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DESAMPARO E VULNERABILIDADES
EXPEDIENTE
Publicação Interna
n. 45-46, jul. 2013/jun. 2014
Editores:
Deborah Nagel Pinho e Maria Ângela Bulhões
Comissão Editorial:
Clarice Sampaio Roberto, Cristian Giles, Deborah Nagel Pinho, Gláucia Escalier Braga,
Joana Horst, Maria Ângela Bulhões, Mariana Hollweg Dias, Marisa Terezinha Garcia
de Oliveira, Otávio Augusto Winck Nunes, Renata Maria Conte de Almeida.
Editoração:
Jaqueline M. Nascente
Consultoria linguística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA que
tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Contém es-
tudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em edições
temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além da
venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e em permuta e/ou doação
a instituições científicas de áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de Psicologia (http://
www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em março 2015. Tiragem 500 exemplares.
DESAMPARO E VULNERABILIDADES
SUMÁRIO
8
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.09-19, jul. 2013/jun. 2014
DESAMPARO E
TEXTOS VULNERABILIDADES NO
LAÇO SOCIAL – A FUNÇÃO
DO PSICANALISTA1
Jaime Betts2
1
Versão ampliada do texto de abertura da III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Inter-
venções Sociais – Desamparo e Vulnerabilidades, agosto de 2013, em Porto Alegre.
2
Jaime Betts; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e
Diretor Executivo do Instituto APPOA. Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes do
processo criativo com Claudia Stern. Porto Alegre: Território das Artes, 2005; e (Re)Velações
do Olhar – recortes do processo criativo com Liana Timm. Porto Alegre: Território das Artes,
2005. E-mail: jaimebetts@gmail.com
9
Jaime Betts
3
Faço aqui como Freud ([1927]1976) e não diferencio os termos, acrescentando o de laço
social, forjado por Lacan.
10
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...
4
Referência ao título do livro de Julia Kristeva, O estrangeiro de nós mesmos, lançado, no
Brasil, em 1994, Ed. Rocco.
5
Alusão ao título do clássico do cinema de 1956, dirigido por George Stevens e estrelado por
James Dean, Elizabeth Taylor e Rock Hudson.
12
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém [1963]. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2000.
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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
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Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.81-171.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
18
Desamparo e vulnerabilidades no laço social...
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem [1953]. In: ______. Escri-
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______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.496-533.
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Zahar Ed., 1992.
______. O seminário, livro 20: mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1982.
PAIS, Alfredo. Interdisciplina e transdisciplina na clínica dos transtornos do desen-
volvimento infantil. Clínica da Criança. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, n. 4, 1996,
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Psicanálise. São Paulo: ano 6, n. 6, Publicação das Reuniões Psicanalíticas, 2006,
p.32-34.
Recebido em 16/05/2014
Aceito em 03/07/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
19
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.20-31, jul. 2013/jun. 2014
TEXTOS
O DESEJO DO PSICANALISTA
FACE AO DESAMPARO
CONTEMPORÂNEO
Caterina Koltai1
1
Socióloga; Psicanalista; Professora aposentada da graduação e pós-graduação da PUCSP.
Autora de Política e Psicanálise: O Estrangeiro (Ed. Escuta 2000) e Totem e tabu: um mito
freudiano (Ed. Civilização Brasileira, 2010). E-mail: catykoltai@yahoo.com.br
20
O desejo do psicanalista...
único e singular. Assim como Freud, Lacan também atendeu até o final da
vida, e isso apesar de uma longa doença cujos sinais já vinham se fazendo
sentir há bastante tempo. Mais uma vez, como chamar isso senão desejo
de analista?
Mas esses foram os tempos áureos da psicanálise. Hoje em dia a psi-
canálise vem sendo contestada pelas neurociências e demais terapias cog-
nitivas, e parece ter perdido um pouco de seu antigo charme, fazendo com
que os psicanalistas se sintam, a meu ver, desnecessariamente acuados.
Não vejo razões para lamúrias, como tampouco me parece uma boa ideia
fazer coro à ladainha de que não existem mais verdadeiras demandas de
análise, de que cada vez mais nos deparamos com pacientes inanalisáveis,
com sujeitos sem gravidade e outros acusações do gênero, em que o réu é
sempre o analisando. Gostaria de poder aproveitar essa crise de modo mais
produtivo, questionando o que nós analistas temos a ver com o que está
acontecendo e qual a parte que nos cabe nessa “suposta” crise da psicaná-
lise. Como bem lembra Zygouris (2007), a luta pela sobrevivência costuma
ser fonte de criatividade, o que me faz esperar que talvez possamos apro-
veitar essa conjuntura, até certo ponto desfavorável para a psicanálise, e
seguir o exemplo de nossos ilustres antepassados: ousar inovar, visto que
o desejo do analista, entendido como um desejo de saber sobre a relação
de desconhecido e um poder curar de outra maneira, me parece continuar
presente. Confesso que faço parte dos que ainda veem a psicanálise, esse
discurso antitotalitário por excelência, como uma das grandes aventuras
possíveis em nosso mundo, à condição que ela resista a se deixar globalizar
falando uma única e só língua.
Dito isso, qual é meu desejo de psicanalista? Qual é a psicanálise que
desejo e posso praticar hoje em dia com os pacientes que me procuram, le-
vando em conta as mutações históricas do laço social e seus efeitos sobre a
economia psíquica do sujeito, e tendo em mente que, a meu ver, hoje como
ontem, a tarefa do analista continua sendo a de lidar com o desamparo?
Tema deste encontro, o desamparo remete a essa experiência inevitá-
vel e inerente à condição humana, a de se ver lançado no estrangeiro, numa
dependência absoluta ao outro e confrontado ao enigma de seu desejo.
