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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


n. 45-46, jul.2013/jun.2014

DESAMPARO E VULNERABILIDADES

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / INSTITUTO APPOA


Porto Alegre
ISSN 1516-9162
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 45-46, jul. 2013/jun. 2014

Título deste número:


DESAMPARO E VULNERABILIDADES

Editores:
Deborah Nagel Pinho e Maria Ângela Bulhões

Comissão Editorial:
Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Joana Horst, Maria Ângela Bulhões, Mariana Hollweg Dias, Marisa Terezinha Garcia
de Oliveira, Otávio Augusto Winck Nunes, Renata Maria Conte de Almeida.

Colaboradores deste número:


Àlvaro Olmedo, André Oliveira Costa, Lucy Linhares da Fontoura, Luiza Olmedo.

Editoração:
Jaqueline M. Nascente

Consultoria linguística:
Dino del Pino

Capa:
Clóvis Borba

Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém es-
tudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação
a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.

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R454

Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre / Associação


Psicanalítica de Porto Alegre. - Vol. 1, n. 1 (1990). - Porto Alegre: APPOA, 1990, -

Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://
www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em março 2015. Tiragem 500 exemplares.
DESAMPARO E VULNERABILIDADES
SUMÁRIO

EDITORIAL .................................. 07 Apoio matricial, uma clínica


em extensão
TEXTOS Matrix support, a clinic in extension
Desamparo e Vulnerabilidades no Elaine Rosner Silveira ...................... 78
Laço Social – a função do psicanalista
Helplesness and Vulnerabilities in the A clínica e as práticas de cuidado
Social Tie – the function of the psychoanalys na rede de atenção à infância
Jaime Betts ....................................... 09 e adolescência
The clinic and the care practices in the
O desejo do psicanalista face ao attention to childhood and adolescence service
desamparo contemporâneo Ieda Prates da Silva e
The desire of the psychoanalyst in the Tatiane Reis Vianna .......................... 89
face of contemporary distress
Caterina Koltai ................................... 20 “Secretários do Alienado”?
A psicose e a instituição Psicanalítica
Um luto impossível: “Secretaries of the Alienated”? The
efeitos de trauma em imigrações psychosis and the psychoanalytic Institution
An impossible mourning: Siloé Rey
effects of trauma in immigration Liz Nunes Ramos ........................... 100
Ana Costa ......................................... 32
Corpo e violência estrutural das
Do Exílio ao Asilo: Escutas Clínicas psicoses: o suicídio do outro
From exile to asylum: clinic listenings em Louis Althusser
Alexei Conte Indursky, Body and psychosis’s structural violence:
Barbara de Souza Conte, the other’s suicide in Louis Althusser
Daniela Feijó e Liege Didonet ........... 37 Manoel Madeira ............................. 108

Imagens, apesar da catástrofe A Casa dos Cata-Ventos: uma aposta


Images despite the catastrophe na dimensão política do brincar
Robson De Freitas Pereira ................ 49 The Casa dos Cata-Ventos:
a bet on the political dimension of play
É possível falar sobre essa tragédia? Anderson Beltrame Pedroso e
Is it possible to talk about this tragedy? Edson Luiz André de Sousa ............ 122
Luciana Portella Kohlrausch .............. 58
A autoridade do professor e a questão
A colaboração da Psicanálise do saber-fazer com o sinthoma
na construção do Serviço de The authority of the teacher and the question
Acolhimento às vítimas do of know-how with the sympthom
incêndio na boate Kiss Marcelo Ricardo Pereira ................. 135
The contribution of Psychoanalysis in the cons-
truction of the Embracement Service to the victi- A dimensão traumática da educação
ms of the fire in the Kiss nightclub The the traumatic dimension of education
Volnei Antonio Dassoler .................... 67 Roséli M. Olabarriaga Cabistani ......146
Educação e vida pulsional VARIAÇÕES
Education and drive life Os números irracionais de Lacan
Gerson Smiech Pinho ...................... 153 (parte 2): as transmutações do fi
The irrational numbers of Lacan (part 2):
Educação (im)possível? the transmutations of fi
(Im)possible education? Ligia Gomes Víctora ....................... 218
Larissa Costa Beber Scherer ........... 161

A prática dos educadores Dez proposições para


na contemporaneidade: ler Jacques Lacan
algumas reflexões Ten propositions to read Jacques Lacan
Teaching practice in the contemporary Norton Cezar Dal Follo da Rosa Junior ... 226
society: a few reflections
Cristina Py de Pinto Gomes Mairesse .... 172 Poética do letramento
The poetics of literacy
Elaine Milmann ............................... 243
ENTREVISTA
Transferências de um psicanalista
Interview: Transfers of a psychoanalyst
Alfredo Jerusalinsky ........................ 181

RECORDAR, REPETIR, ELABORAR


Uma aula sobre a dialética hegeliana
do senhor e do escravo
A lesson on the Hegelian dialectic
of master and slave
Marilena Chauí ............................... 192
EDITORIAL

O desamparo é uma experiência fundamental da condição humana e é


em torno dela que se constitui a posição do sujeito no laço social. Freud
faz do estado de desamparo (hilflosigkeit) um conceito de referência em sua
obra. Ele o enfatiza como o protótipo das situações traumáticas, geradoras
de angústia no adulto, pois o confronta, no tempo presente, com a impotên-
cia de seu estado de desamparo infantil originário. Segundo Freud, o mal-
estar, a infelicidade e as situações traumáticas chegam de três direções: do
sofrimento do próprio corpo, do mundo externo e das insatisfações ou da
violência desencadeadas pelas relações com os outros. O sofrimento pro-
veniente desta última talvez seja o mais penoso de todos eles.
Com a cultura, se responde a este inevitável mal-estar da condição hu-
mana que desencadeia inúmeras situações de vulnerabilidade, evidencian-
do o eterno conflito entre civilização e barbárie. O catastrófico se articula
com o desamparo estrutural e o sujeito se confronta com o trauma do real
irrepresentável. Toda vez que ficam esquecidas a fragilidade e a finitude da
condição humana e ideais são impostos em nome do progresso, da razão,
ou da fé, o resultado pode ser da ordem da barbárie.
O desamparo e as diferentes vulnerabilidades colocam um desafio para
a clínica da psicanálise em extensão. Diante da irrupção do real e dos restos
dela decorrentes o trabalho se impõe, buscando fazer contornos possíveis.
Nesta revista, os textos trazem recortes do que é encontrado na clínica e do
que se testemunha, como sujeitos de uma época. É de fundamental impor-
tância para o trabalho que norteia o Instituto APPOA propor debates sobre
as intervenções fundadas no desejo do analista e na ética da psicanálise
junto ao social e seu inevitável mal-estar. Nesse sentido, contemplam-se
ensino, formação e transmissão da psicanálise.
7
EDITORIAL

O convite a pensar o sujeito, sua inserção na cultura e o sofrimento


disso decorrente já estava presente em Freud, Lacan e outros que os suce-
deram. Reiteramos o convite já enunciado e desejamos a todos uma ótima
leitura!

8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.09-19, jul. 2013/jun. 2014

DESAMPARO E
TEXTOS VULNERABILIDADES NO
LAÇO SOCIAL – A FUNÇÃO
DO PSICANALISTA1

Jaime Betts2

Resumo: O presente artigo aborda o conceito de desamparo no âmbito das vul-


nerabilidades com que o mal-estar na cultura contemporâneo confronta o sujei-
to, questionando a função do psicanalista e sua inserção no contexto institucio-
nal e as intervenções possíveis no laço social dirigidas pela ética da psicanálise.
Palavras-chave: desamparo, vulnerabilidades, ética da psicanálise, laço social,
psicanálise em extensão.

HELPLESNESS AND VULNERABILITIES IN THE


SOCIAL TIE – THE FUNCTION OF THE PSYCHOANALYS
Abstract: The present paper discusses the concept of helplessness in face of
vulnerabilities with which culture and its discontents confront the subject, ques-
tioning the function of the psychoanalyst in institutions and possible interventions
in social ties guided by psychoanalytic ethics.
Keywords: helplessness, vulnerabilities, psychoanalytic ethics, social ties, psy-
choanalysis on extension.

1
Versão ampliada do texto de abertura da III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Inter-
venções Sociais – Desamparo e Vulnerabilidades, agosto de 2013, em Porto Alegre.
2
Jaime Betts; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e
Diretor Executivo do Instituto APPOA. Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do
processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)Velações
do Olhar – recortes do processo criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes,
2005. E-mail: jaimebetts@gmail.com

9
Jaime Betts

D esamparo e Vulnerabilidades. Desamparo está no singular, pois se trata


de um conceito metapsicológico e de uma condição estrutural primordial
do ser humano. Já as vulnerabilidades são plurais, inúmeras, oriundas de
ameaças que vêm de diferentes direções.
Freud, em Mal-estar na civilização ([1929]1996), afirma que a infelici-
dade e o mal-estar (e as situações de vulnerabilidade, potencialmente trau-
máticas) chegam aos seres humanos de três direções: da fragilidade e do
sofrimento do próprio corpo; do mundo externo e das forças da natureza;
e das insatisfações ou da violência desencadeadas pelas relações com os
outros.
O mal-estar proveniente da relação com os outros, pondera Freud, tal-
vez seja o mais penoso de todos eles. Quando somos atingidos por alguma
dessas direções, a violência, a perda, a doença ou o catastrófico se articula
com o desamparo primordial e somos confrontados de modo mais ou menos
direto, com mais ou menos anteparos, com o trauma do real irrepresentável.
Através da cultura/civilização/laço social3, procuramos fazer frente a
esta condição de desamparo. Entretanto, o mal-estar da vida em sociedade
é inevitável e nos defronta com inúmeras situações de vulnerabilidade em
seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie. Em to-
das estas situações, o sujeito e o outro estão diretamente implicados, muito
embora estejam frequentemente alienados dessa implicação, bem como de
sua responsabilidade por suas escolhas e seus atos.
Freud faz do estado de desamparo ̶ hilflosigkeit ̶ do bebê humano um
conceito fundamental ao longo de sua obra, enfatizando-o como o protótipo
das situações traumáticas. As situações tornam-se traumáticas e geradoras
de angústia intensa no adulto, na medida em que o confrontam, no tempo
presente, com a impotência de seu estado de desamparo infantil originá-
rio. Nesse estado, sua vulnerabilidade é absoluta em sua dependência das
atenções vindas de um outro cuidador, constituindo o que Freud denominou
complexo do próximo (Freud, [1895]1976). O laço social com o outro cuida-
dor está colocado desde os primórdios da constituição do sujeito.
Entretanto, se o laço social com o outro cuidador está colocado desde
o início, este laço só é possível por meio da linguagem, o que quer dizer que
entre o sujeito e o outro está o Outro da linguagem, que Lacan ([1953]1998)
denomina em certo momento de seu ensino como o muro da linguagem.

3
Faço aqui como Freud ([1927]1976) e não diferencio os termos, acrescentando o de laço
social, forjado por Lacan.
10
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...

Soma-se à condição de imaturidade do infante humano o fato de que


a linguagem também nos deixa desamparados, pois, ao não nos fornecer a
palavra final, a palavra que finalmente recobriria perfeita e definitivamente
o furo do real, somos confrontados com o impossível, o que nos remete ao
desamparo primordial. O impossível em psicanálise é o real, que é impossí-
vel de ser simbolizado.
Como o desamparo infantil é uma condição estrutural, ele implica des-
de o início uma abertura ao outro, ao outro cuidador, que interpreta os gritos
e manifestações de desconforto e sofrimento do bebê como um apelo. Apelo
que tem como resposta a significação sancionada pela interpretação dada
aos mesmos pelo adulto. As significações atribuídas pelo adulto fornecem
uma imagem do objeto de satisfação e seus traços são inscritos no corpo
do bebê pelo dom materno da alternância de sua presença e de sua ausên-
cia. Esta alternância simbólica de presença/ausência condiciona o funciona-
mento das funções corporais intrincadas ao processo libidinal da montagem
das pulsões que erogenizam o corpo, ao mesmo tempo em que constituem
o lugar do sujeito nas relações de parentesco e no laço social.
Esses encontros primordiais entre o bebê e o adulto se inscrevem
como processo de desejo, fundando o laço social em torno do desampa-
ro estrutural como desejo de desejo do outro. Sentir-se amado pelo outro,
visto como um ser superior, representa inconscientemente uma proteção
contra todas as ameaças. E a ameaça maior torna-se a da perda do amor
ou a separação do ser protetor. A ameaça de ser abandonado ou de ser
confrontado com a perda do ser amado remete o sujeito à sua condição de
desamparo e impotência primordiais. E tudo isso se dá banhado num caldo
de cultura que determina as diferentes configurações simbólicas e imaginá-
rias do laço social em que os cuidados são ministrados.
Nesse sentido, a cultura/civilização/laço social é substituta da função
materna (Rassial, 2006) diante do desamparo, pois fornece, por um lado,
meios simbólicos e imaginários de reconhecimento do que representa ao
sujeito e reafirma sua identidade. Por outro lado, a cultura é herdeira do su-
pereu parental, estabelecendo deveres morais e ideais do eu, bem como é
herdeira da função paterna, pois permite que possamos ser criativos a partir
do amparo materno diante do impossível, inventando novas formas de viver
em sociedade. Ou seja, é em torno da experiência do desamparo que se
constitui tanto o sujeito e sua posição no laço social, quanto o próprio laço
social, pois cada qual se estrutura em torno do impossível.
Cada língua viva constrói uma cultura específica para aqueles que a
compartilham, construção que implica um laço social em que a violência
simbólica que determina o que fica excluído da mesma se constitui como
11
Jaime Betts

tabu. Imigrantes, exilados e refugiados – os estrangeiros, os diferentes, os


de outra tribo – são alvos preferenciais da hostilidade e até mesmo do ódio
de parte dos que são da cultura local. Por quê?
Quando uma cultura entra em contato com outra, o que é tabu para
uma não necessariamente é tabu para a outra. Quando o que é proibido de
um lado é exposto pelo outro, o mal-estar se intensifica e a hostilidade se
deflagra no laço social. Quanto mais se recusa a violência simbólica funda-
dora de uma cultura e se atribui a mesma ao estrangeiro, mais a intolerância
se instala e a violência real eclode nos corações e mentes, na convivência
dos estrangeiros para nós mesmos4.
O capitalismo globalizado, marcado pela tendência à dissolução de
vínculos e promoção de desigualdades nos espaços ocupados pelos grupos
que se deslocam e cruzam fronteiras, vem realizar em escala planetária o
mito da torre de Babel. Mito no qual a construção da torre (para além das
interpretações de cunho religioso, trata-se de uma metáfora da construção
da vida em sociedade) é interrompida pela confusão de línguas e da violên-
cia desencadeada pela mesma, tornando o entendimento e o convívio, no
conjunto de seus construtores, impossível.
E ‘assim caminha a humanidade’5, criando por um lado novas formas
de viver e de desfrutar a vida, assim como novas formas de destruição e
barbárie. Frequentemente, diante da falta no Outro, referido anteriormente,
de um significante definitivo, surge a figura de plantão de um mestre ou
amo, que se acha dono da verdade e a quem se recorre em busca dessa
ansiada e ilusória palavra final que poupe o confronto com o desamparo. As
diversas formas de messianismo, tirania, colonialismo ou totalitarismo que
são forjadas no laço social respondem de forma alienada e alienante a esse
desamparo estrutural.
Frente ao sofrimento subjetivo compartilhado no laço social cabe per-
guntar: quais as intervenções possíveis e compatíveis com a ética da psica-
nálise, quando se cruza a fronteira de uma língua?
Diante das questões com que a diferença cultural confronta o laço so-
cial contemporâneo – confronto intensificado com o incremento das migra-
ções regionais e imigrações –, a regra que vigora de modo predominante
nas comunidades culturais ao redor do mundo é etnocêntrica. Ou seja, é

4
Referência ao título do livro de Julia Kristeva, O estrangeiro de nós mesmos, lançado, no
Brasil, em 1994, Ed. Rocco.
5
Alusão ao título do clássico do cinema de 1956, dirigido por George Stevens e estrelado por
James Dean, Elizabeth Taylor e Rock Hudson.
12
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...

imposta ao estrangeiro uma escolha forçada de ser assimilado às regras e


costumes locais, ou ser estigmatizado e excluído (o que é comum acontecer
mesmo quando a assimilação se deu – o estrangeiro nunca será visto como
um nativo, por mais que se esforce e renegue suas origens). O problema,
tanto para o sujeito, quanto para o laço social, são as consequências psico-
patológicas que a exclusão e a perda da língua e da memória trazem consi-
go na alienação requerida pelas políticas de assimilação. Diferentemente de
uma perspectiva de adaptação do sujeito ao contexto social, o discurso do
analista implica permitir ao sujeito, através do recorte simbólico dos signifi-
cantes que o representam para outros significantes – incluindo significantes
da cultura de chegada –, construir socialmente sua inserção na comunidade
local. E vice-versa, ou seja, o processo desencadeado pelo efeito sujeito
de desejo implica que o sujeito da cultura local também possa se reconhe-
cer em significantes que o representam para outros significantes, inclusive
alguns da cultura estrangeira. O efeito sujeito de desejo, como veremos
adiante, implica um reordenamento micro, por vezes macro, dos elementos
do laço social – individuais, políticos e culturais.
Nesse sentido, a clínica, intervenção e pesquisa em psicanálise no
âmbito da diferença cultural no laço social é:

[...] um percurso que estuda o modo segundo o qual nossas cul-


turas fazem trabalhar as figuras da origem e da alteridade, do es-
tranho e do familiar, seus efeitos sobre as realidades das trocas
das determinações identitárias, mas também a ressonância des-
tes tratamentos da ‘identidade-alteridade’ sobre o real dos corpos
(Douville, 2004, p.190).

Segundo Lacan ([1970-1971]1992), o que faz laço social é o discurso


(não desenvolveremos extensamente a sua ‘teoria dos quatro discursos’).
Lembramos apenas que o discurso é uma estrutura linguageira que organi-
za a comunicação e especifica as relações do sujeito com os significantes e
com o objeto, sendo determinante para o sujeito e regulador das formas do
laço social (Chemama, 1995).
Ocorre, nesse sentido, que cada vez mais a violência no laço social
contemporâneo é organizada pelo discurso capitalista e pelo discurso da
ciência. No discurso do capitalista, o sujeito do inconsciente, sujeito de de-
sejo, é visto exclusivamente segundo sua potência fálica de consumidor
manipulável pelo marketing, alienável no gozo de consumo dos objetos ofer-
tados. O discurso da ciência, por sua vez, se funda sobre a foraclusão do
sujeito de desejo. O sujeito do enunciado é reconhecido, mas o sujeito da
13
Jaime Betts

enunciação é foracluído. É o discurso do analista que vem recolher pela


escuta o sujeito de desejo foracluído pela universalização que o discurso da
ciência introduz, ou que o discurso do capitalista cala pela mercantilização
do desejo com a oferta de consumo de toda sorte de objetos que fazem
semblante ao obscuro objeto do desejo.
O sujeito do enunciado pode ser universalizado através de um discurso
que se torne suficientemente hegemônico para uniformizá-lo numa massa
desumanizada que se identifica pela marca dos objetos que consome, e
que facilmente entra numa luta de puro prestígio de vida ou morte com os
portadores de uma marca diferente da sua, fenômeno de identificação ima-
ginária descrito por Freud em Psicologia de grupo e a análise do eu (Freud,
[1921]1976).
Os campos de concentração e outras tantas formas contemporâneas
de banalização do mal em nossas comunidades decorrem da desumaniza-
ção, fruto da universalização introduzida pelo discurso da ciência, que exclui
a singularidade do sujeito do desejo, assim como o aliena de sua implicação
e responsabilidade por seus atos (Lacan, [1967]2003). Segundo Hannah
Arendt (1963), os discursos totalitários alienam o sujeito, privando-o da ca-
pacidade de pensar.
O sujeito da enunciação, por sua vez, é sempre singular, contado um
por um. A função do psicanalista é apontar o impossível, o que abre cami-
nho para a simbolização da falta, dando lugar para o sujeito de desejo e
minimizando as ilusões com que o laço social procura recobri-las. Em outras
palavras, ser operador da psicanálise, seja em intensão, seja em extensão,
é apontar na transferência quando surgem na fala os significantes que re-
presentam o sujeito, um por um, para outros significantes, perfazendo o
litoral com o impossível, permitindo que a capacidade desejante de pensar
e criar advenha.
A função da psicanálise em extensão é presentificar a psicanálise no
mundo. A psicanálise em intensão presentifica a psicanálise através da clí-
nica do sujeito individual, ou seja, preparando operadores da psicanálise,
lembrando aqui a afirmação de Lacan, de que toda análise que chega a seu
fim forma um analista, seja ele praticante ou não (Lacan, [1968]2003).
O operador da psicanálise em extensão pode presentificar a psicaná-
lise no mundo de diferentes maneiras, nos mais diferentes campos profis-
sionais, mas será sempre um operador da psicanálise implicado no que faz,
e nunca um aplicador da psicanálise que opera de modo selvagem fora de
um laço transferencial.
Cabe lembrar que o caminho que cada sujeito percorre no campo da
psicanálise é sempre singular, e árduo, pois, no percurso analítico se trata
14
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...

de recortar nas múltiplas repetições sintomáticas os significantes que deli-


mitam as bordas do impossível.
O ato analítico do recorte significante do impossível conjuga também
a desconstrução das identificações imaginárias que sustentam as certezas
de um sujeito, bem como os significados estabelecidos na cultura aos fatos
e às coisas, e a definição dos usos e costumes que regulam as relações so-
ciais com que se procura recobrir o impossível. Nesse sentido, nas palavras
de Douville: “laço social designa [...] o modo como uma coletividade mas-
cara uma falta estrutural na relação do sujeito com o Outro” (2004, p.181).
Qualquer que seja o campo de implicação do operador da psicanálise,
o que deve predispor o psicanalista na clínica em extensão é o desejo do
analista de escutar a prevalência do saber textual onde quer que se mani-
feste. O inconsciente é um saber textual insabido pelo sujeito, pois precisa
ser decifrado a partir de suas associações livres, para que os significantes
(que representam o sujeito para outros significantes) possam ser identifica-
dos. E o desejo do analista é o desejo de que surja a diferença, de que a
falta estrutural (o impossível) em que advém, o sujeito de desejo seja reco-
nhecido através dos seus significantes no laço social.
A diferença é produzida pelo real que não cessa de não se inscre-
ver (Lacan, [1972-1973]1982), fazendo hiato entre S1 e S2. Presentificar
a psicanálise no mundo é presentificar a ética do desejo no laço social. A
inclusão do sujeito de desejo no laço social resulta no estabelecimento da
inscrição de uma falta no Outro, e marca um processo singular, diferencia-
do, para cada sujeito, mesmo estando entre outros, por fazer parte de uma
equipe ou de um coletivo.
Cabe ao operador da psicanálise apontar o impossível ali onde é reco-
berto pelas identificações imaginárias que sustentam as diferentes formas
de alienação, exclusão e dominação no laço social, nas quais o sujeito do
desejo é rejeitado, forcluído, submetido ou alienado.
A clínica em extensão quase sempre se caracteriza por ser uma clínica
entre vários e, portanto, como clínica inserida num contexto institucional
multiprofissional. Quando um operador da psicanálise – alguém atraves-
sado pela ética da psicanálise – se encontra inserido num contexto institu-
cional, como se posicionar? A questão que se coloca nessa circunstância é
como o discurso do analista (e seu operador) se insere na instituição sem
se dissolver nos discursos que fundam e/ou circulam na instituição? Fre-
quentemente, como último recurso, o analista fica isolado em seu canto,
atendendo seus pacientes.
Outra situação relativamente comum nas instituições é de o psicana-
lista ocupar algum cargo administrativo ou de direção ou coordenação. E
15
Jaime Betts

aí a questão é como exercer o cargo e suas responsabilidades e também


operar a função de psicanalista?
Com relação a isso, cabe lembrar que, sempre que o reconhecimento
dos significantes da emergência do sujeito no contexto institucional ocorre,
há certo efeito – salutar, diga-se de passagem – de desorganização das
regras institucionais estabelecidas. Os enunciados institucionais dão lugar
à enunciação singular de vozes plurais. Abre-se uma fresta de reorgani-
zação das regras postas pelo poder instituinte da emergência do efeito
sujeito de desejo. Por vezes, o efeito se limita ao sujeito em questão e seu
laço social com os colegas. Mas há momentos fecundos, em que o recorte
de significantes, chave do saber textual, que subjaz às regras, permite que
as mudanças institucionais aconteçam. Nesse sentido, em Instância da
letra, Lacan ([1957]1998) coloca: “É que ao tocar, por pouco que seja, na
relação do homem com o significante [...] altera-se o curso de sua história,
modificando as amarras de seu ser” (p.531).
Um exemplo comum nas instituições é o das equipes multiprofissio-
nais, nas quais o operador da psicanálise se encontra inserido. Nas equi-
pes multidisciplinares, cada profissional aborda a questão trazida pelo su-
jeito desde o ângulo específico de sua disciplina, geralmente não levando
em consideração as intervenções dos demais profissionais. E a posição
do sujeito, objeto das intervenções, tampouco é levada em consideração,
pois caberá a ele juntar os pedaços de cada recorte disciplinar a que é
submetido. É o próprio sujeito que se vê desamparado diante do fato de
ser dissecado por cada especialista. Geralmente não é abordado como
uma pessoa, que pode precisar de intervenções de diferentes especialida-
des, mas que seja levado em conta como sujeito de desejo.
A lógica que vigora no contexto predominante da multidisciplinarida-
de é de que o sujeito é que deve se adaptar ao modo de funcionamento de
sobreposição das especialidades (seja na educação, na saúde mental, ou
outro campo) e não a abordagem da equipe levar em consideração a sin-
gularidade de seu caso, o que deveria ser o ordenador das intervenções
das diferentes especialidades.
Para que a prática clínica psicanalítica em contextos institucionais
– por exemplo, da atenção educativa numa escola, da atenção à saú-
de mental de um CAPS, ou do atendimento hospitalar – possa poupar o
sujeito que os procura de ser esquartejado pela multidisciplinaridade dos
profissionais das diferentes disciplinas agindo em paralelo em relação aos
demais, o operador da psicanálise pode intervir no sentido de buscar que
o funcionamento da equipe seja regido numa perspectiva interdisciplinar, e,
num segundo tempo, como equipe transdisciplinar (Pais, 1996).
16
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...

Segundo Pais (1996), uma equipe interdisciplinar se caracteriza por


uma concepção de sujeito compartilhada por todas as disciplinas implica-
das na mesma, viabilizando uma comunicação entre as disciplinas. Essa
concepção é construída a partir do cotejo das diferenças no marco da pro-
dução teórico-clínica de cada especialidade, permitindo que adquiram sen-
tido umas em relação às outras. Trata-se de uma conquista importante no
funcionamento de uma equipe, pois é condição necessária para que sua
prática clínica possa chegar a ser transdisciplinar.
Uma prática clínica transdisciplinar se alcança, conforme o autor, quan-
do a equipe, além da comunicação interdisciplinar, opera a partir de uma
concepção ética comum. Ou seja, quando uma equipe tem como referência
ética o conceito de sujeito de desejo (Pais, 1996). E, por isso, toma sempre
o caso a caso em sua singularidade no laço transferencial. Tomar caso a
caso em sua singularidade no laço transferencial deve ser o ordenador das
intervenções das diferentes especialidades, para além das rivalidades ou
disputas de prestígio de cada disciplina dentro do contexto institucional.
A construção de um funcionamento transdisciplinar não é pouca coi-
sa, e nem é fácil, pois ao incluir o sujeito de desejo, o instituído é posto
em questão, dando lugar à palavra humanizante, o que implica, como foi
dito acima, certa desorganização das regras da instituição e das formas de
interação dentro da equipe multiprofissional.
Voltando ao tema do operador da psicanálise que trabalha em insti-
tuições, situar sua função implica verificar como o discurso do analista se
insere na instituição em relação aos demais discursos vigentes na mesma,
bem como questionar sempre o posicionamento do operador da psicanáli-
se diante das regras institucionais.
O reconhecimento dos significantes que representam o sujeito opera-
do pelo discurso do analista implica certo questionamento que surpreen-
de e provoca uma salutar desorganização das regras instituídas, ou seja,
desencadeia um efeito de “oxigenação” do laço social dentro do contexto
instituído, por provocar certa descontinuidade, tanto com o que é esperado
implicitamente no modo de funcionamento da instituição, quanto explicita-
mente em seu planejamento.
O paradoxo da posição do operador da psicanálise cuja prática está
inserida no contexto das instituições implica, de um lado, o reconhecimen-
to do que legitima a ordem instituída na qual se encontra, e, por outro,
sustentar o efeito sujeito de desejo que o ato analítico implica, e a ruptura
decorrente com a ordem instituída.
A ética da psicanálise implica permitir uma abertura no laço social insti-
tuído para o advento do sujeito. Se a ética da psicanálise se define por uma
17
Jaime Betts

ética do bem dizer do desejo, a mesma está disjunta da moral do serviço


dos bens, assim como da moral universalizante da saúde e do bem-estar
decorrentes da medicalização do cotidiano.
Levando em consideração o que foi dito acima, o operador da psica-
nálise, ou seja, agente do discurso do analista, seja na clínica em intensão,
seja na clínica em extensão, deve levar em consideração três operadores
da leitura do saber textual em sua escuta e intervenções (Brousse, 2003):
Primeiro: o Outro é barrado, ou seja, não existe palavra final sobre o
que quer que seja. O que quer dizer que as suposições de saber instituídas
(e seus mestres de plantão) podem ser interrogadas;
Segundo: sustentar esta abertura à fala do sujeito implica que o opera-
dor da psicanálise suporte o sujeito-suposto-saber na relação transferencial
em que o sujeito endereça seu sintoma, ao mesmo tempo em que questiona
o sintoma institucional no qual se encontra inserido e no qual seu gozo está
de algum modo implicado;
Terceiro: O sujeito barrado ($), o sujeito do inconsciente enquanto sa-
ber textual e não referencial, que emerge na fala do sujeito na relação trans-
ferencial, marcado pelos significantes de sua história e cultura, questiona
o saber referencial instituído no laço institucional pelos “especialistas” de
plantão.
O desamparo e as múltiplas vulnerabilidades no laço social colocam
um desafio para a clínica da psicanálise em extensão. Lacan tinha a ex-
pectativa de que o discurso analítico pudesse fundar um novo laço social,
em que o sujeito de desejo pudesse ser escutado e reconhecido em seus
significantes. Estaremos à altura do desafio?

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18
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...

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Recebido em 16/05/2014
Aceito em 03/07/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

19
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.20-31, jul. 2013/jun. 2014

TEXTOS
O DESEJO DO PSICANALISTA
FACE AO DESAMPARO
CONTEMPORÂNEO

Caterina Koltai1

Resumo: Este artigo pretende abordar o desejo do analista face ao desamparo


contemporâneo, através de uma breve pontuação das principais transformações
sociais e políticas do último século, assim como das que ocorreram na própria
psicanálise, enquanto teoria e terapêutica. Salienta a importância da criatividade
do analista no acolhimento dessa experiência fundamental da condição humana
que é o desamparo.
Palavras-chave: desejo, psicanálise, desamparo, psicanalista, contemporaneidade.

THE DESIRE OF THE PSYCHOANALYST


IN THE FACE OF CONTEMPORARY DISTRESS
Abstract: This article address the desire of the psychoanalyst in face of contem-
porary distress. It provides a brief overview of the major social and political trans-
formations throughout the century, as well as those occurred within psychoanaly-
sis as theory and therapy. It highlights the importance of the analyst´s creativity
in welcoming the fundamental experience of the human condition that is distress.
Keywords: desire, psychoanalysis, distress, psychoanalyst, contemporaneity.

