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O esporte como

possibilidade de
desenvolvimento

Brasília, 2013
© 2013 Fundação Vale.
Todos os direitos reservados.

Coordenação: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil


Redação: Fabiano Marques Câmara e José Erb Ubarana Jr.
Organização e revisão técnica: Luciana Marotto Homrich
Revisão pedagógica: MD Consultoria Pedagógica, Educação e Desenvolvimento Humano
Revisão editorial: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil
Ilustração: Rodrigo Vinhas Fonseca
Projeto gráfico: Crama Design Estratégico
Diagramação: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil

O esporte como possibilidade de desenvolvimento. – Brasília:


UNESCO, Fundação Vale, 2013.
30 p. – (Cadernos de referência de esporte; 7).

ISBN: 978-85-7652-161-7

1. Educação física 2. Esporte 3. Pedagogia 4. Brasil 5.


Material didático I. Fundação Vale II. UNESCO

Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito do projeto 570BRZ3002, Formando Capacidades e Promovendo
o Desenvolvimento Territorial Integrado, o qual tem o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida de
jovens e comunidades.
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele
expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e a
apresentação do material ao longo desta publicação não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da
UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da
delimitação de suas fronteiras ou limites.
Esclarecimento: a UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas suas ati-
vidades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se, nesta publicação, os termos no gênero mas-
culino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam
grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino.

Fundação Vale Representação da UNESCO no Brasil


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Cadernos de referência de esporte
Volume 7

O esporte como
possibilidade de
desenvolvimento
Sumário

Prefácio ............................................................................................................................................... 7
1. Introdução ...................................................................................................................................... 8
2. Caracterização do esporte ........................................................................................................... 9
3. Princípios da pedagogia do esporte ......................................................................................... 15
4. Considerações finais ..................................................................................................................... 26
Bibliografia ......................................................................................................................................... 28
Prefácio
O Programa de Esportes da Fundação Vale, intitulado Brasil Vale Ouro, busca promover o esporte como um
fator de inclusão social de crianças e adolescentes, incentivando a formação cidadã, o desenvolvimento
humano e a disseminação de uma cultura esportiva nas comunidades. O reconhecimento do direito e a
garantia do acesso da população à prática esportiva fazem do Programa Brasil Vale Ouro uma oportunidade,
muitas vezes ímpar, de vivência, de iniciação e de aprimoramento esportivo.
É com o objetivo de garantir a qualidade das atividades esportivas oferecidas que a Fundação Vale realiza a
formação continuada dos profissionais envolvidos no Programa, de maneira que os educadores sintam-se
cada vez mais seguros para proporcionar experiências significativas ao desenvolvimento integral das crianças
e dos adolescentes. O objetivo deste material pedagógico consiste em orientar esses profissionais para a
abordagem de temáticas consideradas essenciais à prática do esporte. Nesse sentido, esta série colabora
para a construção de padrões conceituais, operacionais e metodológicos que orientem a prática pedagógica
dos profissionais do Programa, onde quer que se encontrem.
Este caderno, intitulado “O esporte como possibilidade de desenvolvimento”, integra a Série Esporte da
Fundação Vale, composta por 12 publicações que fundamentam a prática pedagógica do Programa, assim
como registram e sistematizam a experiência acumulada nos últimos quatro anos, no documento da “Proposta
pedagógica” do Brasil Vale Ouro.
Composta de informações e temas escolhidos para respaldar o Programa Brasil Vale Ouro, a Série Esporte da
Fundação Vale foi elaborada no contexto do acordo de cooperação assinado entre a Fundação Vale e a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil. A série contou
com a participação e o envolvimento de mais de 50 especialistas da área do esporte, entre autores, revisores 7
técnicos e organizadores, o que enriqueceu o material, refletindo o conhecimento e a experiência vivenciada
por cada um e pelo conjunto das diferenças identificadas.
Portanto, tão rica quanto os conceitos apresentados neste caderno será a capacidade dos profissionais,
especialistas, formadores e supervisores do Programa, que atuam nos territórios, de recriar a dimensão
proposta com base nas suas próprias realidades.
Cabe destacar que a Fundação Vale não pretende esgotar o assunto pertinente a cada um dos cadernos,
mas sim permitir aos leitores e curiosos que explorem e se aprofundem nas temáticas abordadas, por meio
da bibliografia apresentada, bem como por meio do processo de capacitação e de formação continuada,
orientado pelas assessorias especializadas de esporte. Em complemento a esse processo, pretende-se permitir
a aplicação das competências, dos conteúdos e dos conhecimentos abordados no âmbito dos cadernos por
meio de supervisão especializada, oferecida mensalmente.
Ao apresentar esta coletânea, a Fundação Vale e a UNESCO esperam auxiliar e engajar os profissionais de
esporte em uma proposta educativa que estimule a reflexão sobre a prática esportiva e colabore para que as
vivências, independentemente da modalidade esportiva, favoreçam a qualidade de vida e o bem-estar social.

Fundação Vale Representação da UNESCO no Brasil

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


1. Introdução
O esporte é uma atividade humana historicamente criada e socialmente construída
(BRASIL, 2009). Reflete os costumes, os valores e até mesmo os modos de produção
de uma sociedade. Na Grécia, por exemplo, os jogos lúdicos da Antiguidade eram
inspirados na caça, na guerra, na vida, nos hábitos dos animais, assim como nos
trabalhos de semear, de cultivar e de colher (BRASIL, 2009). Não se pode deixar de
mencionar, portanto, que o esporte é um fenômeno sociocultural, considerado
patrimônio da humanidade (BARROSO; DARIDO, 2006).
Esse fenômeno social está presente na prática cotidiana e manifesta-se na escola, na
televisão e na rua. Da mesma forma, perpetua e evidencia valores, modos e costumes.
Caracteriza-se, entre outros aspectos, pela sua pluralidade, uma vez que, a cada dia,
surgem novos significados e ressignificados para a sua prática (PAES, 2006).
Ao longo do tempo, o esporte foi moldado de diferentes formas até se tornar um
produto impulsionador do consumo social. Sua evolução foi acompanhada pelo
desenvolvimento tecnológico em geral, desde o avanço tecnológico e qualitativo dos
materiais esportivos, da criação de indústrias especializadas na produção de
equipamentos e materiais esportivos, de propostas de patrocínio a atletas, até o acesso
pela mídia especializada que oferece canais exclusivos sobre esporte, o que aumenta
a gama de produtos de consumo impulsionados por esse fenômeno (BARROSO;
8 DARIDO, 2006). Entretanto, acredita-se que o esporte vai muito além dessas questões
meramente mercadológicas e materiais, que refletem a cultura consumista que envolve
o ser humano. Nesse sentido, apesar dessa forte influência consumista, qualquer que
seja a motivação do praticante, em essência o esporte tem função educacional.
Esses aspectos mostram, em linhas gerais, que o esporte é uma manifestação complexa,
no sentido amplo do termo. Ubarana Jr. e Darido (2006) sustentam essa afirmação ao
analisar que “esporte é hoje uma complexa manifestação cultural de nossos tempos”
e que, por sua complexidade, surgem diversas tentativas de definição e entendimento.
Antes de apresentar seus princípios pedagógicos, considerando-se a complexidade
do fenômeno esportivo, é importante indicar de que forma o esporte pode contribuir
para o desenvolvimento humano tal qual proposto pela Fundação Vale. Para tanto,
cabe caracterizá-lo à luz de seus preceitos legais e constitucionais, assim como
destacar a relevância de ser reconhecido e legitimado como política pública de Estado,
pois tais questões influenciam a conduta pedagógica dos profissionais que atuam no
desenvolvimento do Programa Brasil Vale Ouro.