Para designar o que é um verdadeiro ato de nascimento do sujeito, Freud
recorreu ao termo do alemão corrente Hilflosigkeit, sem transformá-lo em
conceito. Como salienta Lebovici (2012), Hilflosigkeit é, como na maioria
das vezes na língua de Freud, uma palavra do alemão cotidiano, compre-
ensível por todos, até mesmo por uma criança. Ela nos remete à questão
crucial da dor original, dor sem a qual o infans não seria levado a estabe-
lecer uma relação com o outro humano. Não é um conceito e, sim, uma
24
O desejo do psicanalista...
noção sobre a qual o criador da psicanálise fez repousar nada menos que
a causa do laço com o Outro, noção entendida aqui como aquilo que se
situa no registro do elementar e do fundamental. Em alemão, o sufixo keit,
cujo equivalente não existe, segundo a autora, em francês, e que eu saiba
nem em português, exprime um estado, o de ser desprovido (los) de ajuda
(hilflos). E é exatamente esse o estado do infans quando vem ao mundo em
sua total dependência para com seu primeiro Outro, tendo que fazer face à
opacidade de seu desejo.
A língua alemã entra em cheio no universo da infância, visto que a pala-
vra hilflos convoca imediatamente o universo dos contos em que as crianças
se perdem ou são abandonadas na floresta profunda. A definição freudiana
do desamparo prossegue em direção ao mal-estar que decorre daquilo que
o sujeito vive como sofrimento ou impossibilidade de relacionamento com o
outro e com o mundo, obrigando-o a defrontar-se com inúmeras situações
de vulnerabilidade que evidenciam o eterno conflito entre civilização e bar-
bárie, que atravessa tanto o processo individual quanto o civilizatório.
Esse conflito, estrutural e não meramente conjuntural, se torna mais
claro se pensarmos, como faz Zygouris (2010), com quem concordo, que
existem sintomas, sofrimentos, infelicidades que remetem diretamente às
competências daquilo que ela chama de espécie humana, entre as quais
ressalta a crueldade e a competência ao assassinato sem nenhuma ne-
cessidade vital para tanto. Essa competência não é apenas a transgressão
individual de um tabu, é um impulso assassino que, ao se propagar em cer-
tas circunstâncias por demais recorrentes, desemboca nos massacres em
massa. Por outro lado, temos a pulsão generosa da espécie, que pode ser
atribuída a Eros, do qual talvez o melhor exemplo seja o dom.
Barbárie e genocídio são, portanto, características humanas para as
quais Freud nunca deixou de nos alertar, tanto que, no prefácio de seu úl-
timo livro, Moisés e o monoteísmo ([1939] 2006), chama novamente nossa
atenção para o pacto firmado entre progresso e barbárie. Felizmente não
viveu o suficiente para conhecer o ápice dessa barbárie, os campos de ex-
termínio para os quais foram mandadas e morreram duas de suas irmãs.
Lacan (1967) será o primeiro a fazer uma análise freudiana da herança de
Auschwitz, esse acontecimento maior, individual e coletivo, posterior à me-
tapsicologia freudiana, que, segundo Zaltzmann (1999), marcou o desmoro-
namento da civilização em sua função de defesa do indivíduo contra o reino
da morte. A partir de então, esse desmoronamento passou a fazer parte da
herança da realidade humana.
Ao tirar importantes conclusões da subversão operada pelos campos
de extermínio, Lacan (1967) pode afirmar que, longe de serem um acidente
25
Caterina Koltai
2
Hannah Arendt. Direção: Margarethe Von Trotta. Produção: Heimatfilm, Amour Fou Luxem-
bourg, MACT Productions. Germany, Israel, Luxembourg, France. 2012. 113min. Dolby digital,
color black and White, Formato: DCP.
27
Caterina Koltai
REFERÊNCIAS
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30
O desejo do psicanalista...
31
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.32-36, jul. 2013/jun. 2014
Ana Costa2
Resumo: Este artigo trata dos efeitos que incidem sobre diferentes imigrações,
utilizando as proposições lacanianas que implicam a castração, a frustração e
a privação. Desdobra a relação entre trauma e injúria, como impossibilidade de
acolhida do imigrante. Situa a problematização da relação do sujeito com o lugar
de endereçamento da fala, como um dos elementos do luto impossível nessas
situações.
Palavras-chave: trauma, privação, luto, injúria.
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA; Pro-
fessora do PPG em Psicanálise da UERJ. Autora de diversos livros: A ficção de si mesmo
(Cia. de Freud, 1998); Corpo e Escrita (Relume-Dumará, 2001); Tatuagens e Marcas corporais
(Casa do Psicólogo, 2003); Sonhos (Jorge Zahar, 2003); Clinicando (APPOA, 2008). E-mail:
medeirosdacostaanamaria@gmail.com
32
Um luto impossível...
está inscrito no laço social, se ele não tem o suporte do semelhante para
testemunho? A função social é vivida no ritual, que permite uma primeira
separação. Assim, a separação é um trabalho doloroso, que não reconhece
imposições de fora, nem de uma atribuição de realidade à situação, precisa
de muitas elaborações. A outra face do luto se refere a viver a perda, reco-
nhecendo-a enquanto um registro da experiência. É a experiência solitária,
que diz respeito a cada um, mais além do compartilhado.
Assim, a reconstituição do endereçamento na fala é todo o trabalho
dessa clínica. Tem-se falado em testemunho. No entanto, pensar no teste-
munho significa pensar em como lidar com a antecipação na relação com
o pequeno outro. Testemunho significa reconhecer a perda, o que dimen-
siona a possibilidade de um luto. No entanto, penso que, para o imigrante
submetido a uma vivência de privação, coloca-se antes uma suspensão da
perda, tanto quanto uma suspensão do tempo. É como se o deslocamento
não houvesse acontecido e o sujeito ficasse no limbo. É nessa medida que
é necessário um trabalho preliminar ao luto, situando as condições de ende-
reçamento na entrada ao novo lugar, para que o sujeito, a posteriori, possa
testemunhar sobre seu desterro. Ou seja, para sair é preciso primeiro entrar.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Lecciones introductorias al psicoanálisis [1915-1917]. In: ______.