1
Socióloga; Psicanalista; Professora aposentada da graduação e pós-graduação da PUCSP.
Autora de Política e Psicanálise: O Estrangeiro (Ed. Escuta 2000) e Totem e tabu: um mito
freudiano (Ed. Civilização Brasileira, 2010). E-mail: catykoltai@yahoo.com.br

20
O desejo do psicanalista...

O desejo do psicanalista face ao desamparo contemporâneo

É sempre difícil transformar uma conferência num texto publicável, razão


pela qual opto aqui pelo caminho mais fácil, tentando fazer rimar os três
termos presentes em meu título: desejo do analista, desamparo e contem-
poraneidade.
Comecemos pelo desejo, desejo do analista que remete a Freud e
ao seu desejo singular, que Lacan acabou teorizando, transformando-o no
verdadeiro fundamento do tratamento psicanalítico. Renovou, desse modo,
a abordagem da prática analítica então vigente, subordinando a questão
técnica à questão ética decorrente da descoberta do inconsciente. Entendo
o desejo do analista tal qual formulado por ele no seminário 7, o da ética
(Lacan, [1959-1960]1988), como uma consequência lógica de seu questio-
namento da ética do soberano bem, tal qual vinha sendo formulada de Aris-
tóteles a Kant, face à modificação aí introduzida pela descoberta freudiana.
O desejo do analista remete tanto ao particular de uma análise, na qual
o analista tem que sustentar a demanda que lhe é endereçada, quanto ao
mundo em que vivemos. É o que me permite afirmar que não podemos nos
furtar a relacionar o inconsciente freudiano com as transformações sociais e
históricas do mundo contemporâneo, uma vez que não podemos esquecer
que, além de uma terapêutica do sujeito, a psicanálise é também uma teori-
zação da relação desse sujeito com o mundo em que vive.
Qual seria o desejo do analista em nossa contemporaneidade, num
mundo em constante transformação, que levou o prêmio Nobel Illya Prigo-
gine (2000) a afirmar estarmos perante uma grande bifurcação, fruto das
três revoluções contemporâneas: a econômica, a numérica e a genética, da
mesma grandeza daquela que, há doze mil anos atrás, nos fez passar do
paleolítico ao neolítico, substituindo o nomadismo pela cidade, a oralidade
pela escrita, a horda pelo Estado. As mudanças são sem dúvida grandes e
constantes, mas nem por isso precisamos dar crédito aos que anunciam o
fim do mundo, basta que aceitemos os atuais desafios.
Para responder a essa pergunta, permitam à judia errante que sou
uma pequena viagem no tempo, com duas paradas: a primeira na Viena de
Freud, onde, como lembra Roudinesco (1999), prevaleciam a família patriar-
cal, a soberania monárquica e o culto da tradição. A segunda, na França do
pós guerra, na qual, sempre segundo a autora, dominava o estado de direito
marcado pelo culto de uma república universalista e igualitária, e onde La-
can lançou seu retorno a Freud.
Em Viena, o fundador da psicanálise, médico de formação, elaborou
uma teoria que foi a primeira a postular a natureza sexual do indivíduo. Ao
21
Caterina Koltai

mesmo tempo, criou um método, o da cura pela palavra, curando lá onde a


medicina fracassara, através de um processo em que o analisando é convi-
dado a associar livremente e o analista a deixar flutuar sua atenção, suspen-
dendo todo julgamento moral para que o infantil, o sexual e o cruel, amorais
por definição, possam comparecer. Com o passar do tempo, acabou esta-
belecendo uma distinção entre o cobre da sugestão direta e o ouro puro da
psicanálise, afirmação que alguns entenderam como uma recomendação
para deixar de lado o terapêutico da psicanálise. Quero dizer desde já que
não me reconheço nesses que assim pensam, visto que, a meu ver, a psica-
nálise longe de ser uma busca filosófica ou mística, ou uma viagem interior,
é e continuará sendo uma psicoterapia, não necessariamente praticada por
médicos. Ao mesmo tempo, ela não se restringe a isso, deve ser entendida,
também, como uma tentativa de encontrar outra via para o espírito, alargan-
do os limites do pensável autorizado para um indivíduo numa determinada
sociedade. Não fosse assim, por que alguém procuraria uma análise num
mundo que oferece tantas outras formas de psicoterapia?
Respondo a minha própria pergunta, afirmando que é quando o sujeito
se depara com uma irrupção do real, com um sofrimento do qual nem os
medicamentos, nem a vida familiar, nem a companhia dos amigos pode dar
conta que costuma recorrer a uma análise, para tentar entender a comple-
xidade de sua relação consigo próprio e com o mundo, visto que, concomi-
tantemente à natureza sexual, Freud postulou também a natureza relacional
do indivíduo, obrigado a manter uma relação vital com os demais humanos
desde o início de sua vida. Tal fato o torna um ser histórico, depositário da
própria história, o que explica que o tratamento da alma proposto por Freud
tenha aberto um novo campo para a apropriação subjetiva. A tarefa nem
sempre é fácil, e não por acaso Freud nos alertou para o fato de que, assim
como educar e governar, psicanalisar também é uma profissão impossível,
o que não o impediu de passar a vida analisando, só parando em 39, pou-
cas semanas antes de sua morte. Como chamar a isso, se não desejo de
analista?
Ao recorrer a um analista, o sujeito faz a aposta de que, ao dizer, falar
e interrogar um sofrimento que lhe pertence e o constitui, este poderá ser
acolhido. E, ainda que ele seja o único juiz de seu percurso subjetivo, cabe
ao analista tomar parte ativa nesse processo e tomar para si a responsabili-
dade de uma abertura. A escuta flutuante e a neutralidade benevolente não
me parecem suficientes, o analista precisa se deixar afetar por aquilo que
ouve, até porque só falamos quando nos sabemos realmente escutados.
Como diz Levallois (2007), para que um analisando possa se apropriar de
sua história e assumir a responsabilidade pela sua vida, deixando aflorar
22
O desejo do psicanalista...

seus pensamentos recalcados, é preciso que o analista aceite se deixar


surpreender.
Minha segunda parada é a França da segunda metade do século XX,
na qual Lacan ofertou, não mais a cura e, sim, um novo saber scilicet – você
pode saber ­­– sustentado por novos conceitos. Num momento em que a
psicologia do ego reinava soberana e pretendia transformar a clínica psi-
canalítica numa particularidade da clínica médica, visando a uma melhor
adaptação do indivíduo à sociedade, sua proposta de retorno a Freud reno-
vou teoria e clínica, antes de vir a ser corroída pelo vírus da ideologização,
que ele foi o primeiro a denunciar. No que diz respeito a sua obra, duas
pontuações me são necessárias:
A primeira é o seu aforismo, de que o inconsciente é o social, com o
qual postula uma transindividualidade primordial, através da qual o sujeito
é, por definição, marcado pela história. Podemos constatá-lo em Função e
campo da palavra (Lacan, [1953]1966), onde define o inconsciente como
“essa parte do discurso concreto enquanto transindividual que não está
à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente” (p. 258) ou, logo a seguir, quando afirma que “o inconsciente é
esse capítulo de minha história que está marcado por um branco ou ocupa-
do por uma mentira: é o capítulo censurado, mas que a verdade pode ser
reencontrada na maioria das vezes, estando inscrita alhures” (p.259).
Minha segunda pontuação diz respeito à distinção que ele estabeleceu
entre necessidade, demanda e desejo, com a qual chamou nossa atenção
para o desejo enquanto motor da atividade humana, definindo-o como de-
sejo do Outro. Afirmar que o desejo é desejo do Outro significa que o objeto
do desejo não responde a nenhuma necessidade, não é da ordem da na-
tureza e, sim, da cultura. O desejo faz a ponte entre o coletivo e o singu-
lar, tanto que creio poder afirmar que a revolução, acontecimento coletivo
por excelência, assim como o sonho, acontecimento psíquico singular, são
provocados pelo desejo. Ambos não respondem a nenhuma necessidade,
ainda que a reivindicação da maioria das revoluções seja a satisfação das
necessidades.
Com seus novos conceitos, Lacan abriu um novo campo de pensa-
mento, o que não o impediu de nos alertar, como Freud fizera antes dele,
para as dificuldades do exercício da psicanálise, insistindo no fato de que
ela precisava ser reinventada com todo novo analisando, e a cada nova
sessão. E nem poderia ser diferente, visto que a clínica psicanalítica requer
algo diferente da mera teoria, um algo que se adquire de modo sempre
diferente, enraizado no inconsciente do analista. Desemboca, ou pelo me-
nos deveria desembocar, num estilo próprio, fruto de um percurso sempre
23
Caterina Koltai

único e singular. Assim como Freud, Lacan também atendeu até o final da
vida, e isso apesar de uma longa doença cujos sinais já vinham se fazendo
sentir há bastante tempo. Mais uma vez, como chamar isso senão desejo
de analista?
Mas esses foram os tempos áureos da psicanálise. Hoje em dia a psi-
canálise vem sendo contestada pelas neurociências e demais terapias cog-
nitivas, e parece ter perdido um pouco de seu antigo charme, fazendo com
que os psicanalistas se sintam, a meu ver, desnecessariamente acuados.
Não vejo razões para lamúrias, como tampouco me parece uma boa ideia
fazer coro à ladainha de que não existem mais verdadeiras demandas de
análise, de que cada vez mais nos deparamos com pacientes inanalisáveis,
com sujeitos sem gravidade e outros acusações do gênero, em que o réu é
sempre o analisando. Gostaria de poder aproveitar essa crise de modo mais
produtivo, questionando o que nós analistas temos a ver com o que está
acontecendo e qual a parte que nos cabe nessa “suposta” crise da psicaná-
lise. Como bem lembra Zygouris (2007), a luta pela sobrevivência costuma
ser fonte de criatividade, o que me faz esperar que talvez possamos apro-
veitar essa conjuntura, até certo ponto desfavorável para a psicanálise, e
seguir o exemplo de nossos ilustres antepassados: ousar inovar, visto que
o desejo do analista, entendido como um desejo de saber sobre a relação
de desconhecido e um poder curar de outra maneira, me parece continuar
presente. Confesso que faço parte dos que ainda veem a psicanálise, esse
discurso antitotalitário por excelência, como uma das grandes aventuras
possíveis em nosso mundo, à condição que ela resista a se deixar globalizar
falando uma única e só língua.
Dito isso, qual é meu desejo de psicanalista? Qual é a psicanálise que
desejo e posso praticar hoje em dia com os pacientes que me procuram, le-
vando em conta as mutações históricas do laço social e seus efeitos sobre a
economia psíquica do sujeito, e tendo em mente que, a meu ver, hoje como
ontem, a tarefa do analista continua sendo a de lidar com o desamparo?
Tema deste encontro, o desamparo remete a essa experiência inevitá-
vel e inerente à condição humana, a de se ver lançado no estrangeiro, numa
dependência absoluta ao outro e confrontado ao enigma de seu desejo.
Para designar o que é um verdadeiro ato de nascimento do sujeito, Freud
recorreu ao termo do alemão corrente Hilflosigkeit, sem transformá-lo em
conceito. Como salienta Lebovici (2012), Hilflosigkeit é, como na maioria
das vezes na língua de Freud, uma palavra do alemão cotidiano, compre-
ensível por todos, até mesmo por uma criança. Ela nos remete à questão
crucial da dor original, dor sem a qual o infans não seria levado a estabe-
lecer uma relação com o outro humano. Não é um conceito e, sim, uma
24
O desejo do psicanalista...

noção sobre a qual o criador da psicanálise fez repousar nada menos que
a causa do laço com o Outro, noção entendida aqui como aquilo que se
situa no registro do elementar e do fundamental. Em alemão, o sufixo keit,
cujo equivalente não existe, segundo a autora, em francês, e que eu saiba
nem em português, exprime um estado, o de ser desprovido (los) de ajuda
(hilflos). E é exatamente esse o estado do infans quando vem ao mundo em
sua total dependência para com seu primeiro Outro, tendo que fazer face à
opacidade de seu desejo.
A língua alemã entra em cheio no universo da infância, visto que a pala-
vra hilflos convoca imediatamente o universo dos contos em que as crianças
se perdem ou são abandonadas na floresta profunda. A definição freudiana
do desamparo prossegue em direção ao mal-estar que decorre daquilo que
o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o
outro e com o mundo, obrigando-o a defrontar-se com inúmeras situações
de vulnerabilidade que evidenciam o eterno conflito entre civilização e bar-
bárie, que atravessa tanto o processo individual quanto o civilizatório.
Esse conflito, estrutural e não meramente conjuntural, se torna mais
claro se pensarmos, como faz Zygouris (2010), com quem concordo, que
existem sintomas, sofrimentos, infelicidades que remetem diretamente às
competências daquilo que ela chama de espécie humana, entre as quais
ressalta a crueldade e a competência ao assassinato sem nenhuma ne-
cessidade vital para tanto. Essa competência não é apenas a transgressão
individual de um tabu, é um impulso assassino que, ao se propagar em cer-
tas circunstâncias por demais recorrentes, desemboca nos massacres em
massa. Por outro lado, temos a pulsão generosa da espécie, que pode ser
atribuída a Eros, do qual talvez o melhor exemplo seja o dom.
Barbárie e genocídio são, portanto, características humanas para as
quais Freud nunca deixou de nos alertar, tanto que, no prefácio de seu úl-
timo livro, Moisés e o monoteísmo ([1939] 2006), chama novamente nossa
atenção para o pacto firmado entre progresso e barbárie. Felizmente não
viveu o suficiente para conhecer o ápice dessa barbárie, os campos de ex-
termínio para os quais foram mandadas e morreram duas de suas irmãs.
Lacan (1967) será o primeiro a fazer uma análise freudiana da herança de
Auschwitz, esse acontecimento maior, individual e coletivo, posterior à me-
tapsicologia freudiana, que, segundo Zaltzmann (1999), marcou o desmoro-
namento da civilização em sua função de defesa do indivíduo contra o reino
da morte. A partir de então, esse desmoronamento passou a fazer parte da
herança da realidade humana.
Ao tirar importantes conclusões da subversão operada pelos campos
de extermínio, Lacan (1967) pode afirmar que, longe de serem um acidente
25
Caterina Koltai

monstruoso, os campos deveriam ser vistos como precursores de um pro-


cesso desencadeado pelo remanejamento dos grupos pela ciência. Esta-
va coberto de razão, e sua percepção vem sendo corroborada tanto pela
realidade quanto pelos interessantes estudos de Agamben (1997 e 1999),
para o qual o campo de extermínio deixou de ser um fato histórico, uma
anomalia do passado, para se tornar a matriz escondida do espaço político
em que vivemos. Ao introduzir um traço específico, o da impossibilidade de
recurso a uma lei, que ocuparia o lugar de terceiro, ele se tornou o fenôme-
no emblemático de nossa modernidade. Nos campos, a vida foi reduzida a
algo puramente degradável, e o humano definido como alguém passível de
ser assassinado e morto sem que sua morte seja vista como transgressão
e seu assassinato punido. Um dos objetivos dos nazistas foi o de tornar a
humanidade irreconhecível, de modo que os restos dos corpos deixassem
de ter qualquer semelhança humana e viessem a ser usados como material
de construção. No projeto nazista, o que estava em jogo não era o mero
assassinato, da ordem do humano e, sim, fazer desaparecer o que era hu-
mano, o que explica a importância de privar o outro de sepultura, daquilo
que entre os humanos permite a sobrevivência de um humano em outro
humano.
Tanto Lacan (1967) quanto Agamben (1997 e 1999) nos ajudam a en-
tender que, apesar do horror da Shoah, e da recorrente afirmação do Isso
nunca mais, a violência extrema não só persiste, como vai se declinando
sempre de novas maneiras, atingindo sempre os mais vulneráveis, e isso
sessenta anos após a elaboração em grande pompa da Declaração dos
Direitos Humanos, como se ela tivesse que caminhar pari passu com sua
sistemática violação; como se nada viesse fazer barreira a essa vertigem do
mal, termo que retomo de Michela Marzano e Jacques Saint Victor (2008),
na apresentação que escreveram para um numero especial da revista Cité.
Neste texto, lembram que toda vez que esquecemos a fragilidade e a fini-
tude da condição humana e passamos a impor ideais, em nome da fé, do
progresso ou da razão, o resultado é sempre da ordem da barbárie, como
pudemos comprovar ao longo da história.
Só posso concordar com eles, quando lembro que foi em nome de
Deus e do bem que a Santa Mãe Igreja, durante a Inquisição, se julgou au-
torizada a queimar os heréticos e a expulsar Satã do corpo das possuídas.
Foi em nome dos ideais de certo darwinismo social que as primeiras leis
eugenistas autorizaram a eliminação dos atingidos por uma deficiência, e
em nome dos ideais veiculados pelas teorias biológicas e raciais sobre a
pureza do sangue que o Estado moderno se autorizou a massacrar judeus,
ciganos, armênios e tútsis. Foi, ainda, em nome do bem soberano do Estado
26
O desejo do psicanalista...

que os totalitarismos eliminaram os dissidentes, mandando-os para campos


de trabalho, para serem “reeducados”.
Como entender essa vertigem do mal sem pô-la em relação com a
banalidade do mal num momento em que temos Hanna Arendt2 nas telas?
Ela demonstrou que, para se tornar um assassino profissional, não é preciso
nem sadismo nem fanatismo, basta aptidão profissional para tanto. Ao des-
crever Eichmann como um homem banal e até certo ponto cômico, em nada
demoníaco ou monstruoso, um perito ou especialista como era chamado,
totalmente desprovido de pensamento, um funcionário do nada, que se via
como mero cumpridor de ordens, ela apontou para o infinito das possibili-
dades do humano. Ele agia em conformidade com a lei e era obediente,
de uma obediência que ele próprio definiu como obediência de cadáver.
Pensar a banalidade do mal, a terrível, indizível banalidade do mal, nos
diz Zimra (2005), significa pensar a desintegração de uma sociedade que
perdeu sua capacidade de pensar, deixando-se reduzir a uma engrenagem
da mecânica da morte. Aqui a banalidade do mal assume os traços do coti-
diano, de uma normalidade aterrorizante, de um homem que se contenta em
obedecer às ordens, mandando para a morte homens, mulheres e crianças.
Foi esse homem que constitui para Arendt ([1963]1991) o protótipo de hu-
manidade produzida pelo nazismo, um alguém que perdeu toda faculdade
crítica, toda capacidade de pensamento e julgamento, incapaz de distinguir
em seus atos o bem do mal, o humano do desumano.
No que acabo de pontuar, dois significantes são importantes para dar
sequência a minha exposição, a saber: obediência e perícia. Entendo aqui
obediência no sentido da servidão voluntária, tal qual definida por La Boétie
(1999), servidão essa que me parece ser uma das formas do mal-estar con-
temporâneo. Paturet (2013) me parece ir nessa mesma direção, ao ressaltar
que, apesar de a cultura ocidental moderna veicular a imagem de um ho-
mem livre, o humano raramente é esse ser desejoso de liberdade que não
suporta viver numa gaiola, ainda que dourada. O que ele constata é que,
ao longo da história, o homem se submeteu aos mais diferentes poderes,
justamente pelo fato de a servidão ser voluntária. O poder de dominação se
funda sempre sobre uma crença, e cada sociedade inventou as suas. Nossa

2
Hannah Arendt. Direção: Margarethe Von Trotta. Produção: Heimatfilm, Amour Fou Luxem-
bourg, MACT Productions. Germany, Israel, Luxembourg, France. 2012. 113min. Dolby digital,
color black and White, Formato: DCP.

27
Caterina Koltai

época procura sua legitimidade na competência e na perícia, que vêm se


transformando nos significantes mestres do discurso político, médico e eco-
nômico contemporâneo, principalmente por se pretenderem neutras, visto
que são veiculadas numa linguagem técnica, numérica e informatizada, as-
pirando eliminar a polissemia e a polifonia da língua, que expõe o humano
ao equívoco e à incerteza. O homem contemporâneo acredita poder se li-
vrar do inconsciente, esse estraga prazeres, que trai o ideal de controle e
prevenção. Mas, como se livrar daquilo que nos escapa, os sonhos que so-
nhamos, os lapsos e atos falhos que cometemos e os sintomas e repetições
que nos interrogam?
Esse mundo da perícia é uma manifestação da sociedade de contro-
le, em que a biopolítica, conceito foucaultiano, aprofundado por Agamben
(no conjunto da sua obra), suplantou a política, e na qual a vida vai sen-
do progressivamente reduzida ao bios e posta a serviço da rentabilidade,
performance, economia e gestão. Como salienta Zimra (2005), no mundo
globalizado e uniformizado que vivemos, a guerra, a economia, a política e
a cultura formam um biopoder no qual capital e soberania se confundem. A
globalização inaugurou uma nova era, quando as fronteiras foram aparen-
temente abolidas e as relações de dominação reformuladas no sentido de
uma maior abertura ao mercado. Quanto ao homem da globalização, pas-
sou a vivenciar uma nova servidão, na qual só consegue pensar o futuro em
termos de cálculo, controle, medição, reduzindo-se, como diria Musil, a um
homem sem qualidades.
Falando em globalização, gostaria, antes de terminar, de enfocar o fe-
nômeno migratório planetário que ela vem pondo em marcha, assim como
a segregação que o acompanha. O enfoque ocorre não só porque é um
tema que me é especialmente caro, mas também por considerar o refugia-
do como um dos símbolos do desamparo contemporâneo. Se recorro aqui
ao refugiado como metáfora do desamparo é porque, assim como acon-
teceu no entreguerras, os refugiados me parecem representar novamente
um fenômeno de massa que, tanto os organismos internacionais quanto
os diferentes países, não sabem como enfrentar, transferindo o problema,
como bem lembrou Agamben (1994), para as organizações humanitárias, e
principalmente para a polícia. E isso se dá, segundo ele, porque o refugiado
representa na estrutura do Estado-nação um elemento inquietante, na me-
dida em que rompe a suposta identidade entre o homem e o cidadão, entre
naturalidade e nacionalidade, pondo em xeque a ficção originária da sobe-
rania. É justamente por romper a antiga trindade Estado-nação-território,
que o refugiado vem se tornando a figura central da nossa história política
contemporânea. Traído por seu país de origem, onde sua sobrevivência se
28
O desejo do psicanalista...

tornou inviável, o refugiado se vê obrigado a pedir asilo ou entrar clandesti-


namente num outro país cuja língua, na maioria das vezes, não fala e cujos
hábitos desconhece.
O sofrimento do refugiado, que tomo aqui como símbolo de todo aque-
le que foi exposto a alguma forma de violência do estado, tem, a meu ver,
uma característica própria: a sensação de ter deixado de pertencer à “espé-
cie humana”, visto que sua vida deixou de ter valor para os demais. Acom-
panhamos planetariamente barcos de refugiados superlotados que tentam
aportar nas costas da Itália ou da Espanha e que, no pior dos casos, são
deixados à própria sorte, sem que uma mão os impeça de se afogarem, e,
no melhor dos casos, são salvos do naufrágio para serem internados em
campos. Os que se dispõem a escutá-los sabem que existe uma especifici-
dade nessa clínica, tanto na escuta quanto na direção do tratamento. Face
a alguém que perdeu a confiança no outro e na palavra, que vive no terror
de ser mandado de volta para o lugar de onde fugiu e corria risco de vida,
o analista precisa demonstrar uma curiosidade e um investimento explícito.
Precisa manifestar claramente seu desejo de analista, para que esse sujei-
to possa voltar a sentir que ele pode interessar a alguém e elaborar a dor
da perda da pátria, da língua materna e do lugar onde seus antepassados
estão enterrados. Essa clínica engaja o analista, como bem salientaram Da-
voine e Gaudillière (2006), a estar em permanente contato com sua própria
história, inclusive no que diz respeito aos exílios e guerras que possam ter
marcado sua história pessoal.
Face ao desamparo, somos obrigados, como lembrou Fedida (2002),
a imaginar aquilo que o outro diz ou pensa ser inimaginável, porque ser in-
capaz de imaginar é negligenciar que isso possa ter acontecido. O analista,
a quem o sujeito frequentemente se dirige quando a pulsão de destruição,
ou de autodestruição, se sobrepõe ao desejo, precisa poder imaginar o que
é da ordem da destruição e do horror vivido pelo paciente, e que este não
tem como questionar. O analista precisa poder imaginar o que o outro viveu,
precisa poder construir, o que não significa reconstruir. Certos pacientes
vivem e expressam tamanho sofrimento que nos levam de fato ao limiar do
inimaginável. Em tais casos não se trata de nos lançarmos na empatia do
horror, mas de termos a possibilidade de saber no que aquilo que é horrível
desfaz nossas próprias representações. A capacidade de imaginar é ne-
cessária ao analista, pois é quando se dispõe a isso que pode vir a abrir a
porta do sentido numa fraternidade discreta, na medida que analista e ana-
lisando ocupam lugares assimétricos, assimetria necessária para que haja
hospitalidade. Cabe ao analista abrir sua psique para que o outro a habite
temporariamente, pois um espaço psíquico povoado de medo, apreensão
29
Caterina Koltai

e solidão só pode vir a se tornar um lugar habitável pelo intermediário do


espaço psíquico do analista.
Retorno ao início e à minha questão do desejo do analista face ao de-
samparo na nossa contemporaneidade, para fazer minhas as palavras de
Zaltzman (1997), quando ela afirma que a tarefa da psicanálise é a de tratar
do sujeito enquanto sujeito da condição humana, como emissário de uma
realidade psíquica que é a dele e do conjunto de humanos que faz dele aqui-
lo que ele é. Uma análise nesse sentido tem a ver com o rochedo daquilo
que constitui a realidade do humano.
Para que isso aconteça, precisamos, a partir do que nos ensinaram
nossos mestres, reinventar nossas práticas e aceitar, apesar de mal visto,
sermos analistas terapeutas, sem que isso signifique transformar a análise
numa mera terapêutica da compaixão. Devemos nos implicar nas análises
tanto quanto nossos analisandos, e não deixá-los sozinhos face a seus dis-
cursos, para que possam se servir desse espaço singular reinvestindo nas
pulsões de vida.
Para tanto, e para concluir, diria com Zygouris (2013) que, para ser
analista é preciso saber dar boas risadas, ter humor e não temer a solidão.

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30
O desejo do psicanalista...

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Recebido em 16/05/2014
Aceito em 30/05/2014
Revisado por Marisa Terezinha Garcia de Oliveira

31
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.32-36, jul. 2013/jun. 2014

TEXTOS UM LUTO IMPOSSÍVEL:


efeitos de trauma em imigrações1

Ana Costa2

Resumo: Este artigo trata dos efeitos que incidem sobre diferentes imigrações,
utilizando as proposições lacanianas que implicam a castração, a frustração e
a privação. Desdobra a relação entre trauma e injúria, como impossibilidade de
acolhida do imigrante. Situa a problematização da relação do sujeito com o lugar
de endereçamento da fala, como um dos elementos do luto impossível nessas
situações.
Palavras-chave: trauma, privação, luto, injúria.

AN IMPOSSIBLE MOURNING: effects of trauma in imigration


Abstract: This paper discusses the effects that influence different imigrations,
using the Lacanian propositions involving castration, frustration and privation. It
unfolds the relationship between trauma and injury as an impossibility of welcom-
ing the immigrant, and situates the questioning regarding the subject’s relation
with the speech’s place of addressment as one of the elements of the impossible
mourning in these situations.
Keywords: trauma, privation, mourning, injury.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro-
fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo
(Cia. de Freud, 1998); Corpo e Escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e Marcas corporais
(Casa do Psicólogo, 2003); Sonhos (Jorge Zahar, 2003); Clinicando (APPOA, 2008). E-mail:
medeirosdacostaanamaria@gmail.com

32
Um luto impossível...

A bordarei o tema de algumas imigrações forçadas, nas quais as condi-


ções de produção de uma experiência não estão dadas. Experiência,
aqui, pode ser tomada tanto no sentido da possibilidade de sua transmis-
são, numa inclusão no laço social, quanto amparada nos fundamentos da
psicanálise, na produção das condições possíveis para que o sujeito se si-
tue na relação à fala. É a relação do sujeito com a fala que se problematiza
nas situações que vou tratar. Em princípio, pode parecer muito evidente, e
até mesmo natural, que a condição adquirida por alguém na apropriação
de sua fala fique preservada em seus deslocamentos. Desde sua funda-
ção, a psicanálise trata de inúmeras problematizações justamente nessa
função.
São múltiplos os motivos que levam alguém a deixar seu lugar de ori-
gem. Vou citar somente alguns, sem me deter em suas especificidades.
Para tanto, retomarei as propostas lacanianas situadas como castração,
frustração e privação. Estas proposições podem contribuir na apresentação
de diferenças no que diz respeito às imigrações.
A primeira busca de imigração, aparentemente mais simples, diz res-
peito à relação entre o ideal e o desejo. O ideal é aquilo que o sujeito coloca
no horizonte, na distância a ser alcançada, e que requer um movimento para
sua realização. Apesar de produzir deslocamento, o ideal sempre se coloca
a partir de uma referência construída na história familiar. É o lugar de um
filho que quer realizar algo dos valores dos pais, com o clássico trabalho a
partir da castração.
Na segunda busca de imigração, vamos encontrar uma referência ao
imaginário, quando a falta se registra do lado da frustração. Ou seja, quando
o brilho fálico buscado tem a ver com um gozo mais imediato, do que com
a relação ao desejo. O exemplo que me ocorreu do lado do imaginário diz
respeito a algumas crises narcísicas de modelos de moda. Esta colocação é
aproximativa, não se situa como explicação para tais casos, mas como um
elemento importante na apresentação clínica de alguns. Chama atenção
como o registro da oralidade entra em causa, muitas vezes com o consumo
excessivo de drogas. Nessas situações podemos depreender que alguma
coisa fica problematizada do lado das referências identificatórias, que inter-
pelam sem mediação. Digamos que situam um modelo sem contexto.
O terceiro motivo implica mais diretamente a privação: quando o des-
locamento é situado a partir de uma violência. A este tipo de deslocamento
atribuímos corriqueiramente a condição de ser traumático. Nele situam-se
os imigrantes forçados, ou aqueles que – ao imigrarem – não se integram ao
laço social, ficando à margem, não encontrando uma via de circular no laço
social para onde se deslocam.
33
Ana Costa

É possível reconhecer que em qualquer condição de deslocamen-


to, um sujeito pode padecer de uma crise semelhante à privação, e, ao
mesmo tempo, nem todos imigrantes posicionam-se como tendo sido
privados. Situo aqui uma diferença entre o registro social e a elaboração
possível do sujeito. É sempre preciso considerar as singularidades com
a experiência do tempo e não antecipar uma resposta simplesmente pro-
tocolar. Muitas vezes, as boas intenções de uma assistência social, situa-
da nas políticas públicas, não considera a singularidade de cada caso. O
tema do assistencialismo entra aí numa condição de antecipação de res-
postas genéricas, não encontrando o sujeito num tempo de apropriação
de sua questão. A contribuição que a psicanálise pode dar às políticas
públicas diz respeito especificamente a isso: considerar e apostar no
tempo do sujeito.
Dito isso, tratemos da especificidade do que traumatiza instaurando
uma dinâmica de privação. Aqui, é preciso especificar algumas relações,
que não são simples. A primeira delas, de grande importância, diz da rela-
ção com a linguagem. O âmbito da língua diferencia linguagem instrumental
e endereçamento da fala. Pode-se aprender qualquer língua para ter condi-
ções de comunicação – este é seu sentido instrumental –, no entanto, pode
não haver endereçamento da fala, ou seja, pode-se não singularizar o lugar
desde onde se fala. São coisas absolutamente distintas, e a experiência de
viver num país estrangeiro coloca isso em causa. No endereçamento da
fala está colocado o se deixar “ser falado”, sem somente tentar dominar a
forma do que é falado. A linguagem instrumental – o que implica saber falar
a língua para se comunicar – não registra o espírito da língua, que é o lugar
do terceiro. Terceiro, aqui, pode ser entendido como o que está colocado em
qualquer diálogo, no qual se situa aquele que fala, seu interlocutor e o cam-
po da linguagem, como um campo prenhe de mal-entendidos, semidizeres,
bem como de significações antecipadas, implícitas em cada laço social. Em
tais condições, muitas formas de atribuição funcionam do lado da injúria, ou
seja, como se aquilo que está semidito, ou mesmo enigmático, fosse encar-
nado como o estranho, numa relação dual, sem referência ao terceiro que
media o laço discursivo.
Freud ([1893]1972) foi otimista com a injúria, na medida em que si-
tuou nela a substituição da ação pela palavra. Ou seja, que o primeiro que
injuriou, ao invés de passar ao ato – matar – teria podido substituir a ação
pela palavra. No entanto, diferentemente do otimismo freudiano, isso para
nada deixou de produzir guerras. A injúria evoca um princípio de exclusão:
a dimensão que todos temos de um excluído do próprio corpo. Por essa
razão, também, que a injúria recoloca o corpo em causa: seja pela cor da
34
Um luto impossível...

pele, pelos traços estrangeiros, etc. O interlocutor encarna – faz corpo – da


ofensa. O circuito da injúria é violento em si mesmo.
Para entendermos a injúria, vale fazermos uma diferença entre o chiste
e o cômico. Este último diz respeito a rir do outro: fazer da imagem do outro
objeto de comicidade. Já no chiste, entra em causa o terceiro ausente, como
inscrição do jogo da língua, isto é, suas criações e potencialidades metafó-
ricas. O endereçamento da fala diz respeito à possibilidade de inscrição do
terceiro. É deste lugar da língua, enquanto jogo simbólico, que herdamos as
condições da referência ao desejo e à castração – tema que mencionamos
anteriormente.
Assim, situamos primeiramente a língua, como a condição que se pro-
blematiza numa privação. O segundo elemento diz respeito à relação com
os objetos, que constituem suportes culturais necessários para construção
de identificações. Pode-se depreender que são esses objetos e vestes que
– mais que somente enfeitar – criam um lugar, eles são significantes. O ritu-
al, por exemplo, constrói enlaces importantes entre imaginário e real, situan-
do o objeto como presença nas condições de uma herança. Nesse sentido,
não se pode dizer que uma herança seja somente simbólica, ela traz junto
uma presença/ausência transmitida num objeto. Pode-se perceber que a
globalização, com o descarte consumista do objeto no capitalismo, proble-
matiza justamente esta face das transmissões das heranças.
Encontramos diferentes eventos produtores de trauma, eles colocam
em cena aquilo que Lacan ([1964]1985) designou como duas muralhas do
impossível: por um lado, a relação com a morte; por outro, a relação com o
sexo. É curioso pensar como isso se confirma nos eventos mais violentos:
nas guerras e violências urbanas reconhecemos que sexo e morte estão
juntos. Não há somente os assassinatos, há também grande incidência de
estupros.
Pode-se situar que um evento traumatiza quando o sujeito perde sua
condição de responder ao laço social, ou seja, de situar-se numa referência
significante, bem como na possibilidade de velar o real por meio da fantasia.
Assim, o trauma situa um acontecimento em que o sujeito perde sua con-
dição de endereçar sua questão desde o campo discursivo, e se confunde
com o que é excluído – o gozo excluído da circulação – no limite: com o
injuriado. A privação, aqui, apresenta o furo repleto da porcaria, que se ex-
pressa como um resto corporal. É aqui que se apresenta um luto impossível.
Pensando nessas situações, podemos reconhecer que o luto tem duas
faces e não acontece imediatamente, de uma única vez. Numa das faces
ele é carregado por uma função social, efetivada por aqueles que acom-
panham. Como fica essa função social para o imigrante, se ele ainda não
35
Ana Costa

está inscrito no laço social, se ele não tem o suporte do semelhante para
testemunho? A função social é vivida no ritual, que permite uma primeira
separação. Assim, a separação é um trabalho doloroso, que não reconhece
imposições de fora, nem de uma atribuição de realidade à situação, precisa
de muitas elaborações. A outra face do luto se refere a viver a perda, reco-
nhecendo-a enquanto um registro da experiência. É a experiência solitária,
que diz respeito a cada um, mais além do compartilhado.
Assim, a reconstituição do endereçamento na fala é todo o trabalho
dessa clínica. Tem-se falado em testemunho. No entanto, pensar no teste-
munho significa pensar em como lidar com a antecipação na relação com
o pequeno outro. Testemunho significa reconhecer a perda, o que dimen-
siona a possibilidade de um luto. No entanto, penso que, para o imigrante
submetido a uma vivência de privação, coloca-se antes uma suspensão da
perda, tanto quanto uma suspensão do tempo. É como se o deslocamento
não houvesse acontecido e o sujeito ficasse no limbo. É nessa medida que
é necessário um trabalho preliminar ao luto, situando as condições de ende-
reçamento na entrada ao novo lugar, para que o sujeito, a posteriori, possa
testemunhar sobre seu desterro. Ou seja, para sair é preciso primeiro entrar.

