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Sabedoria e Mágica Do Extremo PDF
Sabedoria e Mágica Do Extremo PDF
Sinopse
I. O Sonho de Perfeição
a) O Sonho Utópico – Suspensão da Consciência – Absurdidade – Revolta contra a Agonia
da Existência
b) A História do Sonho Ativista – Transfiguração – A Contra-imagem da Realidade – A
Contra-imagem Marxista – Sonho do Novo Humanismo e Realidade – Perturbação da
Mente – A “Doença da mente” (Morbus animi) de Cícero
c) O Autoentendimento do Ativista – O Sonhador como Mágico – A Mágica do Extremo
II. Meditação
a) Estruturas da Consciência – Intencionalidade Humana – Mistério Divino – Equilíbrio
b) Sonho e Extremo (Shakespeare)
c) Mágica da Palavra (Górgias) – Intoxicação – Os “mestres poderosos” (dynastes megas)
d) A Visão Amorosa do Amor (Platão) – Nova Situação Analítica – Entorpecido pelos
Químicos e pelo Discurso – Doença e Verdade – A Narrativa Salvadora – A Verdade da
Discórdia (Karl Kraus)
e) A Marionete dos Deuses – As Cordas Divinas na Discórdia – Verdade da Visão e Verdade
Noética – Discórdia Divina e Discórdia do Homem
f) A Visão Satanista – Hegel – Baudelaire
g) A Visão de Platão – Presente e Passado – O Processo Histórico – Distância Reflexiva –
Identidade
h) Além do Ser – Parousia do Além – O Fluxo da Presença Divina – A Presença Permanente
– Modos do Tempo – Dinâmica da Visão e Dinâmica do Fluxo – O Processo Cognitivo
Interno
i) O Complexo Meditativo – O Complexo da Deformação
j) A Deformação Eleática
k) O Centro Sofístico de Deformação – Abandono – Anoia – Componentes Noético e
Pneumático da Visão – Tipos Helênicos e Judaico-Cristãos
l) Visão Noética de Platão – A Vertente Órfica – A Vertente Épica – O Nous e o Terceiro
Deus – O Significado da Imortalidade – O Paradoxo: A Presença do Além Não-presente
– A Estrutura da Visão de Platão – Revelação-Luta-Salvação
m) A Visão Pneumática – Imortalidade Intermediária – Além Intermediário – O Filho de
Deus – O Deus dos Patriarcas – O Pai na Visão Pneumática – Presença Pleromática –
Pneuma e Nous – A Metaxy Pleromática do Cristo – Definição de Calcedônia – A Luta
do Pneumata – Transfiguração Pleromática
III. Conclusão
a) Verdade-Imaginação-Linguagem – Luminosidade e Deformação – Tipos de Meditação –
Nietzsche-Descartes- Meditação Anamnética
Não mais do que essas duas sentenças são necessárias para introduzir o assunto da
imaginação e simbolização ativista, dos seus efeitos violentos e destrutivos, como o
assunto tratado na presente leitura. A corrupção intelectual e linguística da era,
introduzindo implacavelmente sua atrocidade na vida de todos, é matéria de
conhecimento comum. Ademais, as duas sentenças, refletindo na linguagem diária numa
situação habitual, não apenas introduz a corrupção ativista como o objeto a ser explorado
analiticamente; elas também apresentam, pela sua própria formulação, um exemplo da
corrupção em si. Pois eles não podiam ser, como deveriam ter sido, ser formulados
impecavelmente na linguagem do filósofo da realidade, que em nosso tempo é incomum;
se eles conseguissem alcançar seu objetivo de estabelecer um consenso preliminar sobre
o tópico sem explicações demoradas, eles tiveram que fazer uma concessão à linguagem
do ativista, que é comum. Usando o termo utópico em seu significado ativista, como parte
da linguagem diária, eles nos colocaram dentro da prisão do ativista. Como consequência,
não temos que olhar para longe do ponto a qual a análise deve começar. Temos que
quebrar o cárcere, e restaurar a liberdade do filósofo da razão, esclarecendo o significado
do termo Utopia.