Caderno de referência de esporte


2. Caracterização do esporte
Barroso e Darido (2006) destacam que o esporte é um sistema complexo: sempre que
se tenta classificá-lo, faz-se referência apenas a um fragmento desse universo, que é
eminentemente heterogêneo. Em geral, a necessidade de classificar e enfatizar
objetivos e metas para o esporte refere-se a uma tentativa de reforçá-lo como direito
de todo o cidadão, independente de suas características, e contextualizar e explicar
os motivos que conduziram estudiosos, gestores e comunidade esportiva em geral a
definir o esporte nacional a partir de três manifestações esportivas.
Essa ideia de diferenciar o esporte por meio de suas manifestações surgiu oficialmente
em 2002, por meio de iniciativas do governo federal brasileiro para discutir e redefinir
os rumos da Política Nacional do Esporte (PNE), tendo como marco inicial a
I Conferência Nacional do Esporte (I CNE), realizada em junho de 2004. Isso pode ser
deduzido tomando-se como base os documentos preparatórios para a II Conferência
Nacional do Esporte (II CNE), realizada em maio de 2006, os quais esclarecem que, a
partir de 1998, com a promulgação da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, três
manifestações foram definidas para o esporte, sendo estas: o esporte educacional, o
esporte de participação e o esporte de rendimento.
Destaca-se que no artigo 1º da Carta Internacional da Educação Física e do Desporto
(UNESCO, 1978), o esporte é direito de todas as pessoas. Para Tubino (2002; 2006), o
esporte-educação, o esporte-lazer e o esporte de desempenho ou rendimento, são formas 9
de exercício desse direito. Como um dos fenômenos mais marcantes da transição do
século XX para o século XXI, o esporte teve, na Carta Internacional mencionada acima,
o marco de mudança do seu paradigma. Anteriormente, ele era entendido apenas na
perspectiva do rendimento, mas, após a Carta, e tendo em mente a teoria do direito à
educação física e ao esporte1, o campo dos estudos esportivos recebeu teorizações
demarcatórias para as três manifestações, expressas no Quadro 1, a seguir.

1
Na tentativa de superar as dificuldades do processo de teorização da educação física e do esporte, Tubino assumiu
o desafio de propor uma nova epistemologia para as atividades físicas, inter-relacionando a educação física e o
fenômeno do esporte em uma proposta maior de cultura física, que somente foi possível a partir do pressuposto
do direito à educação física e ao esporte (TUBINO, 2002, p. 59-60), e apresentando em detalhes a chamada teoria do
direito à educação física e ao esporte (TUBINO, 2002, cap. 3, p. 62-67).

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


Quadro 1.
Características das manifestações esportivas

Fonte: TUBINO, 2002, p. 65; TUBINO, 2006, p. 112; TUBINO, 2010, p. 43.

Em outras palavras, essa passagem significa a transição de um esporte na perspectiva


única do rendimento para um esporte como direito de todos, um direito cujas formas
10 de exercício são o esporte-educação (esporte educacional e esporte escolar), o esporte-
lazer (esporte participação) e o esporte de desempenho (esporte de rendimento e
esporte de alto rendimento).
Com base nas diferentes dimensões do esporte contemporâneo e em seus
compromissos, foi possível formular e adequar os princípios e caminhos para práticas
esportivas orientadas aos diferentes objetivos propostos pelo Programa Brasil Vale
Ouro, como apresentado no documento “Proposta pedagógica de esporte”, parte
integrante desta série de materiais didáticos da Fundação Vale.
Tomou-se como base os conceitos oficiais das três dimensões do esporte (BRASIL,
2005), segundo os quais:
a) esporte de rendimento – é aquele destinado à
formação de atletas de alto nível, orientado à
participação em competições internacionais
e com metas de desempenho específicas e
bem definidas;

b) esporte de participação – refere-se àquele


praticado como lazer, sem comprome-
timento final ou foco no melhor resultado,
mas com o propósito de viabilizar a
participação de todos, sem que exista a
exigência de competências atléticas
extremas; e
2
Formas assistemáticas são práticas de educação informal e não formal.
3
Hipercompetitividade é a valorização exarcebada e exagerada da competição.

Caderno de referência de esporte


c) esporte educacional – é o esporte utilizado como instrumento de
educação, com metas bem definidas a serem atingidas por meio da
prática; entende-se também como aquele praticado nos sistemas
de ensino e em formas assistemáticas de educação2, evitando-se a
seletividade e a hipercompetitividade3 de seus praticantes; por fim,
tem por finalidade alcançar o desenvolvimento integral do
indivíduo, a sua formação para o exercício da cidadania.
Com efeito, destaca-se que essas definições promoveram importantes discussões nos
eventos subsequentes, as quais são discutidas a seguir.
Como ressaltado por Tubino (2010), o processo de consolidação do esporte como
política pública tem seu marco legal inicial no texto da Constituição Federal de 1988,
que consolidou o entendimento mais amplo de esporte, no caput do seu artigo 217,
quando estabelece o fomento de práticas esportivas formais e não formais como
dever do Estado e direito de cada cidadão, priorizando ainda a destinação dos recursos
públicos para o esporte educacional.
Embora o texto constitucional de 1988 já fizesse referência a um novo entendimento
de esporte, o Brasil permaneceu até 1993 sem uma lei específica que instituísse
normas gerais sobre o esporte, com base nos preceitos constitucionais. Isso aconteceu
somente com a promulgação da Lei nº 8.672, de 6 de julho de 1993 (a chamada Lei
Zico), que, de início, determinou os conceitos e princípios a serem seguidos pelo
esporte brasileiro, contemplando o reconhecimento das três dimensões esportivas
mencionadas anteriormente. Essa lei foi posteriormente revogada pela Lei nº 9.615,
de 24 de março de 1998 (a chamada Lei Pelé), vigente até os dias atuais.
11
Outro marco importante no processo de consolidação do esporte no Brasil foram os
debates coletivos advindos das três edições da Conferência Nacional de Esporte,
instituídas pelo Decreto Presidencial de 21 de janeiro de 2004.
A III Conferência, realizada em 2010, consolidou as conquistas anteriores e avançou na
efetivação do esporte como direito social, conforme preceitua a Constituição Federal.
Nessa última edição, foi aprovado o Plano Decenal de Esporte e Lazer: “10 pontos em
10 anos para projetar o Brasil entre os 10 mais”, que ratificou a necessidade de um
Sistema Nacional de Esporte e Lazer (SNEL) lastreado em recursos que tornem
sustentável um projeto de longo prazo, com o intuito de:
• promover a inclusão social e o desenvolvimento humano por meio de programas
socioesportivos;
• institucionalizar o esporte educacional;
• atingir resultados inéditos nas competições e, assim, projetar o Brasil no ranking do
alto rendimento;
• incrementar a infraestrutura esportiva do país; modernizar e valorizar o futebol como
identidade cultural do Brasil;
• ampliar o leque de modalidades para diversificar a prática esportiva no país;
• qualificar a gestão do esporte e do lazer; e
• aproveitar o potencial econômico-social dos grandes eventos, pois eles contribuem
com o projeto de desenvolvimento nacional gerando empregos, aumentando a
renda do trabalhador e propiciando a revitalização de áreas urbanas, a melhoria da
qualidade de vida, a oferta de perspectivas à juventude e o fortalecimento do
respeito mundial ao país.