REFERÊNCIAS
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Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

Recebido em 20/05/2014
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Cristian Giles

36
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.37-48, jul. 2013/jun. 2014

DO EXÍLIO AO ASILO:
TEXTOS
escutas clínicas1
Alexei Conte Indursky2
Barbara de Souza Conte3
Daniela Feijó4
Liege Didonet5

Resumo: O presente artigo trabalha alguns aspectos da clínica do exílio reali-


zada junto a recém-chegados admitidos pelo ACNUR/ASAV (Alto Comissariado
das Nações Unidas para Refugiados/Associação Antonio Vieira), inserida no
Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas. No contexto específico de uma política
de reassentamento, interessa-nos explorar como a não ritualização da partida
forçada engendra episódios desorganizadores sobre uma economia pulsional
cindida, quando da não passagem de uma cultura a outra. A interrogação sobre
o que faz trauma no exílio, assim como sobre os episódios injuntivos de reatua-
lização traumática, servirão como fio condutor à nossa investigação.
Palavras-chave: exílio, trauma, reassentamento.

FROM EXILE TO ASYLUM: CLINIC LISTENINGS


Abstract: The present article aims to work some aspects of the exile clinic con-
ceived with the new-arrived admitted by the HCR/ASAV and the Project SIG
Psychoanalytic Interventions. In the specific context of a resettlement policy, it
concerns us to develop how the non-ritualisation of the forced departure leads
to some overwhelming episodes onto a divided libido economy, regarding the
non-passage between one culture to another. Theses questions about what do
traumatize in exile, and the episodes of traumatic re-actualization will be the
conductors lines in our investigation of metapsychological keys to read the exile
Keywords: exile, trauma, resettlement.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais –
Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicólogo; Doutorando da Universidade Paris VII; Integrante do SIG/Intervenções Psicanalíti-
cas. E-mail: leco.indursky@globo.com
3
Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid; Coordenadora
do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: barbara.conte@globo.com
4
Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: danitrois@gmail.com
5
Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: liegedidonet@
yahoo.co.uk
37
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

Era de madrugada quando K. chegou. O vilarejo estava coberto de neve. A colina do


Castelo permanecia invisível, a bruma e a obscuridade o contornavam, não existia mesmo um
vulto que indicasse a presença do grande Castelo. K repousou longamente sobre a ponte que
leva da estrada ao vilarejo, fixando a mirada em direção àquilo que parecia ser o vazio.
Franz Kafka

1. Introdução

E ste trabalho apresenta a experiência de atendimento com refugiados,


que faz parte do Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas. Esse projeto
iniciou em 2010, na Sigmund Freud Associação Psicanalítica, quando co-
locamos a escuta psicanalítica para além do trabalho clínico no consultório
e a estendemos para grupos e sujeitos em situações de exclusão social e
vulnerabilidades.
Assim, trabalhamos com professores e pais de escola da rede munici-
pal de Porto Alegre, de crianças e adolescentes com deficiências físicas e
transtornos psíquicos, e com o programa de reassentamento solidário reali-
zado pela Associação Padre Antonio Vieira (ASAV), em parceria com o Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refúgio (ACNUR), com refugiados
– latino-americanos e palestinos reassentados em nosso estado, que serão
o objeto deste trabalho.
Desde 2013, trabalhamos, também, em parceria com a Comissão de
Anistia do Ministério da Justiça, fazemos parte do SIG/Clínicas do Testemu-
nho, projeto incluído na terceira etapa da justiça de reparação aos afetados
pela violência de estado, no período da ditadura civil-militar em nosso país:
anistiados, anistiandos e familiares, e de capacitação aos profissionais e
agentes de saúde.
Em todos estes projetos temos como objetivo oportunizar que, através
da palavra e da escuta, se promovam novas vias de facilitação, caminhos
que propiciem a recomposição psíquica frente a situações traumáticas ocor-
ridas em virtude da exclusão e da violência. Lidamos com o sofrimento psí-
quico, como o exílio e a violência de estado, quando a temporalidade está
estancada e o processo de reorganização das intensidades e das perdas
assume a dimensão de excesso, do que chamamos de traumático, de mor-
tífero.
Estas realidades cada vez mais fazem parte de nossa clínica cotidiana
e interrogam-nos a partir da prática que exercemos enquanto psicanalistas.
A escuta analítica torna possível uma temporalidade que, segundo Laplan-
che (2001), implica a retroatividade: algo que foi perdido ou implantado com
violência torna-se um enigma a ser decifrado por um outro. Marcas que pro-

38
Do exílio ao asilo: escutas clínicas

movem profundas cisões no psiquismo e fazem sua aparição sob a forma


de repetições.
É tempo de discutir, debater, trocar experiências que alarguem os limi-
tes do conhecimento e do exercício da psicanálise, na riqueza que nosso
ofício permite. O caso de Condolência é apresentado nesta perspectiva –
dar lugar à fala, quando esta está interrompida, e criar vias de escuta que
ressignifiquem e retraduzam experiências dolorosas.

2. Sujeito entre mundos

Disse o fulano presunçoso,


hoje no consulado
obtive o usual certificado de existência
consta aqui que estou vivo
de maneira que basta de calúnias
este papel soberbo/ irrefutável
atesta que existo.
Se me coloco frente ao espelho
e meu rosto não está
aguentarei sereno
desimpedido
não levo por acaso na carteira
meu recém adquirido
meu flamejante
certificado de existência?
Viver/depois de tudo
não é fundamental
o importante é que alguém
devidamente autorizado
certifique que um
comprovadamente existe.
Quando abro o jornal e leio
meu próprio obituário
me apena que não saibam
que estou em condições
de mostrar onde quer que seja
a seja lá quem for
um vigente prolixo e minucioso
certificado de existência
Mario Benedetti

39
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

O trecho escolhido faz parte de uma coletânea de poemas de Mario


Benedetti, Solidões de Babel (2000), cujo título, não por acaso, faz eco aos
tempos cindidos de seu próprio exílio em terras estrangeiras. A segurança
com a qual Benedetti descreve a possibilidade de reconhecer-se através de
um “certificado” que autorizaria, assim, a sua própria existência, contrasta
com a desrealização daquele que, ao olhar-se no espelho, incorre no pe-
rigo de não reconhecer a própria imagem. A partir dessa tensão presente
no poema do autor uruguaio, nos propomos a pensar o que está em jogo
na condição psíquica do exílio e suas vicissitudes clínicas, para além da
contingência do deslocamento geopolítico forçado e sua impossibilidade de
retorno. Condição psíquica que nos remete ao cerne do debate proposto
nesta Jornada.
Ao procurar no dicionário o verbete “exílio”, conforme consulta ao
Grand Diccionaire Larousse – online, nos deparamos com seguinte defi-
nição: situação de alguém que se encontra obrigado a viver alhures donde
habitualmente vive ou ama viver; este lugar onde ele se sente estrangeiro,
colocado à parte6.
Se, na primeira frase, não encontramos nenhum impasse à nossa
compreensão, não podemos dizer o mesmo da segunda. Segundo o ver-
bete, o exílio se definiria como o sítio onde o sujeito é colocado à parte.
Mas seria ele estrangeiro por ser colocado à parte, ou colocado à parte por
ser estrangeiro? Nós vemos nessa simples definição do exílio algo que faz
signo a uma ultrapassagem da referência geográfica, nos remetendo a uma
constatação que, porque indefinida, colocado à parte, se apresenta de for-
ma conjuntural à condição do exilado. Ou seja, o exilado é aquele destinado
a habitar o sítio do estrangeiro.
Vamos, no entanto, dar um passo adiante. Pois, se o exilado encarna,
antes de tudo, a figura de estrangeiro que desconhece os códigos, as ma-
neiras e a cultura do anfitrião, é porque, ultrapassando tais fronteiras visí-
veis e invisíveis entre mundos, ele é impelido, por lei, a demandar refúgio ao
Outro. Ou seja, o refugiado deve colocar-se na posição de quem demanda
ao Outro estatal um status, um lugar na vida pública de uma comunidade.
Em suma, ele deve demandar um certificado de existência, para que sua
própria história, sua imagem e sua verdade não lhe escapem por completo.
No entanto, em nossa prática clínica, e aí também repousa toda ironia do

6
Traduzido pelo autor.
40
Do exílio ao asilo: escutas clínicas

autor uruguaio, o recebimento de tal certificado não apresenta nenhuma ga-


rantia ao sujeito de que ele encontrará a almejada posição na cultura do an-
fitrião. Seja por questões sociopolíticas, seja por questões próprias ao real
do traumático que invade o sujeito exilado. Gostaríamos de propor aqui uma
reflexão sobre esse segundo aspecto, que, consideradas as peculiaridades
da clínica do exílio, interroga a própria psicanálise em sua ética e teoria.
Propomos algumas questões de base que servirão de fio condutor à
nossa reflexão. Aquém de pensar a obtenção do status de refugiado como
um fim em si mesmo, quais são os efeitos, na organização psíquica de um
sujeito, dessa passagem de um código a outro, de uma cultura a outra,
de uma lei a outra? Se tal certificado pode ser investido enquanto função
narcísica de invólucro, ou ainda, de anteparo à imagem, ao gesto, à fala do
sujeito, qual o trabalho de elaboração pelo qual este deve passar para que
tal transição não se configure como um momento injuntivo, em que o real
do exílio invada o sujeito, expondo a céu aberto, uma intimidade abalada,
desterrada e exilada de si mesma?
Se Kafka nos alerta sobre os efeitos psíquicos da impessoalidade e
da burocratização administrativa na vida dos sujeitos, traduzidos em nosso
caso pela espera infinita por um status, pela dessubjetivação dos formulá-
rios de requerimento, pela lei anônima que julgará seus destinos, não so-
mos nós também obrigados a pensar nos efeitos de uma obtenção demasia-
damente abrupta de um certificado de existência? De uma situação errática
e clandestina à legalidade de uma cultura, cujo olhar do Outro não enquadra
o sujeito em seu terreiro cultural, mas o remete à desterritorialização expe-
rimentada no período do exílio.
Em termos mais cotidianos, como deslocar-se da posição daquele que
tudo demanda aos outros e ao Outro (certificado, segurança, moradia, edu-
cação), para passar a operar as tão bem desejadas autonomia e integração
social?
Para pensar tais questões, segue a apresentação de fragmentos de
um caso clínico atendido por nosso projeto entre setembro e meados de
novembro de 2012.
Condolência e sua família, composta por dois filhos e uma irmã tris-
sômica chegam a Porto Alegre no final de agosto de 2012, acolhidas pelo
programa de reassentamento da Asav/Acnur. Em Sapucaia do Sul será sua
nova morada. Originários da região do Vale do Cauca (que fica na América
do Sul), eles se refugiaram no Equador e moraram provisoriamente em al-
gumas cidades equatorianas até conseguir, em Quito, ingressar no progra-
ma de reassentamento para vir ao Brasil, local onde finalmente julgavam ter
conseguido proteção.
41
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

Uma semana e meia após a sua chegada, Condolência solicita um


atendimento comigo, após um episódio em que ela desfalecera em plena
via pública. A situação7 me foi narrada da seguinte forma pela assistente
de integração social do programa: estavam se dirigindo ambas ao instituto
de identificação da cidade, onde Condolência faria o seu registro nacional
de estrangeira. Acometida por um mal súbito, ela desmaiara em frente ao
prédio, fato que a impedira de obter naquele dia seu documento.
Em sua primeira entrevista, ela me diz que as coisas não estavam
bem. Preocupava-se muito com seus filhos, do que seria deles aqui no Bra-
sil. Fala da violência, do medo, da instabilidade aos quais os dois estavam
expostos. Quando perguntada se era por isso que desmaiara, ela confessa
que não exatamente. Ela relata que pensava constantemente em quitar-se
a vida, que uma culpa muito grande a abatia, seguida de enxaquecas colos-
sais, que a impediam que pensasse em mais nada. “Não sei de onde vêm
essas ideias, mas sei que não é certo pensá-las, e então eu desmaio”. Rela-
ta histórias fragmentadas, de tempos incendiários, de pessoas cujos nomes
eu ignoro completamente. Informo que não tenho acesso a nenhuma histó-
ria prévia à vinda dela ao Brasil e convido-a a narrá-la. O que segue, então,
é uma narrativa impactante, que fala de histórias de que eu não suspeitava
(outrora) que pudessem ter sido vivenciadas por tal mulher.
Enquanto enfermeira e líder comunitária de sua cidade, Condolência
havia denunciado o desaparecimento de um caminhão de suprimentos des-
tinados à ONG em que trabalhava. Para seu infortúnio, o desvio havia sido
executado por líderes de uma facção de guerrilheiros locais. Em represália
a sua denúncia, ela fora sequestrada e mantida em cativeiro. O dia, ela re-
fere, nunca lhe sairá da cabeça, 24 de novembro. Em cativeiro, foi torturada
e violada repetidas vezes pelos guerrilheiros, que não a mataram somente
por desleixo ou piedade, comenta. Aparentemente, o carisma da líder co-
munitária os sensibilizara. Ela foi atirada nua em plena praça pública numa
noite em que vários protestos se organizavam, reivindicando o corpo desa-
parecido de Condolência. Humilhada, esfolada, violada, ela decidira denun-
ciar as pessoas que reconhecera em cativeiro. “Todos caíram em cascata,
diz ela, um entregou o outro e logo decidiram ir atrás de mim novamente”.
Daí o refúgio, realizado na penumbra da noite num caminhão, tal qual uma

7
A narrativa segue, a partir daqui, na primeira pessoa, afim de salientar a situação clínica de
atendimento.

42
Do exílio ao asilo: escutas clínicas

mercadoria clandestinamente desviada. Ela chora copiosamente. Observo


os dentes que lhe faltam na boca, a dor enorme estampada no seu rosto.
Ela finaliza, dizendo que os dentes que perdeu, ela pode recuperar.
Que as feridas que teve, podem cicatrizar, mas sua humanidade que lhe foi
violada, nunca poderá curar, e daí o porquê de ela se culpar pela decisão
de processá-los. O refúgio foi a consequência do maior erro de sua vida. Ela
chora copiosamente. “Mas me parece, digo eu, que esse é um ato de quem
quer viver, de alguém que denuncia, mas não se suicida”. Isso a apazigua.
Ela me pergunta como fazer para que esses pensamentos não a invadam.
Proponho que passemos a nos encontrar semanalmente, para que ela fale
mais sobre o que acontecera com ela, sobre suas outras histórias, sobre a
luta que carrega consigo.
Uma mulher está a minha frente. É Condolência. Ela fala de seus pesa-
delos, da insônia, da hora do lobo que a atormenta. Mas o que meu olhar cir-
cunscreve são suas sobrancelhas, ou melhor, a falta delas, preenchida por
um lápis de cor totalmente diferente da de seus cabelos. Tal inadequação
me remete a todo o momento a um hiato entre palavra e afeto. Desde onde
falava ela? Eu lhe pergunto se ela já havia se sentido em outra época tão
desamparada quanto ficara no cativeiro. Ela me afirma que quando criança,
após sua mãe casar-se novamente, ela ficava com seus seis irmãos em
casa, sob a guarda do padrasto que era extremamente violento, enquanto
sua mãe saía para trabalhar. Relata que todas as irmãs foram abusadas por
ele, inclusive ela. Após alguns anos de abusos sistemáticos, o irmão mais
velho, já maior, expulsou o padrasto de casa, ameaçando-o de morte. A mãe
não notara nada até então. Num fim de tarde, alguns meses após a expul-
são, o padrasto encontra-se com a ex-mulher e o filho libertador na rua. O
padrasto tenta matá-lo com uma matagranado, mas a ex-mulher, em ato
desesperado, se interpõe entre ambos. Acaba esfaqueada, mas não morre.
Frente a tal disparate, em pleno desespero, o padrasto, que era mineiro de
profissão, acende uma dinamite junto ao peito e tira a própria vida, em um
beco não muito longe de sua casa. Na delegacia, a ex-mulher é intimada a
reconhecer o corpo, ou melhor, o pouco que dele sobrara. Condolência tinha
11 anos e insistira em ir junto com a mãe. Eu digo que é uma coisa terrível,
que estou extremamente espantado com o que me relata. Ela chora, enfim,
um choro de poucas e contidas lágrimas.
Diz que a partir de então decidiu ser médica. Não qualquer médica,
mas médica legista. No entanto, nunca conseguiu entrar na faculdade e
acabou sendo técnica de enfermagem: “Mas sei muito sobre medicina”,
acrescenta ela. Eu pergunto por que ela queria ser médica legista, mas ela
não sabe responder o porquê. Mas diz que ultimamente pensa muito em
43
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

seu trabalho, em sua função social junto à comunidade, no reconhecimento


de todos, que isso lhe faltava profundamente. Quando tais pensamentos
lhe vinham, ela relata que só sentia vontade de sair de casa, e caminhar,
caminhar, caminhar... “Em direção à Colômbia, lhe pergunto. Não, em dire-
ção à rua, ao encontro de um caminhão”. Eis a forma de parar de pensar
que ela engendra, desligamento total. Ela solicita outras formas para evitar
essa dor, esse impulso de tudo acabar. Proponho-lhe que, para as dores
de cabeça, possa consultar um traumato. Quanto às insônias, digo-lhe que
nosso trabalho não é outro senão poder recuperar suas histórias, as infantis
igualmente, que, a meu ver, haviam permanecido silenciadas durante muito
tempo. Pergunto-lhe se já havia tentado conversar disso com alguém, ao
que ela menciona o seu ex-marido, que no fim das contas acaba por se
revelar um grande babaca e insensível. Pergunto-lhe se ela realmente gos-
taria de empreender esse trabalho de recuperação dessas memórias, pois
sentia que esta posição do “grande babaca insensível” poderia destinar-se
a qualquer um que tocasse nos conteúdos extremamente dramáticos de sua
infância. Sua resposta foi de uma fatalidade exemplar: “se não existe outro
modo...” Frente a essa reticência, eu lhe faço notar que me parecia que ela
não parecia ter podido chorar sobre essas histórias, como se estivessem
interditas de si mesma. Eu lhe proponho, subitamente, de escrever suas his-
tórias quando dos episódios de insônia. “Como um diário? Por que não?...”

3. “A doença do armário” ou a tentativa de evitar novas formas de ex-


citações

Passado um mês de consultas irregulares, Condolência começa a ses-


são sempre da mesma forma. Não sabe o que fazer com seus filhos, que
não a respeitam mais. Sua agressividade é dirigida constantemente contra
eles, à medida que sua palavra não surte os mesmos efeitos de outrora. O
suposto desamparo que eles sofreriam por estarem expostos à violência
das ruas de Sapucaia retorna sobre ela de forma desorganizadora. Ela pen-
sa, mesmo assim, em trazer um neto que estava no Equador para cuidar
dele, pois sua filha mais velha enfrenta problemas financeiros. Eu digo que
seria mais fácil cuidar do bebê que está a alguns milhares de quilômetros de
distância do que dos adolescentes que estão logo ali na esquina. Ela diz que
mesmo em casa eles não se comportam mais, que ontem teve que bater no
filho mais velho, pois ele sujou toda a mesa de centro da sala deles. Como
ele se recusou a limpá-la, ela decidiu guardá-la no armário e fim de papo,
sem mais mesa de centro. Eu me lembro imediatamente de uma peça de
teatro de uma refugiada turca chamada: Sobre a soleira (Ecer, 2009). Nela,
44
Do exílio ao asilo: escutas clínicas

uma personagem, ao fim de uma situação errática, compelida a constantes


deslocamentos, tenta guardar a mala dentro de um velho armário e acaba
engolida por ele. Ela acabara de contrair a doença do armário, nos diz a
personagem.
“O que faço para não perder meus filhos?”, me pergunta ela. Eu lhe
digo que não irá adiantar trancá-los todos dentro do armário. Ela ri. Mas me
parece que tu já estás tomando uma direção quando se preocupa em agre-
gar toda família. Ela diz que sim, mas que isso não é possível agora, pois
eles não podem voltar, que a vida é aqui e agora.
Eu a convido então a falar sobre aqui e agora. Ela se lembra de um
encontro que tivera com o dono do mercado próximo a sua casa, um tipo
que já lhe havia chamado atenção positivamente. Correto e bonito. Certo
dia ele a convidara para jantar. Ela não recusara nem aceitara, mas fora
conversar com os filhos. O mais velho incentivou-a abertamente, ao passo
que o mais novo a repreendeu, dizendo que ela mal o conhecia e estaria
colocando a família em risco. Ela de pronto fecha-se, recusando-se mesmo
a ir ao mercado novamente. Episódios como esse, em que a cena da sedu-
ção passa rapidamente ao registro do traumático, do abjeto, já haviam sido
esboçadas em outras sessões, mas sem maiores associações. No entanto,
intervenho nesse momento para chamar sua atenção ao ato de fechar-se,
de trancafiar as coisas dentro do armário. Ao que ela me diz que já tentara
ter outras relações, desde que se separara, mas, para ela, depois do ocorri-
do em cativeiro, ela nunca será a mesma. Ela se desculpa, pois eu sou um
homem também, mas diz que “todo homem é um potencial violador”. Eu me
pergunto silenciosamente, até mesmo os seus filhos? Um longo silêncio,
nunca antes ocorrido, se instala.
Eu digo que aquilo que ela trazia era muito importante de ser retomado
na continuidade de nossos encontros. E que poderíamos disponibilizar, con-
forme demandado por ela, um encontro entre seus filhos e outro psicólogo,
para que eles pudessem conversar sobre como estavam vivenciando esses
primeiros meses no Brasil. Este iria entrar em contato com ela, para marca-
rem um primeiro encontro. Dito isso, eu antecipo a sessão da semana se-
guinte, pois seria feriado na sexta-feira, explicando que era importante que
continuássemos tratando desse assunto. Pergunto-lhe por que ela deixava
uma decisão sobre ter ou não relações, de ter ou não uma sexualidade, ao
arbítrio de seus filhos? Ela admite sua dificuldade de ter confiança nova-
mente nos homens. Noto que não responde a minha questão, colocando-se
no lugar de vítima de um prejuízo. Eu lhe lembro que nossos encontros po-
deriam ajudar a reconstruir sua segurança, desde que ela se engajasse em
vir, fato sobre o qual eu observava sua hesitação.
45
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

A tentativa de evitar todas as novas formas de excitações ou de


novos compromissos em sua nova e recente situação me parece muito
importante aqui, pois eu me encontrava investido de uma tal posição de
agressor introjetado na vida psíquica de Condolência, apesar de minha
própria dificuldade de observar isso, após pedir desculpas pelo fato de eu
ser um homem.
“A doença do armário”, descrita figurativamente por Sedef Ecer (2009),
demonstra esse gesto do sujeito que, face ao sentimento de culpa de ter
sobrevivido ao horror, se trai no momento de recomeçar do zero. O gesto de
guardar a mesa de centro desloca-se aqui em direção ao ato de confinar a
vida dentro de seu armário. Abolir a mesa de centro, o móvel da conviviali-
dade e socialização da casa, indica a impossibilidade de colocar-se frente a
novos compromissos, uma fuga em ré, em que o armário pode servir como
paraexcitação, assim como pode um envelope às quatro vidas que ali se
enclausuram.

4. O des-aniversário de morte: o encontro perdido com o real

Na próxima sessão, ela retorna pontualmente, mas traz consigo os


filhos. Surpreendo-me e pergunto o porquê de eles estarem ali. Ela me diz
que havia entendido que iríamos começar o grupo hoje. Leio esse lapsus
como um suporte para não precisar falar sobre seu sofrimento. Ela queixa-
se por longos minutos dos filhos, até chegar ao ponto fatídico. Estávamos
a uma semana do dia 24 de novembro, o dia de seu sequestro. Eu reajo na
hora, como numa exclamação de surpresa, eis aí a causa da raiva contra os
filhos. Peço que ela me conte o que anda passando em sua cabeça. “Pois é,
diz ela, é o dia do meu aniversário, mas não de nascimento”. Ela passa a me
narrar exatamente como foi o dia 24. Desde a preparação para um pique-
nique na parte da manhã até o final do dia com a casa cheia. A narrativa é
marcada pelo registro do sensorial e dos afetos. É uma descrição totalmente
diferente daquela que ela havia me feito na primeira entrevista. No lugar
da tortura e da humilhação, reafloravam todos os elementos que constitu-
íam sua posição e laço social, e que lhe seriam arrancados, tal qual seus
dentes, deflagram a extensão da ruptura do exílio. O cair do sol demarcava
igualmente essa queda, a perda desses incontáveis objetos, as galletas, as
piñas, as montanhas. Digo que todas essas lembranças demonstravam sua
vontade de viver, que seu trabalho aqui era poder justamente reconstruí-las.
Ela me olha rindo e fala, “mas que sagrado trabalho”!
Essa foi a última sessão de Condolência. Na véspera do 24 de novem-
bro ela não compareceu à sessão, tampouco retornou as minhas ligações.
46
Do exílio ao asilo: escutas clínicas

O 24 de novembro permaneceu assim como o dia em que a possibilidade


de rememorar cedeu o passo à repetição. A falência da ação do fantasma
indica o efeito de colonização subjetiva do trauma da tortura, cuja falta de
espaço psíquico para pensar e sentir os afetos suscitados outrora não per-
mite uma rememoração segura, mas se impõe como uma espécie de come-
moração mortífera do acontecimento.
Entendemos aqui que a função do fantasma poderia ter-se constituído
como uma ação através da qual o sujeito poderia investir seus objetos en-
quanto perdidos (terra deixada, por exemplo), sem, entretanto, sofrer uma
forte atração pelas cenas de horror então vividas. Quando a possibilidade
de rememorar encontra-se sitiada pela força magnética de Thánatos, de re-
torno ao estado anterior, o que emerge é uma espécie de repetição fatalista,
como uma tentativa de se emprestarem alguns contornos à emergência de
conteúdos psíquicos terrificantes. A bem dizer, aqui não existe rememora-
ção, pois os conteúdos psíquicos não encontram uma espacialidade segura
para sua transcrição. A consagração do dia 24 de novembro demonstra, ao
mesmo tempo, a impossibilidade de separar-se das cenas de tortura vivi-
das, e, sobretudo, de elaborar a transformação de sua antiga identidade.
Comemorar seu aniversário é, assim, a forma de não se esquecer de quem
foi, sob o preço de ausentar-se de si mesma. Ou melhor, de entregar-se à
loucura de ser uma morta-viva. Clivagem de si cujas “lágrimas de Eros” se
fazem escorrer pela força que Thánatos lhe impõe.

5. A parte profana de si: um luto irrealizável?

O caso de Condolência nos parece marcante, pois ele reúne diversos


aspectos fundamentais do sofrimento no exílio. O que inaugura sua solici-
tação de tratamento psicanalítico emerge no momento preciso no qual, se-
gundo as palavras de Benedetti (2000), o sujeito olha-se no espelho sem ver
sua face. O certificado de existência, não enquadrando o sujeito em seus
apoios narcísicos, tampouco numa posição do sujeito na cultura do Outro,
nos abre a questão sobre a prática asilar e as dinâmicas psíquicas e coleti-
vas subjacentes à chegada do refugiado em uma nova comunidade. É seu
próprio narcisismo que parece demandar uma integração, visto que ele se
encontra cindido pela clivagem de sua vida entre mundos. De seu colapso
frente à possibilidade de adquirir nova identidade, emerge uma solicitação.
Solicitação esta feita pelo corpo, que toma lugar de porta-voz de um sofri-
mento arcaico que coloca em jogo seu próprio narcisismo.
A “doença do armário”, figura que foi oferecida à paciente durante o tra-
balho clínico, responde à ação de Thánatos em sua função desobjetalizan-
47
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet

te. Em lugar da renúncia ao objeto perdido (sua pátria, sua identidade social,
sua família) não estaríamos frente a um desinvestimento de todo objeto
possível? Nessa perspectiva, é notável constatar aquilo que Andre Green
(1993) nos adverte sobre a ação desobjetalizante de Thánatos “[...] longe
de se confundir com o luto, é o procedimento mais radical para se opor
ao trabalho de luto, central nesse processo de transformação característico
da função objetalizante” (Green, 1993, p.125). Em uma das últimas frases
endereçadas em sessão, Mas que sagrado trabalho!, Condolência parece
revelar essa impossibilidade de realizar o trabalho do luto (trauerarbeit), ao
falar de uma parte sagrada/profana enquistada dentro de si. Frente ao tra-
balho de falar de seu passado infantil, cuja cena primária se apresentaria
já sobrecarragada pelo real, Condolência prefere ir ao encontro desta parte
sagrada/profana de si mesma da qual não pode separar-se .
A contribuição mais distintiva da psicanálise à clínica do exílio apa-
rece aqui nessa dimensão do “encontro perdido” da repetição traumática:
o trauma não reside exatamente no episódio de violência em si, mas na
atualização de uma relação perdida com o outro, que todavia está sempre
ativa. Quando Condolência se entrega à repetição mortífera, ela revela um
material clínico importante para pensarmos, para além do aceite jurídico do
refugiado, o que está em jogo na prática do asilo, para que o sujeito possa
recomeçar novamente. A clínica do exílio nos demonstra que um trabalho
de elaboração psíquica é condição sine qua non para que o sujeito possa
realizar tal travessia.