Obras completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1972.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
Recebido em 20/05/2014
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Cristian Giles
36
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.37-48, jul. 2013/jun. 2014
DO EXÍLIO AO ASILO:
TEXTOS
escutas clínicas1
Alexei Conte Indursky2
Barbara de Souza Conte3
Daniela Feijó4
Liege Didonet5
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais –
Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicólogo; Doutorando da Universidade Paris VII; Integrante do SIG/Intervenções Psicanalíti-
cas. E-mail: leco.indursky@globo.com
3
Psicanalista; Doutora em Psicologia pela Universidade Autônoma de Madrid; Coordenadora
do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: barbara.conte@globo.com
4
Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: danitrois@gmail.com
5
Psicanalista; Integrante do Projeto SIG/Intervenções Psicanalíticas. E-mail: liegedidonet@
yahoo.co.uk
37
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet
1. Introdução
38
Do exílio ao asilo: escutas clínicas
39
Alexei Conte Indursky, Barbara de Souza Conte, Daniela Feijó e Liege Didonet
6
Traduzido pelo autor.
40
Do exílio ao asilo: escutas clínicas
7
A narrativa segue, a partir daqui, na primeira pessoa, afim de salientar a situação clínica de
atendimento.
42
Do exílio ao asilo: escutas clínicas
te. Em lugar da renúncia ao objeto perdido (sua pátria, sua identidade social,
sua família) não estaríamos frente a um desinvestimento de todo objeto
possível? Nessa perspectiva, é notável constatar aquilo que Andre Green
(1993) nos adverte sobre a ação desobjetalizante de Thánatos “[...] longe
de se confundir com o luto, é o procedimento mais radical para se opor
ao trabalho de luto, central nesse processo de transformação característico
da função objetalizante” (Green, 1993, p.125). Em uma das últimas frases
endereçadas em sessão, Mas que sagrado trabalho!, Condolência parece
revelar essa impossibilidade de realizar o trabalho do luto (trauerarbeit), ao
falar de uma parte sagrada/profana enquistada dentro de si. Frente ao tra-
balho de falar de seu passado infantil, cuja cena primária se apresentaria
já sobrecarragada pelo real, Condolência prefere ir ao encontro desta parte
sagrada/profana de si mesma da qual não pode separar-se .
A contribuição mais distintiva da psicanálise à clínica do exílio apa-
rece aqui nessa dimensão do “encontro perdido” da repetição traumática:
o trauma não reside exatamente no episódio de violência em si, mas na
atualização de uma relação perdida com o outro, que todavia está sempre
ativa. Quando Condolência se entrega à repetição mortífera, ela revela um
material clínico importante para pensarmos, para além do aceite jurídico do
refugiado, o que está em jogo na prática do asilo, para que o sujeito possa
recomeçar novamente. A clínica do exílio nos demonstra que um trabalho
de elaboração psíquica é condição sine qua non para que o sujeito possa
realizar tal travessia.
REFERÊNCIAS
BENEDETTI, Mario. Las soledades de Babel. Buenos Aires: Editorial Sudamericana,
2000.
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rortu, 2001.
Recebido em 03/05/2014
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
48
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.49-57, jul. 2013/jun. 2014
TEXTOS
IMAGENS, APESAR
DA CATÁSTROFE1
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA e do Instituto
APPOA; autor, entre outros, de Cinema – o divã e a tela (Ed. Artes e Ofícios/2011); Sargento
Pimenta forever (Ed. Libretos/2004) e La clinique du especulaire dans l’ouvre de Machado de
Assis, (ed bilíngue, Ed. ALI/2002). E-mail: rpereira755@gmail.com
49
Robson de Freitas Pereira
3
“Basta-nos, portanto, nos contentarmos em dizer que a palavra cultura descreve a soma inte-
gral das realizações e disposições que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados
animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e a
regulamentação dos seus relacionamentos mútuos”. Freud, S. O Mal estar na cultura ([1929]
2010), p.87).
50
Imagens, apesar da catástrofe
52
Imagens, apesar da catástrofe
53
Robson de Freitas Pereira
4
Shoah. Direção: Claude Lanzmann, 1985.
54
Imagens, apesar da catástrofe
Fotos
55
Robson de Freitas Pereira
56
Imagens, apesar da catástrofe
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens, apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
_____. Cascas. In: Revista Serrote, n.13. Fundação Moreira Salles: Rio de Janeiro,
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FREUD, S. Mal-estar na civilização [1929]. Porto Alegre: LP&M, 2010.
LACAN, Jacques. Lituraterra [1971]. In. _____. Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2003, p.15-25.
Recebido 28/02/2014
Aceito 03/04/2014
Revisado por Otávio Augusto Winck Nunes
57
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.58-66, jul. 2013/jun. 2014
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).
E-mail: lucianapk@yahoo.com.br
58
É possível falar sobre essa tragédia?
relato de Primo Levi, uma pessoa que viveu uma situação desde o início
até o final, fazendo parte da situação, fazendo parte da cena. Por terceiro,
Agamben fala do auctor, cujo testemunho sempre apresenta uma vontade
de influir, um testemunho que pressupõe sempre algo.
Tempo e testemunho formam um par importante neste escrito e com
eles trabalho a minha fala a partir do que chamei de três tempos3 desse tes-
temunho – e chamei dessa forma, pois, em diferentes tempos, pude teste-
munhar a ocorrência e os desdobramentos desse incidente trágico. Quando
me refiro a tempo, não quero dizer de um espaço de tempo delimitado, com
hora ou dia; quero dizer, principalmente, os tempos da enunciação.
Até o momento, compartilhei nessa fala o que chamei de tempo de
agora, tempo esse de construção do texto e de fala, tempo que se renova a
cada instante, a cada nova notícia, a cada novo texto, a cada nova escuta.
Tempo esse que se renova, por fim, enquanto falo para vocês. E, partindo
da noção de Agamben, essa parece ser uma experiência de testemunho,
não um supertes, pois, embora fazendo parte da tragédia – quem de nós
não fez? – não estive como sobrevivente, nem como familiar.
No consultório, desde a semana subsequente ao incêndio, relatos de
pacientes fizeram de mim uma testemunha do desamparo causado por essa
situação, mesmo para aqueles que não estiveram diretamente envolvidos.
