
que faz lembrar, talvez não por acaso, a da Dióptrica de Descartes:
Suponhamos que meu globo ocular esteja fixado por trás de uma
janela de modo que me permita ver a maior parte das coisas através
dela. Assim, a janela poderia assumir o papel de uma parte do
meu corpo. O que está próximo da janela está próximo de mim.
(Assumo que tenho, ainda que com um só olho, uma visão tridi­
mensional.) Assumo, além disso, que estou em condições de ver
meu globo ocular em um espelho e de distinguir - eventualmente
pendurados nas árvores - globos oculares semelhantes. Como pos­
so então reconhecer ou chegar à hipótese de ver o mundo através
da pupila do meu globo ocular? De maneira que é essencialmente
assim: vejo o mundo através da janela ou então por uma fresta
aberta em uma tábua, atrás da qual está o meu olho [...].
Mas se meu olho estivesse isolado, na ponta de um ramo, poderia
tornar-se bem clara para mim sua condição, aproximando pro­
gressivamente dele um anel, até o momento em que visse tudo
através dele. Poder-se-ia até aproximar o que antes estava à volta
dele —os arcos das sobrancelhas, o nariz, etc. —e eu saberia onde
cada coisa deveria ser colocada.
Ora, tudo isso quer dizer que o quadro visual contém em suma
ou pressupõe essencialmente um sujeito? Ou não é antes verdade
que dessas tentativas obtenho só esclarecimentos de ordem pu­
ramente geométrica? Ou seja, esclarecimentos que continuam a
dizer respeito apenas ao objeto.4

Confrontemos essa hipotética experiência com a da Dióptrica.


Também aqui há um olho arrancado de sua órbita e fixado em um
lugar estranho, também aqui o que está em jogo é o sujeito da visão. E,
no entanto, a feroz extirpação do olho não funda nesse caso nenhum
sujeito da visão, não existe nenhum homem barbudo a se apropriar
das imagens que uma ingênua perspectiva desenha no fundo do olho.
Ainda que o olho pudesse observar-se a si mesmo em um espelho e
visse, pendurados nas árvores de uma paisagem de pesadelo, outros
globos oculares, nada, no que é visto, pressuporia a existência de um
Eu como fundamento da visão.

4 W ITTG EN STEIN , Ludwig. Osservazioni jilosojiche. Torino: Einaudi, 1976. p. 57.

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 85


O Tractatus logico-philosophicus tinha, aliás, já demonstrado a
impossibilidade de alcançar o Eu através da visão:
Onde ver no mundo um sujeito metafísico?
Tu dizes que se passa aqui o mesmo que se passa com o olho e o
campo visual. Mas o olho não o vês de fato.
E nada no campo visual permite concluir que ele seja visto por um
olho (prop. 5.633).
O eu filosófico é não o homem, não o corpo humano ou a alma
humana de que trata a Psicologia, mas o sujeito metafísico, o
limite - não uma parte - do mundo (prop. 5.641).

Se o homem barbudo da Dióptrica, em sua câmara escura, é


um dos polos da experiência que tem o nome de Teste, o Eu pon­
tual e evanescente de Wittgenstein, limite e não parte do mundo,
é seu outro polo. Teste se move entre uma cena teatral e um limite
invisível, entre o que só se pode ver e o que não se pode ver em
nenhum caso.
O Teatro do M onsieur Teste
A ascendência cartesiana de Teste não precisa ser provada. O
próprio Valéry se refere várias vezes a seu herói como “meu cogito”, e,
no fim de seu “serão”, pouco antes de se deixar cair no sono, ouvimos
Teste repetir pontualmente a fórmula cartesiana da visão: “Je suis étant
et me voyant; me voyant me voir, et ainsi de suite...” [“Eu sou sendo e
me vendo, vendo-me a ver, e assim sucessivamente...”] (Œuvres, II,
25). Uma nota nos Cahiers de 1926 define Teste como um “apóstolo
íntimo da consciousness [...] um místico e um físico da self-conscience,
pura e aplicada” (C, 262). Este “orco” ou bicho-papão pessoal, a que
Valéry recorre “sempre que lhe falta sabedoria” (C, 21), é, portanto,
acima de tudo uma alegoria da autoconsciência, que se coloca na­
turalmente na esteira daquela aventura filosófica em que Descartes,
fundando suas certezas no momento em que tudo parecia naufragar
na dúvida, tinha lançado o homem moderno.
A operação de Valéry é, porém, muito mais do que uma sim­
ples retomada da experiência cartesiana do cogito. Na verdade, é, ao
mesmo tempo, uma desconstrução, em virtude da qual o que era
um princípio e um fundamento se torna uma ficção teatral e um
limite impossível. Várias vezes Valéry insiste no aspecto funcional e