REFERÊNCIAS
BENEDETTI, Mario. Las soledades de Babel. Buenos Aires: Editorial Sudamericana,
2000.
ECER, Sedef. Sur le seuil. Paris: Éditions de lʼAmandier. 2009.
GREEN, André. El trabajo del negativo. Buenos Aires: Amorortu, 1993.
KAFKA, Franz. Le château. Paris: Flammarion, 1984.
www.larousse.fr/dictionnaires/francais, consultado em julho de 2013.
LAPLANCHE, Jean. Entre seduccion e inspiracion: el hombre. Buenos Aires: Amor-
rortu, 2001.

Recebido em 03/05/2014
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

48
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.49-57, jul. 2013/jun. 2014

TEXTOS
IMAGENS, APESAR
DA CATÁSTROFE1

Robson de Freitas Pereira2

Resumo: O presente ensaio reafirma a validade da heterogeneidade de supor-


tes nas intervenções sociais, principalmente nos casos considerados graves.
Defende o conceito de que a dimensão do imaginário, na psicanálise, não se
resume ao virtual; é uma das dimensões da linguagem, equivalente ao simbólico
e ao real, articula a eles diversamente, porém não de qualquer maneira. Toma
o exemplo dos campos de extermínio nazista, de onde foram extraídas quatro
fotografias, tiradas pelos próprios prisioneiros, integrantes dos sonderkomman-
do. Uma forma de argumentar o quanto uma imagem pode contribuir para uma
função simbólica.
Palavras-chave: imagem, extermínio simbólico, Shoah, psicanálise.

IMAGE DESPITE THE CATASTROPHE


Abstract: This essay try to reaffirm the importance of using differents ways in a
clinical and social work, mainly when the difficults circunstances are extremely.
This position is based in the psychoanalytical concept that the imaginary di-
mension is not completly defined by a virtual dimension. To the psychoanalysis,
imaginary is one of the dimensions of the language and it’s articulated with the
simbolic and the real. This articulation has diferents manners to occurs but not
in every way. An example is taken from the nazi champs of extermination. Four
photographs, the only that has taken by the prisionners themselves, formers
members of the “sonderkommando” from auschwitz/birkenau. It’s a importante
way to show how one image can have a simbolic function.
Keywords: image, extermination, simbolic, Shoah, psychoanalysis.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA e do Instituto
APPOA; autor, entre outros, de Cinema – o divã e a tela (Ed. Artes e Ofícios/2011); Sargento
Pimenta forever (Ed. Libretos/2004) e La clinique du especulaire dans l’ouvre de Machado de
Assis, (ed bilíngue, Ed. ALI/2002). E-mail: rpereira755@gmail.com
49
Robson de Freitas Pereira

A ideia inicial, neste trabalho, é de reafirmar o lugar fundamental da cul-


tura, no qual uma das suas premissas é romper com a dicotomia entre
individual e coletivo. Além disto, mostrar como se articulam as dimensões do
imaginário e do simbólico, principalmente nas situações, em que propomos
uma escuta sustentada na ética psicanalítica. Escuta que pressupõe que
sujeito não é sinônimo de indivíduo, pois leva em conta a concepção de
sujeito dividido, e que é a posição discursiva que reconhece o não todo na
articulação dos diferentes saberes, o que possibilita o trabalho interdiscipli-
nar e a constituição efetiva de redes. Trabalho que nos parece fundamental
quando se trata de intervenções no social.
Neste ensaio, vamos tentar recortar algo particular; ou seja, o traba-
lho que se faz com as diversas formas de representação e abordagem do
sujeito que não se enquadram na concepção “clássica” de trabalho clínico
psicanalítico. As práticas em que a escrita, a imagem, as fotografias, os
filmes, a costura de bonecos, o trabalho com música, a dança, o corpo e os
esportes, ou o lúdico formam um mosaico de invenções possíveis para sus-
tentar o atendimento. Principalmente nos casos considerados mais difíceis
e nas condições de atendimento ambulatorial e/ou público. Sustentamos
que, com estas formas, com estes fragmentos, é possível acessar os traços
de uma representação e, através destes traços, cogitar uma possibilidade
de constituir uma relação diferente com o outro (e Outro), que não seja de
exclusão ou injúria, que muitas vezes estão associadas a quadros psicopa-
tológicos graves.
Para muitos, isto pode parecer óbvio, entretanto, em certos momentos
– e este me parece ser um deles, torna-se necessário repetir o óbvio. Reto-
mar alguns fundamentos e fragmentos. E, como dizia Lacan, ao retomar um
fragmento, estaremos em cheio na experiência. Basta saber ler os recortes
que nos são oferecidos à escuta.
Ao reafirmar a importância da formação cultural, e das diversas inven-
ções feitas a partir dela (como citamos acima), não vamos nos ater às diver-
sas concepções de cultura. Apenas lembrar que Freud ([1926] 2010) mais
de uma vez colocava uma definição ampla de kultur3, abrangendo todas as

3
“Basta-nos, portanto, nos contentarmos em dizer que a palavra cultura descreve a soma inte-
gral das realizações e disposições que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados
animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e a
regulamentação dos seus relacionamentos mútuos”. Freud, S. O Mal estar na cultura ([1929]
2010), p.87).

50
Imagens, apesar da catástrofe

formas de produção e invenção humana, na qual o processo civilizatório se-


ria aquele de luta e tentativa de domínio das forças pulsionais. Lacan ([1971]
2003) retoma este conceito, dizendo que as pulsões e a cultura na qual elas
circulam se organizam a partir da linguagem, em que os fatos são fatos de
discurso. Chega a afirmar aforismaticamente que a “civilização [...] é o es-
goto” (p.15), quando o índice de uma cultura é mostrado desde o tratamento
da água e do que se faz com o lixo, com os resíduos, até o que se faz com o
próprio corpo e o de nossos mortos. Em outras palavras, um arco complexo
que abrange desde o objeto privilegiado até o resto, lixo. Da causa de de-
sejo até o objeto descartável; seja das articulações com o mundo, seja das
relações com o semelhante, seja com o corpo.
Uma citação a este respeito:

A cultura, portanto, não é a cereja do bolo da história; desde sem-


pre é um lugar de conflitos em que a própria história ganha forma e
visibilidade no cerne mesmo das decisões e atos, por mais ‘bárba-
ros’ ou ‘primitivos’ que estes sejam (Didi-Huberman, 2013, p.99).

Em outras palavras, nossa atualidade histórica não se define sem con-


flitos, Freud escreveu sobre o mal-estar impossível e constitutivo de nossa
humanidade. Lacan, por sua vez, faz um retorno, reafirmando as teses freu-
dianas sobre essa impossibilidade e demonstra o quanto nossas possibili-
dades civilizatórias dependem de algum reconhecimento deste real impos-
sível.
Vamos buscar um exemplo extremo de como um fragmento pode estar
a serviço de um processo de simbolização (civilizatório), mesmo sob as pio-
res condições, mesmo quando a realidade é (quase) inimaginável. Fazendo
isto, não estamos distantes do método freudiano, que procurava os limites
da condição humana, a fim de poder lançar algum esclarecimento sobre a
situação cotidiana. Neste caso que vamos abordar, o limite da racionalidade
se transforma em barbárie: os campos de extermínio da II guerra mundial.

Auschwitz/Birkenau – A imagem/fragmento testemunho

Quatro fotos contrabandeadas do inferno. Podemos lembrar Hanna


Arendt, citada no filme de Margarethe von Trotta (Hanna Arendt, 2012): “o
mal não é radical, ele é extremo”.
O extremo da racionalidade teve nos campos de extermínio nazistas
um de seus abrigos mais mórbidos. Milhões morreram nos fornos crema-
tórios e nas execuções sumárias. Os prisioneiros levados ao extremo da
51
Robson de Freitas Pereira

miséria e da humilhação: seriam os próprios judeus os responsáveis por


conduzir seus próximos à câmara de gás (não sem antes fazê-los se despir
e entregar dinheiro e bens aos carrascos), depois recolher os corpos, retirar
os amálgamas de ouro dos maxilares e levar os cadáveres aos fornos de
incineração. No auge do processo de extermínio – “solução final” no eufe-
mismo nazista, quando os fornos já não davam mais conta da demanda,
eles eram depositados em valas de incineração a céu aberto. Os grupos
obrigados a fazer esta tarefa tétrica chamavam-se sonderkommandos (es-
quadrões especiais), foram forçados a trabalhar até a morte, impossibilita-
dos de conviver com o restante do campo e tendo como rito iniciático levar
para o forno os corpos da equipe que os precedia.
Em meio a este cenário impossível de ser totalizado, em junho de
1944, um dos membros deste sonderkommando escondeu-se dentro da an-
tecâmara de um dos fornos para tirar as quatro únicas fotografias que se
conhecem desse momento (vide fotos). E depois, enviar o testemunho para
fora do campo, para fora da Polônia, afim de que estes fragmentos, estas
fotos sem tratamento, feitas com o risco de morte iminente, pudessem tes-
temunhar algo do horror.
Georges Didi-Huberman (2012) em seu livro, Imagens, apesar de tudo,
conta com detalhes a saga destes heróis para fotografar e retirar do campo
o rolo de negativos dos quais só se conhecem estas quatro cópias reve-
ladas. Além disto, defende que elas sejam exibidas sem retoques, o mais
perto da sua condição original. “Aprimorar” a nitidez, ou recortar para “me-
lhor”, enquadrar, seria negar as condições de produção delas. Estaríamos
sucumbindo à avidez de nosso olhar atual e ao império do espetáculo, em
detrimento da tentativa de nos aproximarmos da veracidade das bárbaras
condições dos campos de extermínio. Temos que reconhecer seu valor jus-
tamente porque a precariedade era a condição de existência naquele mo-
mento e, apesar de tudo, foi feito um esforço sem precedentes para que elas
existissem.
Filip Müller (citado no livro de Didi-Huberman, 2012), um dos poucos
sobreviventes destes sonderkommandos, assim descreve a “tarefa” que as
imagens fotográficas mostram:

[...] com as primeiras luzes do alvorecer, acendíamos o fogos das


duas fossas nas quais havíamos amontoado quase dois mil e qui-
nhentos corpos; duas horas depois estes eram irreconhecíveis. As
chamas incandescentes envolviam os inumeráveis troncos carbo-
nizados e consumidos. [...] Contrariamente ao que acontecia nos
crematórios, onde o calor podia se manter com ajuda de ventilado-

52
Imagens, apesar da catástrofe

res, nas fossas, quando o material humano começava a queimar,


a combustão só podia subsistir se o ar circulasse entre os corpos.
Como, no processo o amontoado de corpos tinham tendência a
ficarem retorcidos, por não chegar o ar procedente do exterior, a
equipe de queimadores da qual eu fazia parte devia incessante-
mente derramar sobre aquela massa azeite, metanol ou gordura
humana em ebulição recolhida das cisternas do fundo das fossas
[...] Com ajuda de longas espátulas de ferro de ponta curvada,
depositávamos em cubas a gordura fervente, procurando proteger
as mãos com uns trapos. Depois de haver depositado a gordura
nas fossas, se elevavam por todos os lados jatos de chamas que
silvavam e crepitavam. Espessas colunas de fumaça obscureciam
o céu espalhando um odor de óleo, de gordura, de benzol e carne
queimada [...]. Alguns mortos pareciam voltar à vida. Sob efeito
do intenso calor se retorciam dando a sensação de estar sofren-
do dores insuportáveis. Seus braços e pernas se movimentavam
como num filme em câmera lenta, seus troncos se erguiam de
novo [...]. A intensidade do fogo era tal que os cadáveres eram
devorados de todos os lados pelas chamas. Formavam-se bolhas
na sua pele, explodindo uma após a outra. Quase todos os corpos
untados com gorduras estavam marcados por cicatrizes negras de
queimaduras. Sob o efeito do intenso calor, na maioria dos mor-
tos o abdômen arrebentava. Sua carne se consumia produzindo
intensos silvos e crepitações [...]. A incineração durava de cinco
a seis horas. O resíduo da combustão enchia quase um terço da
fossa. A superfície, de uma cor branco-acinzentada fosforescente,
ficava repleta de crânios humanos. Quando a superfície da massa
de cinzas esfriava suficientemente, jogavam-se nas fossas umas
tábuas forradas com metal. Alguns prisioneiros baixavam no fundo
das fossas, munidos de pá, a fim de tirar a cinza ainda quente para
o exterior. Iam equipados com luvas e chapéu com aba de prote-
ção; entretanto frequentemente eram alcançados pelas partículas
de cinza ardente levantadas pelo vento que não cessavam de cair.
Isto lhes provocava graves lesões no rosto e nos olhos. Por esta
razão, também se os equipava com óculos protetores. Depois de
haver esvaziado os resíduos das fossas, se transportavam a toda
velocidade os restos nuns carrinhos, até o depósito de cinzas onde
eram amassados em montes que chegavam a altura de um ho-
mem (apud Didi-Huberman, 2012, p.22-24).

53
Robson de Freitas Pereira

Apesar de todo este horror, um grupo encontrou forças e desejo de


arriscar umas fotos para testemunhar, o impossível/o inominável que eles
viveram. Para não abdicar de sua condição humana, desejante, apesar das
torturas cotidianas e da morte certa e iminente.
Além de ter escrito o relato, Filip Müller também deu depoimento para
o filme4. Esse testemunho tão pungente e chocante pode parecer mórbido
para alguns, porém, diante de tamanha crueldade e racionalização da morte
de seres humanos, somente se aproximando dos limites desta realidade
inimaginável podemos relançar alguma possibilidade civilizatória. Esta foi
também a posição de Claude Lanzmann, ao escolher como testemunhos
principais estes poucos heróis/vítimas dos sonderkommandos. Afinal, eram
os únicos que podiam narrar os momentos finais do processo, aquele depoi-
mento que mais se aproximaria do que seria narrar a morte; pois as vítimas
foram reduzidas a cinzas. Müller, por exemplo, escapou três vezes, milagro-
samente do fuzilamento. Queria viver. Aqui não cabem juízos do tipo: Por
que não se suicidaram? Por que não se revoltaram? Muitos se suicidaram,
muitos se revoltaram, e a grande maioria morreu, fosse qual fosse sua ati-
tude. Muitos intelectuais, judeus ou não, escreveram sobre isso, a lista e as
discussões são longas, mas importantes. Em situações extremas, como a
dos campos de extermínio, não se pode julgar com os mesmos parâmetros
de nossa realidade. Afinal, naquele lugar, morrer era o natural.
Retomando a discussão, podemos enfatizar a importância e a função
das imagens nestas e noutras situações, em que o simbólico foi esgarçado,
foi reduzido a fragmentos pelo real. No exemplo aqui exposto, as fotos com-
provam que o imaginário não é redutível ao especular, coisa que podemos
ler em diversos momentos na obra de Jacques Lacan. Vai além disto. Em
determinados momentos nos serve para tentar fazer borda no real impossível.
Este, que, ao irromper no imaginário, provoca angústia, mas da qual precisa
sair uma nomeação do Outro para rearticular o simbólico. Por isto, porque isto
foi possível até nos momentos impensáveis, é que as invenções do cotidia-
no, por mais pueris que possam parecer, adquirem peso e valor constitutivo
do sujeito (para lembrar nossa afirmação no início deste texto). Atos que se
contrapõem a que nosso laço social, nossa racionalidade seja resumida a um
pensamento único, esférico e de viés totalitário. Tarefa difícil, mas necessária.

4
Shoah. Direção: Claude Lanzmann, 1985.

54
Imagens, apesar da catástrofe

Fotos

1. Primeira foto e sua ampliação: cena de corpos sendo incinerados ao


ar livre, perto das árvores e cerca do campo. Soldados observam.

2. Foto das árvores (as Bierken) que circundavam o campo. Fotógrafo


devia estar em movimento.

55
Robson de Freitas Pereira

3.Mesma foto acima e sua sucedânea.

4. Imagem de mulheres nuas pouco antes do fuzilamento. Ao lado de-


talhe ampliado.

56
Imagens, apesar da catástrofe

REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens, apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
_____. Cascas. In: Revista Serrote, n.13. Fundação Moreira Salles: Rio de Janeiro,
2013, p.98-133.
FREUD, S. Mal-estar na civilização [1929]. Porto Alegre: LP&M, 2010.
LACAN, Jacques. Lituraterra [1971]. In. _____. Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003, p.15-25.

Recebido 28/02/2014
Aceito 03/04/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes

57
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.58-66, jul. 2013/jun. 2014

TEXTOS É POSSÍVEL FALAR


SOBRE ESSA TRAGÉDIA?1

Luciana Portella Kohlrausch2

Resumo: O presente texto consiste em um testemunho feito pela autora sobre


a tragédia ocorrida em Santa Maria, na boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013.
Para acompanhar o relato fez-se importante um aparato teórico referente ao
desamparo e ao trauma.
Palavras-chave: tragédia, Kiss, desamparo, trauma.

IS IT POSSIBLE TO TALK ABOUT THIS TRAGEDY?


Abstract: This text consists of a testimony made by the author about the trag-
edy that occurred in Santa Maria, Kiss nightclub, on January 27, 2013. To follow
the story became important theoretical apparatus related to helplessness and
trauma
Keywords: tragedy, Kiss, helplessness, trauma.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).
E-mail: lucianapk@yahoo.com.br
58
É possível falar sobre essa tragédia?

O título proposto para este momento representa o mal-estar e a dificulda-


de que o tema provoca. É nesse sentido que a pergunta do título servirá
como guia, levando em conta a possibilidade e de que maneira seja possível
falar sobre esse assunto, de que lugar e a que preço.
A tragédia referida no título não precisaria ser apresentada, mas é pre-
ciso nomeá-la. Foi o incêndio que ocorreu em Santa Maria, na boate Kiss no
mês de janeiro de 2013.
À primeira vista, parece um tema de que se teria muito que falar ou
sobre que escrever. Isso, porque os fatos são muitos, assim como os des-
dobramentos em relação ao tema. No entanto, tudo que se fala soa sem
sentido, pois parece não conseguir conter todo o horror do ocorrido - conter
no sentido de abranger e também no sentido de dar limite ao acontecimento.
De início, destaco que uma fala como essa, e a esse tempo, ainda
tão perto do ocorrido, passa pela dificuldade de suportar metáforas, não há
associações possíveis. Nessa tragédia estamos lidando com uma impossi-
bilidade do metafórico: fogo é fogo, morte é morte e corpo é corpo.
O tempo se coloca nessa situação como algo a ser sublinhado, pois,
apesar de estarmos perto do ocorrido, como referi, um relato como este se
apresenta como possibilidade de elaboração. Prefiro, ao invés de chamar
de relato, chamar de testemunho!
A palavra testemunho remete à escrita de Primo Levi e, o acompa-
nhando, temos a possibilidade de mergulhar em uma literatura do testemu-
nho decorrente da segunda guerra e da shoá. Lembrando ainda de mais
dois testemunhos que particularmente me tocaram na pesquisa feita para
este texto: os quadrinhos de Art Spiegelman e a poesia de Paul Celan.
Nestes tempos de hoje, diante dos acontecimentos que presenciei e
presencio, em tempos que se sobrepõem, em sentimentos que se inter-
calam, surgiu-me a questão do dever de testemunhar. Posso ou preciso?
Quero ou devo?
Essa questão surge mais fortemente quando se toma por referencial
Levi, que escreveu apesar do desamparo que vivenciou nos campos de
concentração. Ele representa a necessidade de escrever, necessidade esta
que deve ultrapassar a própria dificuldade de tratar do inominável que aque-
la situação carrega.
Difícil seria fazer um testemunho sem referenciar o livro de Agamben
(2008) O que restou de Auschwitz, em que ele compartilha três origens do
termo “testemunho” no latim. Primeiramente, registra existir o termo testis,
o qual seria o testemunho no sentido de se colocar como o terceiro diante
de uma situação. Trata-se da origem do nosso termo “testemunha” hoje. A
segunda origem da palavra “testemunho” é supertes, exemplo clássico do
59
Luciana Portella Kohlrausch

relato de Primo Levi, uma pessoa que viveu uma situação desde o início
até o final, fazendo parte da situação, fazendo parte da cena. Por terceiro,
Agamben fala do auctor, cujo testemunho sempre apresenta uma vontade
de influir, um testemunho que pressupõe sempre algo.
Tempo e testemunho formam um par importante neste escrito e com
eles trabalho a minha fala a partir do que chamei de três tempos3 desse tes-
temunho – e chamei dessa forma, pois, em diferentes tempos, pude teste-
munhar a ocorrência e os desdobramentos desse incidente trágico. Quando
me refiro a tempo, não quero dizer de um espaço de tempo delimitado, com
hora ou dia; quero dizer, principalmente, os tempos da enunciação.
Até o momento, compartilhei nessa fala o que chamei de tempo de
agora, tempo esse de construção do texto e de fala, tempo que se renova a
cada instante, a cada nova notícia, a cada novo texto, a cada nova escuta.
Tempo esse que se renova, por fim, enquanto falo para vocês. E, partindo
da noção de Agamben, essa parece ser uma experiência de testemunho,
não um supertes, pois, embora fazendo parte da tragédia – quem de nós
não fez? – não estive como sobrevivente, nem como familiar.
No consultório, desde a semana subsequente ao incêndio, relatos de
pacientes fizeram de mim uma testemunha do desamparo causado por essa
situação, mesmo para aqueles que não estiveram diretamente envolvidos.
Partindo daí, construo um segundo tempo de testemunho, o qual denominei
de o tempo de escuta.
Escutei diversas pessoas que falavam, cada uma de sua maneira, so-
bre o ocorrido, cada qual com seu testemunho, cada qual com seu envolvi-
mento, sendo que, nessa escuta, há uma frase que percorreu algumas falas
e me chamou atenção:“Poderia ter sido eu”.
A tragédia esteve muito perto de todos. Foram 242 vítimas, que eram
jovens, que estavam em sua maioria na faculdade. Assim, em maior ou me-
nor grau, as pessoas conheciam as vítimas, ou porque eram familiares, ou
conhecidos de familiares, ou tão somente por trazerem à tona essa pergun-
ta compartilhada por tantos: “poderia ter sido eu”.
Essa morte antes era reservada aos mais velhos, contudo, a morte
dos semelhantes fez com que uma grande parcela da população jovem se
deparasse com sua própria morte. Freud ([1915]1996), no texto Reflexões
para os tempos de guerra e morte, destaca a irrepresentabilidade da morte
no inconsciente:

3
A divisão do texto em tempos de testemunho foi uma forma de estilo na escrita. Não faz refe-
rência a nenhum conceito.
60
É possível falar sobre essa tragédia?

[...] a morte era o resultado necessário de toda vida, [...] a morte


era natural, inegável e inevitável. Na realidade, contudo, estávamos
habituados a nos comportar como se fosse diferente. Revelávamos
uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la
da vida. Tentávamos silenciá-la; [...] é impossível imaginar nossa
própria morte, e, sempre que tentemos fazê-lo, podemos perceber
que ainda estamos presentes como espectadores. [...] no incons-
ciente cada um de nós está convencido de sua imortalidade (p.299).
[...] Nosso inconsciente não crê na própria morte, comporta-se
como se fosse imortal (p. 306). [...] O medo da morte, que nos
domina com mais frequência do que pensamos, é, por outro
lado, algo secundário, e via de regra, o resultado do sentimento
de culpa (p. 307).

Continua referindo que a morte não deixa de acontecer em função dos


nossos sentimentos, e cada vez que ocorre somos atingidos profundamen-
te. Ainda um grande número de mortes, nos diz Freud ([1915]1996), nos
parece terrível ao extremo.
Freud faz aqui referência às mortes ocorridas durante a primeira guer-
ra mundial. Nesse texto de 1915, a palavra “desilusão” aparece diversas
vezes, mostrando todo o abalo trazido pela guerra. “[...] é evidente que a
guerra está fadada a varrer esse tratamento convencional da morte. Esta
não mais será negada; somos forçados a acreditar nela” (p. 301).
No contexto da tragédia, estou tendo a possibilidade de escutar o de-
samparo que essa situação colocou nos jovens, apresentando-se ora como
dificuldade de dormir, ora como medo. Medo de que o teto caísse sobre
suas cabeças, medo de que o chão desabasse. A morte aparece de forma
aterrorizadora, traumática.
Uma morte que até então não tinha destaque e que passou a ser pre-
sente. Surgiram frases como: “Eu não me sinto seguro em lugar nenhum”.
Dessa forma, a ilusão da imortalidade é rompida através de uma tra-
gédia desse âmbito, tal qual Freud nos fala no texto citado. Assim como a
guerra acaba com a ilusão, aqui, nessa catástrofe, também a ilusão foi per-
dida, o que fica de resto é o desamparo.
No livro Pânico e desamparo, escrito por Mario Eduardo da Costa Pe-
reira (2008), temos acesso a um longo estudo acerca do desamparo, do
qual eu destaco a visão do:

[...] hilflosigkeit como constituída pela impossibilidade para o apa-


relho psíquico de apreender pela simbolização o conjunto dos pos-

61
Luciana Portella Kohlrausch

síveis e de delimitar de uma vez por todas, o sujeito, seu corpo e


seus desejos em um mundo simbolicamente organizado (p. 200).

Destaco de maneira mais enfática a dimensão do desamparo ligada ao


trauma, pois a noção de trauma nos é cara num momento como este. Foi
um episódio que fez muitas vítimas fatais, em que uma cidade inteira acor-
dou no domingo com sirenes soando e ouvindo o choro de tantas e tantas
pessoas que haviam perdido seus entes queridos. Nesse episódio não se
pode deixar de falar em trauma.
Também se faz importante comentar que esse incidente não afetou
somente os jovens. Nos consultórios apareceram relatos do traumático não
apenas de pessoas que já faziam análise, mas também de pessoas que, a
partir desse momento, precisaram de escuta, pessoas de todas as idades e
com vários tipos de envolvimentos com o ocorrido.
Mesmo que o desamparo tenha uma dimensão que é própria ao psi-
quismo, ele está, de alguma forma, ligado ao trauma. Ele é reatualizado no
trauma.
As palavras de Seligmann-Silva (2000) para o trauma parecem pro-
pícias aqui: “ferida na memória” (p.84). Podemos pensar no trauma como
essa ferida, esse rasgo onde está o real. Real este que repete sem elabora-
ção, que não permite o enlaçamento e não encontra simbolização. Um trau-
ma decorrente de uma tragédia repete e precisa ser contornado de alguma
forma pelo simbólico.
Seligmann-Silva (2000) remete a Freud – no texto Além do princípio do
prazer [1920] – para caracterizar o trauma como uma “incapacidade de recep-
ção de um evento transbordante” e torna-se algo “sem forma” (p.84). O trau-
ma vem acompanhado do choque, susto (shreck), e com isso não dá tempo
de ser instalada a angústia, a percepção fica fora, enquanto algo transborda.
Citando Freud em Inibição, sintoma e angústia ([1926]1996): “a angús-
tia é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois
da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda” (p.162). A angústia
aparece como um sinal do eu para um perigo, está do lado da restauração
do eu frente a um perigo. Em situação traumática, de horror, de perigo e
ímpeto, a angústia perde o espaço.
O tempo de testemunho, este que me serve de aparato ao meu próprio
desamparo frente à situação da morte, da morte trágica e da morte em gran-
de número, chamei de o tempo aquele.
O tempo aquele, do dia 27 de janeiro de 2013, domingo, quando rece-
bo uma ligação de amigos para saber se estávamos bem, pois havia ocorri-
do um grande incêndio em Santa Maria, em uma boate.
62
É possível falar sobre essa tragédia?

Número de mortos naquele momento: 80.


Ao acessar a internet em busca de notícias, descubro que os mortos já
estão em número acima de cem e que a boate era a Kiss.
Notícias aparecem com pedidos de ajuda de profissionais da saúde,
psicólogos incluídos, para amparar os familiares que estavam se dirigindo
ao CDM, centro esportivo da cidade, para onde estavam sendo levados os
corpos dos não sobreviventes.
Fui ao local verificar de que maneira poderia dar algum amparo. No
momento em que cheguei não havia tantos profissionais, os quais foram
chegando em grande número no decorrer do dia.
Gente para todos os lados. Nesse momento mais de 200 corpos esta-
vam no ginásio ao lado, enquanto se organizava uma fila para os familiares
fazerem o reconhecimento dos corpos e então poder encaminhar o velório.
Os profissionais iriam acompanhar os familiares nesse reconhecimen-
to que todos queriam evitar, pois a esperança era a de não achar entre os
mortos o seu próprio filho, primo, colega, irmão. Ainda havia muitos jovens
em hospitais, sobreviventes, mas não identificados. Então, não encontrar
o corpo do seu parente ali era uma forma de esperança renovada, de uma
última chance de vida. Nesse momento, organizaram-se os psicólogos para
que acompanhassem os familiares no reconhecimento dos corpos.
Pergunto-me hoje qual era o sentido de acompanhar, naquele momen-
to? Afinal, naquela circunstância, o que faríamos se um parente desabasse?
O que diríamos?
Eu não conseguiria segurar se aquele pai que acompanhei tivesse
caído ao reconhecer sua filha. Não havia o que dizer. O que pudemos
fazer foi acolher os familiares com um gesto, como segurar o braço, o que
se traduz, por fim, em uma tentativa de amparo, pois as palavras tinham
pouco lugar.
Quando entrei naquele ginásio cheio de corpos enfileirados, deitados
no chão, um ao lado do outro, eu “segurava” um homem que nunca mais
vi. Enquanto segurava o familiar, olhei ao redor, prestei atenção em como
tinham sido organizados os corpos. Nessa hora, percebi que as meninas
estavam de um lado e os meninos de outro. Enquanto isso, perguntaram
o nome da filha do familiar que eu acompanhava, sendo que a pessoa que
estava à nossa frente disse-nos então que ela estava daquele lado, o das
meninas – “É mais ou menos por aqui”, nos mostrou essa pessoa. Nesse
momento, escuto o homem dizer: “Esta é a minha filha”. Eu olhei para a
moça e para as outras que estavam ao seu lado, e das outras fileiras. Es-
tavam todas com o corpo tapado até o pescoço. Pensei: deve ser porque
estariam com alguma parte do corpo à mostra, já que não estão queimadas.
63
Luciana Portella Kohlrausch

Depois do reconhecimento, havia os papéis a serem encaminhados,


ainda dentro desse mesmo ginásio, bem no meio. Ali me deparei com os
meninos, com as roupas também tiradas, mas não estavam tapados com
lona.
As cenas do ginásio foram essas. Um tempo depois, relembrando, me
dou conta de que fiquei o tempo inteiro interpretando, colocando vida nos
corpos e interpretando o horror. Se as meninas estavam todas de um lado,
tapadas ou queimadas, isso não era uma questão para aquele pai, mas eu
pensava nessas coisas, fazia hipóteses, interpretava para que eu pudesse
lidar com o desamparo da situação. Afinal, era eu quem deveria segurá-lo.
Como um aparato ao desamparo, eu tomei uma posição de profissional que
tinha ali o que pensar, esse foi um dos recursos para poder atravessar a
situação, para não precisar pensar nas mais de 200 mortes que estavam na
minha frente.
De noite pensei nas famílias, pensei no que poderiam os profissionais
fazer a partir de agora, como a cidade ficará? Todas maneiras de lidar com
o que eu vi. O simbólico tentando transpor o real. Coisa que faço até agora,
mesmo sabendo que, de fato, o simbólico nunca vai conseguir cobrir o real.
Lidamos com essa impossibilidade.
Como lidar com essa situação? Não apenas para quem estava lá, mas
todos que viram de alguma maneira, principalmente pela televisão, todo hor-
ror das imagens. A irrupção da morte não encontra lugar na linguagem, nos
afirma Pereira (2008), acompanhando Freud no texto acima citado – Re-
flexões para tempos de guerra e morte – e desta forma ela emerge como
paralisia e terror.
O autor nos destaca, acompanhando outro texto freudiano citado an-
teriormente – Inibição, sintoma e angústia, de 1926 – em que Freud afirma
que o afeto da situação traumática é o terror. Uma avalanche de desprazer
invade o eu, que a experimenta passivamente. “Na experiência de terror,
o desamparo deixa de ser um horizonte das possibilidades psíquicas para
manifestar-se como uma vivência concreta e insuportável” (Pereira, 2008,
p.190).
Na importante teorização acerca do trauma feita por Paulo Endo (2005),
no seu livro A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico, este
afirma que a neurose traumática ocorre antes no corpo e não encontra ne-
nhuma “tradução psíquica no nível do ego” (p.113).

