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Agamben, Giorgio
A potência do pensamento : ensaios e conferências / Giorgio Agamben ;
tradução de António Guerreiro -- Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015.
-- (Filô Agamben)
14-08917 CDD-128
( ^ ) G R U P O A U T Ê N T IC A
I. Linguagem
9. A coisa mesma
23. A ideia da linguagem
33. Língua e história
51. Filosofia e linguística
71. Vocação e voz
83. 0 Eu, o olho, a voz
97. Sobre a impossibilidade de dizer Eu
II. História
III. Potência
■ í-
Vocação e voz
71
de uma paisagem”, quer da “minha Stim m ungAlém disso, a
palavra alemã faz constantemente apelo a gestimmtsein, “estar de
acordo”, o que, implicando certa solidariedade e certo consenso
com algo mais vasto, distingue-a do simples “estado de espírito”.1
1 SPITZER, Leo. Classical and Christian Ideas of World Harmony. Baltimore: The Johns
Hopkins University Press, 1963. (Tradução italiana: L’armonia dei mondo. Storia se-
mantica di un’idea. Bologna: II Mulino, 1967. p. 9-10).
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isso, o provençal amor - e também o amor dos stilnovistas que se
encontra na linha de divisão entre teologia e psicologia, dá lugar a
tão frequentes equívocos: não é claro, de fato, se aquilo que temos
diante de nós é um cerimonial religioso-soteriológico ou uma aven
tura amorosa em sentido moderno.
Compreenderão, assim, quão importante é determinar o lugar
em que devemos situar em nosso caso a Stimmung. No parágrafo 29
de Sein und Zeit, Heidegger apresenta a Stimmung - que o tradutor
italiano verte em “tonalità emotiva” —como o “modo existencial fun
damental”, através do qual o Dasein se abre a si mesmo. Na medida
em que traz originariamente o Dasein em seu Da, o ser-aí em seu
aí, a Stimmung realiza, de fato, a “revelação primária do mundo [die
primäre Entdeckung der Welt]”. O que nela está em questão diz assim
respeito, em primeiro lugar, não ao plano ôntico - o que podemos
conhecer e sentir no interior do mundo, os entes intramundanos -,
mas ao plano ontológico - a própria abertura do mundo. (Nos termos
de Wittgenstein, podemos dizer: não como o mundo é, mas que o
mundo é; ou ainda: não o que se diz em proposições no interior da
linguagem, mas que a linguagem seja.) Portanto, escreve Heidegger,
“ela não vem de fora nem de dentro”, mas “surge no próprio ser-
no-mundo”. “Estar em uma Stimmung”, acrescenta Heidegger, “não
comporta nenhuma referência primária à psique: não se trata de um
estado interior que se exteriorizaria misteriosamente para colorir as
coisas e as pessoas”. O lugar da Stimmung —poderíamos dizer —não
está na interioridade nem no mundo, mas no limite entre ambos.
Por isso, o ser-aí, na medida em que é essencialmente sua própria
abertura, está desde sempre em uma Stimmung, é sempre emotiva
mente orientado; e essa orientação é anterior a todo conhecimento
consciente, tal como a toda percepção sensível, a todo Wissen [saber],
tal como a todo Wahrnehmen [perceber]. Antes de se abrir em todo
saber e em toda percepção sensível, o mundo se abre ao homem em
uma Stimmung. “E só porque ontologicamente próprios de um ente
que tem o modo de ser do ser-no-mundo em uma situação emotiva,
os “sentidos” podem ser “afetos” e “ter sensibilidade” para aquilo que
se manifesta na afecção”, escreve Heidegger. Mais do que estar em
um lugar, poderemos então dizer que a Stimmung é o próprio lugar
da abertura do mundo, o próprio lugar do ser.
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de Rilke. Já nos primeiros versos da primeira elegia, depois da terrível
aparição do anjo, Rilke escreve que os animais sabem bem que
nós não estamos em casa
no mundo interpretado
[wir nicht sehr verlässlich zu Haus sind
in dergedeuteten Welt],
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estoicos que foram conservados, não encontramos em nenhum lugar
uma afirmação tão explícita, mas ela é a única que não contradiz a
premissa da teoria estoica das paixões, do “animal racional” como
único “animal apaixonado”. Em todo caso, tal como a Stimmung, no
próprio momento em que conduz o Dasein em sua abertura, revela-
lhe que ele se encontra nela na situação de estranho, também a teoria
estoica das paixões aponta para uma desconexão, um excesso que se
produz na relação entre o homem e o que lhe é mais próprio, isto é,
o logos, a linguagem.2
Podemos, neste ponto, formular a seguinte hipótese: a teoria das
paixões, das Stimmungen, é desde sempre o lugar em que o homem
ocidental pensa sua relação fundamental com a linguagem. Através
dela, o homem ocidental —que se define a si mesmo como animal
rationale, o ser vivo que é dotado de linguagem —procura captar o
arthros, a articulação entre o ser vivo e a linguagem, entre zoon e logos,
entre natureza e cultura. Mas essa conexão é, ao mesmo tempo, uma
desconexão, essa articulação é, na mesma medida, uma desarticulação:
e as paixões, as Stimmungen, são o que se produz nessa desconexão, o
que revela esse desvio.