I
Sua ruptura, não com a realidade, mas com seu sentido, força o ativista a elaborar
uma história onírica que irá dotar seu projeto com a aparência de ação no mundo real. Ele
é forçado em sua história porque uma realidade cujo sentido ele rejeita não irá proferir a
aparência que ele precisa. Nenhuma lista, por mais longa que seja, de sofrimentos reais,
talvez acompanhada por uma lista de propostas realísticas para o alívio deles, irá irradiar
por si mesma a promessa de transfiguração. Karl Marx, um conhecedor perspicaz de sua
própria história onírica, vai ainda mais longe como ao sugerir que as queixas e propostas
no nível realista não só não contém essa promessa, mas pode até piorar as imperfeições
que elas deviam melhorar. Ele insiste energicamente a transferência dos meios de
produção para a propriedade pública, i.e., o “comunismo” do marxismo vulgar de hoje,
irá agravar exponencialmente os males do capitalismo na forma de propriedades privadas
a menos que sob a influência de outras causas que não as reformas econômicas e legais,
a consciência da existência humana é transfigurada. A ação prevista pela história onírica
deve parecer, portanto, afetar o centro da existência humana de tal maneira que, do centro
transformado, a estrutura do mundo renascerá perfeita. Mas novamente, a mera promessa
de tal mudança aparecerá fútil ao homem comum com seu conhecimento da realidade. Se
o ativista quer evitar o destino de ser ignorado como uma pessoa tola, ele deve tentar
obscurecer nossa imagem da realidade por uma contra-imagem que fornecerá uma base
plausível para a ação que ele exige. Para servir ao seu propósito deve cumprir duas
condições: deve cobrir a estrutura da realidade com abrangência suficiente para parecer,
pelo padrão vigente na época, discutível como uma imagem verdadeira; e deve ser
analiticamente obscura o suficiente para não revelar seu caráter de história onírica à
primeira vista.
Uma vez que o sonho é desvinculado de seu contexto, seu conflito com a realidade
é praticamente uma questão auto-declarada. As três fases derivam seus respectivos
significados da lógica de transfiguração. Não há nem uma pré-história de perfeição, nem
uma estrutura social pré-histórica, a menos que a perfeição da humanidade do homem
realmente ocorra. Mas isso não ocorreu realmente; sua ocorrência é uma expectativa no
sonho ativista. A expectativa de sua ocorrência real, porém, é sustentada por nada menos
que a fórmula vazia de um “ser” que determina “consciência” e a asserção igualmente
vazia que uma humanidade pecadora pode ser libertada da sua libido dominandi através
ditadura revolucionária dos sonhadores libidinosos que fingem ser a vanguarda de um
“proletariado” sem pecado. Em resumo, não há nada na realidade para sustentar essa
expectativa.
Embora a consciência inquieta do morbus animi nem sempre possa ser evitada,
nossa psiquiatria contemporânea ainda está longe de seu reconhecimento profissional e
mais ainda do desenvolvimento de métodos terapêuticos. Pelo menos, nenhum caso
chegou ao meu conhecimento no qual um psicólogo teve que recorrer à psicopatologia
clássica e estóica como base sobre a qual construir uma compreensão e terapia das
variedades contemporâneas de doença mental. Para uma consciência mais séria dos
problemas apresentados pelas imagens oníricas, reivindicadas por seus autores como
verdadeiras imagens da realidade, o crédito deve ir para certos novelistas e ensaístas.
Robert Musil e Heimito von Doderer, por exemplo, desenvolveram o conceito de Segunda
Realidade para denotar a construção peculiar que tencionam eclipsar a primeira realidade
na qual vivemos. Além disso, Doderer diagnosticou a Apperzeptionsverweigerung, a
recusa em perceber a realidade, como o núcleo patológico na estrutura da consciência que
permite ao sonhador ignorar o argumento racional contra sua construção. Com o
desenvolvimento da recusa em perceber como um termo diagnóstico, Doderer
praticamente recuperou a aspernatio rationis de Cícero. Nesse contexto, finalmente, deve
ser mencionado a expressão consciência seletiva. Infelizmente, não conheço seu autor;
apenas percebo que está sendo crescentemente usada para sugerir o núcleo patológico de
um hábito mental que frequentemente é indistinguível da simples desonestidade
intelectual.