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


A apresentação desses preceitos serve de guia para demonstrar a amplitude do
fenômeno esportivo e, por conseguinte, sua complexa delimitação. De fato, sabe-se
que esses tópicos são fundamentais para o entendimento do esporte e que, levando
em consideração a sua complexidade, qualquer distinção entre as diferentes
dimensões resultaria em limitações. Portanto, é importante distinguir objetivos
prioritários e não separar as diferentes funções do esporte.
Pode-se concordar com a ideia de que existe uma inter-relação de práticas e interesses
entre as dimensões do esporte, quando se entende que elas ajudam a balizar seu
entendimento e sua operacionalização. Não obstante, ainda que as denominações
esporte educacional e esporte participação tenham sido criadas em determinado
momento e contexto históricos, para a sua diferenciação da prática esportiva de
rendimento, elas não deixam de exibir a característica inerente ao esporte, que é o
próprio desempenho ou rendimento. Assim, nessas dimensões, o rendimento também
se pode fazer presente.
Contribuindo com esse debate, o Ministério do Esporte aponta que

ir além das dimensões esportivas de rendimento e participação requer revisar a relação


‘esporte-cultura’ e ‘esporte-educação’. O ambiente das instituições de ensino pode ser
espaço para a realização de ambas, sem desconhecer que competições estudantis – escolar
e universitária – quando componentes do projeto pedagógico de cada instituição
funcionam na perspectiva do esporte de rendimento. De outro ângulo, a recreação e o
acesso ao conhecimento compõem os elementos principais do esporte como conteúdo
curricular da Educação Física, o que, aliás, sugere que devem ser estabelecidas melhores
fronteiras entre as ‘manifestações esportivas’ precisando a relação entre esporte e educação,
12 o que repercutirá na estruturação do Sistema de Esporte e Lazer (BRASIL, 2009, p. 90).

A crítica tecida pelos redatores dos documentos da III CNE também recai sobre um
posicionamento que contrapõe as ideias de competitividade e educação na dimensão
do esporte educacional. Dito de outro modo, tem-se a impressão de que as situações
competitivas no esporte não são dignas da prática educativa, pois é enfatizado que a
competição seria, de um lado, um

empecilho para alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para


o exercício da cidadania e a prática do lazer e, do outro, que o esporte de alto rendimento
seria uma prática não educacional por privilegiar a seletividade e a hipercompetitividade
(BRASIL, 2009, p. 91).

Na realidade, o processo de debate e construção coletiva estabelecido no âmbito das


Conferências Nacionais de Esporte objetiva incentivar a reflexão sobre a prática
esportiva que privilegia a apreensão do esporte com base nos conceitos restritos e
descontextualizados de aptidão física e de técnica esportiva. Há muito, o esporte foi
reduzido a um conjunto de técnicas esportivas e capacidades físicas esvaziadas do seu
contexto cultural, não relacionadas ao histórico de vida das pessoas e
de suas percepções e significados estabelecidos a partir da vivência
do esporte. Nesse sentido, o documento da III CNE, em especial,
colabora para uma reflexão crítica sobre a realização da prática esportiva
com base nos conceitos de aptidão física e de técnica esportiva. Essa
preocupação deve estar presente mesmo no chamado esporte de alto
rendimento. Não é cabível, tampouco ético, formar um atleta de rendimento
isolado da cultura do esporte em geral, desconhecedor da sua própria
prática como agente da cultura e, dessa forma, construir um sujeito

Caderno de referência de esporte


heterônomo4 no âmbito esportivo. Essa reflexão, por sua vez, guarda uma relação de
afinidade com a compreensão de desenvolvimento humano adotada pela Fundação
Vale, quando preconiza o desenvolvimento integral do ser humano; nesse caso, pela
prática esportiva realizada e (re)construída no âmbito dos territórios onde o programa
se desenvolve.
Outro ponto importante discutido no documento da III CNE está relacionado à
aparente cisão entre teoria e prática, a qual pode surgir no momento em que também
se entende o esporte como educacional. Isso diz respeito ao fato de o esporte exigir
fundamentalmente um movimento humano (por exemplo: correr, saltar ou driblar),
sendo que tais movimentos, por questões de limitação de espaço, não podem ser
realizados em uma sala de aula, lugar onde, de forma restrita, é desenvolvida a teoria. A sala
de aula de esporte não é limitada por quatro paredes com um quadro negro, verde ou
branco, e um professor à frente, mas trata-se de um campo gramado, de uma quadra
poliesportiva, de uma piscina etc; ou seja, são espaços abertos que permitem e caracterizam
a prática. Essa distinção equivocada produz a dicotomia teoria/prática, a qual permite que
se infira, muitas vezes com veemência, que pressupostos conceituais, valorativos ou
atitudinais não podem ser ensinados no campo. Nessa linha de entendimento, eles são
conteúdos da teoria da sala de aula, enquanto que, na prática, trabalham-se exclusivamente
os procedimentos esportivos e a repetição mecânica dos gestos técnicos.
Essa dicotomia, além de ingênua, exibe um desconhecimento do fazer esportivo
fundamentado e inter-relacional, que leva em conta, independentemente do local ou
das condições, os debates e as discussões conceituais antes considerados como
exclusivos da sala de aula.
É claro que essas ideias como um todo – assim como a sua aplicação – dependem de 13
profissionais preparados pedagogicamente e que pactuem com essa visão mais ampla
do esporte educacional, apesar de entender que toda prática humana envolve
relações de ensino-aprendizagem, inclusive aquelas que se desenvolvem no âmbito
do esporte de rendimento.

Diante disso, concorda-se com o entendimento do Ministério do Esporte (BRASIL,


2009) de que o “problema” não é o esporte em si, mas sim o que se faz dele, ou seja,
de que forma ele é instrumentalizado.

Por isso, a formação docente pautada na formação humana é de crucial importância,


com destaque ao valor social e à autonomia. Se o esporte for considerado uma
ferramenta educacional, ele não servirá apenas à função educacional, mas poderá
também prevenir a prática de atividades pouco desejadas ou nocivas à saúde.
Sendo assim, a concepção de esporte que será aplicada no dia a dia dos territórios
dependerá fundamentalmente da concepção de ser humano e de educação que
orienta a prática pedagógica dos gestores e profissionais que atuam nos programas
e ações esportivas lá desenvolvidos.
Assim, a apropriação das bases teóricas do Programa de Esportes da Fundação Vale é
fundamental para que a prática esportiva nos territórios seja condizente com o ideal
de desenvolvimento humano preconizado. Para tanto, a formação continuada e
processual dos recursos humanos envolvidos deve ir além das capacitações técnicas
de rotina, conforme indicado e estabelecido no documento “Proposta pedagógica de

4
O sujeito heterônomo, do ponto de vista moral, obedece a regras impostas pelo mundo exterior, enquanto o sujeito
autônomo obedece àquilo que sabe ser o melhor para si e para o mundo.

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


esporte: Programa Brasil Vale Ouro”. Para reforçar a relevância do papel do professor
no processo de ensino e aprendizagem do esporte, destaca-se que o esporte

traz consigo, na sua origem, a cultura do povo, modificada e transformada em produto


de consumo, portanto, traz também possibilidades contraditórias estabelecidas em sua
própria dinâmica, de forma que é possível enfatizar situações que privilegiam a
solidariedade sobre a rivalidade, o coletivo sobre o individual, a autonomia sobre a
submissão, a cooperação sobre a disputa, a distribuição sobre a apropriação, a abundância
sobre a escassez, a confiança mútua sobre a suspeita, a descontração sobre a tensão, a
perseverança sobre a desistência e, além de tudo, a vontade de continuar jogando em
contraposição à pressa para terminar o jogo e configurar resultados (BRASIL, 2009, p. 93).