E se a voz é —segundo uma antiga tradição que define a lin
guagem humana como phone enarthros, voz articulada - o lugar em
que se dá essa articulação entre o ser vivo e a linguagem, então o que
está em questão na Stimmung, o que se encena nas paixões, podemos
dizer que é a in-vocação da linguagem, no duplo sentido de se situar em
uma voz e de chamada, de vocação histórica que a linguagem confia
ao homem. O homem tem Stimmung, é apaixonado e angustiado
porque se mantém, sem ter uma voz, no lugar da linguagem. Ele está
na abertura do ser e da linguagem sem nenhuma voz, sem nenhuma
natureza: ele é lançado e abandonado nessa abertura e deve fazer desse
abandono seu mundo, e da linguagem, sua voz.
Se voltarmos agora ao texto de Heidegger de onde partimos,
então tanto o tema da Stimmung como o aparecimento, nos parágrafos
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vocabulário poético provençal (recordemos que a língua alemã é
aquela que mais fielmente conservou o vocabulário poético medieval
nos próprios termos com que designa a atividade poética: dichten e
Gedicht derivam do latim medieval dictare, dictamen, que indicam o
próprio centro da composição poética). Hölderlin diz dessa dimensão
que ela deve constituir a passagem (Übergang) entre a matéria sensível,
o que é expresso e representado, e o espírito (Geist) e a elaboração
ideal. E só esse elemento intermediário que, escreve Hölderlin, “dá à
composição poética seu rigor, sua solidez e sua verdade, e o preserva
do perigo de a livre elaboração ideal se tornar uma maneira vazia e a
exposição expressiva, uma coisa vã”. Para definir essa dimensão que
não pertence propriamente ao vivido nem é simplesmente linguagem,
mas constitui o único centro a partir do qual se poderá produzir a obra
poética, Hölderlin faz intervir o conceito de Stimmung. O homem - diz
ele —deve sair da simples vida, da “infância originária [ursprüngliche
Kindheit]”, e se elevar ao puro eco (reine Widerklang) dessa vida e dessa
infância, que ele define precisamente como uma Stimmung pura e
sem matéria (stofflose reine Stimmung), ou ainda como um sentimento
transcendental (transzendental Empfindung). E nesse momento central
que se abre o espaço em que se situa o acontecer próprio da palavra
poética. Escreve Hölderlin: “Precisamente nesse instante em que o
vivo sentimento originário, purificado até se tornar pura Stimmung
aberta a um infinito, encontra-se como infinito no infinito, como um
todo espiritual em um todo vital, é nesse instante que a linguagem
é pressentida”. E tal como a vida tinha se espiritualizado em pura
Stimmung e em puro sentimento, também agora a Stimmung se torna
palavra viva e real, “onde espírito e vida são iguais dos dois lados”, diz
Hölderlin, e como “obra conseguida e criação” ela “encontra a vida
originária na forma mais alta e conhece o que encontrou”.
A prova de que é essencial para Hölderlin a determinação dessa
dimensão, apenas na qual pode acontecer a pura palavra poética, está
no fato de ele, para defini-la, ter necessidade de opô-la às catego
rias próprias de seus amigos de Tübingen: Hegel e Schelling. Com
efeito, ele escreve que ela, não podendo ser mera tensão vital, não
pode tampouco ser consciência e reflexão (porque assim se perderia a
vida —e aqui Hölderlin visa a Hegel), nem uma “intuição intelectual
com seu mítico e plástico sujeito-objeto” (porque então se perderia
80 FILÕAGAMBEN
r escapa, não existiria liberdade para o homem. A liberdade só seria
possível para o homem falante se ele pudesse pôr a claro a lingua
gem e, apreendendo-lhe a origem, encontrar uma palavra que fosse
verdadeira e inteiramente sua, isto é, humana. Ou seja, uma palavra
que fosse a sua voz, tal como o canto é a voz dos pássaros, o fretenir
é a voz da cigarra e o zurro é a voz do burro.