O sofrimento imposto de fora não desencadeia conflito algum, uma


vez que nem mesmo é reconhecido pelo ego. Tratar-se-ia de uma
perturbação que colocou o ego numa posição coincidente ao cor-

64
É possível falar sobre essa tragédia?

po, não como uma projeção ou representação psíquica do corpo,


mas o ego, nesses casos, seria o corpo funcionando. Portanto, da
mesma forma, sem qualquer recurso às próprias defesas egoicas,
o psiquismo só poderia pleitear algum cuidado a um nível literal-
mente corpóreo (Endo, 2005, p.113).

Desta forma o psicanalista citado nos ajuda a pensar no choque, no


traumático, mas também numa possibilidade de ajuda em momentos de
terror como o que vivenciamos. Um amparo corporal precisava ser feito,
mesmo que fosse impossível uma ajuda real ao corpo. Éramos muitas pes-
soas naquele domingo, emprestando o corpo como forma de ajuda, éramos
uma sustentação, uma presença, um “não ir embora”, o que se revela uma
posição. Posição essa sustentada pelo laço social, pela linguagem.
Em um momento de catástrofe, quando o desamparo aparece com
todos os seus lados, quando o horror vem à tona, frente à presença da
morte, as palavras se tornam difíceis. Em substituição, um amparo físico,
uma sustentação, uma presença, mesmo que silenciosa, se faz importante.
A linguagem por vezes precisa ser traduzida por um gesto. Também a fala
se mostra como possibilidade, a fala mais como voz do que como sentido.
Sentido parece a última coisa presente naquele lugar.
Pereira (2008) aponta que, num momento de desamparo, quando a
imagem construída no espelho corre o risco de desmoronar, é o imaginário,
ou seja, o eu (moi), como instância imaginária, que faz uma “muralha” contra
esse desamparo. O autor trabalha com o texto do estágio do espelho, de La-
can, em que a noção de imagem própria só é completada com o simbólico,
com as palavras da mãe. Como as palavras da mãe serão sempre incertas,
quero dizer, como a linguagem falha, essa completude também irá falhar.
E se a linguagem falha, falha também um fechamento para essa fala. E
isso porque considero que tenha aberto mais perguntas, e essas perguntas
não estão em tempo de respostas. Se tento fechar com o “tempo de escuta”,
me parece insuficiente, pois ainda é necessário um tempo de compreender.
Os desdobramentos que ocorrerão na clínica, individualmente, ainda
estão por ocorrer. Se eu cito frases soltas, que foram escutadas, também é
porque não foi dito muito mais, ainda não. Se faço referência a uma dificul-
dade da metáfora, acredito ser com ela uma das direções a serem dadas na
escuta, possibilitando a polissemia significante, a substituição significante.
No entanto, ainda é muito difícil falar desse trauma, ainda é difícil associar.
Haverá outro tempo por devir em que poderemos falar mais, mas em outro
tempo.

65
Luciana Portella Kohlrausch

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (homo
Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.
ENDO, Paulo. A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico. São Paulo:
Escuta/Fapesp, 2005.
FREUD, Sigmund. Reflexões para tempos de guerra e morte. [1915] In: ______.
Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______. Inibição, sintoma e ansiedade. [1926] In: ______. Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
PEREIRA, Mario Eduardo da Costa. Pânico e desamparo. São Paulo: Escuta, 2008.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur; SE-
LIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000.

Recebido em 25/10/13
Aceito em 18/04/14
Revisado por Renata Almeida

66
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.67-77, jul. 2013/jun. 2014

A COLABORAÇÃO
DA PSICANÁLISE NA
TEXTOS CONSTRUÇÃO DO SERVIÇO
DE ACOLHIMENTO ÀS VITIMAS
DO INCÊNDIO NA BOATE KISS1

Volnei Antonio Dassoler2

Resumo: O caráter extraordinário do incêndio ocorrido na madrugada de 27 de


janeiro de 2013, na boate Kiss, em Santa Maria, alcançou tanto o sujeito na sua
singularidade quanto a rotina viva da cidade. Tendo isto em consideração, foi
criado o Acolhe Saúde, serviço de atenção psicossocial destinado ao cuidado
das pessoas afetadas direta ou indiretamente como resposta às diferentes de-
mandas originadas pelo desastre. Neste artigo, apresentamos como esse Servi-
ço se estruturou e de que maneira o campo psicanalítico fez a sua colaboração.
Palavras-chave: psicanálise, urgência subjetiva, saúde mental.

THE CONTRIBUTION OF PSYCHOANALYSIS RELATED TO


STRUCTURING A USE EMBRACEMENT SERVICE TO THE
VICTIMS OF THE FIRE IN THE KISS NIGHTCLUB
Abstract: A city is not prepared for an out of the ordinary fact, such as the fire
that occurred on the January 27, 2013, in the Kiss nightclub, in Santa Maria.
Actually, any project of psychosocial intervention must consider that such fact
reaches both the singular lives of the subjects and the living daily life of the city.
Considering such context, Health User Embracement Service was created, a
psychosocial care service aiming to care for the people directly or indirectly af-
fected by the fire, responding to different demands which rose from the disaster.
In this sense, we present the process of creating such Service and the contribu-
tions of the psychoanalytic field on structuring it.  
Keywords: psychoanalysis, subjective urgency, mental health.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do comitê ges-
tor do Acolhe Saúde, Serviço de Atenção Psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde de
Santa Maria. RS. E-mail: dassoler@terra.com.br

67
Volnei Antonio Dassoler

27 de janeiro de 2013: O dia que, ainda, não terminou

E mbora incêndios de grande magnitude não configurem raridade no con-


texto contemporâneo da humanidade, o que ocorreu na boate Kiss ga-
nhou contornos particulares por envolver circunstâncias que, quando asso-
ciadas, incrementam o caráter traumático que um desastre desse tipo pode
adquirir. De acordo com Castro (1998), os desastres podem ser incluídos
em duas categorias: o primeiro tipo é designado como natural, por ser oca-
sionado por eventos ligados a fenômenos da natureza, como enchentes e
terremotos. O segundo tipo é classificado como desastre humano, por ser
resultado de algum tipo de intervenção cuja responsabilidade é atribuída
a uma ação do homem. Dentro dessa perspectiva, é proposta a seguinte
definição para “desastre”:

Resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo ho-


mem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos huma-
nos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econô-
micos e sociais. Os desastres são quantificados, em função dos
danos e prejuízos, em termos de intensidade, enquanto que os
eventos adversos são quantificados em termos de magnitude. A
intensidade de um desastre depende da interação entre a mag-
nitude do evento adverso e o grau de vulnerabilidade do sistema
receptor afetado. Normalmente o fator preponderante para a inten-
sificação de um desastre é o grau de vulnerabilidade do sistema
receptor (p. 52).

De acordo com essa lógica, o incêndio na boate Kiss configura-se


como um desastre decorrente de ações humanas de alto impacto psicosso-
cial por envolver uma população jovem, por ter ocorrido de forma violenta e
por ter alcançado um grande número de mortos e de feridos.
Com efeito, as primeiras ações pós-incêndio tinham como objetivo sal-
var o maior número de vidas e oferecer atendimento de emergência para os
mais de 600 feridos. Para tanto, simultaneamente à prestação de socorro
direto, foi criada uma estrutura de gerenciamento dos recursos médicos e
hospitalares responsável pela localização de leitos de UTI, pelo chamamen-
to de especialistas, pela disponibilização de remédios especiais, pela busca
de recursos de alta tecnologia visando atender os casos mais graves, além
da oferta de transporte aéreo para a transferência de feridos a unidades
hospitalares em outras cidades. Assim, os primeiros cuidados ficaram con-
centrados na urgência e emergência médicas, tendo como base de apoio as
68
A colaboração da psicanálise...

estruturas hospitalares e de pronto atendimento que operavam em perma-


nente diálogo com as forças civis e militares participantes dessa operação,
a fim de dar conta das exigências que a situação exigia.
É importante recordar que a maioria dessas ações iniciais contou com
a participação decisiva de profissionais voluntários, sob a coordenação de
um comitê gestor, formado pelas Secretarias de Saúde do Estado do RS e
do Município de Santa Maria, pelo Ministério da Saúde, pela Força Nacional
do SUS, pelos Médicos Sem Fronteiras, pela Cruz Vermelha e por outras or-
ganizações e instituições de reconhecimento público. Em decorrência disso,
voluntários participaram de diferentes frentes de trabalho, como os procedi-
mentos cirúrgicos, o cuidado humanitário, a recepção dos familiares, a iden-
tificação das vítimas, etc. Paralelamente, o cuidado psicossocial começa a
sobressair como uma demanda que vai requerer assistência.
Diante da inexistência de uma estrutura dessa natureza na rede públi-
ca de saúde mental para o tamanho da tragédia, já na madrugada do dia 28
de janeiro é aberto o Acolhimento 24 horas, serviço de atenção psicossocial
destinado exclusivamente ao atendimento dessa população. Esta unidade
se propõe a atuar tanto no cuidado direto dos envolvidos (sobreviventes,
familiares, trabalhadores, população em geral) quanto no planejamento de
ações junto à rede de saúde do município, a partir de diferentes abordagens
clínicas para lidar com as repercussões desse acontecimento traumático.
Assim, as ações propostas pelo Acolhimento 24 horas, designado,
atualmente como Acolhe Saúde, foram distribuídas em sete grupos de tra-
balho coordenados por um comitê gestor responsável pela avaliação dos
processos de trabalho: acompanhamento em ritos e funerais, apoio psicos-
social nos hospitais, apoio psicossocial na UPA-SAMU, apoio psicossocial
à atenção básica para o fortalecimento da rede de cuidado no território,
atendimento clínico 24 horas, supervisão clínica e um grupo de cuidado ao
cuidador.
Com o passar do tempo, confirma-se que muitos dos problemas iden-
tificados não seriam solucionados a curto prazo e que parte deles exigiria
um projeto de assistência continuado. Nesse sentido, o Ministério da Saú-
de, o Governo do Estado e o Município de Santa Maria assinam um termo
comprometendo-se com a manutenção desse cuidado por, no mínimo, cinco
anos. Na esfera federal, o Hospital Universitário de Santa Maria está encar-
regado do tratamento das pessoas com problemas respiratórios, neurológi-
cos e fisioterápicos decorrentes da intoxicação pelo cianeto e pelo monóxido
de carbono, além do monitoramento dos processos cirúrgicos ocasionados
por queimaduras. O governo estadual tem como atribuição garantir a assis-
tência farmacêutica das medicações especiais e a efetividade das ações.
69
Volnei Antonio Dassoler

Ao poder público municipal coube a assistência psicossocial, razão pela


qual foi contratada uma equipe multiprofissional com a incumbência de dar
seguimento ao projeto instaurado.
Nos primeiros seis meses o serviço funcionou durante 24 horas, e o
acolhimento inicial era realizado por dois profissionais de áreas distintas que
compunham a equipe, como médicos clínicos, médicos psiquiatras, enfer-
meiros, assistentes sociais, psicólogos, psicanalistas.
Para encontrar uma direção clínica coerente e capaz de agregar a di-
versidade de profissionais que compunham esse quadro e considerando
o Acolhe Saúde como um serviço concebido por diretrizes da Política Na-
cional de Saúde Mental, estabelece-se o acolhimento como o recurso de
entrada para o recebimento das pessoas em qualquer nível de atenção ou
em qualquer situação de sofrimento psíquico que, por sua definição, poderia
ser conduzido por diferentes núcleos de profissionais e de linhas teóricas
distintas, conforme propõe o Ministério da Saúde (2013) no caderno 34,
destinado à saúde mental na atenção básica:

...um dispositivo para a formação de vínculo e a prática de cuidado


entre o profissional e o usuário. Em uma primeira conversa, por
meio do acolhimento, a equipe da unidade de Saúde já pode ofe-
recer um espaço de escuta a usuários e a famílias, de modo que
eles se sintam seguros e tranquilos para expressar suas aflições,
dúvidas e angústias. Com este conhecimento, a equipe de Saúde
tem como criar recursos coletivos e individuais de cuidado avalia-
dos como os mais necessários ao acompanhamento e ao suporte
de seus usuários e de sua comunidade (p. 25).

Destacamos que a produção de vínculo e a noção de cuidado com-


partilhado, princípios da clínica psicossocial, são balizadores da noção de
acolhimento e são alcançados por intermédio de uma posição particular e
específica de escuta dos profissionais das unidades de saúde. A elaboração
de um Projeto Terapêutico Singular considerava as particularidades do caso
para definir a especificidade do tratamento, que poderia ter sequência na
própria unidade ou através de contato telefônico ou, ainda, por intermédio
de visitas domiciliares com o apoio da equipe de atenção básica. Nesse pe-
ríodo inicial, foram feitos oito encaminhamentos para internação hospitalar
de curta duração. Destacamos que parte das pessoas que buscaram ajuda
psicológica referiram nunca terem cogitado a ideia de procurar tratamento
em saúde mental e que, muito provavelmente, não o fariam antes desse
acontecimento. Tal constatação reforça a amplitude traumática do desastre
70
A colaboração da psicanálise...

ocorrido na boate Kiss e as dificuldades que se colocaram à elaboração


psíquica desse episódio para as pessoas envolvidas.
Um dos primeiros impasses percebidos no âmbito clínico, demonstra-
do pelos profissionais, dizia respeito à dificuldade ou mesmo impossibili-
dade de avaliar e de lidar com situações emocionais críticas. A pergunta
sobre o que um profissional de saúde mental poderia fazer diante de ame-
aças suicidas e de heteroviolência, da manifestação de confusão mental,
da permanência de vozes e de cheiros, da ausência de interesse na vida,
eram classificados, frequentemente, como quadros para a emergência es-
pecializada, nesse caso, da psiquiatria. Diante de tal contexto, o recurso à
medicalização acabou sendo, muitas vezes, uma resposta à angústia dos
profissionais, identificados ao desamparo dos usuários.
Em parte, essa circunstância pode ser compreendida porque a escu-
ta psicológica e psicanalítica nas configurações tradicionais, se instituem a
partir do destaque do significante como material para uma operação de ela-
boração que requer relação com o tempo, que não pode ser previsível e que
não estava disponível nessa situação. A evidência do real imposta à transfe-
rência nos quadros descritos acima indica que, na direção do tratamento e
com relação aos destinos da pulsão, trabalhamos com a perspectiva de que
um quantum desse componente não se sujeita ao trabalho psíquico nem
aos domínios da representação, permanecendo à deriva.
Com efeito, nessa circunstância, o estatuto da escuta como recurso
clínico é questionado pelos profissionais, na medida em que, nas chamadas
situações de urgência haveria pouco ou quase nada a escutar no discur-
so, já que a narrativa não comportaria o endereçamento transferencial de
caráter decifrativo. Desde esse ponto de vista, a dificuldade recaía sobre a
definição de quais condutas terapêuticas respondiam melhor à situação de
urgência e como qualificar e dar retaguarda aos profissionais que se dispu-
nham a acolher as pessoas afetadas psiquicamente pelo desastre, garantin-
do a legitimidade da contribuição do campo psicanalítico.

A colaboração da psicanálise na urgência subjetiva



Desde os primeiros textos formulados por Freud, identificamos a psi-
canálise como um novo campo de conhecimento e de prática na aborda-
gem do sofrimento psíquico. Esse esforço de elaboração teórica encontrou
na clínica um campo de experimentação e comprovação dos postulados,
articulando a transmissão dos seus achados junto à cultura. Tal trajetória
revela a postura freudiana de constituir sua prática operando nos campos e
nas formas em que o mal-estar da civilização faz sintoma ao sujeito e é por
71
Volnei Antonio Dassoler

essa via que o analista deve se colocar com relação àquilo que se produz
no cotidiano humano.
Nessa direção, Koltai (2013) afirma que há uma responsabilidade da
psicanálise quando interpelada pelos fenômenos do seu entorno, não lhe
sendo permitido se abster de testemunhar e interpretar o que lhe parecer
acessível. Tal responsabilização se situaria tanto no nível da clínica, quanto
no nível do social, visto que nenhum sintoma se forma sem essa implicação,
à condição, ressalta ela, que diga respeito ao real, justamente, na conside-
ração dos eventos aos quais fomos convocados a partir do incêndio. Orien-
tados pela dimensão ética, nos é possível reconhecer a vigência do impos-
sível nos processos de trauma, dando alcance aos fundamentos freudianos
de subjetivação, tanto na intervenção direta junto ao sujeito em sofrimento
agudo, quanto no apoio aos profissionais que se ocuparam destas situa-
ções. Como exemplo, podemos citar as supervisões clínicas e as rodas de
conversas com os paramédicos, precisamente por operar a partir do sujeito
e do que ele pode saber fazer desse real que o toma e como se reporta a
esse Outro em suas diferentes representações.
Nesse sentido, no trabalho inicial com a transferência, os profissionais
eram orientados para que a mesma fosse instituída tendo o serviço como
referência, direção clínica fundada no pressuposto de que um serviço de
urgência pode ser demandado pelos usuários a qualquer momento do dia,
sem agendamentos e disponibilidade prévia. Posteriormente, constatando-
se a necessidade da continuidade de atendimento, a transferência era sin-
gularizada em um técnico de referência. Assim, mantínhamos duas verten-
tes de endereçamento e transferência: uma inicial, dirigida ao serviço e,
mais tarde, ao profissional.
Nas demandas de urgência, o sofrimento evidenciado pelos familia-
res e amigos apresentava-se de forma aguda, questionava-se a realidade
do acontecimento e a dor era descrita como insuportável, ameaçando a
própria sensação de existência. Na narrativa dos familiares percebia-se o
esvaziamento das referências responsáveis pela significação sobre a vida,
numa posição de desistência e de perda de ideais. Aliado a isso, julgavam-
se fracassados como pais, por não terem conseguido proteger seus filhos
dos perigos da vida.
A obra freudiana contempla a noção de trauma em vários momentos,
tendo como elemento permanente a interpretação do mesmo como amea-
ça à estabilidade e à integridade do eu, estado esse que decorre de uma
situação imprevisível e intensa, que impossibilita o sujeito de recorrer, pre-
viamente, a mecanismos de proteção. Essa concepção está presente no
texto Além do princípio do prazer, em que Freud ([1920]1995) vai acentuar
72
A colaboração da psicanálise...

o aspecto econômico da libido como um dos componentes fundamentais na


descrição da neurose traumática, justamente, por um quantum de energia
romper e ultrapassar as barreiras protetoras dos mecanismos psíquicos do
sujeito (p.43). Freud nos faz saber que:

Descrevemos como “traumáticas” quaisquer excitações provindas


de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o
escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica ne-
cessariamente numa conexão desse tipo com uma ruptura numa
barreira sob outros aspectos eficaz contra os estímulos. Um acon-
tecimento como um trauma externo está destinado a provocar um
distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do or-
ganismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas
possíveis (p.45).

Podemos pensar que o incêndio na boate Kiss constitui-se como uma


experiência de transbordamento pulsional ou, nas palavras de Freud, como
um acontecimento capaz de provocar um distúrbio em grande escala da
energia do organismo, que, experimentado pelo eu, advém como traumático
por testar a capacidade de representabilidade psíquica. Essa particularida-
de configura-se como medida defensiva do aparelho psíquico, que opera
no trabalho com a pulsão. Por ocorrer à revelia da vontade do sujeito, tal
experiência se apresenta como uma crise aguda de natureza psíquica, ad-
quirindo caráter de urgência ao romper de maneira radical, inesperada e in-
tensa a trama significante que encadeia a rotina que cada um constrói para
si, quandopassado, presente e futuro se ligam num tipo particular de ficção
que designamos como a “história de vida de cada um”.
Tendo como parâmetro a reforma psiquiátrica, Maron (2012) pondera
que os dispositivos de urgência em saúde mental no Brasil foram os me-
nos permeáveis a transformações no seu modo de funcionamento, estan-
do, ainda, associados ao serviço especializado e a modelos operacionais
padronizados, como a contenção e a medicação, de tal maneira que sua
abordagem permanece restrita ao campo psiquiátrico.
Segundo a autora, numa situação traumática, o sujeito não conta com o
suporte da representação simbólica e imaginária nas quais se apoia, ficando
exposto e desprovido da linguagem como recurso que sustenta a criação das
ficções que dão enquadre ao corpo e à existência. Dentro dessa lógica, o
desafio dos profissionais do Acolhe Saúde, no atendimento às pessoas em si-
tuação de crise, foi promover através da narrativa singular uma possibilidade
de borda frente à experiência de desamparo reeditada a partir do incêndio.
73
Volnei Antonio Dassoler

A obra freudiana, desde o Projeto para uma psicologia científica ([1895]


1995) postula que, na origem da existência humana, há um estado de de-
samparo, resultado da precariedade constitucional do ser humano, que o
torna dependente de outro já instituído. Essa experiência de desamparo
é tratada e atenuada pela linguagem e pela presença constante do seme-
lhante, ou seja, pela instauração da dependência ao Outro, mas nunca é
superada. Assim, diante um evento particular de alta gravidade, podemos
considerar como consequência a reatualização do desamparo que sinaliza
a desarticulação do engate entre pulsão e linguagem, condição intrínseca
da própria subjetivação.
Nessa sequência, Pipkin (2009), analista argentina, no livro La muerte
como cifra del deseo: una lectura psicoanalitica del suicídio, introduz um
capítulo sobre os obstáculos do luto a partir do incêndio na boate Croma-
non, indicando que nos é possível pensar o desamparo articulando-o com
a função do eu, na medida em que este, ao operar pela sua vertente imagi-
nária, instala uma barreira que promove alguma forma de proteção através
da revitalização fantasmática. Assim, o sintoma advém como uma resposta
elaborada pelo sujeito a partir de suas coordenadas simbólicas como forma
de resolver a problemática da falta pela articulação metafórica propiciada
pela fantasia.
Nessa mesma direção, Pereira (1997) postula que o eu (moi), enquan-
to instância imaginária constitui uma referência – que ao mesmo tempo é
uma barreira – contra o inefável desejo do Outro, do qual a angústia é o
sinal. Segundo ele, pela intervenção da dimensão imaginária da relação
do eu ao Outro, esta angústia impensável encontra a possibilidade de ser
constituída de forma fantasmática. Para o autor, seria de um lugar de alteri-
dade que a referência simbólica para a constituição de um eu, sede da an-
gústia, tomaria sua consistência e, diante disso, qualquer abalo na garantia
do reconhecimento simbólico primordial questionaria radicalmente a própria
estabilidade da imagem do eu.
Como consequência clínica, teremos uma resposta menos afeita ao
discurso e mais próxima do agir, ordenação que se afasta da configuração
convencional do sintoma cifrado, portador de uma mensagem e articulador
com a realidade. Esse quadro explicita a dificuldade enfrentada pelos profis-
sionais de saúde mental durante os atendimentos, e que eram verbalizados
nas supervisões dos atendimentos.
De acordo com Barros (2012), numa situação de crise aguda, a con-
dução clínica requer uma torção na noção de sintoma enquanto solução
ou formação de compromisso, visto que essa dimensão estaria provisoria-
mente suspensa, na medida em que estaríamos lidando com um problema
74
A colaboração da psicanálise...

aparente em estado puro, desvelando o sujeito na condição de desamparo.


Partindo desse entendimento, os atendimentos realizados davam conta dos
efeitos agudos e intensos dos usuários como resultado da imposição do real
no traumático, que impediu ou, no melhor dos casos, dificultou as ligações
significantes e as identificações imaginárias como recurso estabilizador.
A operação clínica nesse cenário não visa ao desvelamento de um
sentido oculto ou à decifração de algo que estaria articulado com alguma
representação recalcada. O que se busca é promover um mínimo de ligação
significante que retire o sujeito da experiência insuportável do irrepresen-
tável em que o enigma do desejo do Outro o lançou. Em resumo, a cola-
boração analítica nas situações de urgência em saúde mental visa retirar
o sujeito da condição de objeto e inscrevê-lo, minimamente, no desejo do
Outro, operação que se faz mediada pela alteridade e através do acesso à
fantasia que o manejo clínico oportuniza e que pode ser orientado e propos-
to no trabalho multiprofissional.
Esse escutar mais amplo proposto como dispositivo clínico nas urgên-
cias pelas políticas de saúde mental aposta que qualquer profissional pode
ocupar o lugar de mediador dessa operação que objetiva a produção de um
mínimo de reconhecimento do sujeito no sofrimento que ele experimenta
como advindo de uma exterioridade e que o situa numa posição de exceção,
ou seja, de gozo.
Partindo desse entendimento, a psicanálise assinala que, nesses ca-
sos, a presença de um semelhante, instituído como alteridade durante um
atendimento de urgência, se faz de suporte mínimo no tratamento do ex-
cedente pulsional, permitindo abordar a fixidez das imagens, dos cheiros
e das vozes, condução clínica que oportuniza a ligação da energia livre e
desligada, e minimizando a tendência ao agir como substituto do simboli-
zar. A condição para que isso ocorra é a de que essa posição seja media-
da pelo recurso simbólico, intento obtido pela diferença que a alteridade
promove. Essa direção de tratamento, inspirada na concepção de sujeito
da psicanálise, orientou as supervisões clínicas nos casos de urgência
recebidas a partir do incêndio com os trabalhadores de diferentes núcleos
profissionais.
Com isso, as intervenções realizadas em situações de urgência adqui-
rem caráter de pertencimento e de significação mínima do desejo do Outro,
mesmo que a pergunta do “por que isso aconteceu?” se mantenha insis-
tente e sem uma resposta definitiva. Como consequência, o semelhante
encarnado nos diferentes profissionais da equipe multiprofissional do Aco-
lhe Saúde fez-se de função subjetivante, ao restituir ao sujeito afetado um
mínimo de humanidade, devolvendo-lhe a condição de escapar da posição
75
Volnei Antonio Dassoler

de objeto, efeito que se instaura pelo suporte material do corpo, pela palavra
ou por outras formas de abordar o real.
Entendemos que essa abordagem constituiu-se numa importante cola-
boração teórica da psicanálise viável no âmbito da clínica ampliada para as
situações de crise e de urgência no campo da saúde mental e, como tal, foi
proposta aos profissionais da equipe a partir das supervisões clínicas.
O incêndio na boate Kiss desvelou de forma abrupta que a singularida-
de de cada sujeito é uma construção que traz impressa a marca da solidão
e da finitude, quando a impotência humana se escancara num ato a partir
do qual o enigma do desejo do Outro lança ao desespero aqueles que, sem
saber as razões, se veem escolhidos para uma experiência de vida e para
a qual não encontram nenhuma resposta tranquilizadora. Para os sobrevi-
ventes, a precariedade da existência humana foi apresentada junto à luta
pela própria sobrevivência. Para os profissionais que tiveram participação
no resgate imediato, a exposição maciça ao horror e a experiência de morte
em tão curto período de tempo foram componentes que abalaram a própria
convicção da técnica como recurso frente ao real. Numa roda de conversa
com a equipe do SAMU, um dos paramédicos envolvidos no resgate da-
quela madrugada afirmou que, embora se considerasse preparado para a
tragédia e para a morte, para “isso” ele não estava preparado. Na mesma
linha, muitos profissionais da imprensa que acompanharam durante dias
e semanas os desdobramentos afirmaram terem solicitado às respectivas
chefias o afastamento antecipado da cobertura, por não estarem em condi-
ções psicológicas de manter a continuidade do trabalho. Quanto aos pais,
a situação mostrou-se mais complexa e difícil, justamente, por colocar em
evidência a perda de um familiar, circunstância que acentua as dificuldades
quanto à elaboração desta perda.
Hoje, passado um ano daquela data, nos perguntam sobre a condição
psicológica das pessoas afetadas. De maneira geral, ao ouvirmos pais, so-
breviventes e trabalhadores, iremos perceber que a maioria deles está de
volta a sua rotina cotidiana (se quisermos considerar esse dado como cri-
tério diagnóstico para qualificar um processo de luto): trabalham, estudam,
viajam, namoram, buscam alternativas de lazer, como qualquer pessoa. En-
tretanto, se, por um lado, a vida segue e as exigências do cotidiano estão
sendo respeitadas, por outro lado, o enfrentamento dessa nova realidade
não se apresenta linear nem imune a sobressaltos. O choro, a tristeza, os
pesadelos e os questionamentos sobre o sentido da vida ainda são presen-
tes, e os tratamentos são marcados com inúmeros recomeços e desistên-
cias. Nesse sentido, o trabalho clínico não se apressa em forjar uma direção
de tratamento que ambicione a superação da experiência vivida, situando-a
76
A colaboração da psicanálise...

como parte do passado. Do ponto de vista da psicanálise, essa experiência


se inscreve como parte da história pessoal e que, por intermédio do recurso
ao simbólico, articulando presença e ausência, cria-se a chance de uma
memória que recoloque o sujeito novamente nas tramas da sua ficção.

REFERÊNCIAS
BARROS, R. R. A urgência subjetiva. In: ______. Urgência sem emergência? Rio de
Janeiro: Ed. Subversos, 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental. Cadernos de Atenção Básica, 34. Bra-
sília: Ministério da Saúde, 2013.
CASTRO, A.L.C. Glossário de defesa civil: estudos de riscos e medicina de desas-
tres. 2. ed. Brasília: Ministério de Planejamento, 1998.
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica [1895]. In: ______. Obras comple-
tas. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
______. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Obras completas. Rio de
janeiro: Imago, 1995.
KOLTAI, C. Atualidades do mal-estar. Disponível em: <www.oocities.org/hotsprings/
villa/3170/CaterinaKoltai.htm‎> Acesso em: jul. 2013.
MARON, G. Urgência sem emergência? In: BARROS, R.R. Urgência sem emergên-
cia? Rio de Janeiro: Ed. Subversos, 2012.
PEREIRA, M.E.C. O pânico e os fins da psicanálise: a noção de desamparo no pen-
samento de Lacan. Percurso Revista de Psicanálise, São Paulo, v. 2 n.19, p. 29-36,
1997.
PIPKIN, M. La muerte como cifra del deseo: una lectura psicoanalitica del suicidio.
Buenos Aires: Ed. Letra Viva Libros, 2009.

Recebido em 01/10/2013
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Renata Almeida

77
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.78-88, jul. 2013/jun. 2014

TEXTOS APOIO MATRICIAL,


UMA CLÍNICA EM EXTENSÃO1

Elaine Rosner Silveira2

Resumo: Este texto aborda a prática do apoio matricial em saúde mental como
uma clínica em extensão, que busca alterar a frequente exclusão do sujeito e
suas contingências de vida, que ocorrem em algumas intervenções na saúde
pública. Na saúde pública predomina o discurso do mestre, biomédico, que é
prescritivo e separa o sujeito doente do objeto doença. Já a perspectiva da
humanização, da saúde coletiva e o discurso do analista incentivam a produção
do saber dos sujeitos sobre si e dos profissionais sobre suas práticas e sobre
os usuários.
Palavras-chave: apoio matricial, clínica em extensão, discursos.