86 FILÕAGAMBEN
operacional de seu “ego” contra todo risco de substancialização. O
que ele procura - lemos em uma passagem que documenta o próprio
nascimento do sistema de Valéry —é “levar ao extremo a função do
Eu, e não a sua personalização” (C, 847); e, ainda em 1941, regres­
sando, quatro anos antes de morrer, a Teste, identifica seu sentido,
puramente funcional, na pergunta: “Que peut un homme?” [“O que
pode um homem?”] (C, 196).
E então evidente que seu “ego” - diferentemente do de Des­
cartes, que se “deixou encantar pelo olhar de Medusa do verbo Ser”
(C, 619) - não pode abrir nenhuma passagem para o ser. Ao “penso,
logo existo” cartesiano, a cabeça oracular que Valéry situa na ilha
imaginária de Xiphos (que bem poderia ser a pátria de Teste) con­
trapõe seu “Eu não existo; eu penso” (Œuvres, II, 439).
Nessa perspectiva, a operação de Descartes se parece mais com
um romance (“Reli o Discurso do método há pouco, é verdadeiramente
o romance moderno, como poderia ter sido feito...” - Œuvres, II,
1381) ou com um efeito teatral e mímico (“O cogito cartesiano não
deve ser analisado em si mesmo [...] considerado em si não significa
nada. E um magnífico grito, um dito teatral, um movimento literá­
rio” - C, 518; “Ele significa como mímica” - C, 609) e não como
uma realidade em si.
Por isso, Teste está muito mais próximo da “ficção” que é o
homem barbudo da Dióptrica do que do ego cogito do Discurso do método
e das Meditações. O que, em Descartes, era de fato íntima revelação
de uma presença originária e imediata, torna-se aqui um teatro que
não funda senão seu “puro espaço de ficção”, como o mimo de que
fala Mallarmé:
Ici devançant, là remémorant, au futur, au passé, sous une apparence
fausse de présent. Tel opère le Mime, dont lejeu se borne à une allusion
perpétuelle sans briser laglace: il installe, ainsi, un milieu, pur, defiction.5

[Ora adiantando-se, ora rememorando, no futuro, no passado,


sob uma aparência falsa de presente. Eis como opera o Mimo,
cujo jogo se limita a uma alusão perpétua sem quebrar o gelo: ele
instala, assim, um meio, puro, de ficção.]

5 MALLARME, Stéphane. Crayonné au theater. In: Œuvres complètes. Paris: Gallimard,


2003. v. 2. p. 178-179. (Bibliothèque de la Pléiade).

