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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, v. 27, n. 2, p.

263 - 269, (2005)


www.sbfisica.org.br

História da Fı́sica

Einstein e a teoria do movimento browniano


(Einstein and the theory of the Brownian movement)

Silvio R.A. Salinas1


Intituto de Fı́sica, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Recebido em 23/5/2005; Aceito em 31/5/2005

Apresentamos os principais ingredientes da teoria de Einstein para o movimento browniano, procurando


manter fidelidade às idéias dos trabalhos de 1905. Através do balanço entre o atrito viscoso e a pressão osmótica,
obtemos o coeficiente de difusão das partı́culas brownianas no meio fluido. Apresentamos em seguida a dedução
estatı́stica de Einstein da equação da difusão, que conduz à famosa expressão para o desvio quadrático médio das
posições das partı́culas em suspensão, cabalmente verificada pelas experiências de Perrin. Seguindo os passos
do trabalho original de 1908, apresentamos também a teoria muito mais simples de Langevin, que é usualmente
discutida nos textos modernos de fı́sica estatı́stica.
Palavras-chave: movimento browniano, difusão, equação de Langevin.

We try to follow the ideas of the original works of 1905 in order to present the main ingredients of Einstein´s
theory of the Brownian movement. Using the competition between viscous friction and osmotic pressure, we
obtain the diffusion coefficient of the Brownian particles in a fluid. We then present Einstein´s statistical deduc-
tion of the diffusion equation, leading to the well-known expression of the mean-square deviation of the positions
of the Brownian particles, which was duly confirmed by Perrin´s experiments. According to the original work
of 1908, we also present the much simpler theory of Langevin, which is usually discussed in modern textbooks
of statistical physics.
Keywords: Brownian movement, diffusion, Langevin equation.

1. Introdução As grandes vertentes da fı́sica no final do século XIX


eram a mecânica newtoniana, aplicada a pontos materi-
ais e meios contı́nuos, o eletromagnetismo maxwelliano,
O ano miraculoso de Einstein é principalmente lem-
que havia englobado a óptica, e a termodinâmica, que
brado pelas rupturas da teoria da relatividade e do
se referia ao calor e a variáveis macroscópicas, como
“quantum de luz”. No entanto, a tese de doutora-
a temperatura ou a pressão de um gás. As leis da
mento [1][2], terminada em abril de 1905 e aceita pela
termodinâmica, que impressionavam Einstein pela sua
Universidade de Zurique em julho, e o primeiro ar-
generalidade, foram resumidas por Clausius: “a ener-
tigo sobre o movimento browniano, recebido para pu-
gia do universo é constante; a entropia do universo
blicação nos Annalen der Physik em maio, são tra-
tende a um valor máximo”. Lavoisier, que foi con-
balhos de alta qualidade, que já teriam sido sufi-
temporâneo da Revolução Francesa, ainda relacionava
cientes para estabelecer a reputação do jovem Eins-
o calórico, fluido imponderável que transita de corpos
tein [3]. O tema desses trabalhos é o relacionamento
mais quentes para corpos mais frios, entre os seus “ele-
entre o mundo microscópico das partı́culas (átomos,
mentos”. No século XIX foi aos poucos sendo aban-
moléculas) em perene movimento e as leis visı́veis do
donada a idéia do calórico, percebendo-se que o calor é
universo macroscópico da termodinâmica. Tanto na
apenas uma forma de energia, que temperatura e calor
tese quanto no artigo sobre o movimento browniano há
são grandezas distintas, que a energia total (incluindo
propostas para a estimativa do número de Avogadro,
a energia mecânica) é conservada em processos e sis-
grandeza paradigmática do novo atomismo, eqüivalente
temas fechados. A nova função entropia, caracterı́stica
ao número de moléculas num mol de uma substância.
singular da termodinâmica, foi introduzida por Clau-
Todos os trabalhos de 1905 compartilham a engenhosi-
sius a fim de compatibilizar a idéia de conservação da
dade caracterı́stica de Einstein, que é sempre ancorada
energia com a teoria de Carnot sobre o rendimento das
na realidade profunda dos sistemas fı́sicos.
1 Salinas. E-mail: ssalinas@if.usp.br.