MATRIX SUPPORT, AN EXTENSION CLINIC


Abstract: This paper addresses the practice of mental health support matrix as
an extension clinic that seeks to alter the frequent exclusion of the subject and
its contingencies of life from the interventions in public health. In public health
dominates the discourse of the master, biomedical, which is prescriptive and
separates the subject from the object ill illness. Already the prospect of human-
ization, the collective health and the discourse of the analyst encourages the
production of knowledge about the subjects themselves and professionals on
their practices and about users.
Keywords: matrix support, clinic in extension, discourses.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto
APPOA; Doutora em Educação/UFRGS; Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde; Pre-
ceptora do PET Saúde. E-mail: rosilelaine@gmail.com
78
Apoio matricial, uma clínica em extensão

O apoio matricial é uma prática proposta pelo Ministério da Saúde desde


2004 como um novo arranjo organizacional, uma nova forma de organi-
zar as relações entre profissionais, entre profissionais e usuários e também
entre serviços da saúde (Brasil, 2004).
Gastão Campos (2007) é o autor da área de saúde coletiva que primei-
ramente conceituou essa prática. Para ele, o apoio matricial é um suporte
assistencial e técnico-pedagógico dos profissionais de serviços especializa-
dos para equipes de referência, como por exemplo as equipes dos Postos
de Saúde da Atenção Primária à Saúde, tema que vou abordar neste traba-
lho. Esse suporte pretende aumentar a eficácia e a eficiência do trabalho em
saúde. A palavra matricial refere-se a matriz, que em latim significa “o lugar
de onde se geram e se criam as coisas” (Campos, 2007, p.402), e também
indica um conjunto de números que guardam relação entre si vertical, ho-
rizontal e transversalmente (Campos, 2007). O apoio matricial inclui várias
ações, como a discussão de caso ou o atendimento conjunto do profissional
do serviço especializado com o profissional do posto de saúde e a formula-
ção de projetos terapêuticos singulares, bem como a intervenção nos pro-
cessos de trabalho, entre outras (Brasil, 2004, 2009).
Os serviços de saúde se organizam em três níveis: o nível primário
(postos de saúde), o secundário (serviços especializados de saúde mental,
AIDS, especialidades médicas, etc.) e o terciário (hospitais). Esses servi-
ços costumam se relacionar muitas vezes de forma vertical e burocratizada
através de papéis e documentos, de infindáveis encaminhamentos que só
transferem responsabilidades. O apoio matricial tem essa função de propi-
ciar relações horizontais e transversais entre profissionais e serviços, dimi-
nuindo a fragmentação no processo de trabalho, ampliando também a visão
sobre o processo saúde/doença/intervenção, fomentando dessa forma a
interdisciplinaridade e a ampliação da clínica.
A ideia de clínica ampliada e compartilhada também é formulada pelo
Ministério da Saúde (Brasil, 2009) e por Gastão Campos (2007), e pretende
contribuir para que os profissionais percebam o doente como singular, para
além da universalidade do diagnóstico e da doença; que os profissionais as-
sumam responsabilidade sobre os usuários; busquem, quando necessário,
a ajuda em outros setores ou instituições que não só da saúde (intersetoria-
lidade); reconheçam os limites do conhecimento de cada área profissional e
a importância de trabalhar-se interdisciplinarmente; tenham o compromisso
ético com quem é atendido; e trabalhem na perspectiva da “produção de
vida” (Brasil, 2004, p.10). Esse documento do Ministério da Saúde aponta a
79
Elaine Rosner Silveira

incompletude constituinte dos saberes profissionais para dar conta do real


e a importância de se trabalhar em equipe, bem como a incompletude da
instituição da saúde e a importância do trabalho conjunto com instituições
de outras áreas, como a assistência social, a educação, a justiça, entre
outros.
A clínica ampliada e o apoio matricial são ferramentas da Política Na-
cional de Humanização do Ministério da Saúde – o HUMANIZASUS –, que
pretende humanizar a assistência e a gestão na saúde. Ambos acontecem
para além das quatro paredes do consultório. Lacan (2003) chama o setting
tradicional da clínica de psicanálise em intensão e chama de psicanálise
em extensão aquela que presentifica “a psicanálise no mundo” (p.251). Ele
considera que a clínica psicanalítica em intensão prepara operadores para a
psicanálise em extensão, e parece-me que vice-versa, já que diz que essas
clínicas não são opostas e devem ser tomadas de forma moebiana. Pode-
se utilizar essa noção de psicanálise em extensão para o trabalho realizado
nas instituições, nos serviços públicos e no apoio matricial. A clínica am-
pliada, que trabalha além do setting tradicional da clínica, ao se utilizar do
referencial psicanalítico como um dos norteadores da intervenção, pode ser
tomada como uma psicanálise em extensão, ou, como estou chamando, de
uma clínica em extensão.
Trabalho na Secretaria Municipal de Saúde, realizando clínica em in-
tensão e também apoio matricial a postos de saúde do tipo Unidade de
Saúde da Família (USF) e Unidades Básicas de Saúde (UBS). As USF’s
possuem uma equipe mínima de profissionais generalistas, como médico
clínico comunitário, enfermeiro, técnicos de enfermagem, agente comunitá-
rio de saúde, e algumas possuem também dentista e auxiliar de odontolo-
gia. As UBS’s possuem uma equipe um pouco maior, com algumas especia-
lidades, como ginecologistas, nutricionistas e pediatras, mas sem o agente
comunitário de saúde.
Nos postos de saúde os profissionais atendem a um leque diversifi-
cado de situações: pessoas com diabetes, hipertensão, gestantes, bebês,
idosos, crianças, problemas psíquicos, etc. E embora a saúde mental faça
parte da saúde mais ampla, comumente os profissionais da rede básica
referem não ter tempo e/ou disponibilidade de escutar a subjetividade dos
pacientes, encaminhando o atendimento em saúde mental para os serviços
especializados.
Tomemos a articulação entre discurso, sujeito e subjetividade em Fou-
cault, para pensar os discursos que subjetivam os profissionais da saúde.
80
Apoio matricial, uma clínica em extensão

Para Foucault (2004), o sujeito não tem uma essência nem é intemporal,
ele se constitui nos discursos propostos pela sua cultura, seu grupo social e
sociedade. O processo de subjetivação, para Foucault, consiste em assumir
os discursos de uma época, que são ofertados como verdade e que passam
a constituir o sujeito, sejam discursos de modelos científicos ou encontrados
nas instituições ou nas práticas. Baseado neste argumento, Larrosa (2002)
refere que os sujeitos das práticas terapêuticas e pedagógicas não pode
ser analisado separado dessas práticas, as teorias e práticas aprendidas
produzem o objeto sobre o qual trabalham e também os sujeitos que delas
se utilizam. Dessa forma, pode-se pensar que a formação dos cursos da
saúde constituem os sujeitos profissionais da saúde, além de constituir o
seu objeto de trabalho. Os profissionais da saúde foram subjetivados em
sua formação predominantemente dentro do discurso biomédico, que, se-
gundo assinalam os autores da saúde coletiva Ceccim e Capazolo (2004),
atenta para os aspectos biológicos do adoecimento e para a objetividade,
em detrimento dos aspectos subjetivos e sociais, bem como ensina a tra-
balhar na especialização e de forma isolada. Reproduzem, nestas condi-
ções, as dicotomias cartesianas mente/corpo e sujeito/objeto, constitutivas
das disciplinas da ciência moderna, conforme Luz (1988). Separam o que
é considerado o objeto da saúde – os sintomas, a doença e o corpo –, do
sujeito que sofre e suas significações. Os profissionais também não são
sensibilizados em sua formação para a questão do enlace da linguagem que
articula o biológico, o psíquico e o social – já que o ser humano é constituído
no simbólico da cultura e da linguagem, e a escuta do sujeito propicia essa
amarração entre corpo, contexto de vida e subjetividade.
Muitas vezes há o entendimento de que o objeto de trabalho dos profis-
sionais da atenção primária à saúde é apenas a doença; os procedimentos
rotinizados de injeção, curativo, vacina; o pedido de exames; a prescrição
de medicação, etc. E o que foge ao padrão é considerado não fazer parte da
assistência, ou seja, tudo que aponta para a singularidade e para o sujeito.
E em vez de a clínica e de a escuta do sujeito dirigirem as ações em saúde,
não sempre, mas muitas vezes, as rotinas padronizadas é que as dirigem.
Assim, algumas vezes os profissionais encaminham de forma defensiva,
para se proteger do contato, bem como da angústia diante do real da clínica
e da sensação de impotência. Essa angústia fica amplificada porque os pro-
fissionais não receberam em sua formação ferramentas teóricas e clínicas
para trabalhar os aspectos subjetivos do adoecimento e são demandados

81
Elaine Rosner Silveira

pela instituição a prestar uma assistência integral em saúde. Há que se dizer


que as formas de agir descritas estão presentes também nos atendimentos
privados de saúde, e não só na esfera pública, e têm a ver com a subjeti-
vação inscrita nos discursos aprendidos na formação dos profissionais e
também com o desamparo diante das manifestações do psíquico e do de-
samparo dos usuários.
Observa-se essa exclusão da subjetividade em diferentes situações:
uma enfermeira de um posto de saúde foi incentivada pelo matriciamento
a realizar atendimento mais detalhado em uma situação de saúde men-
tal, e, após fazê-lo, pergunta se deve anotar as informações coletadas no
prontuário do paciente; às vezes os profissionais anotam numa ficha em
separado. Percebe-se que a escuta realizada e as informações obtidas não
são entendidas como fazendo parte da história dos atendimentos em saúde
a essa pessoa e nem das atribuições do profissional de saúde, tanto que
há dúvidas quanto à anotação no prontuário; este é considerado o lugar
onde se anotam as doenças biológicas do corpo, estas, sim, consideradas
o objeto de trabalho desses profissionais. O matriciamento incentiva a en-
fermeira a anotar no prontuário as valiosas informações coletadas para que
outros profissionais que venham a atender o mesmo paciente também pos-
sam conhecê-las. Outra situação que aponta para a exclusão do sujeito
dos atendimentos refere-se aos médicos clínico-gerais, que podem renovar
durante meses ou anos a receita de medicações psiquiátricas de pacientes
que já se trataram em serviços de saúde mental ou que aguardam vaga.
Porém, às vezes não indagam como a pessoa está, como está tomando a
medicação ou por que não está tomando, apenas repetem a prescrição da
receita, entendendo que não é sua função de médico clínico-geral averiguar
como o paciente está subjetivamente, mas, sim, investigar o funcionamento
do rim, do pulmão e da pressão arterial. Como efeito desta prática, o psí-
quico fica reduzido a uma alteração do metabolismo cerebral, que deve ser
sanada com o fármaco, não se levando em conta as vivências subjetivas
daquele que toma a medicação ou daquele que sofre, eliminando o sujeito
e suas contingências de vida do processo de seu tratamento ou de seu
adoecimento.
Também verifica-se essa exclusão do sujeito na clínica prescritiva, mui-
to comum entre os profissionais da saúde. Nesta, impõe-se um ideal de saú-
de padronizado ao qual o sujeito deve se submeter. Informa-se ao paciente
que ele “tem que” seguir tal dieta, “tem que” fazer exercícios físicos, “tem
que” tomar tal medicação, e se isso não é executado, em geral pouco se
investiga do porquê, ou, às vezes, produz resistência no próprio profissional
para continuar a atender esse paciente. Muitas vezes, o fato de não seguir
82
Apoio matricial, uma clínica em extensão

uma prescrição tem a ver com valores próprios, culturais ou singularidades


no entendimento do que possa ser melhor para si.
No seminário O avesso da psicanálise, Lacan formula os quatro dis-
cursos (discurso do mestre, discurso da histérica, discurso do universitário,
discurso do analista), propondo que esses discursos se fundam na lingua-
gem, estruturam o laço social, existem para além do sujeito e o constituem
(Rabinovich, 1979). Tomando essa noção de discurso como ferramenta de
análise, podemos dizer que as situações abordadas e a lógica do “tem que”
relacionam-se ao discurso do mestre, por serem uma prática normativa e
superegoica, que anula o sujeito em sua divisão, tomando-o apenas como
objeto dos cuidados em saúde – o mestre quer apenas que as coisas fun-
cionem tal como prescreveu. O discurso do mestre é marcado pela vontade
de domínio (Rabinovich, 1979) e, ao eliminar a falta, elimina a subjetividade,
tanto quanto o discurso cartesiano da ciência.
Embora muito comumente os profissionais nos postos de saúde ten-
tem “passar”, e se desvencilhar do caso de saúde mental, para o profissio-
nal do serviço especializado, é responsabilidade da rede básica conhecer
e acompanhar de forma longitudinal os moradores do território adstrito ao
posto, sua subjetividade e seu contexto, pois essa é a atenção integral à
saúde proposta pelo SUS. Por isso, boa parte do trabalho de apoio matricial
em saúde mental norteado pela psicanálise consiste em auxiliar profissio-
nais a se implicarem naquilo que é de sua responsabilidade e naquilo que
produzem, a se responsabilizarem pelo atendimento dos casos, escutando
o que cada um apresenta como singular e os aspectos de seu contexto
social específico, a não terem pressa em atender e encaminhar, nem busca-
rem o imediatismo de resultados, bem como a repensarem a medicalização
excessiva e desnecessária do sofrimento psíquico e da vida. Auxilia-se para
que os profissionais não tomem os sintomas como remetendo apenas a um
signo-doença, como seria típico do modelo biomédico e do discurso do uni-
versitário, que, segundo Rabinovich (1979), acredita em um saber científico
todo no lugar do saber constituído pelo sujeito, que objetaliza o outro a partir
desse saber. Propõe-se que os sintomas sejam tomados como significan-
tes, que representam o sujeito para outro significante (na cadeia associativa
discursiva), permitindo que o sujeito situe os sintomas na sua vida.
Na prática do apoio matricial é importante levar em conta o pedido da
equipe ou do profissional do posto de saúde, aquilo que mobilizou a busca
por matriciamento. Da mesma forma que é importante auxiliar a equipe a
também reconhecer o pedido do paciente, o que mobilizou sua busca por
ajuda no posto de saúde, pois essa é a brecha por onde a intervenção do
profissional é solicitada, e por isso não será sentida como intrusiva. É quan-
83
Elaine Rosner Silveira

do os profissionais realizam um pedido e se queixam que um sujeito começa


a emergir, assim como acontece com o analisante e os usuários do SUS.
Contribui-se para que os profissionais não busquem sucumbir rapidamen-
te ao pedido imediato dos pacientes, mas escutem a demanda, ou seja, o
que está além do pedido circunscrito, realizando a escuta do contexto, bem
como das questões específicas de sua faixa etária. Esse espaço de tempo
entre o pedido e a resposta é a condição para que aí possa emergir o su-
jeito, uma reflexão, um deslocamento, um aspecto ainda não observado ou
uma questão. Dessa forma, assinala-se a importância da escuta do subjeti-
vo nas manifestações sintomáticas e do poder de elaboração da palavra e
da reflexão para a simbolização do real do mal-estar psíquico e/ou social.
Incentiva-se, assim, a oferta de outros recursos para atenção aos fenôme-
nos psíquicos na rede básica, que não só os recursos já utilizados, como a
indicação de remédio, diagnóstico, encaminhamentos.
Ao escutar caso a caso, conseguem-se construir direções de tratamen-
to e projetos terapêuticos singulares e contingentes. Dessa forma, constrói-
se que o objeto do trabalho na saúde é um sujeito, e não apenas um objeto
de cuidados, pois esse sujeito fala, e falar de si e de sua situação é o que
o singulariza e o que humaniza o atendimento! Aqui, no meu entender, é
quando se opera a humanização do apoio matricial. Amplia-se o que se
considera o objeto de trabalho na saúde, que não é somente o diagnóstico,
o procedimento per se, a padronização rotinizada, a forma fragmentada de
trabalhar... O apoiador matricial, valendo-se do referencial da psicanálise e
da humanização, busca propiciar o deslocamento de uma prática às vezes
objetalizadora para uma prática que leve em conta o sujeito, ao se posicio-
nar na perspectiva do discurso do analista, que, no seminário O avesso da
psicanálise, Lacan ([1969-1970]1992) diz que é o avesso do discurso do
mestre3. Ou seja, o discurso do analista, segundo Rabinovich (1979), toca
o real, opera pela transferência e não pretende o domínio, portanto, reco-
nhece a falta à qual estão submetidos tanto o profissional como o usuário, e
incentiva a produção de saber onde está a verdade. É importante salientar

3
Já no seminário seguinte De um discurso que não fosse de um semblante, Lacan ([1971]
2009) diz que o discurso do mestre não é o avesso do discurso do analista, mas, sim, o lugar
onde se demonstra a torção própria do discurso da psicanálise, sua inscrição dupla no direito e
no avesso sem que precise transpor uma borda.
84
Apoio matricial, uma clínica em extensão

que o conceito de humanização, bem como as discussões trazidas pelos


autores da área de saúde coletiva, no meu entender, convergem com a psi-
canálise no sentido de escutar o saber singular dos sujeitos e de humanizar
os atendimentos.
A noção de clínica ampliada indica a importância de não se dissociar
a clínica das formas de organização do trabalho e de sua gestão, conforme
assinala Rosana Onocko Campos (2012). Algumas vezes, os profissionais
das equipes da rede básica trabalham de forma isolada, não havendo tro-
ca entre eles sobre casos que são atendidos por mais de um profissional.
Uma situação de uma pessoa ou uma família pode ser muito conhecida pelo
agente comunitário, ao mesmo tempo, o médico ou o enfermeiro atende
essa pessoa levando em conta as informações obtidas na sua consulta es-
pecífica, e às vezes se desconhece todo o conjunto de informações obtidas
pelo agente comunitário ou o técnico de enfermagem. Ou vice-versa, os
agentes comunitários desconhecem as informações trazidas nas consultas.
Por isso, o apoio matricial tem uma função importante também de intervir
nos processos de trabalho. Considero condição sine qua non fazer o ma-
triciamento reunindo os profissionais que conhecem o caso e podem falar
sobre ele: além do profissional com quem ele consultou (o médico, o enfer-
meiro), o agente comunitário traz contribuições importantes na discussão
do caso, pois ele conhece a história das pessoas, ele reside na comunidade
e circula em frequentes visitas domiciliares. Ao incentivar a circulação da
palavra entre esses membros da equipe, ativa-se a transferência de traba-
lho e o desejo dos profissionais sobre aqueles casos que algumas vezes
são considerados “casos perdidos” ou sem saída. Dessa forma, propicia-se
um trabalho coletivo de elaboração sobre as situações clínicas difíceis e
amplia-se o olhar sobre a complexidade e as possibilidades de intervenção,
compartilhando-se as avaliações e as terapêuticas.
Ana Cristina Figueiredo (2004) e Viganó (1999) propõem, como meto-
dologia para a discussão de casos em equipe, a construção do caso a partir
do que causa impasse a cada profissional, e não a interpretação, que seria
a decifração dos significantes recalcados. Assim, a contribuição da psicaná-
lise se situa na transmissão de uma forma de trabalhar que toma cada caso
sem antepor-lhe um saber constituído, conforme assinala Viganó (1999). E
em transmitir que a humanidade está na particularidade, ou seja, transmi-
tir a utilidade de trabalhar-se levando em conta a particularidade, segundo
Laurent (1999), impedindo que qualquer saber universal constituído apague
o particular. O trabalho de construção refere-se a registrar os significantes
do discurso (de profissionais e usuários), as movimentações, as pequenas
mudanças, as respostas às intervenções, a relação com o Outro na transfe-
85
Elaine Rosner Silveira

rência. Essa é uma posição ética que a psicanálise pode auxiliar a sustentar
na saúde pública: a clínica do caso a caso, e que não se pauta tanto por
transmitir um saber, mas, sim, por um modo de proceder e de conhecer que
preserva sempre o “não saber” sobre os casos, que leva em conta o pedido
e a trajetória do sujeito nos serviços, bem como a forma como se dá seu
encontro com os profissionais, utilizando essas informações para articular
seu projeto terapêutico singular.
O apoio matricial também possibilita espaço para a escuta dos pro-
fissionais e das equipes, que às vezes querem falar sobre as dificuldades
nos processos de trabalho. Essa escuta pode gerar ações do matriciador
junto ao gestor, por exemplo, apontando a importância de esclarecer aos
profissionais informações que até então não estavam explicitadas, o que es-
tava amplificando as angústias. Pois, como bem destacou Onocko Campos
(2012), é importante que a gestão leve em conta as questões trazidas pelas
equipes para nortear suas ações, assim como na clínica se considera o que
interroga aquele que vem falar para dar direção ao trabalho. Também o fato
de conviver com injustiças, desigualdade, violência e miséria tem efeitos
sobre os profissionais que estão em permanente exposição ao sofrimento
e à dificuldade de simbolização que a pobreza extrema provoca (Campos,
2012). Em vez da exclusão do que há de singular em cada um – tanto do
lado do profissional como do usuário – que o discurso do mestre propicia, o
apoio matricial com viés psicanalítico incentiva a entrada dos profissionais
e dos usuários no discurso histérico (Rabinovich, 1979), incentivando-os a
falar para que produzam seus próprios significantes e saber a respeito de
sua experiência. Isso propicia um norteamento do trabalho a partir do reco-
nhecimento da falta, auxiliando para que esta não paralise os profissionais,
mas, sim, os impulsione.
Observa-se que os profissionais da rede básica, quando percebem os
efeitos produtivos de trabalhar escutando as subjetividades e serem eles
próprios escutados, costumam ser muito receptivos e pedirem novamente
este suporte do apoio matricial. Se, na implantação do apoio matricial, os
profissionais traziam informações mínimas sobre cada caso, com o passar
do tempo trazem informações mais detalhadas, perdem o receio das mani-
festações psíquicas, que passam a ser melhor acolhidas e não percebidas
como uma coleção de sintomas sem sentido, mas, sim, como indicadores
da condição existencial daquele sujeito, bem como amplia-se a interlocução
dentro das equipes sobre os casos. Produzem-se, assim, novas possibili-
dades de intervenções entre os profissionais da atenção primária quanto a
suas práticas, que passam a ampliar a escuta e o olhar sobre outros aspec-
tos do adoecimento, que não só o que motivou a consulta.
86
Apoio matricial, uma clínica em extensão

Podemos dizer que diferentes discursos e ideais organizam os sujeitos


e estão sempre presentes nas instituições, e as próprias posições discursi-
vas podem se alternar em um mesmo sujeito. O importante é propiciar os
giros discursivos para que não haja cristalização em uma única posição e
o apagamento dos sujeitos desejantes. A circulação entre os diferentes dis-
cursos auxilia os profissionais na reflexão sobre os efeitos das suas ações
e sobre o que está se produzindo em saúde (Campos, 2012), engendrando
novos sentidos do fazer e novos saberes.

REFERÊNCIAS
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cional de Humanização. HumanizaSus: equipe de referência e apoio matricial. Bra-
sília: Ministério da Saúde, 2004.
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87
Elaine Rosner Silveira

RABINOVICH, Diana. El psicoanalista entre el amo e el psicopedagogo. Analítica.


Caracas: Ateneo de Caracas, 1979.
VIGANÓ, Carlo. A construção do caso clínico em saúde mental. Revista Curinga,
Belo Horizonte, n. 13, p.50-59, set. 1999.

Recebido em 15/02/2014
Aceito em 02/05/2014
Revisado por Clarice Sampaio Roberto

88
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.89-99, jul. 2013/jun. 2014

A CLÍNICA E AS PRÁTICAS
TEXTOS DE CUIDADO NA REDE DE
ATENÇÃO À INFÂNCIA
E ADOLESCÊNCIA1
Ieda Prates da Silva2
Tatiane Reis Vianna3

Resumo: Este artigo se propõe a uma discussão sobre as práticas de cuidado no


campo da saúde mental infanto-juvenil, quando alicerçadas na escuta clínica e na
articulação de um trabalho interdisciplinar e intersetorial. Traz, para sustentar tal
discussão, o acompanhamento de uma jovem em situação de emergência em saú-
de mental, que necessitou ser acolhida em diferentes espaços da rede e que con-
seguiu, ao longo desse processo, produzir uma passagem subjetiva importante. O
texto aposta nos efeitos subjetivantes da escuta clínica nas instituições, e no quanto
a discussão e articulação em rede se faz indispensável a este trabalho de saúde
mental, principalmente nos casos graves ou emergenciais.
Palavras-chave: saúde mental infanto-juvenil, intersetorialidade, interdisciplinarida-
de, práticas de cuidado.

THE CLINIC AND THE CARE PRACTICES IN THE ATTENTION


TO CHILDHOOD AND ADOLESCENCE SERVICE
Abstract: This paper proposes itself to discuss the care practices in the infant-you-
th mental health field, when grounded in the clinical listening and in the articulation
of an interdisciplinary and intersectoral work .To support such discussion, the paper
brings the accompaniment of a young woman in an emergency state of mental heal-
th, who needed to be welcomed in different spaces of the system and who managed,
to throughout this process, produce an important subjective passage. The text defen-
ds the subjectivizing effects of the clinical listening in the institutions, and how much
the discussion and articulation in the system makes itself indispensable to this form
of work with mental health, especially in serious or emergency cases.
Keywords: Infant-Youth Mental Health, Intersectoral, Interdisciplinary, care practi-
ces.

1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA) e Membro do
Instituto APPOA; Supervisora clínico-institucional de equipes de saúde mental da infância e
adolescência. E-mail: iedaps@uol.com.br
3
Psicóloga;Psicanalista;Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA)e Mem-
bro do Instituto APPOA; Integrante da equipe do CIAPS; Mestre em Psicologia Social e Institu-
cional (UFRGS).E-mail: tativianna@cpovo.net
89
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna

Q uando se trata das práticas de cuidado no campo da saúde mental,


incluem-se intervenções que começam muito antes da chegada do usu-
ário ao serviço: iniciam, muitas vezes, nas reuniões de rede, em entrevistas
nas escolas e outras instituições, na discussão do caso com os encaminha-
dores. Igualmente, se sustentam nas atividades de estudo e de formação
permanente: seminários, fóruns de debate, grupos de estudos, supervisões
de equipe. E, ainda, na interdisciplinaridade e intersetorialidade, exercidas
no cotidiano dos CAPS e dos demais serviços nos territórios.
Isto posto, iniciaremos falando de um dispositivo clínico que opera na
lógica do cuidado, e que é uma forma de intervenção que consideramos de
extrema importância para a sequência do caso e seus desdobramentos: o
acolhimento, que indica a forma como o paciente é recebido. Sabemos que
nem todos os pacientes acolhidos são indicados para tratamento nos servi-
ços de saúde mental, mas, qualquer que seja a situação daquele que chega
pedindo ajuda precisa encontrar um olhar e uma escuta que o singularizem.
Enfim, que lhe deem um lugar e um espaço para sua palavra. Se não for
para atendimento no serviço, este poderá se encarregar de estabelecer par-
cerias, discutir o caso com outrem, de forma a se produzir e a se reconhecer
um endereçamento.
Esta questão de endereçamento é muito importante no trabalho em
saúde mental. Por endereço nos referimos a um lugar discursivo suposto,
mas que deverá estar sustentado por alguém: uma “presença viva”, no dizer
de Cristina Ventura (Couto; Delgado, 2010, p.276). Essa presença configura
um lugar de endereço para as palavras. Encontrar alguém em posição de
escuta desejante é condição para que surja a palavra, a palavra que faz
sujeito.
Quando se trata da infância e adolescência, é importante destacar que,
para além da demanda social que nos é endereçada, por trás das queixas
familiares ou institucionais desta criança ou adolescente, precisamos possi-
bilitar que ele venha a formular sua própria demanda. Frequentemente nos
deparamos com situações diversas: o adolescente pode chegar sozinho, ou
acompanhado de alguém que nada sabe sobre ele (um vizinho, um amigo
da mãe, ou o funcionário de uma instituição, por exemplo), assim como
pode chegar cercado por uma pequena multidão aturdida: pais, tios, irmãos,
avós. Esta cena de chegada ao serviço aponta para uma mesma situação
do lado da criança/adolescente: em ambos os casos, este sujeito que nos
é trazido encontra-se ao desamparo. Ter gente a sua volta não quer dizer
estar acompanhado.
Este pedido de ajuda surge quando há alguém suposto em condições
de dispensar uma escuta singular ao sujeito: é o que Lacan nomeia de su-
90
A clínica e as práticas de cuidado...

jeito suposto saber, função que permite o estabelecimento da transferência.


Isto é, da relação de confiança necessária para que haja tratamento em saú-
de mental, para que se instale o processo terapêutico e o sujeito se ponha
a falar de si, se ponha a brincar ou desenhar (tratando-se da infância). Esta
relação de confiança pode se dar inicialmente com a instituição. Depois,
estas transferências vão sendo singularizadas, mas permanecem no bojo
de um endereçamento inicial à instituição. Ou seja, o terapeuta que intervém
ali, o faz a partir de um desejo terapêutico sustentado em sua prática espe-
cífica, mas também em nome de seu pertencimento à instituição e de sua
inserção na rede de atenção à infância e adolescência.
A questão do acolhimento e seus desdobramentos na clínica e no
trabalho em rede nos faz lembrar o caso de uma adolescente, que cha-
maremos de Patrícia, em situação de grande fragilidade psíquica e ruptura
familiar, que chega inicialmente ao serviço de saúde mental infanto-juvenil
da cidade em que morava na época. A estratégia de atenção e cuidado só
foi possível pela articulação intersetorial que se fez entre diferentes serviços
de saúde mental, assistência social e educação, num diálogo institucional
que envolveu três municípios. Este caso produziu uma grande mobilização
naquele serviço, bem como no hospital que o acolheu em momentos de
crise, além de instituições de abrigamento, a fim de constituir uma possibi-
lidade de passagem subjetiva e retorno ao convívio familiar, na medida do
possível.
Esta menina chegou ao CAPSi com 15 anos, em um profundo desam-
paro subjetivo, com constantes passagens ao ato (tentativas de suicídio,
automutilações), à beira do enlouquecimento e do risco de vida.
Tomamos desamparo, aqui, como o conceito freudiano (Hilflosigkeit)
que faz referência à prematuridade psíquica e biológica do ser humano em
relação aos outros animais providos de instintos, o que faz com que ele
venha ao mundo num estado de inacabamento e despreparo, tornando-se
extremamente dependente da ação e do desejo do Outro para a sua sobre-
vivência (Freud, [1920]1974). Relação essa sustentada numa cadeia discur-
siva imaginária e simbólica, sem a qual o filhote humano não se humaniza.
A correspondência entre desamparo psíquico e angústia é direta na obra
freudiana:

Essa angústia tem toda a aparência de ser uma expressão do sen-


timento da criança em sua desorientação, como se em seu estado
ainda muito pouco desenvolvido ela não soubesse como melhor
lidar com sua carga pulsional (Freud, [1926]1974, p.160).

91
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna

E logo adiante, nesse mesmo texto: “[...] verifica-se que a angústia é


um produto do desamparo psíquico da criança, paralelo a seu desamparo
biológico” (Freud, [1926]1974, p.162). Tal desamparo não é presente ape-
nas nos primórdios da vida, mas se reedita em muitos outros momentos da
estruturação psíquica, especialmente nos momentos de passagem, entre
eles, o da adolescência.
Sabemos o quanto essa passagem da condição infantil para a condi-
ção adulta, que implica a transição do laço familiar ao laço social, provoca
desarranjos ou rompimentos nas representações imaginárias e na trama
significante que constituía o sujeito até então, incrementando sentimentos
de desamparo. Muitas crises psíquicas que se dão nestas passagens po-
dem vir a ter efeitos determinantes na estrutura subjetiva que se define a
partir daí.
O caso de Patrícia nos remete a pensar sobre estes processos de
passagem, e a função que a articulação entre os profissionais e serviços
veio a operar.
Anos depois Patrícia retorna ao serviço de saúde mental, morando já
em outra cidade. Visita a equipe para revê-los e dar notícias. Conta que
estava morando sozinha, trabalhando, estudando e que estava namorando.
Esta visita inesperada (pois já fazia alguns anos que não tínhamos nenhum
contato com ela) nos fez repensar toda a trajetória de atendimento desta
menina.
Vamos falar um pouco desta trajetória, e do que pudemos ir pensando
juntas, ao relembrá-la. Patrícia era filha única, tendo vivido só com a mãe
até por volta dos treze anos de idade, com uma historia de recorrentes rom-
pimentos familiares.
Quando ela entrou na adolescência, o luto em decorrência da perda
da condição infantil, que necessita se efetivar durante esta passagem, tanto
para os pais como para os filhos, viu-se truncado em função do rompimento
da relação entre Patrícia e sua mãe (Patrícia estava abrigada naquele mo-
mento). Logo após, houve um afastamento ainda maior, com a menina indo
morar em outra cidade.
As descobertas de Patrícia em relação à sexualidade vieram acompa-
nhadas do desvelamento da história de prostituição na vida da mãe, acen-
tuando ainda mais o desabamento materno do lugar idealizado pela filha na
infância. Este desabamento imaginário encontra seu corolário na extrema
fragilidade da mãe para arcar com as funções parentais.
Patrícia foi abrigada e, pouco depois, entregue a uma tia que morava
em outra cidade. Vale lembrar que a tia, na fantasia de Patrícia, imediata-
mente passou a ocupar o lugar dos pais fantasiados, no que Freud descre-
92
A clínica e as práticas de cuidado...

ve como romance familiar do neurótico (Freud, [1909]1974): alguém ideali-


zado, de um nível social diferente, capaz de lhe fornecer imaginariamente
outro reconhecimento, mas que, no entanto, por se tratar de uma figura
substitutiva das figuras parentais, fazia a função de auxiliar na separação
das mesmas; ao mesmo tempo que conservava características muito seme-
lhantes a estas figuras. Outra questão importante é que esta tia se ocupava
de cuidar de bebês e crianças pequenas, o que veio a acentuar sintomas
de ciúme e agressividade por parte de Patrícia, que reivindicava um lugar
infantil de exclusividade.
Pela gravidade de suas passagens ao ato (tentativas de suicídio, he-
tero e autoagressão), a tia tenta devolvê-la, mas o juiz nega o pedido e
encaminha a menina para atendimento psiquiátrico. É assim que ela chega
ao CAPSi e é inicialmente medicada, sendo que o caso não vem para dis-
cussão de equipe. Há algo que falha aqui, no acolhimento, e só vamos nos
dar conta disto mais tarde, com as sucessivas internações psiquiátricas de
Patrícia. Constatamos que não é algo raro nos serviços de saúde mental:
os casos considerados graves, ou urgentes, produzem na equipe uma an-
gústia e uma ânsia de intervenção que, via de regra ,prima pela tentativa de
contenção dos sintomas, geralmente por via farmacológica. E muitas vezes
se reduz a isto a intervenção, como se a medicação pudesse magicamente
– ao extinguir ou diminuir os sintomas – operar a elaboração do sofrimento
que está em causa no sintoma ou no ato desesperado do paciente. Nes-
ses casos graves e/ou urgentes, é comum se precipitarem intervenções de
contenção, falhando o acolhimento cuidadoso e a escuta clínica necessária,
dispensados a inúmeros outros pacientes atendidos no serviço.
Em muitas ocasiões, a intensificação da crise se manifesta como uma
urgência, quando a palavra perde sua eficácia de representar o sujeito. São
os momentos nos quais o sujeito desaparece e é jogado em uma passa-
gem ao ato, como em algumas tentativas de suicídio e agressão nos surtos
psicóticos, ou quando o sujeito fala através dos atos, num endereçamento
inconsciente, que pode ser lido como apelo de que algo ou alguém possa
auxiliá-lo neste processo de restituição da palavra e apropriação de si (ac-
tings). Como menciona Borsoi:

[...] nessa situação de urgência, onde tudo se desenvolve sem limi-


tes, onde a precariedade em que o sujeito se encontra faz com que
as barreiras e contornos desapareçam, é preciso a construção de
um espaço e de um tempo para que os fenômenos sejam incluídos
no dizer. Trata-se de trabalhar com a angústia, com o que escapa
ao sentido sem querer explicar, ensinar (2012, p.33).