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 87


O E u e o o lh o , 3
A ideia de presença (presença da alma a si mesma e das coisas reais
da alma) que governa a metafísica ocidental e seu saber se funda na
possibilidade de uma presença ante o olhar (o olho que se vê a si mesmo
imediatamente em um espelho: é nessa possibilidade que se detém o
mundo antigo) ou na de uma presença ante a consciência (a possibilidade
de o discurso se referir imediatamente, através do pronome “eu”, à
voz do locutor que o pronuncia).
Procurando penetrar o segredo da “negra máquina para sentir
e combinar que se remete incessantemente ao presente”, que é, para
ele, o corpo humano, Valéry volta a pôr em jogo, antes de tudo,
a primeira dessas possibilidades e introduz tanto na vista como na
consciência um atraso e um desdobramento. No texto capital que
é a carta a Pierre Louys, ele propõe, de fato, uma experiência que
quebra a relação necessária entre Eu e olho na qual se funda o sub­
jetivismo e transforma a experiência originária da revelação do Eu
ao olhar em uma extraordinária pantomima ao retardador diante de
um espelho. Depois de ter falado da recíproca implicação entre Eu e
Simultaneidade, ele escreve:
Tu te olhas no espelho, gesticulas, pões a língua de fora... Muito
bem. Supõe agora que um deus maligno se diverte a diminuir
loucamente a velocidade da luz.
Estás a 40 cm de teu espelho. Antes, recebias tua imagem em
2,666... milésimos de segundo. Mas o deus se divertiu em tomar
o éter espesso. E agora tu te vês após um minuto, um dia, um
século, ad libitum.
Tu te vês a obedecer com atraso. Compara isso com o que acontece
quando procuras uma palavra, um nome, “esquecido”.
Esse atraso é toda a psicologia —que se poderia definir paradoxal­
mente: o que acontece entre uma coisa... e ela mesma!6

Nesse afastamento e nesse atraso que se introduz entre o Eu e


si mesmo, a ideia de uma presença imediata ao olhar na re-flexão,
sobre a qual a metafísica fundava sua certeza originária, perde toda

6 VALÉRY, Paul. Lettre à Pierre Louÿs. In: Morceaux choisis. Paris: Gallimard, 1930. p. 298.

88 FILÕAGAMBEN
consistência, e a consciência se torna o lugar não de uma presença,
mas de um atraso, de uma ausência, de uma lacuna. Ao mesmo
tempo, porém, nesse vertiginoso retroceder mímico do Eu para
além do Eu, outro olho se abre, outro olhar, impessoal, imaterial,
angelical, que sobrepõe ao pequeno teatro de sombras da Dióptrica
a cena sem sujeito de Wittgenstein. Teste é esse outro olhar; ele é
verdadeiramente, segundo a etimologia sugerida por Valéry, Testís,
a testemunha, um “observador ‘eterno’ cuja função se limita a re­
petir e a mostrar reiteradamente o sistema do qual o Eu é a parte
instantânea que se julga o Todo” (Œuvres, II, 64); ou, prosseguindo
na etimologia, o “terceiro” (o termo latino testis deriva, segundo
os etimologistas, de um arcaico *tristis, que significa “aquele que
se mantém como terceiro”) entre o olho e o mundo e entre o Eu
e si mesmo, uma espécie de “Eu do Eu” (C, 121) ou de “Antego”
(C, 847). Como tal, Teste é algo que não pode ser, por sua vez,
apreendido nem visto: como o Eu de que fala Wittgenstein, ele “se
contrai em um ponto não extenso e passa a ser a realidade que se
coordena com ele”. Ele “não pertence ao mundo, mas é um limite
do mundo”.

O Eu e a voz, 1
Uma vez teatralmente dissolvida a implicação imediata entre
o eu e o olho e a fundação do sujeito como unidade daquele que
vê e daquele que é visto na experiência do espelho, restava todavia
o outro princípio em que a metafísica ocidental tinha procurado
a consistência do sujeito: sua presença imediata na experiência do
discurso através dos indicadores da enunciação e, em primeiro lugar,
o pronome eu.
Valéry ficou tão fascinado pelo pronome eu que se pode dizer que
toda a sua obra (em primeiro lugar, Monsieur Teste) não é senão uma
reflexão sobre o eu e uma luta com eu. Com surpreendente lucidez,
ele antecipa as descobertas da linguística moderna sobre a natureza
particular da enunciação:
Antes de significar qualquer coisa, toda emissão de linguagem
assinala alguém que fala. Isso é capital e não foi notado pelos
linguistas (C, 473).

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 89


O Eu ou o Mim [Le Je ou Moi] é a palavra associada à voz. É
como o sentido da própria voz —esta considerada como signo.
Qualquer voz “diz” antes de tudo: Alguémfala, um Eu (C, 466).