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264 Salinas

máquinas térmicas [4]. soluto, comporta-se de acordo com a lei dos gases per-
Uma das expressões tı́picas da termodinâmica, de feitos). Na parte inicial da tese, Einstein faz um cálculo
caráter experimental, fenomenológico, é a “lei dos gases hidrodinâmico, com base nas equações de Navier-Stokes
perfeitos”, estabelecendo que o produto da pressão para o escoamento de um fluido incompressı́vel, a fim
pelo volume de um gás (suficientemente diluı́do) é de obter a viscosidade efetiva do fluido na presença do
função apenas da temperatura (na linguagem moderna, soluto. No modelo adotado, as moléculas do soluto são
pV = nRT , onde n é o número de moles, R é a esferas rı́gidas, não interagentes, e bem maiores do que
constante universal dos gases, e T a temperatura abso- as moléculas do solvente. O resultado final, que mais
luta). Na segunda metade do século XIX, já era bem tarde precisou ser ligeiramente corrigido, é dado por
conhecido que essa expressão fenomenológica, indepen-
η ∗ = η (1 + φ) , (1)
dente de qualquer hipótese sobre a constituição da
matéria, pode igualmente ser deduzida a partir do mo- onde η ∗ é a viscosidade efetiva, η é a viscosidade do
delo de um gás formado por partı́culas microscópicas, solvente puro, e φ é a fração do volume total ocupado
em perene movimento, obedecendo as leis da mecânica. pelas partı́culas do soluto [6]. Utilizando a densidade
A pressão do gás é causada pelo impacto das partı́culas de massa, ρ, e a massa molar do soluto, m, que são
nas paredes do recipiente. Maxwell foi mais adiante, grandezas experimentalmente acessı́veis, temos
propondo que as velocidades das moléculas do gás se
4 3 ρNA η∗
distribuem ao acaso, de acordo com a “lei dos erros” φ= πa = − 1, (2)
de Gauss e Laplace; nessa teoria cinético-molecular dos 3 m η
gases, o calor seria a energia mecânica contida no movi- onde a é o raio das partı́culas (esféricas) do soluto. Já
mento desordenado das partı́culas microscópicas. Nas que as viscosidades podem ser medidas, aparecem como
décadas finais do século XIX, o programa de pesquisa incógnitas o raio a das partı́culas do soluto e o número
de Boltzmann em Viena [5], que Einstein estudou du- de Avogadro NA . Na segunda parte da tese, Einstein
rante o seu perı́odo de formação, consistia na tentativa recorre a um argumento engenhoso, deduzido de forma
de obter a forma e o comportamento da função entropia alternativa no artigo sobre o movimento browniano, a
no contexto desse modelo de um gás de partı́culas, que fim de obter uma segunda relação entre a e NA . Na
obedecia as leis da mecânica clássica, e que deveria ser seção 2, discutimos esse problema. O resultado final é
analisado com métodos da teoria das probabilidades. uma das expressões conhecidas de Einstein, precursora
No inı́cio do século XX, tanto o programa de Boltz- dos teoremas de flutuação-dissipação, relacionando o
mann quanto os resultados da teoria cinética dos gases coeficiente de difusão D com a temperatura e a viscosi-
eram vistos com suspeita, talvez como simples ar- dade do fluido,
tifı́cios matemáticos, distantes da realidade dos sis- RT
D= . (3)
temas fı́sicos. Apesar das propostas sobre a existência 6πaηNA
do átomo quı́mico, apesar das primeiras estimativas do A partir das expressões (2) e (3), com os dados
número de Avogadro e de dimensões moleculares, as disponı́veis na época para soluções de açúcar em água,
suspeitas persistiam. Com os recursos da época, mesmo Einstein obteve NA = 2, 1 × 1023 (partı́culas por mol)
se existissem, os átomos certamente não poderiam ser e a = 9, 9 × 10−8 cm, concluindo que “o valor en-
observados! De acordo com os energeticistas, oposi- contrado para NA apresenta uma concordância satis-