Partindo daí, construo um segundo tempo de testemunho, o qual denominei
de o tempo de escuta.
Escutei diversas pessoas que falavam, cada uma de sua maneira, so-
bre o ocorrido, cada qual com seu testemunho, cada qual com seu envolvi-
mento, sendo que, nessa escuta, há uma frase que percorreu algumas falas
e me chamou atenção:“Poderia ter sido eu”.
A tragédia esteve muito perto de todos. Foram 242 vítimas, que eram
jovens, que estavam em sua maioria na faculdade. Assim, em maior ou me-
nor grau, as pessoas conheciam as vítimas, ou porque eram familiares, ou
conhecidos de familiares, ou tão somente por trazerem à tona essa pergun-
ta compartilhada por tantos: “poderia ter sido eu”.
Essa morte antes era reservada aos mais velhos, contudo, a morte
dos semelhantes fez com que uma grande parcela da população jovem se
deparasse com sua própria morte. Freud ([1915]1996), no texto Reflexões
para os tempos de guerra e morte, destaca a irrepresentabilidade da morte
no inconsciente:
3
A divisão do texto em tempos de testemunho foi uma forma de estilo na escrita. Não faz refe-
rência a nenhum conceito.
60
É possível falar sobre essa tragédia?
61
Luciana Portella Kohlrausch
64
É possível falar sobre essa tragédia?
65
Luciana Portella Kohlrausch
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (homo
Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.
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Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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Janeiro: Imago, 1996.
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LIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000.
Recebido em 25/10/13
Aceito em 18/04/14
Revisado por Renata Almeida
66
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.67-77, jul. 2013/jun. 2014
A COLABORAÇÃO
DA PSICANÁLISE NA
TEXTOS CONSTRUÇÃO DO SERVIÇO
DE ACOLHIMENTO ÀS VITIMAS
DO INCÊNDIO NA BOATE KISS1
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do comitê ges-
tor do Acolhe Saúde, Serviço de Atenção Psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde de
Santa Maria. RS. E-mail: dassoler@terra.com.br
67
Volnei Antonio Dassoler
essa via que o analista deve se colocar com relação àquilo que se produz
no cotidiano humano.
Nessa direção, Koltai (2013) afirma que há uma responsabilidade da
psicanálise quando interpelada pelos fenômenos do seu entorno, não lhe
sendo permitido se abster de testemunhar e interpretar o que lhe parecer
acessível. Tal responsabilização se situaria tanto no nível da clínica, quanto
no nível do social, visto que nenhum sintoma se forma sem essa implicação,
à condição, ressalta ela, que diga respeito ao real, justamente, na conside-
ração dos eventos aos quais fomos convocados a partir do incêndio. Orien-
tados pela dimensão ética, nos é possível reconhecer a vigência do impos-
sível nos processos de trauma, dando alcance aos fundamentos freudianos
de subjetivação, tanto na intervenção direta junto ao sujeito em sofrimento
agudo, quanto no apoio aos profissionais que se ocuparam destas situa-
ções. Como exemplo, podemos citar as supervisões clínicas e as rodas de
conversas com os paramédicos, precisamente por operar a partir do sujeito
e do que ele pode saber fazer desse real que o toma e como se reporta a
esse Outro em suas diferentes representações.
Nesse sentido, no trabalho inicial com a transferência, os profissionais
eram orientados para que a mesma fosse instituída tendo o serviço como
referência, direção clínica fundada no pressuposto de que um serviço de
urgência pode ser demandado pelos usuários a qualquer momento do dia,
sem agendamentos e disponibilidade prévia. Posteriormente, constatando-
se a necessidade da continuidade de atendimento, a transferência era sin-
gularizada em um técnico de referência. Assim, mantínhamos duas verten-
tes de endereçamento e transferência: uma inicial, dirigida ao serviço e,
mais tarde, ao profissional.
Nas demandas de urgência, o sofrimento evidenciado pelos familia-
res e amigos apresentava-se de forma aguda, questionava-se a realidade
do acontecimento e a dor era descrita como insuportável, ameaçando a
própria sensação de existência. Na narrativa dos familiares percebia-se o
esvaziamento das referências responsáveis pela significação sobre a vida,
numa posição de desistência e de perda de ideais. Aliado a isso, julgavam-
se fracassados como pais, por não terem conseguido proteger seus filhos
dos perigos da vida.
A obra freudiana contempla a noção de trauma em vários momentos,
tendo como elemento permanente a interpretação do mesmo como amea-
ça à estabilidade e à integridade do eu, estado esse que decorre de uma
situação imprevisível e intensa, que impossibilita o sujeito de recorrer, pre-
viamente, a mecanismos de proteção. Essa concepção está presente no
texto Além do princípio do prazer, em que Freud ([1920]1995) vai acentuar
72
A colaboração da psicanálise...
de objeto, efeito que se instaura pelo suporte material do corpo, pela palavra
ou por outras formas de abordar o real.
Entendemos que essa abordagem constituiu-se numa importante cola-
boração teórica da psicanálise viável no âmbito da clínica ampliada para as
situações de crise e de urgência no campo da saúde mental e, como tal, foi
proposta aos profissionais da equipe a partir das supervisões clínicas.
O incêndio na boate Kiss desvelou de forma abrupta que a singularida-
de de cada sujeito é uma construção que traz impressa a marca da solidão
e da finitude, quando a impotência humana se escancara num ato a partir
do qual o enigma do desejo do Outro lança ao desespero aqueles que, sem
saber as razões, se veem escolhidos para uma experiência de vida e para
a qual não encontram nenhuma resposta tranquilizadora. Para os sobrevi-
ventes, a precariedade da existência humana foi apresentada junto à luta
pela própria sobrevivência. Para os profissionais que tiveram participação
no resgate imediato, a exposição maciça ao horror e a experiência de morte
em tão curto período de tempo foram componentes que abalaram a própria
convicção da técnica como recurso frente ao real. Numa roda de conversa
com a equipe do SAMU, um dos paramédicos envolvidos no resgate da-
quela madrugada afirmou que, embora se considerasse preparado para a
tragédia e para a morte, para “isso” ele não estava preparado. Na mesma
linha, muitos profissionais da imprensa que acompanharam durante dias
e semanas os desdobramentos afirmaram terem solicitado às respectivas
chefias o afastamento antecipado da cobertura, por não estarem em condi-
ções psicológicas de manter a continuidade do trabalho. Quanto aos pais,
a situação mostrou-se mais complexa e difícil, justamente, por colocar em
evidência a perda de um familiar, circunstância que acentua as dificuldades
quanto à elaboração desta perda.