93
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna

Esta possibilidade de escuta e de abertura, no caso aqui relatado, se


dá inicialmente via internação. Em sua primeira hospitalização, Patrícia che-
ga ao hospital bastante deprimida, com diversos episódios de tentativas de
suicídio e com ideação suicida persistente. Nos atendimentos, falava desta
relação fracassada com a tia, do peso da culpa colocada por sua opção em
juízo, de não ficar com a mãe, do sentimento de abandono, bem como de
seu desejo de morte frente à solidão em que se encontrava, e da falta de
sentido de sua vida. Nas sessões no hospital também referia alucinações
visuais e auditivas. Nestas enxergava homens com caras rudes que a vi-
giavam e a convidavam a vir para seu mundo: um mundo em que não tinha
que se preocupar com escolhas e obrigações, mundo onde não teria limites,
nem perdas, só podendo ser acessado pela morte. Estes homens, em al-
guns momentos, a proibiam de ir para os atendimentos e falar de si, sob o
risco de a matarem.
A proposta de uma relação de entrega total e incondicional, presente
nestas alucinações, era a demanda que Patrícia fazia às pessoas da família
que vinham a ocupar as funções parentais substitutivas, o que se tornava
para essas pessoas insuportável. Muitas das situações de autoagressão e
tentativas de suicídio que ela realizava, junto aos familiares, parecem estar
relacionadas a esta demanda.
Assim também, na sua relação com a equipe da internação, buscava
olhares e cuidados constantes, assemelhando-se à posição de um bebê.
Muitas vezes partia para situações de autoagressão, quando não era o cen-
tro das atenções, tendo dificuldades de lidar com a chegada de novos pa-
cientes mais desorganizados que ela. O seu relacionamento com os demais
adolescentes era bastante secundário, sendo que tinha uma forte demanda
de que alguns técnicos de enfermagem assumissem efetivamente o lugar
parental, apelidando dois deles de “pai” e “mãe”.
É interessante o que as alucinações, que aos poucos vão parecendo
mais se situar no terreno da fantasia, revelam deste encontro siderante de
Patrícia com o Outro sexo e das impossibilidades de poder representá-lo, de
poder reposicionar-se frente a este encontro. Nas situações de aproximação
com os meninos, na internação, Patrícia facilmente se desorganizava.
Após a internação, ela é abrigada e logo depois há uma nova tentativa
de acolhimento por um familiar, que novamente fracassa e precipita uma
nova crise, sendo internada mais uma vez. Nesta época seguia atendimento
psiquiátrico e havia iniciado tratamento psicanalítico no serviço de saúde
mental de sua cidade.
A partir dessa internação, sua mãe buscou fazer contato com a equipe,
que a chamou para entrevista, momento em que Patrícia, que inicialmente
94
A clínica e as práticas de cuidado...

não queria vê-la, inicia uma reaproximação. A mãe, apesar de desejar esta
aproximação, mostrava dificuldades subjetivas de sustentá-la, oscilando
entre sentir-se culpada ou culpabilizar a filha e as outras pessoas e pro-
fissionais que procuravam exercer alguma função de cuidado em relação
à mesma. Teve idas e vindas em relação à filha e às equipes, tanto da in-
ternação como do CAPSi, o qual, a partir daí, intensificou os atendimentos
psicanalíticos. Patrícia pôde ir trabalhando sua história de vida e sua con-
turbada relação com a mãe. Em alguns momentos, inclusive, com sessões
conjuntas com a mãe (que passa a vir mais frequentemente do interior do
estado).
Pois bem, esta reaproximação familiar, sustentada por um trabalho clí-
nico e em rede, teve um efeito interessante em Patrícia, que, ao lado da ima-
gem de mãe poderosa e aniquiladora presente nas suas fantasias e aluci-
nações, começou a deparar-se com uma mãe com dificuldades emocionais,
frágil e sofrida como ela. A relação entre elas pôde ir sendo ressignificada,
graças ao tratamento e à função de mediação exercida pelos profissionais
dos serviços de saúde, podendo ressituar a fala materna para Patrícia e
vice-versa.
Queremos ressaltar a importância de se trabalhar com a família, aliada
à escuta do adolescente. Trata-se de tentar produzir aberturas no discurso
familiar, introduzindo o lugar terceiro como possibilitador de deslocamentos
e desvelamentos neste discurso. Assim, se haverá entrevistas com a mãe
ou o pai, sessões conjuntas ou não; se será o mesmo terapeuta que atende-
rá o adolescente e escutarà a família; se haverá grupo de pais ou sessões
familiares, estas diferentes intervenções serão pensadas caso a caso, de
acordo com o contexto, a história familiar e o quadro clínico do paciente.
São decisões clínicas, que não respondem a um protocolo, e, sim, ao man-
dato clínico.
Porém, em algumas situações não há, por mais que se tente , pos-
sibilidade de se engatar algo com familiar nenhum. E é o que acontece,
principalmente, com crianças e adolescentes em situação de acolhimento
institucional. Reconhecer outras possibilidades de estruturação do sujeito,
que estão para além dos vínculos familiares, é extremamente necessário.
Para isto, precisamos superar a idealização da família, como se fosse a
única possibilidade para a estruturação de uma criança ou adolescente. Não
que seja indiferente esta ausência. Mas é preciso que se diga: tal ausência
não configura um destino predeterminado, prefixado. O indispensável, e a
psicanálise nos ensina isto, é que esta criança se encontre com figuras que
se encarreguem das funções primordiais: função materna e paterna. E, em
alguns casos, a criança ou o adolescente só vai se encontrar com agentes
95
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna

que sustentem tais funções em um ambiente institucional. Então, é impor-


tante que a instituição de acolhimento também não se coloque como órfã, à
procura de um pai, de uma mãe, ou de uma família idealizada. Terá que ser
ela própria, isto é, os profissionais que ali trabalham, que deverão operar
tais funções: função de continuidade, de suporte, com os cuidados corporais
e afetivos necessários; e função de corte, de construção de bordas, que o
impulsionem ao mundo lá fora.
Assim, quando falamos do trabalho com as famílias nos serviços de
saúde mental, se trata de operar as condições para sustentação ou resgate
destas funções, que são indispensáveis na estruturação de um pequeno
sujeito e também na travessia da adolescência.
No caso de Patrícia, foi fundamental a relação entre as equipes, no
sentido de abrir possibilidade para que a mãe não reeditasse na relação
com os serviços as mesmas alianças e rupturas que vinha estabelecendo
na vida. Foi também fundamental a entrada em cena, naquela época, de
alguns familiares distantes, que se reaproximaram e se dispuseram, com o
auxílio do serviço de saúde de referência, a colaborar na passagem entre
este fora de casa e a volta para a casa da mãe, que veio a se dar quase um
ano depois da última baixa hospitalar.
No último ano de atendimento no CAPSi, Patrícia começou a usar a
escrita poética como via para expressar suas angústias e sofrimentos, e
também de construir uma forma de se representar no mundo. Inclusive, foi
este o caso que primeiramente fez a equipe deste serviço pensar na cria-
ção de uma oficina de escrita para adolescentes. Ela continuou a fazer uso
desta via de expressão e constituição subjetiva na sua última internação
hospitalar, a partir da qual conseguiu transitar melhor também no grupo com
outros adolescentes. Não tendo que permanentemente ocupar o lugar de
ser cuidada, conquistou outras formas de reconhecimento, seja através da
expressão plástica e da escrita, como também ao se dispor a auxiliar no
cuidado em relação a pacientes mais regressivos. Novas possibilidades
identificatórias foram sendo tramadas, tanto em relação ao grupo de adoles-
centes como em relação à equipe. Passou a imaginar-se num futuro sendo
enfermeira, assistente social ou psicóloga, bem como vislumbrar possibili-
dades de encontro com o outro, seja nas relações de amizade ou namoro.
Esta mudança de posição, podemos testemunhar no poema abaixo,
de sua autoria. Neste escrito parece “tematizar”, de certa forma, o encontro
com o Outro sexo, mas também pode falar do reatamento destes víncu-
los rompidos. Ainda dirige-se a lugar nenhum, fala de esboços de canções
soltos no tempo, mas este aparente caminho sem destino tem como fim o
encontro como o outro, o nascer do amor...
96
A clínica e as práticas de cuidado...

A Lugar Nenhum

O vento sopra, balança meus cabelos;


Levando-me em direção a você...
sem saber onde chegar caminho, crianças brigam no conto
uníssono da vida.
Flores encantam a chegada da primavera.
Pessoas abrem portas construções;
Pés caminham pássaros voam;
Cantores entoam melodias,
Esboços de Canções feitas no tempo.
Domingo de Vento Norte,
Nuvens no Espaço;
Castelo de Ar desfazem-se,
O universo Grita!
E eu vou ...
Caminhando sem destino a
tua procura
No magnetismo dos corpos No calor do Sol
Você lá
Eu aqui
Um amor a Nascer
Um vento a soprar...

Entendemos que esta passagem entre ter que marcar seu próprio cor-
po com cortes e poder produzir, se inscrever, através da pintura, da fala e do
texto escrito, evidencia mudanças de posições subjetivas importantes em
Patrícia. Inicialmente, após uma situação de fragilização extrema dos seus
laços simbólicos, que o adolescer e a ruptura familiar provocaram, via-se
um sujeito completamente entregue ao Outro e que, sem poder dispor dos
significantes, das marcas relativas à sua filiação para delimitar seu lugar no
mundo, era levado a marcar no real do seu próprio corpo esta diferença. Aos
poucos, vai conseguindo retomar alguns fios perdidos e o seu processo de
adolescer vai podendo ser metaforizado.
Em relação ao texto escrito por ela, chamava atenção o fato de que
Patrícia, neste período, utilizava-se de palavras e frases vindas de outros
poemas, fazendo, então, uma espécie de bricolagem para construir seu pró-
prio texto, o que nos mostra o quanto as palavras vindas do Outro (“tesouro
do significante”, como Lacan o define), são constituintes desta travessia. A
riqueza do seu texto revela, justamente, novas possibilidades simbólicas.
97
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna

Retomando as palavras de Ana Costa: “É aqui que se decide a questão do


endereço, porque só se escreve quando se muda de lugar: escrever é reco-
nhecer uma distância” (Costa, 2000, p.17-18).
É o reconhecimento desta distância e a possibilidade de endereça-
mento que se pode vislumbrar nos seus textos, como ilustra o poema “Sau-
dade”, transcrito a seguir. Neste poema, que foi presenteado à equipe do
hospital, como despedida de sua internação, Patrícia tematiza a separação,
que já não significa aniquilamento, mas assunção de uma perda (“paraíso
perdido”). E, neste endereçamento, somos testemunhas de que essa perda
pode ser simbolizada.

Saudade

Encostada neste velho tronco. Lembro de você...


uma saudade vazia de alguém; saudade espírito que anda,
perfume que afaga, que penetra, sem deixar ver seu rosto;
Saudade brisa que canta..
Ave em revoada em busca de um coração, às vezes arrependido;
saudade árvore de casca fina e enganadora, traduzindo em sua
seiva um coração longínquo;
saudade flor suave que insinua sem convergir duas linhas transversais,
saudade rios glaciais que se derretem, pedras que rolam sem se
encontrarem;
saudade poema que encanta,auréola de uma beleza recontida;
Saudade, ausência de alguém;
Princípio de solidão fazendo estourar a dor;
Saudade paraíso perdido;
Aurora em Agonia;
Semente que cresce num coração obcecado;
saudade canção precedida de um Adeus;
cascata que murmura”volta amor”...
saudade, consolo que não é perda
fantasia de retorno de alguém que se foi..
fantasia pedra que brilha opaca.
Nuvem que vai para não voltar
Saudade, flor amarelada que cai voando em ventos de outono e,
com o passar do tempo seca, deixando o poeta a esperar..
Saudade alma a procura de um refúgio...
Fim. Esperança,
Partida indesejada,

98
A clínica e as práticas de cuidado...

Corações entrelaçados,
Triste ausência Partilhada...

REFERÊNCIAS
BORSOI, P. Colóquio. In: MARON, G.; BORSÓI, P. (org.) Urgência sem emergência.
Rio de Janeiro: Subversos, 2012. p. 31-35.
COSTA, A.M. Ficcção e ato nos momentos de passagem. Revista Pulsional, ano XIII,
nº139, p.13-22, 2000.
COUTO, M.C.V.; DELGADO, P.G.G. Intersetorialidade: uma exigência da clínica
com crianças na atenção psicossocial. In: LAURIDSEN-RIBEIRO, E.L. & TANAKA,
O.U. Atenção em saúde mental para crianças e adolescentes no SUS. São Paulo:
Ed.Hucitec, 2010. p. 271-279.
FREUD, S. Romances familiares [1909]. In: ______. Ed. standard brasileira das
obras completas de Sigmund Freud. 2. ed., Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
FREUD, S. Além do princípio do prazer [1920]. In: ______. Ed. standard brasileira
das obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,
1974.
FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade [1926]. In: ______. Ed. standard brasi-
leira das obras completas de Sigmund Freud. 2. ed. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago,
1974.

Recebido em 11/11/2013
Aceito em 20/02/2014
Revisado por Maria Ângela Bulhões

99
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.100-107, jul. 2013/jun. 2014

“SECRETÁRIOS DO ALIENADO”?1
TEXTOS
A Psicose e a Instituição Psicanalítica 2

Siloé Rey3
Liz Nunes Ramos4

Resumo: O texto resgata o conceito freudiano de descrença (unglaben) para


problematizar a questão do tratamento da psicose na instituição psicanalítica.
Busca articular a contribuição da instituição na direção do tratamento do pacien-
te, levando em consideração o fenômeno do unglaben, mobilizado pela psicose.
Palavras chave: psicose, descrença, instituição psicanalítica.

“SECRETARY OF THE INSANE”?


Psychosis and the Psychoanalytic Institution
Abstract: This text recovers the Freudian concept of unbelief (Unglaben) to pro-
blematize the treatment of psychosis in the psychoanalytic institution. It seeks
to articulate the contribution of the institution on patient’s treatment direction,
considering the phenomenon of the Unglaben, mobilized by psychosis.
Keywords: psychosis, unbelief, psychoanalytic institution.

1
Lacan, J. O seminário, livro 3, as psicoses. 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 235.
2
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
3
Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA; Especialista em Psicologia Clínica
CFP; Mestre em Psicologia Social e da Personalidade PUC-RS. E-mail: siloe.rey@gmail.com
4
Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA. E-mail: liz-ramos@uol.com.br
100
“Secretários do Alienado”?...

o critério
“atitudes estranhas”
não dá
para condenar pessoas
criaturas
com entranhas
(Paulo Leminski5)

a vida do psicanalista não é cor de rosa


(Lacan6)

S
“ ecretários do alienado” é a expressão que Lacan (1992) extrai da psi-
quiatria de seu tempo e que aponta a impotência dos alienistas. “Não
só passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que
ele nos conta” (p.235) – responde Lacan, propondo suas torções, e, com
sua ironia de sempre: “o que até aqui foi considerado coisa a ser evitada”
(p.235). Entretanto, isso não nos diminui a dificuldade, como bem sabemos.
O apego do psicótico ao seu delírio é questão de sobrevivência, o delírio é
o que pode dizer quem ele é. A forma particular de articular a linguagem,
a relação bizarra com o código, a condição estrangeira no laço social e a
angústia siderante situam as condições da escuta. Ao desejo do analista,
acrescenta-se a experiência do desamparo, no mais das vezes.
Então, é no deslizamento por esses dois fios, o do desamparo produ-
zido pela condição psicótica no analisante e o do desamparo que incide na
subjetividade do analista, na condição de sustentação do desejo do analista,
que vai se produzindo a condição transferencial. É aí que a prática clínica
na instituição faz a diferença, como condição de sustentação desta escu-
ta, a partir da inscrição institucional do caso em diferentes âmbitos onde o
analista testemunha e elabora sua posição. A presença do paciente psicó-
tico mobiliza e interroga a instituição, confrontada com a expressão de um
inconsciente não recalcado. Os diversos agentes que compõem o cotidiano
institucional, como as secretárias ou os seguranças da instituição, fazem
questão ao paciente, estendendo à instituição seus sentimentos paranoicos
e suas confusões delirantes. Esses agentes serão alvo da erotomania que
marca o laço do psicótico com seus objetos, tendo que suportar a injúria de-

5
Leminsky, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
6
Lacan, J. O seminário, livro 3: as psicoses. 2. ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.39.
101
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos

lirante e as manifestações próprias de sua singular amarração subjetiva. As


consequências dessa particular relação ao Outro atravessará as relações
do psicótico com as instituições, marcando, portanto, as dificuldades na
condução do tratamento, que se estendem às suas relações com a institui-
ção que o acolhe. Como marcar uma diferença, na experiência do psicótico
com a instituição analítica, de modo a incluir a posição ética da psicanálise
à posição de “secretários do alienado”?
Para abordar a vulnerabilidade e o desamparo implicados na condição
psicótica, situemos o conceito de descrença, expressão que dá conta do
mecanismo próprio que o fenômeno psicótico coloca em causa, a Verwer-
fung.
Freud (1986), no Manuscrito K da correspondência, situa uma con-
dição particular da paranoia, o conceito de descrença – Unglaben. Freud
utiliza a expressão Versagen des Glabens, na qual podemos identificar seu
esforço de linguagem, nesse “dizer não à crença”. Isso não passa desper-
cebido para Lacan, do que ele enunciou como o que causa a psicose, que
é a forclusão do significante do Nome-do-Pai. Afinal, do ponto de vista da
economia do sujeito, o que impede as condições de inscrição desse signi-
ficante, que é a expressão de sua relação com o Outro e lhe possibilitará a
configuração do simbólico e o acesso à ordem fálica?
Lacan identifica o fenômeno da descrença, que se opera nos proces-
sos identificatórios primários, e o relaciona tanto à forclusão da coisa no
discurso da ciência, quanto na própria estruturação da psicose.

No fundo da própria paranoia, que nos parece no entanto toda


animada de crença, reina esse fenômeno de Unglaben. Não é
o não crer nisso, mas a ausência de um dos termos da crença,
do termo em que se designa a divisão do sujeito (Lacan, 1979,
p.225).

Voltemos ao Manuscrito K, titulado As neuroses de defesa, para ver


como Freud ([1896]1977) deduziu o que acontece na paranoia a partir da
descrição da estrutura defensiva da neurose obsessiva, nas quais, em am-
bas, a experiência primária foi acompanhada de prazer. No entanto, na
neurose obsessiva, quando essa experiência é recordada, libera desprazer,
possibilitando que uma recriminação consciente se instale. O recalcamento
de todo o complexo psíquico, lembrança e autorrecriminação, será substi-

102
“Secretários do Alienado”?...

tuído por um sintoma antitético, uma nuança de conscenciosidade (ou de


escrupulosidade), diz Freud, “No estágio do retorno do recalcado, vê-se que
a autorrecriminação retorna..[...] inalterada, ela emerge como um sentimen-
to puro de culpa, sem nenhum conteúdo” (p.166), ligando-se a um conteúdo
distorcido por substituição, por analogia. A crença na recriminação primária
permite o recalcamento desta e sua operacionalidade no simbólico, daí a
possibilidade de metaforização na formação do sintoma. O afeto da autorre-
criminação pode ser transformado, através de vários processos psíquicos,
em outros afetos, que então penetram na consciência. O ego consciente
encara a obsessão como algo que lhe é estranho: retira dela a crença, com
o auxílio da ideia antitética, produzindo uma série de novos sintomas, os
da defesa secundária. Apoiado pela escrupulosidade, o sujeito rejeita, re-
calcando, a crença na ideia obsessiva, indicando sua divisão entre a es-
crupulosidade e a ideia tornada estranha devido à descrença. Neste caso,
a descrença não é um fato de estrutura e, sim, o que Lacan indicou como
divisão do sujeito, fenda que revela sua condição neurótica.
Quanto à paranoia, Freud já começa advertindo que ainda lhe são des-
conhecidos os determinantes clínicos e as relações cronológicas entre o
prazer e o desprazer naquilo que chamava de experiência primária.

A experiência primária parece ser semelhante à da neurose ob-


sessiva; o recalcamento ocorre depois que a lembrança dela
libera desprazer – como, não se sabe. No entanto, não há for-
mação e recalcamento posterior de uma autorrecriminação; em
vez disso, o desprazer gerado é dirigido para os semelhantes
do paciente, segundo a fórmula psíquica da projeção. O sintoma
primário formado é a desconfiança (sensibilidade às outras pes-
soas). Isso permite que seja evitada a autorrecriminação (Freud,
[1896]1977, p.168).

E é isso que Freud nomeou como um dizer não à crença, a descrença


na autorrecriminação, que fica substituída pela projeção da desconfiança e
retorna nos delírios de perseguição. No sintoma primário, que é a descon-
fiança, o afeto que retorna é um gozo marcado de desprazer, “não ligado
a uma autorrecriminação, mas atribuído ao Outro” (Quinet, 2011, p.77). Ao
invés de “emergir como um sentimento puro de culpa”, como diz Freud, re-
torna no real, o que observamos na clínica:

103
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos

trata-se do gozo puro que retorna sob a forma de fenômenos de


despedaçamento do corpo ou sob a forma de uma volúpia desvin-
culada do falo; ou então o gozo retorna acompanhado do signifi-
cante nas vozes alucinadas (Quinet, 2011, p.77).

O sujeito acredita nas vozes, não as trata como estranhas e, ainda, é


constrangido a explicá-las através do delírio.
Essa recriminação primária, que tem potência de barrar o gozo e ope-
rar como interdito, como castração simbólica, é o que vem no lugar da Coi-
sa, do que está fora do significante. É essa recriminação que opera como
o significante que marcaria a Coisa como objeto perdido, inscrevendo sua
dimensão de impossível, e não apenas de proibido, como gozo total. O psi-
cótico, ao dela descrer, fica desprovido do que mediaria sua relação com a
Coisa gozosa. A falta dessa inscrição não permite a representação do des-
prazer, aprisionando o sujeito a um gozo sem lei. Mesmo quando as vozes
alucinadas retornam no real, o significante, longe de barrar o gozo, é antes
seu portador, pela ausência da crença na recriminação primária, que não
alcançou o status de representação. Talvez o melhor exemplo da injunção
à qual o sujeito psicótico está submetido seja a injúria alucinatória, como a
recriminação forcluída que retorna no real.
Sabemos que o trabalho de construção do delírio é o que ocupa o para-
noico para remontar seu mundo interior. “Reconstrução, pós-catástrofe”, diz
Freud. A catástrofe da qual se trata resulta “do processo psíquico de retira-
da da libido das pessoas e das coisas antes amadas”, nos lembra Oliveira
(2002). Na paranoia, como Schreber ensinou a Freud e como Lacan nos de-
monstrou no seminário que dedicou à psicose, há um deslocamento desses
investimentos abandonados para as representações de palavra, sendo que o
que especifica a alucinação psicótica é o fato de ela ser verbal. Quinet (2011)
vai ao ponto ao caracterizar que o Outro do neurótico é mudo, fazendo-se
ouvir só através das formações do inconsciente, enquanto na psicose “o Ou-
tro fala, aparece às claras, provocando no sujeito todo tipo de reação: terror,
pânico, exaltação. Isso faz com que o psicótico, diferente do neurótico, que
habita a linguagem, seja habitado, possuído pela linguagem” (p.18).
Oliveira (2002), destacando o privilégio concedido às palavras na for-
mação delirante, refere que esse mesmo investimento é o que transforma a
vida psíquica do psicótico numa presa da língua. “A injunção à representa-
ção, a qual o sujeito paranoico é confrontado, é de dar a esse fluxo contínuo
de palavras certa ordem” (p.216). É aí que, segundo o autor, que considera
a injúria como própria das formações psíquicas que constituem o delírio, a
palavra de injúria pode revestir-se de especial importância. Pode cumprir
104
“Secretários do Alienado”?...

uma dupla função: como retorno, desde o real, do forcluído, quando a pa-
lavra irrompe a partir do investimento de traços de pessoas ou de objetos;
ou como meio de retomar o curso de sua ação como representação, como
meio de dar um curso a sua vida psíquica, dispensando o trabalho de sim-
bolizar a pulsão.
A partir de nossa experiência no Instituto da APPOA, o que tem se
mostrado importante do ponto de vista da direção do tratamento do paranoi-
co em uma instituição psicanalítica é a função de inscrição institucional. O
paciente, em sua manifestação de interpelação ao Outro, quando se identi-
fica o caráter imperativo do delírio, se precipita na relação aos outros institu-
cionais através da injúria, em que os xingamentos dão vazão a verdadeiras
descargas pulsionais. Em nossa instituição, os agentes da secretaria, os
guardas e os que cuidam da casa estão incluídos no tratamento, já que são
eles que recebem o primeiro impacto da violência da loucura. A circulação
na casa, marcada pelos vários estados alterados nos quais os pacientes
chegam ao atendimento, amiúde apresenta uma agitação impregnada de
psicotrópicos. O manejo das ligações telefônicas, seu ritmo, sua violência
ou seu extremo desamparo, são todas situações que precisam de inscrição,
trabalho ao qual o analista terá que se dedicar, ao fazer-se responsável
pelo endereçamento de todas as situações que envolvem o paciente na
instituição.
O analista, na especificidade de sua prática na instituição, deverá ocu-
par-se da escuta do que a psicose afeta nos outros institucionais, ao mesmo
tempo em que lhes traduz a conduta do psicótico. Assim pode-se suportar
a repetição que lhe é necessária como tentativa de representação do que
o expulsa do laço com o Outro, e de suas tentativas de inscrever presença
e ausência na relação ao lugar que o acolhe. Ou seja, os elementos não
simbolizados da demanda do Outro irrompem também na instituição. Nes-
te sentido é a interpretação dessa forma de relação transferencial com a
instituição que o paranoico apresenta, que pode possibilitar que esses ele-
mentos sejam incluídos no tratamento. Uma vez que não lhe seja possível
endereçar estas injúrias ao analista, há neste endereçamento aos outros
institucionais uma função importante da mediação que a instituição pode
representar, intrínseca ao tratamento, importante suporte para a construção
de lugares de endereçamento ao Outro, para o exercício da função sig-
nificante, que será retomada e interpretada na transferência analítica pro-
priamente dita. O desejo do analista, neste caso, está comprometido com
o resgate, para dentro do laço discursivo em sessão, dos elementos que
tendem a ser assim forcluídos, incluindo-se o analista como lugar de ende-
reçamento desta injúria, da qual o analisante pretende poupá-lo.
105
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos

Ainda uma palavra sobre o que Lacan propõe no seminário da éti-


ca, quanto ao desdobramento do conceito de descrença relativamente ao
discurso da ciência. Neste caso, é a Coisa que é rejeitada no sentido da
Verwerfung. Entre os vários sistemas de apreensão do real, justamente
esse real inapreensível em sua totalidade, a psicanálise identifica que na
arte há um recalcamento da Coisa, na religião há o que pode-se traduzir
como um adiamento (Verschiebung) da Coisa, mas a ciência tem dificuldade
em reconhecer a parcialização do acesso ao real.

no discurso da ciência há a rejeição da presença da Coisa, uma


vez que, em sua perspectiva, se delineia o ideal do saber absoluto,
isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando
ao mesmo tempo em conta. Todos sabem que essa perspectiva
se revela na história, no final das contas, como que representando
um fracasso (Lacan, 1995, p.164).

Nos casos em que o paranoico encontra a instituição psicanalítica a


errância na busca de escuta que o paciente empreende, se suspende devi-
do a ele encontrar uma instituição na qual não se prescreve a forclusão da
Coisa louca. É necessário uma instituição que suporte a lógica do não todo
e sustente uma circulação discursiva que permita conter a angústia de todos
os que recebem o impacto do delírio do paranoico, para que ali o sujeito
consiga ancorar seu desamparo.
Se, com relação à condução do tratamento da psicose, estamos sem-
pre caminhando no fio da navalha, é não respondendo em espelho ao psi-
cótico, descrendo de seu delírio e loucura, que se criam condições para ele
se relacionar de outras formas com o Outro, sem ter que oferecer-se como
objeto de seu gozo, construindo outra extensão à posição de secretariá-lo.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1896). Rascunho K. In: ______. Obras completas de Sigmund Freud,
v.1. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p.299-307.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses [1955-1956]. 2. ed., Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 1992.
______. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise [1959-1960]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1995.
______. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
LEMINSKY, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MASSON, Jeffrey M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm
Fliess -1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

106
“Secretários do Alienado”?...

OLIVEIRA, Luís Fernando L. Injúria: a pulsão na ponta da língua. Ijuí: Unijuí, 2002.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2011.

Recebido em 24/05/2014
Aceito em 15/10/2014
Revisado por Cristian Giles

107
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.108-121, jul. 2013/jun. 2014

CORPO E VIOLÊNCIA
TEXTOS ESTRUTURAL DAS PSICOSES:
o suicídio do outro
em Louis Althusser1

Manoel Madeira2

Resumo: Este artigo se baseia na obra de Louis Althusser, L’avenir dure long-
temps, e em alguns comentários sobre ela, para ilustrar como a violência logo
do desencadeamento psicótico pode ser pensada de forma estrutural, nota-
damente, como suicídio do outro. Para tanto, trabalhamos sobre a noção de
espaço-corpo nas psicoses. O texto se finda por um breve comentário sobre as
internações psiquiátricas.
Palavras-chave: psicose, Louis Althusser, corpo, estrutura, violência.

BODY AND PSYCHOSIS’S STRUCTURAL VIOLENCE:


the other’s suicide in Louis Althusser
Abstract: This paper is based on Louis Althusser’s title L’avenir dure longtemps,
and some comments on it, to illustrate how the violence that occurs with a psy-
chotic crisis can be considered in a structural form, notably, as the other´s sui-
cide. To do so, we work on the notion of space-body in psychosis. The text ends
with a brief comment about psychiatric hospitalizations.
Keywords: psychosis, Louis Althusser, body, structure, violence.