tores da teoria atômica, a termodinâmica macroscópica fatória, em ordem de magnitude, com os valores encon-
e fenomenológica, que prescindia de qualquer modelo trados para essa grandeza por outros métodos”. Mais
microscópico de constituição da matéria, seria o modelo tarde, com dados experimentais um pouco melhores,
correto de ciência. Para esses energeticistas (Ostwald o valor do número de Avogadro foi modificado para
e Mach, por exemplo, com enorme influência na fı́sica NA = 3, 3 × 1023 . A realidade de átomos e moléculas
alemã), a teoria cinético-molecular do calor, baseada em foi sendo imposta por resultados desse tipo. Graças
entidades invisı́veis, metafı́sicas, não deveria ter espaço à concordância de valores obtidos por pesquisadores
na ciência. diferentes, com estimativas independentes, baseadas em
Einstein adotou desde cedo uma visão realista, obje- técnicas e idéias distintas, as resistências ao atomismo
tiva, sobre a existência de átomos e moléculas. Na sua foram aos poucos sendo vencidas [3].
tese de doutoramento Einstein analisa o fenômeno de O trabalho sobre as leis que governam o movimento
difusão das partı́culas do soluto numa solução diluı́da browniano e a sua brilhante confirmação experimental
(partı́culas de açúcar em água) com o objetivo de por Perrin e colaboradores alguns anos depois foram
obter estimativas para o número de Avogadro e o decisivos para a aceitação da realidade de átomos e
diâmetro das partı́culas do soluto. As propriedades ter- moléculas [7]. Em trabalhos anteriores a 1905 [8],[9],
modinâmicas das soluções diluı́das já tinham sido su- Einstein já tinha utilizado a definição estatı́stica de en-
ficientemente estabelecidas (sabia-se, por exemplo, que tropia, que ele chamava “princı́po de Boltzmann”, para
a pressão osmótica, exercida pela solução sobre uma estudar as flutuações de energia de um sistema em con-
membrana semi-permeável, impedindo a passagem do tato térmico com outro sistema muito maior (com um
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reservatório térmico, na linguagem moderna). A ener- tribuição significativa para a aceitação geral do ato-
gia do sistema de interesse flutua em torno de um valor mismo.
médio, que pode ser identificado com a energia interna Uma equação diferencial para o movimento brow-
termodinâmica. Sem conhecimento dos trabalhos ante- niano foi escrita por Langevin [11] em 1908, recu-
riores de Gibbs [10], Einstein mostrou que o valor médio perando a relação de Einstein e fazendo contacto com
do desvio quadrático da energia depende do número de trabalhos paralelos de Smoluchowski. A moderna
partı́culas microscópicas; no caso de um fluido, o desvio equação diferencial estocástica associada à “dinâmica
relativo torna-se absurdamente pequeno, sem nenhuma de Langevin” tem sido fartamente utilizada a fim de
chance de ser observado. No movimento browniano, introduzir um comportamento dinâmico no contexto
no entanto, Einstein vislumbrava uma oportunidade de sistemas estatı́sticos clássicos, como o modelo de
de observar flutuações dessa mesma natureza. Nesse Ising, que não possuem nenhuma dinâmica intrı́nseca
fenômeno, partı́culas macroscopicamente pequenas em [12][13]. A dinâmica de Langevin é a possibilidade
suspensão, mas muito maiores que as moléculas do flu- mais simples na presença de flutuações estocásticas. Há
ido puro, estão descrevendo um movimento incessante, um número crescente de aplicações contemporâneas,
errático, de vai-e-vem, que podia ser observado (e pode- em vários problemas de fı́sica, quı́mica ou biologia,
ria ser medido) nos ultramicroscópios da época. Esse em que as flutuações desempenham papel relevante.
comportamento foi caracterizado pelo botânico Robert Um mecanismo de Langevin, na presença de potencial
Brown, na primeira metade do século XIX, que obser- adequado, foi proposto para explicar o funcionamento