Mas pode a Stimmung, tornando-se Stimme, dar à linguagem
um lugar e, desse modo, torná-la própria ao homem, ao animal sem
voz? Pode a apaixonada vocação histórica que o homem recebe da
linguagem se transformar em voz? Pode a história se tornar natureza
do homem? Ou não se limita ela antes a pôr o homem perante sua
ausência de voz, sua afonia, colocando-o assim puramente e de ime
diato perante a linguagem?
O Eu e o olho, 1
A figura reproduzida na página anterior se encontra no Capítulo V
da Dióptrica, que tem como título “Das imagens que se formam sobre o
fundo do olho”. Descartes se serve dela para ilustrar a seguinte experiência:
Tomando o olho de um homem que acabou de morrer ou, na
falta dele, o de um boi ou algum outro animal de grande porte,
cortai com destreza até o fundo as três peles que o envolvem, de
modo que uma grande parte do humor M, que aí se encontra,
fique descoberto, evitando, porém, que alguma parte se derrame;
depois, tendo-o coberto com um corpo branco, tão transparente
que a luz o atravesse, como, por exemplo, um pedaço de papel
ou uma casca de ovo, RST, colocai esse olho no buraco de uma
janela, feito de propósito, como em Z, de modo que ele tenha a
parte da frente, BCD, voltada para qualquer lugar onde existam
diversos objetos, como VXY, iluminados pelo sol, e a parte de trás,
onde está o corpo branco RST, virada para o interior do quarto,
P, onde vos encontrais e no qual não deve entrar nenhuma luz a
não ser a que puder penetrar através do olho, cujas partes, desde
C até S, são transparentes, como sabeis. Feito isso, se olhardes
para o corpo branco RST, vereis, não certamente sem admiração
e prazer, uma pintura, que representará muito ingenuamente em
perspectiva todos os objetos que estão no exterior.11
83
O que Descartes quer provar com essa experiência é uma teoria
da visão segundo a qual todo ato de visão é, na realidade, um juízo
intelectual do sujeito pensante; não visão concreta, portanto, mas um
ego cogito me videre, um “eu penso ver”, uma reflexão do Eu a partir dos
signos sensíveis pintados sobre o fundo do olho. O verdadeiro sujeito
da visão, o eu pensante, encontra-se assim, em relação ao olho, em
uma posição análoga à do homem barbudo da ilustração - esse homem
que, surgindo não se sabe de onde na obscuridade de seu observatório,
observa através de uma casca de ovo as imagens que se formam sobre
o fundo de um olho arrancado de uma órbita cadavérica.
Quem é esse homem barbudo? Evidentemente, tal personagem
não tem realmente lugar em nosso cérebro. O ego cogito é desprovido
de extensão e imaterial, e em nenhum caso sua união com o corpo
pode ser configurada desse modo. Descartes o sabe bem, já que es
creverá no capítulo seguinte:
Não nos devemos convencer [...] de que é através da semelhan
ça que a pintura faz com que percebamos os objetos, como se
existissem em nosso cérebro outros olhos, com os quais não
pudéssemos percebê-los.2
O homem barbudo não é o Eu; ele não existe, é uma ficção; mas
é graças a essa ficção que é possível abrir um espaço ao Eu pensante
e conceber sua relação com a sensação.
Através do desdobramento irônico que a imagem opera, o olho
que olha se torna o olho olhado, e a visão se transforma em um ver
se a ver, em uma representação no sentido filosófico, mas também no
sentido teatral do termo.
Esse homem barbudo da ilustração da Dióptrica, que, fechado
em seu teatro de sombras, observa as imagens no fundo do olho, é
um estafeta que anuncia o aparecimento do Monsieur Teste, como se,
recortando-se na chapa, a água-forte tivesse fixado com três séculos
de antecedência o perfil incerto dessa “personagem perfeitamente
impossível” (Œuvres, II, 138)3 da qual sabemos que “não pode existir
nenhuma imagem certa” (Œuvres, II, 63).
84 FILÕAGAMBEN
O E u e o o lh o , 2
Nas Observaçõesfilosóficas, Wittgenstein propõe uma experiência
que faz lembrar, talvez não por acaso, a da Dióptrica de Descartes:
Suponhamos que meu globo ocular esteja fixado por trás de uma
janela de modo que me permita ver a maior parte das coisas através
dela. Assim, a janela poderia assumir o papel de uma parte do
meu corpo. O que está próximo da janela está próximo de mim.