O trecho acima demonstra o papel do professor de educação física que, com base na
proposta pedagógica do programa, bem como nos pressupostos orientadores de sua
prática didático-pedagógica, deve considerar as tensões implícitas no esporte e
trabalhá-las tendo em vista o desenvolvimento humano, independentemente da
manifestação ou dimensão esportiva priorizada.
Diante disso, corrobora-se com o posicionamento de Korsakas e Rose Jr. (2002) de que,
“se qualquer manifestação do esporte educa, a questão a ser respondida é em que
direção se deseja educar e, consequentemente, qual pedagogia é a mais adequada”.
Assim, não se pode desconsiderar a preocupação de exercer uma prática pedagógica
coerente com os princípios norteadores do Programa, explícitos no documento sobre
a proposta pedagógica (BRASIL, 2009).
Considerando essa discussão introdutória, destaca-se que a principal preocupação da
gestão do Programa deve estar em entender melhor e de forma mais abrangente o
14
esporte, para que se possa balizar intervenções respaldadas e pautadas na sua prática.
As tensões observadas entre rendimento e educação revelam que não é possível
separar essas duas características do fenômeno esportivo. Aliás, deve-se reiterar, de
fato, essas “separações”.
Sobre esse ponto, cabe destacar que a fragmentação é uma categoria do raciocínio
cartesiano – de René Descartes, filósofo francês que viveu nos séculos XVI e XVII – que
separa as partes de um fenômeno para melhor compreender o todo, decompondo as
relações que constituem sua complexidade. Deve-se avançar nesse raciocínio e
compreender que as relações entre rendimento, lazer e educação são imbricadas de tal
modo que sempre se poderá observar uma prática educativa no âmbito do esporte de
rendimento, certa noção de desempenho no esporte de participação e, por fim – mas
sem querer esgotar essa teia de relações –, lazer e rendimento no esporte educacional.
Segundo o documento da “Proposta pedagógica” do Programa Brasil Vale Ouro
(FUNDAÇÃO VALE, 2013), o esporte tem o potencial de construção de práticas e
vivências de grande impacto sobre a formação dos valores de crianças e adolescentes.
Destaca-se ainda que, para que esse potencial possa ser concretizado, é preciso que
exista clareza conceitual sobre o que se deseja atingir por meio das práticas esportivas.
Isso posto, cabe agora delinear e detalhar mais precisamente as concepções que
orientam a pedagogia do esporte, permeada pelas discussões e pelas abordagens
tratadas anteriormente. No tópico seguinte, destacam-se os princípios pedagógicos
que norteiam as práticas esportivas, com ênfase na formação humana e no esporte
René Descartes
(1596-1650) dentro de uma perspectiva ampla e educacional, com vistas ao desenvolvimento humano.

Caderno de referência de esporte


3. Princípios da pedagogia do esporte
Feitas as considerações sobre a caracterização do esporte, neste ponto, é prudente
tecer um esclarecimento. Entende-se com clareza que a distinção entre esporte
educacional e esporte de rendimento é limitada, e que ambas as categorias são
mutuamente relacionadas. A abordagem de que se trata aqui quanto ao esporte
educacional confere ênfase não ao rendimento máximo, mas sim à prática esportiva
com vistas à formação do cidadão autônomo, crítico e consciente de sua prática. Por
outro lado, essa prática deve-se distanciar da reprodução mecânica de procedimentos
técnicos esportivos, ou melhor, de habilidades específicas sem contexto, sem sentido
e sem significado. Assim, tratando-se de uma prática pedagógica do esporte, é
necessário realizar um delineamento da conduta educacional, coerente com os
objetivos que se deseja alcançar e com o homem e o cidadão que se pretende formar.
Vale iniciar essa discussão tomando como base os questionamentos propostos por
Ubarana Jr. e Darido (2006), que pretendem esclarecer a proposta do esporte
educacional: como deve ser, então, o chamado esporte educacional? Mais ainda: como
deve ser a sua prática pedagógica?

15

Para responder a essas perguntas, é imprescindível observar atentamente o histórico


do(s) participantes do programa, que tem como alicerce a família, a escola e a
comunidade onde vive. Inicialmente, é prioritário entender que, muitas vezes, a
educação física pode entrar na escola pela contramão do caminho feito por outras
áreas de conhecimento, e isso é fundamental para a compreensão do contexto atual
do esporte, abordado como um ou o mais importante dos conteúdos trabalhados por
essa disciplina no âmbito escolar.
A educação física entra na escola como atividade e, principalmente nos anos 1970, ela
se caracteriza como prática esportiva, com ênfase no treinamento e na aptidão física,

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


dentro da escola. Segundo Fensterseifer (2001), a educação física nas escolas, naquele
momento histórico, era considerada apenas atividade física. Por ser tachada como
simples atividade, não podia ser caracterizada como disciplina, pois no entendimento
dos educadores, não possibilitava a reflexão e a construção do conhecimento quando
sua ênfase estava no desenvolvimento da aptidão física com um fim em si mesmo,
tornando-se o que naquela época era indicado como “fazer pelo fazer”.
Dito isso, como poderia o esporte ser considerado educacional, levando-se em conta
a forma como era compreendido no momento e contexto apresentado anteriormente,
ou seja, apenas como atividade restrita ao ambiente e ao contexto da educação física
escolar? É importante ressaltar que na prática esportiva existe uma relação de ensino-
aprendizagem, mas ela não pode ser aleatória ou espontânea, como se poderia esperar
do esporte-atividade indicado anteriormente.
No caso de que trata este caderno, reforça-se o trabalho do programa com base na
compreensão do esporte relacionado à educação, que pode igualmente ser
compreendido como projeto educacional, tanto na criação de vivências e experiências
como na transferência de conhecimentos técnicos e de apoio a expressões culturais5
(como as danças locais, a capoeira, o próprio futebol etc.), estabelecendo a relação
entre diferentes elementos cognitivos e não cognitivos, bem como garantindo a
existência de pluralidades de valores e níveis de desempenho, envolvendo os
participantes e a família nos diferentes contextos.
Por desenvolvimento cognitivo, Heckman entende o conjunto formado por quociente
de inteligência (QI), a boa comunicação e o rápido processamento de informações.
16 Para o mesmo autor, o desenvolvimento não cognitivo compreende características
como perseverança, motivação, autoestima, confiabilidade, autocontrole e preferências
por lazer (HECKMAN, 2010).

O debate acerca dos conceitos de desenvolvimento cognitivo e não cognitivo


colaboram para expandir os entendimentos tradicionais e mais restritos sobre o que
significa ter conhecimento, normalmente baseados unicamente em elementos
cognitivos, em direção a elementos chamados não cognitivos. Essa divisão possibilita,
assim, que novas formas de conhecimento sejam consideradas. Ela é compatível com
a teoria das inteligências múltiplas de Howard Gardner e leva a considerar o impacto
de uma ampla gama de experiências de vida de crianças e adolescentes sobre o seu
próprio desenvolvimento (GARDNER, 1995).
5
A cultura esportiva pode ser enunciada, resumidamente, como: o conjunto de ações, valores e entendimentos que
representam o modo predominante de ser e estar na sociedade globalizada, em relação ao seu âmbito esportivo,
cujos significados são simbolicamente incorporados, principalmente, pela influência dos meios de comunicação
de massa (PIRES, 2000, p.15).