Uma vez ele compara a linguagem a um jogo de xadrez muito


imperfeito, em que o aparecimento do pronome eu corresponde
à invenção de um peão com características diferentes de todos os
outros:
Era uma vez um jogo de xadrez —muito imperfeito. As peças
eram demasiado simples, as leis, demasiado matemáticas, a previ­
são, possível, etc., até que alguém teve a ideia de introduzir uma
peça nova, dotada de propriedades singulares, por exemplo, a de
não ter propriedades permanentes, mas pedi-las emprestadas à
situação do jogo.7

Desse modo, desde os começos de sua meditação sobre o pro­


nome, Valéry identifica com clareza aquelas características que Ben-
veniste, muitos anos depois, fixará em seus estudos sobre a Natureza
dos pronomes e sobre a Subjetividade na linguagem: a realidade puramente
linguística do sujeito e o fato de ele se definir exclusivamente em
relação a uma instância de discurso.
A que se refere então eu? A algo de muito particular, que é exclu­
sivamente linguístico: eu se refere ao ato de discurso individual
no qual é pronunciado e designa o locutor. E um termo que não
pode ser identificado senão [...] em uma instância de discurso [...]
A realidade para a qual remete é a realidade do discurso.8

Uma vez verificada essa consistência puramente linguística do


Eu, Valéry pode facilmente dissolver toda ilusão de uma realidade
pessoal e substancial do sujeito, toda pretensão do Je de se encarnar
em um Moi. Tal como tinha sabido apreender o caráter puramente
teatral do sujeito da visão na Dióptrica de Descartes, também agora
nos alerta contra a ideia de que moi possa indicar algo de unitário e
de imediatamente presente. Uma vez que só tem a consistência que

7 CELEY RETTE-PIETRI, Nicole. Le jeu du je. In: PARENT, Monique; LEVAIL-


LANT, Jean (Ed.). Paul Valéry contemporain. Paris: Klincksieck, 1974. p. 12.
8 BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1976.
v. 1. p. 261-262.

90 FILOAGAMBEN
lhe é conferida, a cada vez, pela instância de discurso em que aparece,
o sujeito da linguagem é “um duplo peão, ao mesmo tempo dentro
e fora do jogo”, necessariamente preso em um processo de clivagem
e de deslize.
Meu chapéu é o chapéu da minha cabeça. Minha cabeça é a
cabeça do meu corpo. Meu corpo é o corpo do... meu espírito.
Mas meu espírito é o meu espírito?9

Tal como o sujeito metafísico de Wittgenstein, o Eu de Valéry


é um puro limite insubstancial; mas, ao contrário daquele (do qual
diz o Tractatus que “não se pode dizer, mas se mostra” —prop. 5.62),
este só se pode dizer e nunca mostrar.
Assim sendo, compreende-se por que para Valéry o problema se
torna então o de “suprimir o Eu”, o de “se libertar dessa palavra”.10
Dada a natureza puramente linguística e teatral desse limite, é possí­
vel transpô-lo? Ou seja, é possível para o homem falante atingir algo
além “daquele que diz eu”?

O Eu e a voz, 2
Essas perguntas nos conduzem ao coração do problema poé­
tico de Valéry. E sabido como ele sempre tendeu a minimizar sua
obra poética, chegando a manifestar uma verdadeira desconfiança
pela poesia. E, no entanto, até poucas semanas antes de sua mor­
te, não deixou de se confrontar com ela. Na verdade, é na poesia
que se situa o experimentum crucis de Valéry, porque é na poesia que
deve necessariamente se lançar toda tentativa de abolir e transpor o
Eu. Segundo uma tradição que é consubstanciai à poesia ocidental,
aquele que fala na poesia não é, de fato, o sujeito da linguagem, mas
um outro, chame-se ele Musa, Deus, Amor, Beatriz. Isto é, a poesia
tem desde sempre feito da alienação a condição normal do ato de
fala: ela é um discurso em que o Eu não fala, mas recebe de algum
lugar sua palavra (palavra “inspirada”, em que o espírito, o “sopro”,
chega diretamente à linguagem). Mallarmé, cuja poesia foi sempre
para Valéry a experiência decisiva, tinha procurado levar ao extremo