vou o movimento incessante de partı́culas de pólen dis- dos motores moleculares, reponsáveis pelo metabolismo
solvidas em água. O mesmo tipo de movimento também biológico [14].
foi observado em partı́culas inorgânicas de cinza, con- Na seção 2 nós apresentamos os principais ingredi-
vencendo Brown sobre a natureza fı́sica do fenômeno. entes da teoria de Einstein sobre o movimento brow-
Ao contrário das flutuações invisı́veis das moléculas de niano. Procuramos manter fidelidade às idéias enge-
um gás, no movimento browniano tornam-se visı́veis no nhosas dos trabalhos originais. Na seção 3 apresen-
microscópio as flutuações das partı́culas bem maiores tamos a teoria de Langevin, “infiniment plus simple”,
em suspensão, incessantemente bombardeadas pelas de fato muito mais simples e direta, e que por isso
partı́culas microscopicamente menores do solvente flu- mesmo acabou sendo preferida pelos textos de fı́sica
ido. estatı́stica. As conclusões são registradas na seção 4.
A teoria de Einstein do movimento browniano é Torna-se irônico que durante boa parte do século XX a
baseada na semelhança entre o comportamento de interpretação estatı́stica da fı́sica clássica, cabalmente
soluções e suspensões diluı́das, na relação entre o co- confirmada pela teoria do movimento browniano, tenha
eficiente de difusão e a viscosidade, que já havia sido ficado em segundo plano frente ao sucesso da fı́sica es-
obtida na tese de doutoramento, e numa dedução tatı́stica quântica. Nesse inı́cio de século, no entanto, as
probabilı́stica da equação da difusão, antecipando-se aplicações (por exemplo, na fı́sica da “matéria mole” ou
às teorias modernas de cadeias markovianas. Através no domı́nio das nanotecnologias) devem dar vida nova
desse raciocı́nio probabilı́stico, que vamos discutir na à teoria do movimento browniano.
seção 2, Einstein obtém a celebrada expressão do per-
curso quadrático médio no movimento browniano,
 2 RT 2. A teoria do movimento browniano
x = 2Dt = t, (4)
3πNA aη
  Na introdução do artigo de 1905, Einstein escreve que
em que x2 e o tempo t podem ser medidos “corpos de tamanho visı́vel ao microscópio, e que estão
(conhecendo-se T , η e a, é possı́vel determinar o número em suspensão em um lı́quido, devem executar, como
de Avogadro NA ). Foi importante que Einstein indi- consequência dos movimentos térmicos moleculares,
casse claramente a grandeza que deveria ser medida movimentos de tal magnitude que podem ser facilmente
(isto é, distâncias ao invés de velocidades). As ex- observáveis com a utilização de um microscópio. É
periências de Perrin e colaboradores consistiram em possı́vel que os movimentos a serem aqui discutidos se-
registrar a observação, no microscópio, do movimento jam idênticos ao assim chamado “movimento molecular
de um conjunto grande de partı́culas em suspensão, cuja browniano”; entretanto, os dados que tenho disponı́veis
forma esférica podia ser muito bem controlada. Nas sobre este último são tão imprecisos que eu não poderia
suspensões utilizadas, essas experiências verificaram o formar uma opinião a respeito.” [1] Nas seções iniciais
comportamento ideal da pressão osmótica e a lei de desse artigo, Einstein utiliza argumentos de fı́sica es-
força de Stokes, ingredientes importantes da teoria de tatı́stica (isto é, da teoria cinético-molecular do calor)
Einstein. Além disso, produziram nova estimativa para para mostrar que, em situações de grande diluição, a
o número de Avogadro. O sucesso dos trabalhos de pressão osmótica das suspensões diluı́das de partı́culas
Perin foi notável [7]. Os valores obtidos e a con- maiores tem o mesmo tipo de comportamento ideal
cordância com a teoria de Einstein representaram con- das moléculas de uma solução diluı́da (como já tinha
266 Salinas