Caderno de referência de esporte


Inicialmente, cabe destacar aqui que a perspectiva do esporte educacional
adotada para o Programa, não é contra o desenvolvimento da aptidão física ou
contra o alto rendimento esportivo, o que vem ao encontro da compreensão de
desenvolvimento humano da Fundação Vale. No entanto, o estímulo à aptidão
física ou ao alto rendimento sem sentido ou significado, fora de contexto e sem
relação com outros conteúdos não específicos ao esporte, mas que permitem
interação com ele 6 , é uma prática que não condiz com a compreensão de
desenvolvimento humano adotada pelo Programa de Esportes da Fundação Vale.
A prática mecanizada do esporte, que não exige reflexão nem construção, e que
se caracteriza como mera reprodução mecânica, não contempla as necessidades
do desenvolvimento humano proposto, em especial quando favorece uma
minoria que demonstra aptidão ou habilidades esportivas, e não permite trabalhar
com aqueles alunos que não possuem as condições técnicas exigidas pelo alto
rendimento.
Reforçando a questão educacional da prática esportiva, Gerez (2006) escreve que, na
atuação profissional da educação física, independentemente do local em que é
realizada – se em escolas, clubes, academias de ginástica ou hospitais –, sempre existe
uma relação de ensino e aprendizagem, de educador e educando, permeada pelas
concepções de homem e de sociedade que se pretende desenvolver.
No entanto, na maioria dos programas de educação física e esporte, não se observa a
preocupação com os aspectos educacionais de sua prática, pois o conhecimento de
elementos antropométricos, metabólicos e funcionais direciona o planejamento das
aulas ministradas, e pouca atenção é direcionada ao ser humano que existe para além
dos mecanismos fisiológicos. Há algum tempo, Manuel Sérgio (1990) já propunha que 17
não faz sentido dizer que se educam os corpos físicos: educam-se homens.
Nos anos 1980, passou-se a repensar a relação da educação física com o esporte, em
um momento em que se testemunhou uma escassez de propostas para justificar a
educação física na escola como área de desenvolvimento do saber cultural (UBARANA;
DARIDO, 2006). Avanços significativos aconteceram nos anos 1990, um período em
que ainda se observava a atuação da educação física pautada no treinamento do
esporte como um fim em si mesmo, dividindo espaço com uma abordagem mais
ampla que considerava o esporte como conteúdo da cultura corporal, para além da
repetição mecânica. Com isso, legitimou-se o esporte e a educação física como áreas
eminentemente educacionais (UBARANA; DARIDO, 2006).

Em 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998b) incluíram a educação


física como uma das oito áreas de conhecimento que configuram o saber no ensino
básico. Portanto, esse documento legitimou oficialmente o exercício e o esporte como
instrumentos de educação.

É de crucial importância destacar que, com a publicação desses Parâmetros,


explicitou-se a necessidade de a educação física assumir objetivos distintos em
relação ao esporte chamado profissional (ou de rendimento), oferecendo
oportunidades a todos os alunos, de forma mais ampla do que seletiva ou exclusiva
(UBARANA; DARIDO, 2006). Nesse ponto, também é essencial enfatizar que se acredita
ser possível priorizar objetivos e alinhar condutas em favor das metas físicas previstas,
6
Nesse caso, entenda-se os anseios, as expectativas e os interesses despertados nos participantes pelo contato com
uma determinada prática esportiva.

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


mas, por outro lado, deve-se estar ciente de que a distinção total entre rendimento e
educação é improvável, como será discutido a seguir.
Na tentativa de se diferenciar esporte de rendimento e esporte educacional, tentou-se
abolir o esporte exclusivista e com objetivo único de aprimoramento da técnica tendo
em vista o rendimento máximo e, por conseguinte, resultados expressivos. Essa prática
é denominada por Paes (2002) prática esportivizada, pois reproduz o nível esportivo de
rendimento dentro do ambiente de ensino formal, sem espaço para a aprendizagem
de outros conteúdos indicados como não cognitivos no conceito de desenvolvimento
humano adotado para o Programa Brasil Vale Ouro. Além disso, quando se utiliza o
esporte com características de rendimento em um contexto educacional, ocorre a
situação de favorecimento de um pequeno grupo predisposto ao melhor desempenho
que experimentará o sucesso nessa forma de esporte (de rendimento), enquanto, ao
mesmo tempo, ocorre o insucesso da maioria excluída; isso, segundo Kunz (1994),
representa um grande erro pedagógico.

18

Freire e Scaglia ressaltam que “não se deve confundir aprofundamento dos


conhecimentos esportivos com treino para o rendimento” (FREIRE; SCAGLIA, 2003).
Portanto, conhecer a técnica é relevante para a apreensão do esporte; no entanto, esse
conhecimento não deve ser desenvolvido de forma isolada, assim como não deve ser
levado a níveis máximos de desempenho, ainda que, sem a técnica, o próprio esporte
seria descaracterizado.

Reconhece-se que a prática esportiva como meio de educação, em sua trajetória,


principalmente no ambiente escolar, foi tratada, sobretudo, de maneira procedimental,
com alguma parcela de perspectiva conceitual (factual), como se a única forma de
aprendizagem do esporte ocorresse por meio dos procedimentos técnicos de cada
modalidade. Pouco se avançou além disso; apenas observaram-se algumas iniciativas
quanto ao estudo das regras, dos fatos e da história das modalidades (UBARANA; DARIDO,
2006). Aprofundando e incrementando essa discussão, Santana e Reis afirmam que

se justificaria ensinar esporte para que as crianças: a) aprendam uma manifestação


cultural construída historicamente e valorizada pela nossa sociedade há longa data, de
modo que, ao aprendê-la, ganhassem autonomia para praticá-la por toda a vida, nos
mais diferentes ambientes em que esta se manifestar; b) para que vivam melhor
individualmente e em sociedade (SANTANA; REIS, 2006).

Como afirmaram Tubino e Silva (2006), não é a simples prática do esporte que resultará
nos “milagres” da conquista da paz, da inclusão social, da promoção da saúde, do
fomento à educação e à compreensão desse fenômeno (esporte). Da mesma maneira,

Caderno de referência de esporte


a prática pura e simples não resultará nos benefícios propagados pelo esporte – entre
eles, o desenvolvimento de valores como cooperação e respeito às regras, ao
adversário e aos integrantes da equipe – e não pode ser o único “instrumento do
processo de desenvolvimento integral e de formação da cidadania” (TUBINO; SILVA,
2006, p. 15). É importante destacar ainda o fato de que “o esporte não é um fim em si
mesmo [...], mas sim um meio de que se valem os profissionais de educação física para
que os benefícios dos praticantes sejam alcançados” (TUBINO; SILVA, 2006, p. 15).
Agora, é importante destacar que o esporte educacional tem estrutura e princípios
bem definidos, os quais o justificam como meio de formação e de desenvolvimento
humano, a saber:
a) participação garantida – em cada faixa etária, devem existir turmas com exigências
motoras diferentes e com diferentes possibilidades de expressão motora;
b) reconhecimento de dificuldades e potencialidades individuais – o aluno deve perceber
o binômio treinamento/competição como algo possível de ser realizado, o que lhe traz
motivação. A atividade física bem orientada, dentro de um conhecimento prático do
esporte, tendo como valor intrínseco e motor da competição a ludicidade e a própria
competição, como exercício com o outro, garante a motivação da prática solidária,
concreta, comunitária e de busca de objetivos pessoais, na qual o aluno é respeitado
em sua individualidade. Assim, pressupõe-se a utilização do conceito de jogo possível,
vindo do universo da pedagogia do esporte (PAES, 2002) que, metodologicamente,
pode ser trabalhado com jogos ou com ações motoras adaptadas;
c) representatividade – de forma geral, grupos representativos são selecionados, em
termos esportivos. Nessa proposta, a possibilidade de representar a escola em
jogos e competições, para mostrar e aplicar o que foi aprendido, é garantida e 19
vista com naturalidade pelos alunos. Os eventos esportivos são planejados para
cada categoria e para cada modalidade, de forma que não estejam aquém nem
além da possibilidade de realização de cada grupo. O modelo pode ser o de jogos
amistosos, festivais, torneios ou campeonatos, envolvendo ou não outras
instituições escolares; de qualquer forma, é importante que nesses eventos sejam
promovidos debates sobre o convívio em grupo. Assim, deve-se destacar que os
eventos esportivos são de fundamental importância para a dimensão
educacional do esporte;
d) vida comunitária e ampliação da visão de currículo – vivenciar a escola e/ou o
ambiente educacional em que se estuda ou se passa a maior parte do dia, com
colegas e amigos de outras turmas e períodos, garante aos alunos o acesso a uma
das dimensões mais ricas e pouco exploradas, a dimensão de participação,
promotora da vida comunitária. Esta envolve não apenas o contato entre os alunos,
mas também entre as suas famílias, que, em função das aulas e de outras atividades
ou eventos, passam a acompanhar mais de perto a vida dos alunos;
e) prática esportiva vinculada a um projeto educacional – diferentemente do que ocorre
em grande parte dos clubes sociais, a ação pedagógica extracurricular segue um
projeto educacional comum, que acompanha a história dos alunos.
A partir daqui, é importante levantar algumas perspectivas e discussões que devem
permear a metodologia de desenvolvimento do esporte no âmbito do Programa de
Esportes da Fundação Vale.
A principal discussão consiste em retomar a aparente tensão produzida pela presença
da técnica esportiva no esporte educacional, sendo que, nessa perspectiva, tem-se a