9 Cf. CELEY RETTE-PIETRI. Le jeu du je, p. 18.


10 CELEY RETTE-PIETRI. L ejeu du je, p. 16, 18.

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 91


essa abolição do Eu na escrita poética; mas aquilo que, desse modo,
ele tinha encontrado além do sujeito da enunciação não era senão a
própria língua. A operação destruidora da Musa (“La Destruction fut
ma Béatrice”)11 traz à palavra a própria língua.
Em que a operação poética de Valéry se distingue da de Mal­
larmé? Um límpido fragmento de 1939 responde a essa pergunta.
Mas, defato, quem fala em uma poesia? Mallarmé pretendia que
era a própria Linguagem.
Para mim —seria —o Ser vivo e pensante (contraste, este) —que leva a
consciência de si à captura de sua sensibilidade - desenvolvendo as
propriedades desta em suas implicações —ressonâncias, simetrias,
etc. —sobre a corda da voz. Em suma, a Linguagem nasce da voz, e
não a voz da Linguagem (C, 293).

A aposta de Valéry é, pois, a de ir além do Eu sem o abolir, em


direção à sensibilidade e ao corpo. A voz (“sobre a corda da voz”) é o
elemento que —sendo concomitante à linguagem e ao corpo —poderia
permitir essa junção entre a consciência e a sensação, entre o eu e o
corpo. Mas existe verdadeiramente essa possibilidade?
Em um dos momentos centrais de sua poesia, La Pythie, Valéry
descreve o drama da impossível busca de uma voz que não seja a voz
do Eu nem a voz da linguagem, mas nasça das profundidades do
corpo próprio, já que, na poesia de Valéry, a Pitonisa, essa figura por
excelência da palavra inspirada e do corpo possesso, recusa a inspiração
e não quer que outro fale em seu lugar:
Hélas! Entrouverte aux esprits,
j ’ai perdu mon propre mystère!...
Une intelligence adultère
exerce un corps quelle a compris!
[...]
Qui me parle, à ma place même?
(Œuvres, I, 131)112

11 MALLARMÉ, Stéphane. “Carta a Eugène Lefébure”, de 27 de maio de 1867. In:


Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1998. v. 1. p. 717.
12 Ah! Entreaberto aos espíritos/eu perdi meu próprio mistério!.. ./Uma inteligência adúl-
tera/exerce um corpo que ela compreendeu/[...] Quem me fala, no meu próprio lugar?
(Tradução do revisor.)

92 FILOAGAMBEN
Mas quando - depois de ter procurado em sua carne e em seu
sangue —ela finalmente fala, não é fácil dizer em que a “voz de nin­
guém” que ouvimos se distingue da voz da linguagem:
Honneur des Hommes, Saint LANGAGE,
discours prophétique et paré,
belles chaines en qui s’engage
le dieu dans la chair égaré, illumination, largesse!
Voici parler une Sagesse
et sonner cette auguste Voix
qui se connaît quand elle sonne
n’être plus la voix de personne
tant que des ondes et des bois!
(Œuvres, I, 136)13

Se a voz da poesia é a voz de ninguém, não há qualquer pos­


sibilidade de encontrar um ponto em que o Eu ou o corpo deem
imediato acesso a ela. E, no entanto, há um lugar —um lugar que
constitui talvez a experiência mais íntima de Valéry —em que pare­
ce que o Eu consegue verdadeiramente se superar a si mesmo para
alcançar, além da linguagem, “a obscura substância que nós somos
sem o saber” (Œuvres, II, 183).
No Dialogue de 1’arbre, essa zona obscura além do sujeito é defi­
nida como “fonte das lágrimas” e como “Inefável” (Œuvres, II, 183).
Convém reler esse trecho extraordinário, para o qual Roger Dragonetti
chamou a atenção em um estudo exemplar:

[...] e é aí, no próprio seio das trevas em que se funde e se con­


funde o que pertence à nossa espécie e o que pertence à nossa
matéria viva e o que pertence às nossas recordações, às nossas
forças e debilidades escondidas, e, enfim, o sentimento informe
de não termos sempre existido e de termos de deixar de existir,
que se encontra o que chamamosfonte das lágrimas: o inefável. Pois
nossas lágrimas são, a meu ver, a expressão de nossa impotência

13 Honra dos Homens, Santa LINGUAGEM,/discurso profético e ornado,/belas cadeias


em que se prende/o deus na carne perdida, iluminação, amplidão!/Eis aqui falando
uma Sabedoria/e soando essa augusta Voz/que se conhece quando ela soa/não ser
mais a voz de ninguém/mais do que de ondas e de árvores! (Tradução do revisor.)