1
Este texto nasce de um pequeno artigo outrora publicado em revista de grande público sobre
o preestabelecido tema a violência no surto psicótico. Pretendo retomar aqui propostas do
primeiro escrito, mantendo seu estilo e algumas generalidades. Trata-se, porém, de reescrita
quase integral do artigo, em que se desenvolvem algumas questões, adaptando-o à Revista
da APPOA.
2
Professor-�������������������������������������������������������������������������������������
adjunto de ensino e pesquisa na
��������������������������������������������������������
Université Paris-Diderot, Paris VII; Psicólogo-clíni-
co no Centro Médico-Psicopedagógico de Montgeron, França; Psicólogo, Mestre em Antropo-
logia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais – (EHESS-Paris); Mestre e doutorando
em Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris-Diderot Paris VII.
E-mail: mlucemadeira@gmail.com
108
Corpo e violência estrutural das psicoses...

Louis Althusser e o suicídio do outro

D omingo, 16 de novembro de 1980, nove horas da manhã. O renomado


filósofo francês Louis Althusser acaba de acordar e, como de costume,
massageia sua mulher Hélène. Seus rins, suas costas, sua nuca. Althusser
põe-se, enfim, a massagear o pescoço de Hélène. Os dedos agarram sua
mandíbula, os polegares pressionam sua laringe até Althusser ter a impres-
são de que eles se tocam. Os antebraços do filósofo fraquejam. Ele mira
Hélène: os olhos perdidos no teto, a língua adormecida entre os dentes.
A morte de Hélène implica a internação imediata de Althusser no hos-
pital psiquiátrico de Saint-Anne, em Paris, onde sua “confusão mental” e
seus “delírios oníricos” (Althusser, 1992, p.36) se deflagram3. Sucede-se
aos fatos a estupefação geral, o enorme fenômeno midiático. “Jamais um
tal ato havia sido perpetrado por um pensador de tal envergadura, um revo-
lucionário tão engajado”, escreve Gérard Pommier (1998, p.9). Como Louis
Althusser, filósofo de cabal erudição e índole irrepreensível, pôde cometer
tal atrocidade? O longo histórico de internações psiquiátricas de Althusser
torna-se conhecimento geral. Aflora na França a discussão sobre a impre-
visibilidade da loucura. Althusser é considerado inimputável e não é julgado
ordinariamente pelo seu crime.
Em 1992, dois anos após sua morte, é publicada a autobiografia do
filósofo, intitulada L’avenir dure longtemps (O futuro dura muito tempo). Al-
thusser relata na intensa narrativa como o lugar do morto lhe fora simbolica-
mente estabelecido. A história começa na Argélia, onde as famílias Berger
e Althusser decidem casar os filhos. Juliette Berger torna-se noiva de Louis
Althusser; Lucienne Berger, de Charles Althusser. Porém, o aviador Louis
Althusser morre em 1917, combatendo na Primeira Guerra. Charles, que
também estava no front de batalha, recebe permissão para visitar os seus,
transmitir a notícia à família e pedir a mão de Juliette em casamento em re-
paração à morte do irmão. Juliette aceita. Charles casa-se com sua (antiga)
cunhada e Lucienne fica solteira. Charles e Juliette decidiram mais tarde
nomear o primeiro filho pela alcunha do falecido Louis Althusser – assim,
nasce o filósofo. A história denota a dupla negação da morte: pela substitui-
ção proposta pelo pai e pela nomeação do filho.
Nota: o supracitado Gérard Pommier, autor do livro La mélancolie, vie et
œuvre d’Althusser (A melancolia, vida e obra de Althusser) ressalta que, desta

3
Todas as traduções do texto foram realizadas livremente pelo autor.
109
Manoel Madeira

forma, a família cumpriu, sem saber, a lei do levirato, citada no Deuteronômio


– quinto livro do antigo testamento. Consultemos a Bíblia Sagrada (2005):
Moisés disse ao povo: “Se dois irmãos morarem juntos, e um deles
morrer e deixar a esposa sem filhos, a viúva só deverá casar de novo com
alguém que seja da família do morto. O irmão do falecido deve casar com a
viúva, cumprindo assim o dever de cunhado. O primeiro filho que ela lhe der
será considerado filho do falecido, para que seu nome não desapareça de
Israel” (p.195, grifos nossos).
Althusser retraça no livro suas hospitalizações psiquiátricas. A primeira
advém após “embaralhar as carnes” com Hélène: foi sua primeira relação
sexual. Ele contava vinte e seis anos. Hélène será sua companheira até
a trágica manhã do homicídio. É verdade que não faltam no livro histórias
voluptuosas, inclusive nos primeiros tempos com Hélène. Porém, essa fiel
companheira torna-se mulher sexualmente desinteressante, cúmplice de
suas traições, parecendo ocupar posição fundamental na estabilização de
Althusser. Ele declara que suas “depressões” deviam-se, justamente, ao
seu pavor de ser abandonado: “por Hélène, por meus amigos, por meu ana-
lista” (Althusser, 1992, p.167) – René Diatkine, que o recebeu diariamente
durante anos a fio.
Althusser vara os anos trancafiado com Hélène em seu apartamento
da École Normale Supérieure (ENS). Suas memórias fazem referência a um
quadro maníaco-depressivo em que o trabalho insaciável era apenas inter-
rompido pelas crises de “depressão”. Porém, tais acessos não eram raros:
“pelo menos uma vez por ano, seguidamente entre fevereiro e março, até
o mês de maio”, Althusser quedava “paralisado pela melancolia”, escreve
Pommier (1998, p.15). Nesses momentos, Hélène provava sua inquebrantá-
vel fidelidade, visitando Althusser diariamente em hospitais psiquiátricos – o
que às vezes implicava exaustivos trajetos de trem pela região parisiense.
Althusser parecia não existir sem Hélène – nem Hélène sem Althusser. A
relação entre os dois evoca as formas de laços pelas quais Lacan afirmava
que era possível distinguir neurose e psicose: “para o psicótico uma relação
amorosa é possível abolindo-o como sujeito, enquanto ela admite uma he-
terogeneidade radical do Outro. Mas esse amor é também um amor morto”
(1955-1956, p.287, grifos nossos). Amor morto faz aqui menção à ideia de
que a incessante falta-a-ser, que constitui o desejo na neurose, almeja a-
miúde ser aplacada na união psicótica. Tomemos o exemplo de Schreber:
não há palavras de amor, por assim dizer, que sejam endereçadas a Deus,
que o idealizem ou signifiquem sua falta. O que parece estar em jogo é pu-
ramente a repartição do gozo e o estabelecimento de um lugar fixo – o da
mulher de Deus – em que Schreber situa sua forma de gozar.
110
Corpo e violência estrutural das psicoses...

Enfim, se o amor na psicose expõe proeminentemente a dimensão de


amálgama, ele guarda também em seu seio o abismo do rasgo. E, como um
não vivia sem o outro, quando Hélène não suporta mais Althusser, ela se
separa – e segue em casa.

Eu estava rasgado de angústia. [...] Ela me declara com uma reso-


lução que me terrificou que ela não podia mais viver comigo, que eu
era para ela um “monstro” e que ela queria me deixar para sempre.
[...] Ela me abandonava em minha presença (Althusser, 1992, p.286).

Como veremos, o surto melancólico consiste – em níveis extremos –


na negação da existência, a ponto que se possa declarar “eu não existo” ou
“eu estou morto”. Althusser afirma:

Eu imaginava toda sorte de saídas mortais: eu queria não somente


me destruir fisicamente, mas destruir também todo traço de minha
passagem pela terra. Queria destruir particularmente meus livros
e todas as minhas notas, e também incendiar a École, e também,
se possível, suprimir a própria Hélène (1992, p.285).

Para o psicanalista German Ross, Althusser seria um homicida altruís-


ta (2003). Propomos, entretanto, a hipótese de um suicídio do outro – forma
de passagem ao ato que desvelaria o desencadeamento. Se “o amor é uma
forma de suicídio” ([1953-1954]1998), como afirma Lacan, resta a interroga-
ção de como na psicose tal morte amorosa se inscreve.
O assassinato de Hélène, em todo o caso, acarreta a morte pública do
filósofo: “Todo tempo em que está internado, o doente mental, salvo se ele
se mata, continua evidentemente a viver, mas no isolamento e no silêncio do
asilo. [...] Ele se torna lentamente uma espécie de morto-vivo” (1992, p.41),
escreve Althusser. “Mesmo liberto há dois anos da internação psiquiátrica,
eu sou [...] um desaparecido. Nem morto, nem vivo, não ainda enterrado,
mas “sem obra”4 – a magnífica palavra de Foucault para designar a loucura
– desaparecido” (op. cit.)5 6.

4
Referência ao texto de Michel Foucault, La folie, l’absence d’œuvre, que tem como pano de
fundo a obra de Antonin Artaud. Embora seja condizente com a depreciação da obra de Althus-
ser depois do assassinato, ressaltamos nosso desacordo em relação a esse texto que aponta
“a loucura como linguagem excluída” (1964, p.445).
5
Referência à Histoire de la folie à l’âge classique, de Michel Foucault.
6
Nota-se que em francês, disparu (desaparecido), também é sinônimo de morto, falecido.

111
Manoel Madeira

Como pensar o corpo no desencadeamento psicótico? Qual é a rela-


ção entre o desencadeamento e a violência? Pretende-se trabalhar sobre
essas questões tendo o caso Althusser como horizonte. Eis a discussão.

Corpo-espaço no desencadeamento psicótico

Nos primórdios da psiquiatria, na época de Philippe Pinel e seu discí-


pulo Étienne Esquirol, o desencadeamento era a causa da loucura. Pinel
afirma, na abertura do Traité médico philosophique sur l’aliénation mentale,
que a alienação se origina a partir de “um evento ou concurso de even-
tos análogos que se deve considerar como sua causa determinante” (1809,
p.86-87). Não havia distinção entre desencadeamento e causa da loucura.
Deste modo, Pinel, incansável observador, declara que a alienação pode
estar associada tanto a “irregularidades extremas da maneira de viver [...]
desde a mais tenra infância” (1809, p.99), quanto “por um sentimento de pa-
vor [...] face um violento relâmpago”(1809, p.150) – sem diferenciar as duas
causalidades. Toda a forma de desencadeamento era catalogada como
uma causa possível da loucura.
Em seguida Esquirol, em Des maladies mentales considérées sous les
propõe a distinção entre “cau-
rapports médical, hygiénique et médico-légal,�������������������������������
sas predisposantes” e “causas excitantes” (1838, p.24), diferenciação fun-
damental na história da psiquiatria. Ela será retomada por Jean-Pierre Fal-
ret, discípulo de Esquirol, que afirmará que a predisposição à doença mental
– denominação que veio substituir a antiga alienação – é sempre orgânica,
e que sua eclosão é de origem prioritariamente psíquica (Falret, 1864). A
díade, causa orgânica e desencadeamento psíquico, tornou-se paradigma
da psiquiatria, e é claramente mantida por Kraepelin e Bleuler, contemporâ-
neos de Freud, e cujas nosografias, no que concerne às psicoses, balizaram
a obra do psicanalista. Ao abandonar, não sem relutância, o projeto de fazer
corresponder os mecanismos psíquicos à neurologia, Freud deu um passo
fundamental para estabelecer relação íntima entre causa, desencadeamen-
to e cura nas psicoses – o que nos parece fato inaudito até então.
Poupando-nos do percurso freudiano em torno do conceito de Verwer-
fung – seu desenvolvimento e a hesitação de Freud em nomear o mecanis-
mo causal da psicose –, podemos nos ater à conhecida metáfora da estru-
tura psíquica como um cristal. Nas suas Novas conferências de introdução
à psicanálise, Freud compara a estrutura psíquica dos “doentes mentais, [...]
os loucos”, a um cristal trincado. Se tombasse, seria exatamente por aquela
ranhura que ele se despedaçaria: o cristal não se quebra aleatoriamente,
seu despedaçamento é determinado por sua “estrutura” ([1933] 2009, p.82).
112
Corpo e violência estrutural das psicoses...

O cristal trincado é a estrutura psicótica. A ranhura é a causa. A queda, o


desencadeamento.
Queda do cristal, queda do corpo – que o desencadeamento psicótico
coloca invariavelmente em xeque. Historicamente, a psicose – ou a loucura
– foi caracterizada justamente pelos transtornos da imagem do corpo. Isso,
porque o psicótico, após o desencadeamento, se afirmará frequentemente
atingido: seus olhos estão virados, seus membros bloqueados, sua cabeça
está desconectada do pescoço. Ou seja, ele exporá a fragilidade de seu
corpo. Ressalta-se que os primeiros tratamentos da loucura tinham como
base a moral – o que implicava estar em instituição saudável e sensata – e
as ações sobre o corpo orgânico: banhos frios e estimulação da circulação
sanguínea aos prostrados, banhos quentes e sangrias aos agitados.
Se retomarmos as primeiras proposições diagnósticas de Pinel, en-
contraremos mania e melancolia como nosografias preferenciais – distinção
paradigmática para a história da psiquiatria (Lanteri-Laura, 1998). O manía-
co seria agitado, febril. O melancólico, prostrado, sombrio. No que tange o
corpo-espaço no desencadeamento, poderíamos propor a seguinte simplifi-
cação: o melancólico diria “eu não existo”, “eu estou morto”, o maníaco, “eu
sou Deus”. Ou seja, se observarão nos surtos psicóticos, diversas formas de
se (con)fundir com o mundo. Para Freud ([1911] 2009), o desencadeamento
psicótico implicava a regressão da libido ao eu – o psicótico se afastaria
da realidade justamente porque algum elemento desta provocou sua crise.
Assim, ele pode anunciar o apocalipse – o fim do mundo, de toda realidade
externa. Pode igualmente anunciar seu fim: “eu estou morto”, pois não se
reconhece mais no mundo, no olhar do Outro. Pode, outrossim, crer-se em
toda parte: “eu sou Deus”.
Obviamente, proponho aqui caricaturas, formas extremas. Creio que
o leitor já imagina variações possíveis destes temas no desencadeamento.
Curioso é que Pinel, que começou suas observações no século XVIII, já
afirmava que há diversas flutuações entre mania e melancolia (ver 1809,
p.189). Ou seja, os discursos sobre o corpo – e o ser no mundo – variam
muito durante a hospitalização. Assim, entre absurdos e delicadezas, é
uma lástima que a psiquiatria tenha em muito perdido suas referências
históricas.
Em suma, o que está em questão são as bordas do corpo que se es-
maecem. É por esse caráter de (con)fusão entre o indivíduo e a realidade,
entre o que Freud esquematizava como interno e externo, que no desenca-
deamento psicótico, conforme sua radicalidade, o sujeito está desprotegido
e face à angústia da constante ameaça de invasão do Outro – dos outros
– que podem entrar sem pedir licença, sem bater na porta.
113
Manoel Madeira

Constituição do corpo, do Outro e dos espaços interno e externo

Psiquicamente, ninguém nasce provido de um corpo com bordas, que


nos separam e ao mesmo tempo nos inserem no mundo. O que era o cor-
po da mãe, antes do nascimento, torna-se o “mundo externo”7, depois. E
nada nos significa, de pronto, que somos algo diferente do corpo materno.
É pouco a pouco que o bebê vai se alienar nos significantes, no olhar do
Outro – estádio no qual o bebê autista encontraria dificuldades em entrar –,
para em seguida tomar corpo, responder por um nome, se identificar a uma
imagem, se singularizar.
Se no desencadeamento psicótico o corpo pode se despedaçar é por-
que a rachadura da estrutura se encontra nas funções tecidas no há muito
conhecido estádio do espelho, proposto por Lacan (1949). A necessidade de
operar a Gestalt, que confere ao corpo sua unidade, advém do fato de que
nunca percebemos o nosso corpo inteiro. Quando olhamos nossa imagem,
há sempre uma parte velada: se estamos de frente, não vemos as costas, a
nuca, as nádegas, a planta dos pés. A noção – que pode parecer dada – de
que o corpo forma um todo, é uma operação psíquica que pode se dar ou
não. No início, vivemos o corpo por partes que vão se tecendo: não apenas
por nossas percepções imagéticas do corpo, mas também pelo que pode-
mos experienciar dele, autoeroticamente ou com o Outro – pelas mordidas,
palavras, o leite na boca, os olhos nos olhos.
Não se trata, assim, de simples percepção: é o simbólico que estofa a
imagem (Lacan, [1954-1955] 2001). Sem o Outro que tecerá ao sujeito sua
imagem à linguagem, esta percepção se manteria vazia – não operaria a
identificação, o traço unário. Assim, assumir uma imagem implica passagem
essencial de reconhecimento da palavra do Outro. É a partir de um “este é
você” que podemos dizer “este sou eu”. Assim, não só os psicóticos, mas
todo ser humano tem de lidar com a arcaica angústia de ser retalhado em
postas e de se confundir com o Outro, se perder em seu olhar. A diferença
é que, nas psicoses, as operações que dão corpo ao sujeito e constituem o
Outro são frágeis, expondo o psicótico à radicalidade de decomposições e
angústias das quais o neurótico é privado. O desencadeamento psicótico é
prova inconteste dessa fragilidade.

7
Freud sustenta a expressão “mundo externo”, desde a Interpretação dos sonhos, em 1900,
até às Novas conferências, em 1933. Indico Interprétation des rêves, 1900, p.655, et Nouvelle
leçons d’introduction à la psychanalyse, p.140.
114
Corpo e violência estrutural das psicoses...

Há, todavia, um passo anterior ao “este sou eu”, do fim do estádio do


espelho: o “isto não sou eu” da Bejahung. Proponho que essa operação
primária – “condição para que qualquer coisa exista para o sujeito” (Lacan,
[1953-1954]1998, p.96) – consista exatamente nesta afirmação: “isto não
sou eu”. Ou seja, o sujeito se atribui um corpo pela negação primordial do
que lhe é externo. Didaticamente falando, para que o sujeito se restrinja
ao seu corpo, é preciso que todas as outras coisas sejam não-eu. ��������
É a par-
tir dessa imensa perda que o neurótico pode habitar o mundo, e articular
os espaços interno e externo. Lacan sustenta que a operação inversa da
Bejahung freudiana é justamente a Verwerfung, situada como mecanismo
causal da psicose. É por essas e outras que frequentemente se afirma que,
nas psicoses, a ranhura não está nas perdas, mas nas perdas das perdas.
Façamos aqui uma nota fundamental: a distinção entre mundo interno
e externo é apenas ilustrativa. A separação concreta entre dentro e fora não dá
conta da realidade psíquica. Acreditamos que o primeiro autor em psicanálise
a tratar claramente dessa passagem do corpo da mãe como primeiro “mundo
externo” à constituição da distinção entre eu e “não-eu” foi Sandor Ferenczi,
em texto de 1913. Já nesse texto, Ferenczi ressalta como a criança “investe o
mundo exterior de qualidades que ela descobriu nela mesma, quer dizer, as
qualidades do eu” (1913, p.59). Essa tessitura dos espaços é uma das primei-
ras ressalvas de Lacan no texto do Estádio do espelho. Dizer que um “este é
você” precede um “este sou eu” da identificação, significa que o sujeito existe
primeiro no olhar do Outro que em si mesmo. Por isso Lacan afirma que o su-
jeito ex-iste, ou seja, existe fora. Assim, poderemos conjeturar, mais à frente,
como Althusser ex-istia no olhar de sua mãe e na relação com Hélène.

Estrutura: o que se recalca é a fragilidade da infância

Resumindo, a afirmação “eu não sou isso”, engaja, em um segundo


momento, a possibilidade de tecer uma identificação – “eu sou isso”. E aqui
queremos ressaltar uma articulação estrutural. Pois, nessa travessia de
constituição do corpo – embora o bebê possa ser subjetivado pelo Outro
por toda palavra de júbilo e contentamento –, a criança significa que ser isso
implica também ser alguns quilos de carne, completamente indefeso e de-
pendente do Outro. Ou seja, ser alguém completamente entregue ao gozo
do Outro. Albert Camus dizia que “o homem é a única criatura que recusa
ser o que é” (1951, p.24). E é exatamente essa recusa primordial que o re-
calcamento opera edificando a estrutura.
Por isso tanto se falou que a estrutura é “de defesa”: defesa “contra o
que seria imaginariamente seu destino se não se defendesse se estruturan-
115
Manoel Madeira

do” (Calligaris, 1989, p.14). A estrutura é de defesa justamente “para que o


sujeito seja algo distinto do Real de seu corpo, algo Outro e mais do que
alguns quilos de carne” (op. cit.). Assim, o neurótico se subjetiva. A estrutura
psicótica é evidentemente de defesa também. Porém, sempre simplificando,
supõe-se que esses significantes evocados – da constituição do corpo, de
ser objeto do gozo do Outro – foram inscritos em outro tempo. Deste modo,
se pensarmos a estrutura como construção, podemos imaginar uma edifi-
cação onde tais elementos estão presentes, mas não exercem a mesma
função. É por isso que Lacan empregou o termo forclusão: não se trata de
exclusão dos significantes, mas de inclusão fora do tempo. Entende-se aqui
o tempo da estrutura, diferente de sucessão cronológica linear. Deste modo,
o fora do tempo refere-se à neurose: fora do tempo no qual tais significantes
são inscritos na estrutura neurótica.
A estrutura se tece a partir de inscrições que se articulam com o tempo
e também com o registro. Tomemos dois casos clássicos: Hans e Schre-
ber. No pequeno Hans, a questão da fragilidade, da insuficiência do corpo,
emerge como um dos objetos centrais da eclosão da fobia. As angústias
face às fragilidades do corpo nas discussões entre Hans e seu pai são to-
madas, prioritariamente, a partir do simbólico. Seu pai parece obstinado em
comprovar o complexo de Édipo – e que o cavalo é seu representante. A
despeito dessa limitação interpretativa, o menino vai colocando em pala-
vras a articulação do objeto fóbico com complexo de castração, ou seja,
com significantes que remetem às perdas corporais: a relação com a mãe,
os excrementos, o nascimento dos bebês, a ameaça de perda do pênis. É
atravessando, simbolicamente, todos os perigos aos quais seu corpo está
exposto que Hans calca a travessia da fobia (Freud, [1909] 2006).
Tal transmissão da fragilidade do corpo parece impossível para o pai
do Presidente Schreber. O relato publicado na revista Scilicet, em 1973, nos
revela um pai aficionado pela forma e potência do seu corpo. O mote do
livro Ginástica de quarto é certo apocalipse do alquebrado corpo dos ger-
mânicos à época. Assim, um conjunto de atividades físicas, hábitos, regime
alimentar, métodos educativos deve ser aplicado às crianças o mais cedo
possível. Isso implica a proposição dos famosos coletes e correias para
lhes assegurar e manter a postura ereta: “A postura, sobretudo, preocupa
Schreber (o pai), que associa estreitamente o porte físico à firmeza moral”
(Scilicet, 1973, p.312). O impensável da fragilidade do corpo acomete o pai
de Schreber quando ele contava quarenta primaveras: convalescente após
acidente em sua sala de ginástica, seu humor é obscurecido por uma dura-
doura e “grave crise de nervos” (Scilicet, 1973, p.299). Tempos mais tarde,
aos cinquenta e um anos – talvez como prova de sua recuperação – ele
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Corpo e violência estrutural das psicoses...

vence um sprint contra um corredor profissional. Curiosamente, falece al-


guns meses depois.
Logo do desencadeamento, a questão da fragilidade do corpo exposta
no discurso do Presidente Schreber salta aos olhos: ele se diz sem estôma-
go, intestino, pulmões, seu esôfago está rasgado. Ou seja, o que não pôde
ser transmitido, o que não pôde ser simbolizado na infância aparece no real.
Schreber sustenta que “do combate aparentemente tão desigual entre um
ser humano fraco e isolado contra Deus, eu saio vitorioso” (Freud, [1911]
2009, p.241). Esse percurso evocado por Schreber entre desencadeamento
e a estabilização da travessia edípica do neurótico: um ser humano fraco e
isolado contra o Outro decreta sua sobrevivência.
Enfim, analisando dois textos, podemos dizer que a fragilidade do cor-
po em Hans é sustentada por tessituras prioritariamente simbólicas; já no
caso Schreber, ela é preponderantemente remetida ao real. No seu esforço
para tecer uma suplência, Schreber almeja reinscrever tal travessia pela
narração de suas memórias. Os significantes da fragilidade do corpo pare-
cem haver se deslocado da sua precedente condição estrutural e reivindi-
caram novos arranjamentos. Isso nos indica que tais significantes não se
encontravam na base da estrutura psicótica – o que implica tempo e regis-
tro distintos à estrutura neurótica. Os caminhos calcados e recalcados pelo
neurótico são visceralmente expostos pelo psicótico em crise.

Althusser: o corpo, a violência

A experiência de fragilidade extrema do corpo é elemento recorrente


na autobiografia de Althusser, em que suas crises de melancolia, nas quais
tinha o sentimento de não existir, eram acompanhadas de uma “hipocondria
generalizada” (1992, p.314). O próprio Althusser associa tais sintomas ao
olhar da mãe, que ele assim havia descrito: “Era como se eu fosse atraves-
sado pelo seu olhar, eu desaparecia de mim dentro do seu olhar. Ele pairava
sobre mim para encontrar no longínquo da morte o rosto de um Louis que
não era eu, que eu não seria jamais” (1992, p.48). Como sustenta Lacan, é
nessa tessitura do olhar da mãe e do bebê sobre seu corpo que “ele parece
demandar àquele que o porta, e que representa o grande Outro, de endos-
sar o valor da imagem” ([1962-1963] 2004, p.42).
Althusser nos apresenta uma mãe ao mesmo tempo “pura” e “obsce-
na”. Pura em toda narrativa em que é confrontada à brutalidade do pai. E
obscena em todo contato físico com ele, Althusser. “Sua mãe lhe provocava
horror, e ele nunca sentiu a menor atração sexual por ela”, escreve Pommier
(1998, p.63). Althusser ignorou o ato sexual até os vinte e seis anos. A mas-
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Manoel Madeira

turbação, até os vinte e sete. “O que me incomoda é que haja corpos, e pior
ainda, sexos”, afirma ele (1992, p.55).
Althusser testemunha seu pânico em brigar fisicamente, e em toda si-
tuação que a integridade do seu corpo era posta à prova. Afirmava que
uma de suas grandes angústias era pensar seu corpo “entamé” – palavra
curiosa pois, em francês, quer dizer cortado, porém, com maior frequência,
iniciado, começado. Ele, assim, se experiencia como alguém que nunca
poderia endereçar violência física qualquer, justamente por temer que o em-
bate viesse entamer seu corpo. Pommier (1998) propõe a hipótese de que
Althusser criou o fantasma de um pai monstruosamente violento, e se situou
invariavelmente no lugar da vítima dele. “Ele se encontra, desde sempre,
na incapacidade de bater um outro corpo, o seu existindo apenas para ser
castigado” (1998, p.45). Ou seja, no lugar da vítima e no lugar do morto,
podemos supor o “embaralhar” entre Althusser e Hélène, quando esta se
torna o objeto de seu crime.
Até o fim da obra, Althusser sustenta a ideia de que sua tendência à
“autodestruição” provocara seu crime, reiterando Hélène como parte de sua
existência:

Eu sempre estive em luto de mim mesmo. [...] E por prova palpável
de não existir, eu desejava desesperadamente destruir todas as
provas da minha existência, não somente Hélène, a maior delas,
mas também as provas secundárias, minha obra, meu analista e a
mim mesmo (1992, p.315, grifos nossos).

Curiosa passagem, de fato, muito parecida com a já citada, exceto por um


detalhe que soa como ato falho: Hélène seria prova primária da sua existência,
e, ele mesmo, Althusser, seria uma prova secundária! É por isso que propomos
a ideia de suicídio do outro em relação ao ato de Althusser contra Hélène: pois,
talvez, em momento dado, lhe fosse impossível diferenciar-se dela.
Aventamos tal hipótese menos por tese, mais por ilustração. Ilustra-
ção da vulnerabilidade exposta no desencadeamento, em que os pequenos
outros se tornam potenciais invasores. É na experiência clínica que pode-
mos pensar em alter-suicídios, ou em atos em que a existência do agressor
depende do aniquilamento do outro-invasor – ou ele ou eu –, ou, em toda
forma, por princípio, sempre singular de violência no desencadeamento. Se
esta violência é frequentemente endereçada a pessoas próximas é porque
o sujeito escolherá aqueles que lhe evocam a ameaça de despedaçamento,
por já haver com eles confundido as carnes, quando pequeno (seus pais) ou
quando adulto (a pessoa amada).
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Corpo e violência estrutural das psicoses...

Se esses trágicos crimes chocam a todos, é talvez por expor a para-


doxal ambivalência das relações afetivas e do laço social: amamos e quere-
mos matar nossos próximos. O alvoroço, o escândalo que causam é porque
tais assassinatos dizem verdades sobre nós mesmos – o psicótico põe em
ato o que, no neurótico, é inconsciente.

Fechamento: as psicoses e as instituições

Por algum tempo, trabalhei em hospital psiquiátrico forense – instituição


destinada a pessoas que cometeram crimes e que, como Althusser, foram
consideradas inimputáveis por não serem capazes de responder por seus
atos logo do delito. Pude, por ventura, inteirar-me nessa instituição da crueza
com a qual os crimes eram cometidos: corpos despedaçados, mães violadas,
pacientes que bebiam o sangue dos corpos das vítimas. Tais crimes, insis-
timos, só nos parecem aberrantes, pois escondem verdades que são muito
mais bonitas veladas que expostas. Propomos, no entanto, que esses crimes,
embora reais, são muito mais espetaculares que reincidentes e dizem pouco
da realidade se pensarmos nas políticas públicas de saúde mental.
Há de se ressaltar que a violência acima descrita é pouco comum
nos surtos psicóticos. Os desencadeamentos que acarretam agressões
graves são franca minoria. Na maioria dos casos, é o risco de violência
grave, a dissociação discursiva, as manifestas alucinações que provocam
a internação – e não as brutalidades. Se, por ventura, os atos de violência
cometidos parecem frequentes é justamente pela grande visibilidade que
adquirem.
É difícil contestar, entretanto, que surto psicótico seja sempre extre-
mamente violento – ao próprio sujeito. Assim, tanto a violenta angústia que
o desencadeamento aflora, quanto o risco de agressividade, podem justifi-
car a hospitalização psiquiátrica de curta duração. Nos melhores casos, a
hospitalização compreende medicação, escuta especializada, ateliês tera-
pêuticos, assistência social, enfermagem. O que nenhuma das violências
supracitadas justifica é a atrocidade do asilo. Michel Foucault (1961) mostra,
em L’histoire de la folie, que a loucura é herdeira da lepra no que concerne
às práticas de confinamento, e que o enclausuramento era baseado nas
políticas de purificação urbana e careciam de critérios médicos. Ora, se du-
rante os séculos XIX e XX a clínica psicanalítica das psicoses avançou, que
seja, entre outros, para construir argumentos que resistam e lutem contra a
tragédia social do asilo.
A possibilidade de uma sociedade sem asilos é séria e consequente
– embora às vezes se pense que se trate de bravatas de diletantes sem
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Manoel Madeira

conhecimento de causa e que denotam visão romântica da loucura. Na dé-


cada de setenta, a França aboliu as hospitalizações vitalícias e disseminou
serviços psiquiátricos ambulatoriais pela malha urbana. As medidas não
acarretaram o aumento da criminalidade ou em um sentimento de insegu-
rança da parte da população. Em Paris, as pessoas estão acostumadas a
conviver com a loucura no metrô, nas ruas, no mercado. Lacan sustentava
o uso da palavra asilo, pois em sua etimologia encontramos a noção de
refúgio, que ele julgava cara ao psicótico em crise. Porém, refúgio é para
cuidar, não para excluir. Conforme insistimos, o inconsciente a céu aberto
da crise psicótica expõe justamente conteúdos recalcados na neurose, o
que Freud ([1894] 2005) chamou desde cedo em sua obra de unerträglich
Darstellung, representação insuportável ao sujeito. Deste modo, a exclusão
dos psicóticos em hospitais, a possibilidade de produzirmos holocaustos
da loucura, talvez evoque essa condição estrutural da neurose, de afastar
peremptoriamente o que lhe é intratável. Se o paradigma social ainda é
o da neurose, e se a psicose sempre desvela à neurose alguma verda-
de que se quer esconder, o confinamento da loucura pode ser pensado
como ataque ao mal-estar inerente à tessitura do laço social. Resta a im-
pressão de que, fazendo desaparecer o outro – este que encarna a alte-
ridade do inconsciente – o neurótico está se suicidando simbolicamente.

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Corpo e violência estrutural das psicoses...

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Recebido em 08/04/2014
Aceito em 05/06/2014
Revisado por Gláucia Escalier Braga

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