sido bem caracterizado pelos quı́micos). Não há sur- obtida a partir da equação diferencial para a con-
presas nesses cálculos de fı́sica estatı́stica, ainda em- servação da massa,
brionários, para um sistema de partı́culas não inte-
∂ρ − → → −
ragentes. Em seguida, Einstein deduz novamente a − =  · J, (12)
relação entre difusão e viscosidade. Vamos rever esta ∂t
dedução, seguindo os argumentos da tese de doutora- com a suposição adicional de uma dependência linear
mento. −
→ −

do fluxo com o gradiente de concentração, J = −D  ρ,
A idéia engenhosa consiste em considerar uma força onde D é o coeficiente de difusão. Temos assim a
K (na direção do eixo x) atuando sobre as partı́culas equação da difusão,
grandes da solução (ou suspensão), contidas num vo-
lume elementar de comprimento ∆x e seção transversal ∂ρ →

= D  2 ρ, (13)
∆S. Para esferas rı́gidas de raio a e velocidade v, mer- ∂t
gulhadas num fluido com viscosidade η, essa força deve cuja versão unidimensional, ao longo do eixo x, é dada
ser dada pela lei (de atrito viscoso) de Stokes, por
∂ρ (x, t) ∂ 2 ρ (x, t)
K = 6πηav. (5) =D . (14)
∂t ∂x2
Nesse ponto Einstein reporta-se ao texto de mecânica Einstein propõe nova dedução dessa equação,
de Kirchhoff, única referência citada no primeiro tra- de caráter probabilı́stico, antecipando a relação de
balho sobre o movimento browniano, que foi certamente Chapman-Kolmogorov e as teorias modernas de cadeias
estudado durante os seus anos de formação em Zurique. markovianas [3]. A idéia consiste em supor que as
Mas as partı́culas se difundem pelo fluido devido ao partı́culas executem movimentos independentes e que
gradiente de pressão. Então, nesse volume elementar, os movimentos da mesma partı́cula em diferentes in-
estariam sujeitas a uma força por unidade de volume, tervalos de tempo também sejam processos mutu-
ao longo do eixo, dada por amente independentes (em intervalos de tempo pe-
quenos, mas suficientemente grandes para dar margem
∂p p (x + ∆x) − p (x) a observações). Seja p (∆) d∆ a probabilidade de uma
= lim . (6)
∂x ∆x→0 ∆x partı́cula em suspensão sofrer um deslocamento entre
∆ e ∆ + d∆ num intervalo de tempo τ . Essa densidade
Podemos agora escrever uma equação de balanço entre de probabilidade deve ser simétrica,
essas duas forças,
p (∆) = p (−∆) , (15)
m ∂p
K=− = 6πηav, (7)
ρNA ∂x e normalizada,
 +∞
onde ρ é a densidade de massa e m é a massa molar do
p (∆) d∆ = 1. (16)
soluto. Obtemos assim uma expressão para a veloci- −∞
dade v das partı́culas, que nos remete ao fluxo ao longo
do eixo x (quantidade de massa das partı́culas atraves- Então, se n = n (x, t) for o número de partı́culas por
sando a seção de área ∆S durante o intervalo de tempo unidade de volume no instante de tempo t, temos a
∆t), relação probabilı́stica
m ∂p  +∞
J = ρv = − . (8)
6πηaNA ∂x n (x, t + τ ) = n (x + ∆, t) p (∆) d∆. (17)
−∞
Utilizando a forma (ideal) da pressão osmótica,
Como τ e ∆ devem ser macroscopicamente pequenos,
nRT RT ρ podemos escrever as expansões
p= = , (9)
V m
∂n
n (x, t + τ ) = n (x, t) + τ + ... (18)
temos ∂t
RT ∂ρ ∂ρ
J =− = −D , (10) e
6πηaNA ∂x ∂x
∂n 1 ∂2n 2
de onde vem a famosa expressão de Einstein para o n (x + ∆, t) = n (x, t) + ∆+ ∆ + ... (19)
coeficiente de difusão, ∂x 2 ∂x2
Inserindo essas expansões na Eq. (17), levando em
RT
D= . (11) conta as propriedades de p (∆), e retendo apenas termos
6πaηNA de ordem dominante, obtemos a equação da difusão,
Vamos agora lembrar que a equação da difusão, ∂n ∂2n
conhecida desde o inı́cio do século XIX, é usualmente = D 2, (20)
∂t ∂x
Einstein e a teoria do movimento browniano 267

com o coeficiente de difusão dado por 16). No instante de tempo t = N τ (isto é, depois de N
 +∞ passos), o caminhante deve estar na posição
1
D= ∆2 p (∆) d∆. (21) N

2τ −∞
x= ∆j . (26)
Portanto, o desvio quadrático médio dos deslocamen- j=1

tos,  +∞ Como os passos são independentes, é fácil mostrar que


 2
∆ = ∆2 p (∆) d∆ = 2Dτ, (22) N

−∞ x = ∆j  = 0 (27)
é proporcional ao coeficiente de difusão, comportando- j=1
se linearmente com o tempo. Essa equação já repre- e
senta uma primeira forma das conhecidas relações de   N
 2 N
  