Hoje, passado um ano daquela data, nos perguntam sobre a condição
psicológica das pessoas afetadas. De maneira geral, ao ouvirmos pais, so-
breviventes e trabalhadores, iremos perceber que a maioria deles está de
volta a sua rotina cotidiana (se quisermos considerar esse dado como cri-
tério diagnóstico para qualificar um processo de luto): trabalham, estudam,
viajam, namoram, buscam alternativas de lazer, como qualquer pessoa. En-
tretanto, se, por um lado, a vida segue e as exigências do cotidiano estão
sendo respeitadas, por outro lado, o enfrentamento dessa nova realidade
não se apresenta linear nem imune a sobressaltos. O choro, a tristeza, os
pesadelos e os questionamentos sobre o sentido da vida ainda são presen-
tes, e os tratamentos são marcados com inúmeros recomeços e desistên-
cias. Nesse sentido, o trabalho clínico não se apressa em forjar uma direção
de tratamento que ambicione a superação da experiência vivida, situando-a
76
A colaboração da psicanálise...
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Buenos Aires: Ed. Letra Viva Libros, 2009.
Recebido em 01/10/2013
Aceito em 10/06/2014
Revisado por Renata Almeida
77
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.78-88, jul. 2013/jun. 2014
Resumo: Este texto aborda a prática do apoio matricial em saúde mental como
uma clínica em extensão, que busca alterar a frequente exclusão do sujeito e
suas contingências de vida, que ocorrem em algumas intervenções na saúde
pública. Na saúde pública predomina o discurso do mestre, biomédico, que é
prescritivo e separa o sujeito doente do objeto doença. Já a perspectiva da
humanização, da saúde coletiva e o discurso do analista incentivam a produção
do saber dos sujeitos sobre si e dos profissionais sobre suas práticas e sobre
os usuários.
Palavras-chave: apoio matricial, clínica em extensão, discursos.
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto
APPOA; Doutora em Educação/UFRGS; Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde; Pre-
ceptora do PET Saúde. E-mail: rosilelaine@gmail.com
78
Apoio matricial, uma clínica em extensão
Para Foucault (2004), o sujeito não tem uma essência nem é intemporal,
ele se constitui nos discursos propostos pela sua cultura, seu grupo social e
sociedade. O processo de subjetivação, para Foucault, consiste em assumir
os discursos de uma época, que são ofertados como verdade e que passam
a constituir o sujeito, sejam discursos de modelos científicos ou encontrados
nas instituições ou nas práticas. Baseado neste argumento, Larrosa (2002)
refere que os sujeitos das práticas terapêuticas e pedagógicas não pode
ser analisado separado dessas práticas, as teorias e práticas aprendidas
produzem o objeto sobre o qual trabalham e também os sujeitos que delas
se utilizam. Dessa forma, pode-se pensar que a formação dos cursos da
saúde constituem os sujeitos profissionais da saúde, além de constituir o
seu objeto de trabalho. Os profissionais da saúde foram subjetivados em
sua formação predominantemente dentro do discurso biomédico, que, se-
gundo assinalam os autores da saúde coletiva Ceccim e Capazolo (2004),
atenta para os aspectos biológicos do adoecimento e para a objetividade,
em detrimento dos aspectos subjetivos e sociais, bem como ensina a tra-
balhar na especialização e de forma isolada. Reproduzem, nestas condi-
ções, as dicotomias cartesianas mente/corpo e sujeito/objeto, constitutivas
das disciplinas da ciência moderna, conforme Luz (1988). Separam o que
é considerado o objeto da saúde – os sintomas, a doença e o corpo –, do
sujeito que sofre e suas significações. Os profissionais também não são
sensibilizados em sua formação para a questão do enlace da linguagem que
articula o biológico, o psíquico e o social – já que o ser humano é constituído
no simbólico da cultura e da linguagem, e a escuta do sujeito propicia essa
amarração entre corpo, contexto de vida e subjetividade.
Muitas vezes há o entendimento de que o objeto de trabalho dos profis-
sionais da atenção primária à saúde é apenas a doença; os procedimentos
rotinizados de injeção, curativo, vacina; o pedido de exames; a prescrição
de medicação, etc. E o que foge ao padrão é considerado não fazer parte da
assistência, ou seja, tudo que aponta para a singularidade e para o sujeito.
E em vez de a clínica e de a escuta do sujeito dirigirem as ações em saúde,
não sempre, mas muitas vezes, as rotinas padronizadas é que as dirigem.
Assim, algumas vezes os profissionais encaminham de forma defensiva,
para se proteger do contato, bem como da angústia diante do real da clínica
e da sensação de impotência. Essa angústia fica amplificada porque os pro-
fissionais não receberam em sua formação ferramentas teóricas e clínicas
para trabalhar os aspectos subjetivos do adoecimento e são demandados
81
Elaine Rosner Silveira
3
Já no seminário seguinte De um discurso que não fosse de um semblante, Lacan ([1971]
2009) diz que o discurso do mestre não é o avesso do discurso do analista, mas, sim, o lugar
onde se demonstra a torção própria do discurso da psicanálise, sua inscrição dupla no direito e
no avesso sem que precise transpor uma borda.