(Assumo que tenho, ainda que com um só olho, uma visão tridi
mensional.) Assumo, além disso, que estou em condições de ver
meu globo ocular em um espelho e de distinguir - eventualmente
pendurados nas árvores - globos oculares semelhantes. Como pos
so então reconhecer ou chegar à hipótese de ver o mundo através
da pupila do meu globo ocular? De maneira que é essencialmente
assim: vejo o mundo através da janela ou então por uma fresta
aberta em uma tábua, atrás da qual está o meu olho [...].
Mas se meu olho estivesse isolado, na ponta de um ramo, poderia
tornar-se bem clara para mim sua condição, aproximando pro
gressivamente dele um anel, até o momento em que visse tudo
através dele. Poder-se-ia até aproximar o que antes estava à volta
dele —os arcos das sobrancelhas, o nariz, etc. —e eu saberia onde
cada coisa deveria ser colocada.
Ora, tudo isso quer dizer que o quadro visual contém em suma
ou pressupõe essencialmente um sujeito? Ou não é antes verdade
que dessas tentativas obtenho só esclarecimentos de ordem pu
ramente geométrica? Ou seja, esclarecimentos que continuam a
dizer respeito apenas ao objeto.4
86 FILÕAGAMBEN
operacional de seu “ego” contra todo risco de substancialização. O
que ele procura - lemos em uma passagem que documenta o próprio
nascimento do sistema de Valéry —é “levar ao extremo a função do
Eu, e não a sua personalização” (C, 847); e, ainda em 1941, regres
sando, quatro anos antes de morrer, a Teste, identifica seu sentido,
puramente funcional, na pergunta: “Que peut un homme?” [“O que
pode um homem?”] (C, 196).
E então evidente que seu “ego” - diferentemente do de Des
cartes, que se “deixou encantar pelo olhar de Medusa do verbo Ser”
(C, 619) - não pode abrir nenhuma passagem para o ser. Ao “penso,
logo existo” cartesiano, a cabeça oracular que Valéry situa na ilha
imaginária de Xiphos (que bem poderia ser a pátria de Teste) con
trapõe seu “Eu não existo; eu penso” (Œuvres, II, 439).
Nessa perspectiva, a operação de Descartes se parece mais com
um romance (“Reli o Discurso do método há pouco, é verdadeiramente
o romance moderno, como poderia ter sido feito...” - Œuvres, II,
1381) ou com um efeito teatral e mímico (“O cogito cartesiano não
deve ser analisado em si mesmo [...] considerado em si não significa
nada. E um magnífico grito, um dito teatral, um movimento literá
rio” - C, 518; “Ele significa como mímica” - C, 609) e não como
uma realidade em si.
Por isso, Teste está muito mais próximo da “ficção” que é o
homem barbudo da Dióptrica do que do ego cogito do Discurso do método
e das Meditações. O que, em Descartes, era de fato íntima revelação
de uma presença originária e imediata, torna-se aqui um teatro que
não funda senão seu “puro espaço de ficção”, como o mimo de que
fala Mallarmé:
Ici devançant, là remémorant, au futur, au passé, sous une apparence
fausse de présent. Tel opère le Mime, dont lejeu se borne à une allusion
perpétuelle sans briser laglace: il installe, ainsi, un milieu, pur, defiction.5
6 VALÉRY, Paul. Lettre à Pierre Louÿs. In: Morceaux choisis. Paris: Gallimard, 1930. p. 298.
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consistência, e a consciência se torna o lugar não de uma presença,
mas de um atraso, de uma ausência, de uma lacuna. Ao mesmo
tempo, porém, nesse vertiginoso retroceder mímico do Eu para
além do Eu, outro olho se abre, outro olhar, impessoal, imaterial,
angelical, que sobrepõe ao pequeno teatro de sombras da Dióptrica
a cena sem sujeito de Wittgenstein. Teste é esse outro olhar; ele é
verdadeiramente, segundo a etimologia sugerida por Valéry, Testís,
a testemunha, um “observador ‘eterno’ cuja função se limita a re
petir e a mostrar reiteradamente o sistema do qual o Eu é a parte
instantânea que se julga o Todo” (Œuvres, II, 64); ou, prosseguindo
na etimologia, o “terceiro” (o termo latino testis deriva, segundo
os etimologistas, de um arcaico *tristis, que significa “aquele que
se mantém como terceiro”) entre o olho e o mundo e entre o Eu
e si mesmo, uma espécie de “Eu do Eu” (C, 121) ou de “Antego”
(C, 847). Como tal, Teste é algo que não pode ser, por sua vez,
apreendido nem visto: como o Eu de que fala Wittgenstein, ele “se
contrai em um ponto não extenso e passa a ser a realidade que se
coordena com ele”. Ele “não pertence ao mundo, mas é um limite
do mundo”.