flutuação-dissipação [15]. x2 = ∆j + ∆j  ∆k  = N ∆2 =
Nesse ponto Einstein argumenta que os movimentos j=1 j=k=1
das diversas partı́culas são independentes e que, por- 1  2
tanto, a origem das coordenadas não deve ter nenhum t ∆ . (28)
τ
significado. Portanto, a função n (x, t), devidamente  
Utilizando a expressão ∆2 = 2Dτ , dada pela
normalizada,
Eq.
 2 (22), recuperamos o resultado famoso de Einstein,
 +∞ x = 2Dt. Nos textos introdutórios de fı́sica es-
n (x, t) dx = N0 , (23) tatı́stica, também se mostra que no limite de tempos
−∞
grandes (N → ∞), de acordo com o “teorema central
representa a densidade de partı́culas cujas posições do limite”, a distribuição de percursos do caminhante
sofreram um acréscimo x entre o instante inicial e o aleatório tende a uma função gaussiana, como foi en-
tempo t. Einstein também aponta que a solução da contrado por Einstein.
equação de difusão (20), com condições iniciais apro-
priadas, é dada pela forma gaussiana 3. A teoria de Langevin
 
N0 x2
n (x, t) = √ exp − . (24) Em 1908, citando os trabalhos de Einstein e Smolu-
4πDt 4Dt chowski, Langevin publica uma demostração “infine-
Então, com essa interpretação de n (x, t), temos o deslo- ment plus simple” dos resultados obtidos por Eins-
camento quadrático médio, tein [11]. O primeiro passo consiste em escrever uma
equação diferencial para o movimento de uma partı́cula
 2 RT em suspensão, incluindo a força de Stokes, de caráter
x = 2Dt = t, (25)
3πNA aη macroscópico, deduzida no contexto da mecânica dos
fluidos, e uma força complementar Fa , “indiferente-
que é uma das mais celebradas expressões de Eins- mente positiva ou negativa”, destinada a “manter a
tein, fornecendo indicação precisa sobre as grandezas agitação da partı́cula, e em cuja ausência a força de
a serem medidas experimentalmente.
√ O deslocamento atrito viscoso acabaria conduzindo ao repouso”. Essa
caracterı́stico cresce com t, afastando-se das formas força aleatória, de caráter microscópico, é atribuı́da ao
balı́sticas usuais, pois os deslocamentos individuais são bombardeio contı́nuo das partı́culas em suspensão pelas
aleatórios, podendo ocorrer tanto para a direita quanto moléculas do fluido.
para a esquerda. Para partı́culas de um mı́cron de Para uma partı́cula esférica de massa M e raio a
diâmetro, em suspensão na água a temperatura ambi- temos a equação de movimento
ente, Einstein estimou um deslocamento caracterı́stico
da ordem de 6 mı́crons em um minuto (ou seja, valores d2 x dx
M = −6πηa + Fa . (29)
perfeitamente passı́veis
 de
√ observação). A dependência dt2 dt
com o tempo, x2  ∼ t, explica as dificuldades das Multiplicando os dois lados por x e fazendo uma pe-
medidas ingênuas de velocidade. quena manipulação algébrica, temos
Nesse raciocı́nio probabilı́stico de Einstein percebe-
2
se a conexão com o problema do passeio aleatório em M d2  2 dx d  2
2
x −M = −3πηa x + xFa . (30)
uma dimensão, que costuma ser explorado nos textos 2 dt dt dt
modernos de fı́sica estatı́stica [12], [13]. Vamos consi- A média sobre as partı́culas em suspensão deve levar em
derar um caminhante que se desloca ao longo do eixo conta o teorema da equipartição da energia, associado
x, em intervalos de tempo iguais, dando passos de com- ao comportamento de um gás perfeito,
primento aleatório. O j-ésimo passo tem comprimento
2
∆j , ocorrendo com probabilidade p (∆j ) d∆j , com um 1 dx 1 R
M = T. (31)
distribuição p (∆j ) simétrica e normalizada (Eqs. 15 e 2 dt 2 NA
268 Salinas

Além disso, vamos supor que Então, a partir


  do teorema da equipartição,
2
M [v (t)] /2 = kB T /2, onde kB é a constante de
xFa  = 0, (32)
Boltzmann, temos
devido ao caráter da força Fa , “indifentemente positiva
ou negativa”, como dizia Langevin. Então temos A = 2γkB T. (42)