84
Apoio matricial, uma clínica em extensão
rência. Essa é uma posição ética que a psicanálise pode auxiliar a sustentar
na saúde pública: a clínica do caso a caso, e que não se pauta tanto por
transmitir um saber, mas, sim, por um modo de proceder e de conhecer que
preserva sempre o “não saber” sobre os casos, que leva em conta o pedido
e a trajetória do sujeito nos serviços, bem como a forma como se dá seu
encontro com os profissionais, utilizando essas informações para articular
seu projeto terapêutico singular.
O apoio matricial também possibilita espaço para a escuta dos pro-
fissionais e das equipes, que às vezes querem falar sobre as dificuldades
nos processos de trabalho. Essa escuta pode gerar ações do matriciador
junto ao gestor, por exemplo, apontando a importância de esclarecer aos
profissionais informações que até então não estavam explicitadas, o que es-
tava amplificando as angústias. Pois, como bem destacou Onocko Campos
(2012), é importante que a gestão leve em conta as questões trazidas pelas
equipes para nortear suas ações, assim como na clínica se considera o que
interroga aquele que vem falar para dar direção ao trabalho. Também o fato
de conviver com injustiças, desigualdade, violência e miséria tem efeitos
sobre os profissionais que estão em permanente exposição ao sofrimento
e à dificuldade de simbolização que a pobreza extrema provoca (Campos,
2012). Em vez da exclusão do que há de singular em cada um – tanto do
lado do profissional como do usuário – que o discurso do mestre propicia, o
apoio matricial com viés psicanalítico incentiva a entrada dos profissionais
e dos usuários no discurso histérico (Rabinovich, 1979), incentivando-os a
falar para que produzam seus próprios significantes e saber a respeito de
sua experiência. Isso propicia um norteamento do trabalho a partir do reco-
nhecimento da falta, auxiliando para que esta não paralise os profissionais,
mas, sim, os impulsione.
Observa-se que os profissionais da rede básica, quando percebem os
efeitos produtivos de trabalhar escutando as subjetividades e serem eles
próprios escutados, costumam ser muito receptivos e pedirem novamente
este suporte do apoio matricial. Se, na implantação do apoio matricial, os
profissionais traziam informações mínimas sobre cada caso, com o passar
do tempo trazem informações mais detalhadas, perdem o receio das mani-
festações psíquicas, que passam a ser melhor acolhidas e não percebidas
como uma coleção de sintomas sem sentido, mas, sim, como indicadores
da condição existencial daquele sujeito, bem como amplia-se a interlocução
dentro das equipes sobre os casos. Produzem-se, assim, novas possibili-
dades de intervenções entre os profissionais da atenção primária quanto a
suas práticas, que passam a ampliar a escuta e o olhar sobre outros aspec-
tos do adoecimento, que não só o que motivou a consulta.
86
Apoio matricial, uma clínica em extensão
REFERÊNCIAS
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87
Elaine Rosner Silveira
Recebido em 15/02/2014
Aceito em 02/05/2014
Revisado por Clarice Sampaio Roberto
88
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.89-99, jul. 2013/jun. 2014
A CLÍNICA E AS PRÁTICAS
TEXTOS DE CUIDADO NA REDE DE
ATENÇÃO À INFÂNCIA
E ADOLESCÊNCIA1
Ieda Prates da Silva2
Tatiane Reis Vianna3
1
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
2
Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA) e Membro do
Instituto APPOA; Supervisora clínico-institucional de equipes de saúde mental da infância e
adolescência. E-mail: iedaps@uol.com.br
3
Psicóloga;Psicanalista;Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre(APPOA)e Mem-
bro do Instituto APPOA; Integrante da equipe do CIAPS; Mestre em Psicologia Social e Institu-
cional (UFRGS).E-mail: tativianna@cpovo.net
89
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna
91
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna
93
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna
não queria vê-la, inicia uma reaproximação. A mãe, apesar de desejar esta
aproximação, mostrava dificuldades subjetivas de sustentá-la, oscilando
entre sentir-se culpada ou culpabilizar a filha e as outras pessoas e pro-
fissionais que procuravam exercer alguma função de cuidado em relação
à mesma. Teve idas e vindas em relação à filha e às equipes, tanto da in-
ternação como do CAPSi, o qual, a partir daí, intensificou os atendimentos
psicanalíticos. Patrícia pôde ir trabalhando sua história de vida e sua con-
turbada relação com a mãe. Em alguns momentos, inclusive, com sessões
conjuntas com a mãe (que passa a vir mais frequentemente do interior do
estado).
Pois bem, esta reaproximação familiar, sustentada por um trabalho clí-
nico e em rede, teve um efeito interessante em Patrícia, que, ao lado da ima-
gem de mãe poderosa e aniquiladora presente nas suas fantasias e aluci-
nações, começou a deparar-se com uma mãe com dificuldades emocionais,
frágil e sofrida como ela. A relação entre elas pôde ir sendo ressignificada,
graças ao tratamento e à função de mediação exercida pelos profissionais
dos serviços de saúde, podendo ressituar a fala materna para Patrícia e
vice-versa.
Queremos ressaltar a importância de se trabalhar com a família, aliada
à escuta do adolescente. Trata-se de tentar produzir aberturas no discurso
familiar, introduzindo o lugar terceiro como possibilitador de deslocamentos
e desvelamentos neste discurso. Assim, se haverá entrevistas com a mãe
ou o pai, sessões conjuntas ou não; se será o mesmo terapeuta que atende-
rá o adolescente e escutarà a família; se haverá grupo de pais ou sessões
familiares, estas diferentes intervenções serão pensadas caso a caso, de
acordo com o contexto, a história familiar e o quadro clínico do paciente.
São decisões clínicas, que não respondem a um protocolo, e, sim, ao man-
dato clínico.
Porém, em algumas situações não há, por mais que se tente , pos-
sibilidade de se engatar algo com familiar nenhum. E é o que acontece,
principalmente, com crianças e adolescentes em situação de acolhimento
institucional. Reconhecer outras possibilidades de estruturação do sujeito,
que estão para além dos vínculos familiares, é extremamente necessário.