O Eu e a voz, 1
Uma vez teatralmente dissolvida a implicação imediata entre
o eu e o olho e a fundação do sujeito como unidade daquele que
vê e daquele que é visto na experiência do espelho, restava todavia
o outro princípio em que a metafísica ocidental tinha procurado
a consistência do sujeito: sua presença imediata na experiência do
discurso através dos indicadores da enunciação e, em primeiro lugar,
o pronome eu.
Valéry ficou tão fascinado pelo pronome eu que se pode dizer que
toda a sua obra (em primeiro lugar, Monsieur Teste) não é senão uma
reflexão sobre o eu e uma luta com eu. Com surpreendente lucidez,
ele antecipa as descobertas da linguística moderna sobre a natureza
particular da enunciação:
Antes de significar qualquer coisa, toda emissão de linguagem
assinala alguém que fala. Isso é capital e não foi notado pelos
linguistas (C, 473).
90 FILOAGAMBEN
lhe é conferida, a cada vez, pela instância de discurso em que aparece,
o sujeito da linguagem é “um duplo peão, ao mesmo tempo dentro
e fora do jogo”, necessariamente preso em um processo de clivagem
e de deslize.
Meu chapéu é o chapéu da minha cabeça. Minha cabeça é a
cabeça do meu corpo. Meu corpo é o corpo do... meu espírito.
Mas meu espírito é o meu espírito?9
O Eu e a voz, 2
Essas perguntas nos conduzem ao coração do problema poé
tico de Valéry. E sabido como ele sempre tendeu a minimizar sua
obra poética, chegando a manifestar uma verdadeira desconfiança
pela poesia. E, no entanto, até poucas semanas antes de sua mor
te, não deixou de se confrontar com ela. Na verdade, é na poesia
que se situa o experimentum crucis de Valéry, porque é na poesia que
deve necessariamente se lançar toda tentativa de abolir e transpor o
Eu. Segundo uma tradição que é consubstanciai à poesia ocidental,
aquele que fala na poesia não é, de fato, o sujeito da linguagem, mas
um outro, chame-se ele Musa, Deus, Amor, Beatriz. Isto é, a poesia
tem desde sempre feito da alienação a condição normal do ato de
fala: ela é um discurso em que o Eu não fala, mas recebe de algum
lugar sua palavra (palavra “inspirada”, em que o espírito, o “sopro”,
chega diretamente à linguagem). Mallarmé, cuja poesia foi sempre
para Valéry a experiência decisiva, tinha procurado levar ao extremo
92 FILOAGAMBEN
Mas quando - depois de ter procurado em sua carne e em seu
sangue —ela finalmente fala, não é fácil dizer em que a “voz de nin
guém” que ouvimos se distingue da voz da linguagem:
Honneur des Hommes, Saint LANGAGE,
discours prophétique et paré,
belles chaines en qui s’engage
le dieu dans la chair égaré, illumination, largesse!
Voici parler une Sagesse
et sonner cette auguste Voix
qui se connaît quand elle sonne
n’être plus la voix de personne
tant que des ondes et des bois!
(Œuvres, I, 136)13
94 FILOAGAMBEN
também o sujeito da linguagem não pode - remontando ao longo
da “corda” da voz - chegar às fontes do pranto. Só morrendo o Eu
poderia abrir uma passagem para além de si; mas isso é precisamente
o que o Eu não pode fazer, porque a consciência —essa puríssima
ficção teatral - não pode morrer, mas apenas se repetir ao infinito.17
Torna-se assim compreensível por que Valéry, evitando as exi
gências dos críticos, preferiu deixar na incerteza a morte de Teste.18
Sendo, como alegoria da consciência, um puro limite, um “muro” e,
ao mesmo tempo, um “espelho”, Teste é também, além de um eterno
observador, um eterno “agonizante” (Œuvres, II, 74), a quem está
vedada, porém, a experiência da morte. Até o final, a morte é para
ele apenas uma “tentação”, “uma coisa inimaginável que se introduz
no espírito de tempos em tempos, sob a forma do desejo e do horror”
(Œuvres, II, 75). Mas o que está para além desse desejo e desse horror
nenhuma voz pode dizê-lo. A aposta de Valéry fica sem resposta.
17 “É-nos impossível conceber uma supressão da consciência que não seja acidental e
que seja definitiva. Ela só pode conceber o que pode fazer, e não pode fazer outra
coisa que não seja voltar a vir” (CE, I, p. 1218).
18 Cf. a carta a Edmond Jaloux (CE, II, p. 1394).