M d2  2  R d  2 Embora não seja difı́cil encontrar a expressão exata


2
x − T = −3πηa x , (33)
2 dt NA dt para x (t), vamos simplificar a equação de Langevin,
descartanto o termo de inércia (pois M é “grande”).
de onde vem que
Assim temos
 
d  2 RT 6πηa dx 1
= Fa (t) , (43)
x = + C exp − t , (34) dt γ
dt 3πηaNA M

onde C é uma constante. que lembra a equação de balanço de Einstein entre as


Para tempos suficientemente longos, o termo expo- forças difusiva e de Stokes. Portanto,
nencial vai a zero,  t
1
d  2 RT x (t) = x0 + Fa (t ) dt , (44)
x → , (35) γ 0
dt 3πηaNA
de onde obtemos x (t) = x0 . Com x0 = 0, temos o
e nós recuperamos o resultado de Einstein, deslocamento quadrático médio,
 2  2 RT  t  t
x − x0 = t. (36)   1
2
3πηaNA [x (t)] = 2 dt1 dt2 Fa (t1 ) Fa (t2 )
γ 0 0
Na versão moderna da teoria de Langevin [12], [13], A
a força Fa é uma variável aleatória, de média nula e = 2 t. (45)
γ
covariância associada a uma função δ de Dirac. Vamos
então escrever a “equação diferencial estocástica”, Portanto,
dv   RT
M = −γv + Fa (t) , (37) 2
[x (t)] = 2Dt = t, (46)
dt 3πηaNA
com γ = 6πηa, Fa (t) = 0, e
recuperando novamente a fórmula famosa de Einstein.
Fa (t) Fa (t ) = Aδ (t − t ) , (38) Em termos mais gerais, é interessante escrever a
equação de Langevin na forma
onde o parâmetro A vai ser determinado através da
aplicação do teorema da equipartição. É fácil verificar dp ∂H
que a solução da Eq. (37) é dada por = −γ + η (t) , (47)
dt ∂p



γt γt
v (t) = v0 exp − + exp − onde p é uma coordenada de momento, H é um hamil-
M M
 t
 toniano de grão grosso conveniente (H = p2 /2M no
γt 1 caso de partı́culas de massa M em suspensão) e η (t) é
exp Fa (t ) dt . (39)
0 M M uma força aleatória com média nula, η (t) = 0, e co-
variância η (t1 ) η (t2 ) = 2γkB T δ (t1 − t2 ). Nessa for-
Portanto, mulação a “partı́cula browniana”, com existência real, é

substituı́da por alguma propriedade coletiva do sistema
γt
v (t) = v0 exp − → 0, (40) de interesse. A dinâmica de Langevin para um sistema
M
associado a um hamiltoniano de grão grosso dependente
para tempos suficientemente longos. Fazendo v0 = 0 de um campo do tipo φ (x, t) é dada pelo conjunto de
para simplificar as equações, temos equações diferenciais estocásticas [16]
    t
exp (−2γt/M ) t ∂φ δH
[v (t)]
2
= dt 1 dt2 = −γ + η (x, t) , (48)
M2 0 0 ∂t δφ
exp [γ (t1 + t2 ) /M ] Aδ (t1 − t2 ) =
onde δH/δφ é a derivada funcional do hamiltoni-


A 2γt A ano em relação ao campo φ, η (x, t) = 0 e
= 1 − exp − → . (41) η (x1 , t1 ) η (x2 , t2 ) = 2γkB T δ (t1 − t2 ) δ (x1 − x2 ).
2M γ M 2M γ
Einstein e a teoria do movimento browniano 269