Para isto, precisamos superar a idealização da família, como se fosse a
única possibilidade para a estruturação de uma criança ou adolescente. Não
que seja indiferente esta ausência. Mas é preciso que se diga: tal ausência
não configura um destino predeterminado, prefixado. O indispensável, e a
psicanálise nos ensina isto, é que esta criança se encontre com figuras que
se encarreguem das funções primordiais: função materna e paterna. E, em
alguns casos, a criança ou o adolescente só vai se encontrar com agentes
95
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna
A Lugar Nenhum
Entendemos que esta passagem entre ter que marcar seu próprio cor-
po com cortes e poder produzir, se inscrever, através da pintura, da fala e do
texto escrito, evidencia mudanças de posições subjetivas importantes em
Patrícia. Inicialmente, após uma situação de fragilização extrema dos seus
laços simbólicos, que o adolescer e a ruptura familiar provocaram, via-se
um sujeito completamente entregue ao Outro e que, sem poder dispor dos
significantes, das marcas relativas à sua filiação para delimitar seu lugar no
mundo, era levado a marcar no real do seu próprio corpo esta diferença. Aos
poucos, vai conseguindo retomar alguns fios perdidos e o seu processo de
adolescer vai podendo ser metaforizado.
Em relação ao texto escrito por ela, chamava atenção o fato de que
Patrícia, neste período, utilizava-se de palavras e frases vindas de outros
poemas, fazendo, então, uma espécie de bricolagem para construir seu pró-
prio texto, o que nos mostra o quanto as palavras vindas do Outro (“tesouro
do significante”, como Lacan o define), são constituintes desta travessia. A
riqueza do seu texto revela, justamente, novas possibilidades simbólicas.
97
Ieda Prates da Silva e Tatiane Reis Vianna
Saudade
98
A clínica e as práticas de cuidado...
Corações entrelaçados,
Triste ausência Partilhada...
REFERÊNCIAS
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1974.
Recebido em 11/11/2013
Aceito em 20/02/2014
Revisado por Maria Ângela Bulhões
99
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.100-107, jul. 2013/jun. 2014
“SECRETÁRIOS DO ALIENADO”?1
TEXTOS
A Psicose e a Instituição Psicanalítica 2
Siloé Rey3
Liz Nunes Ramos4
1
Lacan, J. O seminário, livro 3, as psicoses. 2. ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 235.
2
Trabalho apresentado na III Jornada do Instituto APPOA: Psicanálise e Intervenções Sociais
– Desamparo e Vulnerabilidades, Porto Alegre, agosto de 2013.
3
Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA; Especialista em Psicologia Clínica
CFP; Mestre em Psicologia Social e da Personalidade PUC-RS. E-mail: siloe.rey@gmail.com
4
Psicanalista; Membro da APPOA e do Instituto APPOA. E-mail: liz-ramos@uol.com.br
100
“Secretários do Alienado”?...
o critério
“atitudes estranhas”
não dá
para condenar pessoas
criaturas
com entranhas
(Paulo Leminski5)
S
“ ecretários do alienado” é a expressão que Lacan (1992) extrai da psi-
quiatria de seu tempo e que aponta a impotência dos alienistas. “Não
só passaremos por seus secretários, mas tomaremos ao pé da letra o que
ele nos conta” (p.235) – responde Lacan, propondo suas torções, e, com
sua ironia de sempre: “o que até aqui foi considerado coisa a ser evitada”
(p.235). Entretanto, isso não nos diminui a dificuldade, como bem sabemos.
O apego do psicótico ao seu delírio é questão de sobrevivência, o delírio é
o que pode dizer quem ele é. A forma particular de articular a linguagem,
a relação bizarra com o código, a condição estrangeira no laço social e a
angústia siderante situam as condições da escuta. Ao desejo do analista,
acrescenta-se a experiência do desamparo, no mais das vezes.
Então, é no deslizamento por esses dois fios, o do desamparo produ-
zido pela condição psicótica no analisante e o do desamparo que incide na
subjetividade do analista, na condição de sustentação do desejo do analista,
que vai se produzindo a condição transferencial. É aí que a prática clínica
na instituição faz a diferença, como condição de sustentação desta escu-
ta, a partir da inscrição institucional do caso em diferentes âmbitos onde o
analista testemunha e elabora sua posição. A presença do paciente psicó-
tico mobiliza e interroga a instituição, confrontada com a expressão de um
inconsciente não recalcado. Os diversos agentes que compõem o cotidiano
institucional, como as secretárias ou os seguranças da instituição, fazem
questão ao paciente, estendendo à instituição seus sentimentos paranoicos
e suas confusões delirantes. Esses agentes serão alvo da erotomania que
marca o laço do psicótico com seus objetos, tendo que suportar a injúria de-
5
Leminsky, P. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
6
Lacan, J. O seminário, livro 3: as psicoses. 2. ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.39.
101
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos
102
“Secretários do Alienado”?...
103
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos
uma dupla função: como retorno, desde o real, do forcluído, quando a pa-
lavra irrompe a partir do investimento de traços de pessoas ou de objetos;
ou como meio de retomar o curso de sua ação como representação, como
meio de dar um curso a sua vida psíquica, dispensando o trabalho de sim-
bolizar a pulsão.
A partir de nossa experiência no Instituto da APPOA, o que tem se
mostrado importante do ponto de vista da direção do tratamento do paranoi-
co em uma instituição psicanalítica é a função de inscrição institucional. O
paciente, em sua manifestação de interpelação ao Outro, quando se identi-
fica o caráter imperativo do delírio, se precipita na relação aos outros institu-
cionais através da injúria, em que os xingamentos dão vazão a verdadeiras
descargas pulsionais. Em nossa instituição, os agentes da secretaria, os
guardas e os que cuidam da casa estão incluídos no tratamento, já que são
eles que recebem o primeiro impacto da violência da loucura. A circulação
na casa, marcada pelos vários estados alterados nos quais os pacientes
chegam ao atendimento, amiúde apresenta uma agitação impregnada de
psicotrópicos. O manejo das ligações telefônicas, seu ritmo, sua violência
ou seu extremo desamparo, são todas situações que precisam de inscrição,
trabalho ao qual o analista terá que se dedicar, ao fazer-se responsável
pelo endereçamento de todas as situações que envolvem o paciente na
instituição.