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


utilização do esporte como elemento de formação para a cidadania e como elemento
de desenvolvimento humano.
Para poder dar resposta aos objetivos propostos pelo Programa de Esportes da
Fundação Vale7, tomando como base os pilares da educação estabelecidos no Relatório
Jacques Delors, “Educação: um tesouro a descobrir” (DELORS et al., 2012), o esporte com
foco educacional deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais
que, ao longo de toda a vida, serão, de algum modo e para cada indivíduo, os pilares
do conhecimento:
a) aprender a conhecer – isto é, adquirir os instrumentos da compreensão;
b) aprender a fazer – para poder agir sobre o meio envolvente;
c) aprender a conviver (aprender a viver juntos) – a fim de participar e cooperar com os
outros em todas as atividades humanas; e
d) aprender a ser – conceito essencial que integra os três precedentes.
É claro que essas quatro “vias” do saber constituem apenas uma, dado que existem
entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta.
Partindo desses quatro pilares da educação, o Instituto Ayrton Senna (2004)
aprofundou essa abordagem, indicando as competências que cada uma das
aprendizagens poderia desenvolver nos educandos:
a) aprender a conhecer – competências cognitivas;
b) aprender a fazer – competências produtivas;
c) aprender a conviver – competências relacionais;
d) aprender a ser – competências pessoais;
20 Com base nessas premissas, acredita-se que tais competências se traduzem em
atitudes diante da vida, ou seja, todas as crianças – no caso do Programa de Esportes
da Fundação Vale – são vistas como detentoras de potenciais que serão transformados
em competências, por meio da educação para o desenvolvimento humano. Assim, à
medida que a ação educativa se processa, crianças e adolescentes vão transformando
as competências em atitudes que irão tomar em todos os campos da vida.
Dentro dessa lógica, pode-se relacionar que:
a) aprendendo a ser, as crianças podem vir a desenvolver competências pessoais que
vão formar novas atitudes – ser elas mesmas e desenvolver um projeto de vida.
b) aprendendo a conviver, as crianças podem desenvolver competências relacionais
que vão formar a atitude de conviver com as diferenças, de cultivar novas formas
de interagir e de participar na vida social, fundamentadas na corresponsabilidade8;
c) aprendendo a conhecer, as crianças podem desenvolver competências cognitivas
que vão levá-las a “aprender a aprender”, ao apropriarem-se dos instrumentos do
conhecimento e utilizá-los para o bem comum;
d) aprendendo a fazer, as crianças podem desenvolver competências produtivas que
vão levá-las a atuar produtivamente, facilitando o ingresso e a permanência no
novo mundo do trabalho.
Tomando como base a compreensão de desenvolvimento humano da Fundação Vale,
deve-se explorar o esporte não apenas como um elemento de fortalecimento da

7
Esses objetivos estão relacionados no documento “Proposta pedagógica de esporte: Brasil Vale Ouro”
(FUNDAÇÃO VALE, 2013).
8
Corresponsabilidade (prefixo co = em conjunto) social é a capacidade do ser humano de compartilhar
responsabilidades entre dois ou mais atores envolvidos em uma situação ou contexto a ser vivenciado.

Caderno de referência de esporte


autonomia dos indivíduos, mas também de construção de cenários cooperativos que
possam levar a um fortalecimento do capital social9 nos territórios trabalhados.
As propostas de construção e de aplicação desses cenários cooperativos são
abordadas e apresentadas didática e pedagogicamente no caderno de referência
12 desta mesma série, intitulado “Pedagogia da cooperação”, no qual são
relacionadas, dentro do possível, aos quatro pilares da educação, especificados e
abordados anteriormente.
Além disso, deve ficar claro, considerando-se o estudo de Bracht (2000), que o que se
propõe como esporte educacional não é a abolição do ensino da técnica, das destrezas
esportivas ou das habilidades específicas, mas sim a subordinação desses aspectos a
outros fins, com um novo sentido para o ser humano e para o próprio esporte.
Um equívoco importante dessa discussão pedagógica ocorre em relação ao
chamado tecnicismo pedagógico. Bracht (2000) vê um tratamento pedagógico para
o esporte, em especial no ambiente escolar, e aponta ainda que existe uma confusão
entre “o tecnicismo esportivo e o tecnicismo pedagógico”, esclarecendo que não é
o fato de o professor trabalhar as técnicas do esporte que o faz um tecnicista, do
ponto de vista pedagógico.
A partir daí, pode-se pensar que, para além da “lógica do sistema esportivo, onde [sic]
o rendimento almejado é o máximo, não o possível ou o ótimo, considerando as
possibilidades individuais e dos grupos” (BRACHT, 2000, p. 17), existe uma possibilidade
de tratamento que pode ampliar essa lógica no esporte educacional, com o ensino
da técnica esportiva.
Essas reflexões apresentadas por Bracht (2000) trazem à discussão outro ponto 21
importante: a presença do pensamento reflexivo na prática esportiva. Observa-se
claramente que, na formação humana por meio do esporte, é necessária a ampliação
das estratégias de ensino com vistas à apreensão do esporte, bem como de outros
conteúdos não específicos ou exclusivos dessa prática.
No entanto, não se trata aqui de sair do contexto do campo ou da quadra para refletir
o ou sobre o esporte: é preciso combinar a prática esportiva à reflexão intencional e
ao planejamento. No entanto, é preciso também “não reduzir a mudança apenas ao
ato de acrescentar a reflexão à prática, e sim entender que a própria prática – a própria
forma do movimentar-se esportivo – precisa ser reconstruída” (BRACHT, 2000, p. 18).
Essa relação antagônica entre o esporte educacional e de rendimento aparece
igualmente na medida em que se considera a presença da ludicidade na prática
esportiva. O rendimento ou desempenho esportivo sempre foi visto como oposto ao
lúdico, como se a presença do lúdico fosse possível sem um contexto, como se fosse
tratado a priori, como se não sofresse a influência do momento histórico ou da razão
científica. Ora, o lúdico está presente em todas as ações humanas, e não é porque se
trata de uma atividade de aprimoramento técnico que não se pode ter uma
perspectiva lúdica envolvida (BRACHT, 2000).
O lúdico, segundo Bracht (2000), não existe em sua forma pura; pelo contrário, ele está
presente em várias formas de manifestação humana, pois é moldado culturalmente.
Nesse ponto, é cabível um pequeno relato de experiência vivenciada nas aulas de

9
O conceito de capital social utilizado aqui segue a teoria de Coleman referenciadas nas obras de Robert Putnam
(1993, 2000). A ênfase está no encontro presencial das pessoas e nas ações de fortalecimento dos elos de confiança,
de cooperação e de reciprocidade entre os indivíduos.