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 93


para exprimir, isto é, para nos libertarmos através da palavra da
opressão do que somos (Œuvres, II, 183).14

No pranto, o sujeito da linguagem parece conseguir abolir-se


para revelar o que está além da voz e além das “margens mudas da
palavra”; mas essa experiência é, mais uma vez, experiência de um
limite, de “uma impossibilidade de exprimir”, um naufragar no in­
dizível, e não uma realidade positiva. Os limites da voz são velados
pelo pranto.
Nessa perspectiva, adquire todo seu peso a interrogação que abre
La jeune Parque (esse poema que, em uma das primeiras e fragmentárias
versões, tem precisamente como título: Larme):
Qui pleure là [...]
[...] Mais qui pleure,
si proche de moi-même au moment de pleurer?
{Œuvres, I, 96)15
Portanto, também a jovem Parca (que, dando crédito a uma
carta de Valéry, é também ela uma figura da “consciência consciente”
e não por acaso repete diante de um espelho o cogito de Teste: je me
voyais me voir) procura alcançar a “fonte das lágrimas” e se anular em
seu mais íntimo mistério; mas sua expectativa, como a da Pitonisa,
ainda que em um sentido oposto, é defraudada:
Attente vaine, et vaine... Elle ne peut mourir
qui devant son miroir pleure pour s’attendrir.
{Œuvres, I, 107)16
Assim como o sujeito da visão (o homem barbudo da Dióptrica)
não pode unir-se ao olho de carne e sangue e, para poder simplesmente
chorar, para poder alcançar no pranto seu centro indizível, deveria
deixar de se ver chorar e quebrar o espelho (isto é, abolir-se a si mesmo),

14 Cf. as observações de Roger Dragonetti em A ux frontières du langage poétique (Gent:


Romanica Gandensia, 1961. p. 149-156).
15 Quem chora aí [...]/[...] Mas quem chora,/tão próximo de m im mesmo no momento
de chorar? (Tradução do revisor.)
16 Espera vã, e vã... Ela não pode morrer/quem diante de seu espelho chora para se
enternecer. (Tradução do revisor.)

94 FILOAGAMBEN
também o sujeito da linguagem não pode - remontando ao longo
da “corda” da voz - chegar às fontes do pranto. Só morrendo o Eu
poderia abrir uma passagem para além de si; mas isso é precisamente
o que o Eu não pode fazer, porque a consciência —essa puríssima
ficção teatral - não pode morrer, mas apenas se repetir ao infinito.17
Torna-se assim compreensível por que Valéry, evitando as exi­
gências dos críticos, preferiu deixar na incerteza a morte de Teste.18
Sendo, como alegoria da consciência, um puro limite, um “muro” e,
ao mesmo tempo, um “espelho”, Teste é também, além de um eterno
observador, um eterno “agonizante” (Œuvres, II, 74), a quem está
vedada, porém, a experiência da morte. Até o final, a morte é para
ele apenas uma “tentação”, “uma coisa inimaginável que se introduz
no espírito de tempos em tempos, sob a forma do desejo e do horror”
(Œuvres, II, 75). Mas o que está para além desse desejo e desse horror
nenhuma voz pode dizê-lo. A aposta de Valéry fica sem resposta.

17 “É-nos impossível conceber uma supressão da consciência que não seja acidental e
que seja definitiva. Ela só pode conceber o que pode fazer, e não pode fazer outra
coisa que não seja voltar a vir” (CE, I, p. 1218).
18 Cf. a carta a Edmond Jaloux (CE, II, p. 1394).

GIORGIO AGAMBEN A POTÊNCIA DO PENSAMENTO - ENSAIOS E CONFERÊNCIAS 95

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