O analista, na especificidade de sua prática na instituição, deverá ocu-
par-se da escuta do que a psicose afeta nos outros institucionais, ao mesmo
tempo em que lhes traduz a conduta do psicótico. Assim pode-se suportar
a repetição que lhe é necessária como tentativa de representação do que
o expulsa do laço com o Outro, e de suas tentativas de inscrever presença
e ausência na relação ao lugar que o acolhe. Ou seja, os elementos não
simbolizados da demanda do Outro irrompem também na instituição. Nes-
te sentido é a interpretação dessa forma de relação transferencial com a
instituição que o paranoico apresenta, que pode possibilitar que esses ele-
mentos sejam incluídos no tratamento. Uma vez que não lhe seja possível
endereçar estas injúrias ao analista, há neste endereçamento aos outros
institucionais uma função importante da mediação que a instituição pode
representar, intrínseca ao tratamento, importante suporte para a construção
de lugares de endereçamento ao Outro, para o exercício da função sig-
nificante, que será retomada e interpretada na transferência analítica pro-
priamente dita. O desejo do analista, neste caso, está comprometido com
o resgate, para dentro do laço discursivo em sessão, dos elementos que
tendem a ser assim forcluídos, incluindo-se o analista como lugar de ende-
reçamento desta injúria, da qual o analisante pretende poupá-lo.
105
Siloé Rey e Liz Nunes Ramos
REFERÊNCIAS
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“Secretários do Alienado”?...
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Recebido em 24/05/2014
Aceito em 15/10/2014
Revisado por Cristian Giles
107
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, n. 45-46, p.108-121, jul. 2013/jun. 2014
CORPO E VIOLÊNCIA
TEXTOS ESTRUTURAL DAS PSICOSES:
o suicídio do outro
em Louis Althusser1
Manoel Madeira2
Resumo: Este artigo se baseia na obra de Louis Althusser, L’avenir dure long-
temps, e em alguns comentários sobre ela, para ilustrar como a violência logo
do desencadeamento psicótico pode ser pensada de forma estrutural, nota-
damente, como suicídio do outro. Para tanto, trabalhamos sobre a noção de
espaço-corpo nas psicoses. O texto se finda por um breve comentário sobre as
internações psiquiátricas.
Palavras-chave: psicose, Louis Althusser, corpo, estrutura, violência.
1
Este texto nasce de um pequeno artigo outrora publicado em revista de grande público sobre
o preestabelecido tema a violência no surto psicótico. Pretendo retomar aqui propostas do
primeiro escrito, mantendo seu estilo e algumas generalidades. Trata-se, porém, de reescrita
quase integral do artigo, em que se desenvolvem algumas questões, adaptando-o à Revista
da APPOA.
2
Professor-�������������������������������������������������������������������������������������
adjunto de ensino e pesquisa na
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Université Paris-Diderot, Paris VII; Psicólogo-clíni-
co no Centro Médico-Psicopedagógico de Montgeron, França; Psicólogo, Mestre em Antropo-
logia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais – (EHESS-Paris); Mestre e doutorando
em Psicanálise e Psicopatologia pela Université Paris-Diderot Paris VII.
E-mail: mlucemadeira@gmail.com
108
Corpo e violência estrutural das psicoses...
3
Todas as traduções do texto foram realizadas livremente pelo autor.
109
Manoel Madeira
4
Referência ao texto de Michel Foucault, La folie, l’absence d’œuvre, que tem como pano de
fundo a obra de Antonin Artaud. Embora seja condizente com a depreciação da obra de Althus-
ser depois do assassinato, ressaltamos nosso desacordo em relação a esse texto que aponta
“a loucura como linguagem excluída” (1964, p.445).
5
Referência à Histoire de la folie à l’âge classique, de Michel Foucault.
6
Nota-se que em francês, disparu (desaparecido), também é sinônimo de morto, falecido.
111
Manoel Madeira
7
Freud sustenta a expressão “mundo externo”, desde a Interpretação dos sonhos, em 1900,
até às Novas conferências, em 1933. Indico Interprétation des rêves, 1900, p.655, et Nouvelle
leçons d’introduction à la psychanalyse, p.140.
114
Corpo e violência estrutural das psicoses...
turbação, até os vinte e sete. “O que me incomoda é que haja corpos, e pior
ainda, sexos”, afirma ele (1992, p.55).
Althusser testemunha seu pânico em brigar fisicamente, e em toda si-
tuação que a integridade do seu corpo era posta à prova. Afirmava que
uma de suas grandes angústias era pensar seu corpo “entamé” – palavra
curiosa pois, em francês, quer dizer cortado, porém, com maior frequência,
iniciado, começado. Ele, assim, se experiencia como alguém que nunca
poderia endereçar violência física qualquer, justamente por temer que o em-
bate viesse entamer seu corpo. Pommier (1998) propõe a hipótese de que
Althusser criou o fantasma de um pai monstruosamente violento, e se situou
invariavelmente no lugar da vítima dele. “Ele se encontra, desde sempre,
na incapacidade de bater um outro corpo, o seu existindo apenas para ser
castigado” (1998, p.45). Ou seja, no lugar da vítima e no lugar do morto,
podemos supor o “embaralhar” entre Althusser e Hélène, quando esta se
torna o objeto de seu crime.
Até o fim da obra, Althusser sustenta a ideia de que sua tendência à
“autodestruição” provocara seu crime, reiterando Hélène como parte de sua
existência:
Eu sempre estive em luto de mim mesmo. [...] E por prova palpável
de não existir, eu desejava desesperadamente destruir todas as
provas da minha existência, não somente Hélène, a maior delas,
mas também as provas secundárias, minha obra, meu analista e a
mim mesmo (1992, p.315, grifos nossos).
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Recebido em 08/04/2014
Aceito em 05/06/2014
Revisado por Gláucia Escalier Braga
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