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


futebol do Programa Brasil Vale Ouro: quando eram propostas algumas atividades com
materiais diferenciados e regras estabelecidas, muitas vezes os alunos sugeriam o
seguinte – “Professor, vamos brincar de correr na pista, pois é mais legal!”.
Assim, parece claro que o lúdico se manifesta e está presente em quase todos os
momentos, apresentando relações importantes com a existência e com o percurso
histórico dos sujeitos, e não precisa necessariamente ser moldado com base em uma
“brincadeira” pré-concebida. Portanto, deve-se superar a competição da “turma do
rendimento” versus a “turma do lúdico” – entre tantas outras polaridades –, em favor de
uma abordagem complexa ou sistêmica do esporte como ferramenta de educação
(BRACHT, 2000). Para ilustrar ainda melhor esse debate, destaca-se a afirmação de Paes,
para quem “o jogo possível possui um caráter lúdico e ao mesmo tempo pode ser um
facilitador para os alunos compreenderem a lógica técnica-tática do esporte” (PAES, 2002).
Essa é uma discussão que avança muito quanto ao entendimento do esporte
educacional na atualidade. Por isso, é necessário que se superem os jargões e os
preconceitos sobre o tema, uma vez que o que se discute aqui é o direito dos alunos
a terem acesso de qualidade aos conhecimentos que envolvem o esporte.
Considerando-se a heterogeneidade da população e dos participantes deste
Programa de Esportes da Fundação Vale, é essencial utilizar-se de estratégias didáticas
para ensinar o esporte a todos. Assim, sempre existe algo a ser desenvolvido: aos que
já sabem, deve-se oferecer desafios para que se aprimorem; aos outros menos aptos,
deve-se propor estratégias de aprendizagem visando, o mínimo possível, à prática
esportiva da modalidade. Muitas vezes a ênfase pode ser diferenciada em termos de
22 estratégias, mas não quanto à intenção pedagógica de se propiciar o esporte a todos.
Quando se discute qualidade, está-se tratando do respeito ao aluno, às suas possibilidades
e às suas peculiaridades. Alguns autores, como Freire (2003), confirmam essa perspectiva
destacando princípios pedagógicos para se tratar do esporte; no caso, o futebol, mas que
podem facilmente, ser aplicados e utilizados em todas as demais modalidades ou práticas
esportivas. Esses princípios são mostrados na Figura 1, a seguir.

Figura 1.

Assim, nas assertivas acima, pode-se substituir o termo futebol por esporte, que o
significado permanecerá o mesmo. Segue-se adiante com base nesse entendimento,
com o intuito de ampliar e de justificar cada uma dessas assertivas.
Na medida em que se propõe ensinar o esporte a todos, toma-se como base a reflexão
de Freire (2003) com relação ao que ele chama de pedagogia da rua. A rua, literalmente
sem a mediação de um mestre, foi e ainda é um espaço de diversas aprendizagens

Caderno de referência de esporte


esportivas. Aliás, não se pode desconsiderar essa bagagem informal, pois ela enriquece
o planejamento pedagógico. A dinâmica de aprendizagem do esporte na rua – no
Brasil, em especial do futebol, como é bem sabido – muitas vezes não é condizente
com as concepções de mundo, de ser humano e de educação constantes dos
pressupostos teóricos que orientam o Programa de Esportes da Fundação Vale. Freire
(2003) ilustra essa preocupação com a situação clássica da organização dos times de
futebol: as crianças comumente excluem os mais “fracos”. Com isso, obviamente não
são criadas situações de participação coletiva; quem não fosse habilidoso o suficiente
para participar teria de ser, ao menos, o dono da bola.
Talentos esportivos como Ronaldo “Fenômeno”10 têm o potencial de desenvolver
suas habilidades e capacidades e, assim, obter um retorno promissor sem muito Ronaldo
esforço e orientação. Infelizmente, tais casos são exceções. Educadores entusiastas “Fenômeno”
do esporte de rendimento que direcionam sua atenção apenas para esses (1976-)
talentos, limitam sua atuação àquilo e àqueles que “não lhes demandam
muito trabalho”. Para Freire (2003), os profissionais adeptos dessa
conduta praticam quase que um darwinismo esportivo: uma seleção
natural baseada em uma determinada característica genética, inata.
Contudo, não é essa a abordagem que se prioriza e defende no
Programa de Esportes da Fundação Vale.
Assim, não se trata apenas de ensinar a todos: deve-se fazer bem feito. Assim,
ensinar bem o esporte a todos significa envolver-se, debruçar-se sobre a
fundamentação teórica, analisar o perfil do grupo, avaliar, resolver os problemas que
surgem nas atividades. Enfim, para essa tarefa é necessário um docente comprometido
e com planejamento. Principalmente em comunidades mais pobres, é comum o 23
entendimento de que o projeto esportivo é suficiente quando a bola está em campo,
quando o jogo acontece e quando o lanche é servido. Na verdade, o que importa é
ensinar todos os alunos com qualidade, independentemente do nível de habilidade
que eles apresentem, das condições do espaço de ensino-aprendizagem ou das
condições sociais em que eles vivem. Concorda-se com Freire (2003) quando ele diz
que todos podem aprender bem um esporte, com mais ou menos tempo.
O terceiro princípio de Freire (2003) se aproxima – e muito – daquilo que há pouco
foi definido como esporte educacional. Se se propuser a ensinar mais que o esporte a
todos, outras habilidades, assim como atitudes, valores, fatos e conceitos devem estar
explícitos na prática do ensino do esporte.
Na prática do futebol, por exemplo, além de passar, receber, finalizar e cabecear –
fundamentos técnicos dessa modalidade –, os alunos são também desafiados a
correr, saltar, melhorar a percepção espacial, aprimorar a lateralidade, condicionar o
coração a maiores esforços, dentre outros benefícios do esporte, ampliando suas
possibilidades de movimento e estimulando o ser humano a uma vida mais saudável.
Esses saberes ou conhecimentos cognitivos serão aliados à aprendizagem de outras
modalidades, como instrumentos para a melhoria da vida cotidiana, e muito
provavelmente da saúde dos sujeitos. No entanto, esse foco ainda está baseado na
questão física e no conhecimento cognitivo. Com relação aos outros – e inúmeros –

10
Ronaldo Luís Nazário de Lima, mais conhecido como Ronaldo “Fenômeno” ou ainda “Ronaldinho” (Rio de Janeiro,
22 de setembro de 1976), é um ex-futebolista brasileiro que atuava como atacante. Maior artilheiro na história das
Copas do Mundo (com 15 gols), eleito três vezes o melhor do mundo pela FIFA, Ronaldo foi revelado pelo Cruzeiro
(MG), em 1993, e transferiu-se para o PSV (Holanda), em 1994 (Informações disponíveis em sites de esporte como:
<http://esporte.ig.com.br/futebol/ronaldo/l1237863664000.html>).

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


saberes da formação humana, Freire (2003) exemplifica alguns deles: a convivência
em grupo, a construção das regras, a reflexão sobre essas regras, assim como a sua
mudança, com importante contribuição para a formação moral e social dos sujeitos,
o que se associa diretamente aos conhecimentos não cognitivos.
Entretanto, essas aprendizagens não ocorrem automaticamente: elas devem ser
estimuladas e mediadas pelos professores. Os alunos devem ser estimulados a resolver
os conflitos nas aulas e os problemas do grupo, a fim de compreender suas ações
individual e coletivamente. Deve-se estimular o desenvolvimento da autonomia, do
ser humano integral – e não apenas do craque –, por meio das situações vividas na
prática do esporte (FREIRE, 2003). Aqui, vale a proposição de Santana e Reis, quando
afirmam que

o esporte ensinado deveria contribuir para além do aprendizado dos gestos esportivos,
do bom posicionamento, do conhecimento das regras, para que a criança se
descobrisse, transpusesse limites, aprendesse cooperação e conquistasse autonomia
(SANTANA; REIS, 2006).