4. Conclusões [5] Ludwig Boltzmann, Lectures on Gas Theory (Dover


Publications, New York, 1995). O trabalho original foi
Procuramos seguir os passos de Einstein, apresentando publicado em alemão, em duas partes, em Leipzig, em
os argumentos originais dos trabalhos de 1905, com a 1896 e 1898, respectivamente. A edição da Dover foi
proposta pioneira de uma teoria do movimento brown- traduzida para o inglês por Stephen G. Brush, que es-
iano. Einstein percebeu no movimento browniano um creveu uma nota muito interessante.
excelente laboratório para observar e medir os efeitos [6] L. Landau e E. Lifchitz, Mécanique des Fluides (edi-
das flutuações microscópicos de um sistema fı́sico. A tora Mir, Moscou, 1967). No segundo capı́tulo, há um
teoria de Einstein, resumida na famosa dependência li- cálculo da viscosidade efetiva na presença de peque-
near com o tempo de observação do desvio quadrático nas esferas não interagentes, com a devida referência à
médio das posições das partı́culas brownianas, indicou versão da tese de Einstein publicada em 1906. Os nos-
sos cursos de Fı́sica dão pouca ênfase à mecânica dos
as grandezas que deveriam ser medidas e abriu caminho
fluidos.
para a série espetacular de experiências de Jean Perrin
e colaboradores. [7] Jean Perrin, Les Atomes (Flammarion, Paris, 1991).
Mostramos também que os resultados de Einstein Publicado a partir do texto original de 1913, com uma
podem ser recuperados pela aplicação da teoria mo- introdução de Pierre-Gilles de Gennes.
derna, e muito mais simples, proposta por Langevin [8] Martin J. Klein, Science 157, 509 (1967).
em 1908. A ubiqüidade das flutuações estatı́sticas e [9] Clayton A. Gearhart, Am. J. Phys. 58, 468 (1990).
dos seus efeitos, particularmente em problemas de bio-
[10] Josiah Willard Gibbs, Elementary Principles in Statis-
logia ou da fı́sica da matéria mole, estão dando vida tical Mechanics (Scribner’s, New York, 1902). Há uma
nova às aplicações da teoria do movimento browniano. edição mais recente da Dover. Em 1911, Einstein publi-
ca uma nota nos Annalen para deixar claro que, se
Referências tivesse conhecimento desse texto de Gibbs, não teria
publicado os seus próprios trabalhos de 1903 e 1904.
[1] John Stachel, “O ano miraculoso de Albert Einstein: [11] Paul Langevin, Comptes Rendues Acad. Sci. (Paris)
cinco artigos que mudaram a face da fı́sica”, Editora 146, 530 (1908). Ver também G. Uhlenbeck e L.S.
UFRJ, Rio de Janeiro, 2001 (tradução de Alexandre C. Ornstein, Phys. Rev. 36, 823 (1930).
Tort). Esta obra, que contém traduções dos quatro arti-
[12] Silvio R.A. Salinas, Introdução à Fı́sica Estatı́stica”
gos originais de 1905 e da tese de Einstein, foi publicada
(EDUSP, São Paulo, 1997). Ver o capı́tulo 16.
originalmente em inglês, com o tı́tulo “Einstein’s mirac-
ulous year”, pela Princeton University Press, New Jer- [13] Tânia Tomé e Mário J. de Oliveira, Dinâmica Es-
sey, em 1998. tocástica e Irreversibilidade (EDUSP, São Paulo, 2001);
[2] Albert Einstein, Investigations on the Theory of the Robert Zwanzig, Nonequilibrium Statistical Mechanics
Brownian Movement (Dover Publications, New York, (Oxford University Press, New York, 2001).
1956), texto editado, com notas, por R. Fürth. A edição [14] Erwin Frey e Klaus Kroy, cond-mat 0502602 (25 de
original, contendo a tese de doutoramento e o primeiro fevereiro de 2005). Ver também Petter Hänggi, Fabio
artigo sobre o movimento browniano, foi publicada em Marchesoni e Franco Nori, cond-mat/0410033 (10 de
alemão, na Suiça, em 1926. novembro de 2004). Textos para uma edição comemo-
[3] Abraham Pais, Sutil é o Senhor ... A Ciência e a Vida rativa sobre Einstein a ser publicada pelos atuais An-
de Albert Einstein (Editora Nova Fronteira, Rio de nalen der Physik.
Janeiro, 1995). Excelente biografia cientı́fica de Eins- [15] Ryogo Kubo, Science 233, 330 (1986).
tein, publicada originalmente em inglês, pela Oxford
[16] Ver, por exemplo, P.M. Chaikin e T.C. Lubensky, Prin-
University Press, em 1982.
ciples of Condensed Matter Physics (Cambridge Uni-
[4] Laszlo Tisza, Generalized Thermodynamics (The MIT versity Press, Cambridge, UK, 1995). Ver principal-
Press, Boston, 1966). Ver especialmente os capı́tulos 1 mente o capı́tulo 7.
e 2.

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