Os mesmos autores apontam, ainda, a necessidade de haver um “procedimento de


educar para a autonomia” (SANTANA; REIS, 2006). Cabe, aqui, fazer uma ressalva
importante sobre essa questão. Por muito tempo, principalmente na área do
exercício físico, aproximou-se o conceito de autonomia da ideia de independência
física, ou seja, a realização de uma tarefa motora sem ajuda ou orientação específica.
Contudo, não se trata disso, pois o desenvolvimento da autonomia envolve questões
muito mais amplas.
24 Na visão de Gerez e outros (2007), a autonomia é entendida como a capacidade que
a pessoa tem para o exercício do seu autogoverno, e é construída a partir do
conhecimento que ela tem de si e do mundo que a rodeia. Em uma ação autônoma,
a pessoa deve ser capaz de levar em conta seus valores e necessidades individuais,
assim como os valores sociais e a responsabilidade para com a coletividade, em uma
escolha consciente. Do ponto de vista filosófico, uma vez que a autonomia é

a condição primeira de humanidade, não se pode negar, então, que a possibilidade de


construí-la, bem como de mantê-la torna-se imprescindível para o alcance de uma vida
satisfatória e do aumento da saúde entre os sujeitos, pois ser autônomo significa ser
responsável tanto do ponto de vista individual como coletivo (GEREZ et al., 2007, p. 56).

Ou seja, se a autonomia é um dos objetivos da pedagogia do esporte, é ao conceito


acima que se reporta, para além da repetição independente e sem sentido de gestos
motores e de padrões mecânicos, o Programa de Esportes da Fundação Vale.
A toda essa gama de conhecimentos que a formação em pedagogia do esporte
engloba, pode-se acrescentar agora, tomando como base o pensamento de Paulo
Freire (1983), a necessidade de se preocupar em ensinar o aluno a ser mais. Gerez e
outros sintetizam esse discurso, apontando que a busca pelo ser mais

jamais poderá ser um ato solitário, pois somente ‘somos na medida em que os outros
também são’, o que inevitavelmente gera a necessidade de selar um compromisso
solidário com os outros homens em busca da libertação e transformação da realidade
desumanizadora. Aprender criticamente é, em suma, formar a autonomia. Não é um estado
de apropriar-se do conhecimento do professor, mas um ato de formação e de interação
da própria capacidade cognitiva do indivíduo com o meio (GEREZ et al., 2007, p. 228).

Caderno de referência de esporte


Após essa citação, e com a análise do conceito de autonomia, passa-se ao
entendimento do quarto princípio proposto por Freire (2003): ensinar a gostar do
esporte. É claro que, nesse caso, deve-se prezar por uma prática pedagógica que se
utiliza de situações motivadoras, que façam que o aluno passe a gostar do esporte.
Assim, essa vivência deve estimulá-lo a levar o esporte para outros momentos e para
outras esferas de sua vida. Para tanto, a prática deve ser realizada com atenção, com
liberdade, com um diálogo rico em sentidos e significados, sem exaurir os alunos com
discursos autoritários e impositivos, ainda tão comuns na prática do esporte.
A compreensão de desenvolvimento humano defendida pela Fundação Vale concilia
a promoção da autonomia individual com a busca pelo bem comum, como um
convite para a reflexão sobre o “valor dos valores” na vida de todos e de cada um dos
alunos.
Considerando o estudo de Reverdito, Scaglia e Paes (2009), ao avançar no processo
das reflexões comprometidas com a transformação e com a problematização do
esporte, o Programa Brasil Vale Ouro propõe, de acordo com a abordagem
anteriormente apresentada, por meio da prática pedagógica:
• transcender a simples repetição de movimentos, para que eles sejam conscientes,
críticos e reflexivos;
• assumir o compromisso com o ensinamento, com a transformação e com a
autonomia dos sujeitos, fundamentados sobre princípios e procedimentos
pedagógicos, valorizando sua cultura corporal e social, sobre os pilares da
diversidade orientada para todos, independentemente dos pré-requisitos;
25
• contextualizar a ação e promover a valorização de um ambiente formativo, mediador
e facilitador por meio do educador;
• estabelecer um corpo referencial para que se tenha uma ação educativa no esporte
que transcenda a simples repetição de movimentos, na qual o jogo constitui uma
ferramenta e um contexto formativo por excelência, dependendo da metodologia.

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


4. Considerações finais
Ao final deste caderno de referência, opta-se não por concluir, mas sim por considerar.
Isso porque diante dos inúmeros pontos apresentados, pela origem recente da
pedagogia do esporte e pela necessidade de se avançar em direção a uma
compreensão de seus objetivos e desafios quanto à compreensão de
desenvolvimento humano proposta, ainda se está longe de esgotar, em um único
livro-texto, os temas aqui expostos.
Entende-se que os tópicos e os apontamentos apresentados sobre o esporte não
poderiam ter a pretensão de esgotar a temática proposta, diante de sua dimensão e
complexidade, mas eles servem como reflexão e orientação para uma prática esportiva
mais humana, assim como para complementar e reforçar tópicos e questões
consideradas fundamentais para este debate, conforme apresentadas nos demais
volumes desta série, em especial os cadernos de referência 10, intitulado “Valores no
esporte”, e 12, “Pedagogia da cooperação”.
Desse modo, os professores ou técnicos, revestidos dos princípios e procedimentos
pedagógicos aqui relacionados, poderão ampliar seus valores educacionais e
formativos, sustentados por uma ação educacional consciente de sua função e sua
personalidade pedagógica.
É prioritário destacar que, para a aplicação dos preceitos e sugestões discutidas neste
26
caderno, é necessária uma formação docente específica e de qualidade. Isso exige que
o professor de educação física passe a apoiar-se em áreas correlatas, como a educação,
a filosofia, a sociologia e a história.
Diante das indicações anteriores, pretende-se, assim, que esse novo conceito seja coerente
e possível, para a construção de uma pedagogia do esporte pautada em princípios éticos
da formação humana, para além dos preciosismos acadêmicos e científicos que,
paradoxalmente, muitas vezes desaceleram o avanço da prática do esporte.
Como diz Tubino (2002), as modalidades esportivas necessitam de uma forma
específica de aprendizagem, que estimulem as pessoas a procurar suas práticas. Por
isso, deve haver uma pluralidade de métodos utilizados na educação física e no
esporte, cujas circunstâncias serão decisivas na escolha de uma dessas opções.
Dito de outro modo, a pedagogia do esporte em geral, e a sociologia em particular,
devem ser experimentadas e refletidas constantemente no dia a dia da prática
esportiva. Para se aprender sobre elas, é imprescindível dar aula. Pois é na aplicação no
campo do esporte que os problemas são manifestados, resolvidos e respaldados pela
reflexão coerente, continuada, sistematizada e rigorosa. Com efeito, essa construção não
é solitária: faz-se com os alunos e com outros professores, visando a uma pedagogia do
esporte que contemple os anseios e as necessidades de todos os envolvidos.
Em regra, o ensino do esporte deve orientar-se essencialmente – se não
exclusivamente – pelo aprender a conhecer e, em menor escala, pelo aprender a fazer.
As duas outras aprendizagens dependem, na maioria das vezes, de circunstâncias
aleatórias, quando não são obtidas, de algum modo, como consequência natural das
duas primeiras.

Caderno de referência de esporte


Pensa-se que cada um dos quatro pilares do conhecimento deve ser objeto de igual
atenção por parte do ensino estruturado, a fim de que a educação ocorra como uma
experiência global a ser realizada ao longo de toda a vida, nos planos cognitivo e não
cognitivo e, ainda, no plano prático, para o sujeito como pessoa e membro da sociedade.
Isso pressupõe que se supere a visão puramente instrumental da educação,
considerada como a via obrigatória para se obter certos resultados (aquisição de
capacidades diversas e fins de ordens econômicas), e se passe a considerá-la em toda
a sua plenitude: como realização da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser.
Por fim, esse pode ser considerado o maior desafio do Programa de Esportes da
Fundação Vale.

27

O esporte como possibilidade de desenvolvimento


Bibliografia
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Caderno de referência de esporte

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