Para determinar esse ponto, é preciso primeiro reconhecer que o ativista sonhador
e o filósofo não discordam da existência das duas imagens da realidade. Como seres
humanos, ambos são igualmente conscientes de viverem na tensão entre o sonho e a
realidade. O filósofo, na sua Primeira Realidade, sonha tanto quanto o ativista, se não
mais; e o ativista está cônscio de estar sonhando sua Segunda Realidade, e agindo no seu
sonho, dentro da Primeira Realidade. Não haveria sentido para um programa ativista de
ação transfiguradora, a menos que o sonhador aceitasse a realidade que deseja transfigurar
como real, pelo menos por enquanto sendo; ele está bem consciente da diferença entre a
Primeira e Segunda Realidade. Em relação a tensão entre sonho e realidade, a consciência
do ativista não difere da do filósofo. Uma vez que o acordo seja reconhecido, será possível
identificar o ponto de divergência como a fé do ativista em seu poder de transfigurar a
estrutura da realidade. Quando ele age, ele espera que tal ação forme a primeira realidade
em conformidade com a Segunda Realidade do seu sonho. O sonhador ativista deve
conhecer a ação artimanha, como distinta da ação comum, que terá o resultado
extraordinário de transfigurar a natureza das coisas. Ele deve imaginar a si mesmo como
um mágico.
O caráter de mágico não é forçado aos ativistas por pensadores que não
compartilham do seu sonho. O simbolismo pertence à linguagem de auto-interpretação
do ativista. As melhores mentes dentre eles estão muito orgulhosas do caráter mágico de
suas empreitadas e de suas posições como feiticeiros. Hegel fala do seu Sistema de Lógica
como a tentativa de encontrar as “palavras mágicas” (Zauberworte) e a “força mágica”
(Zauberkraft) que determinarão o curso futuro da história pela elevação da “consciência”
ao seu estado de perfeição. Marx, que entendeu muito bem o componente mágico do
Sistema de Hegel, retoma de Goethe o símbolo alquimista do Super-Homem quando
deseja caracterizar a mudança na natureza do homem a ser alcançada pela ação
revolucionária. E finalmente Nietzsche, usando o mesmo símbolo, é orgulhosamente
explícito sobre a força que vai garantir o advento do Super-Homem. Numa famosa
passagem de Vontade de Poder (749), ele escreve: “O fascínio que combate por nós, o
olho de Vênus, que torna cegos e cativa mesmo os nossos adversários, é a mágica do
extremo, a sedução exercida por tudo que é mais extremo: nós, imoralistas, somos os mais
extremistas.” No mesmo aforismo ele permite que sua perspicácia psicológica revele uma
camada mais profunda da consciência do mágico, quando ele nega a relevância da
verdade como a fonte do encanto. A verdade pode estar em sua visão, ele continua,
“também não temos necessidade dela, chegaríamos ao poder e triunfaríamos mesmo sem
a verdade”. O poder do extremo não deriva de uma fonte ulterior, está contido em si
mesmo. O extremo do mágico é a causa sui da realidade, descartando sem rodeios a
Primeira Realidade na qual vivemos, estabelecendo vitoriosamente a segunda realidade
como uma irrupção para além da verdade. Não sei de nenhum outro pensador que tenha
traçado o sonho do mágico de forma tão inequívoca para sua origem na paixão ativista de
transformar a verdade da ordem divinamente criada no terror da inverdade, se não anti-
verdade, criada humanamente.
A mágica, é claro, não funciona – nem aquela dos pensadores do século XIX que
expandiram a mágica progressista da Razão Iluminada e a mágica estética dos
Românticos na mágica intelectual do Sistema (de Hegel), a mágica política do Socialismo
Científico, e a mágica psicológica do Extremo; nem a de seus sucessores, os assassinos
do século XX, que através de suas ações revelaram o terror no âmago do sonho mágico.
Nem a despesa espiritual e intelectual na elaboração dos sonhos, nem a despesa de sangue
e dinheiro nas tentativas de realiza-los transfiguraram a realidade. As ondas de atos
transfiguradores, as guerras mundiais para acabar com a guerra, os regimes totalitários, e
as liberações famosas, tão obviamente não aboliram as misérias de imperfeição que ondas
de desilusão começaram a surgir entre os vários aprendizes de feiticeiros. Mas todos nós
sabemos mais que nos preocupamos em saber sobre a política mágica e suas
consequências. Não quero prolongar o óbvio.
A tensão entre sonho e realidade pode ser experienciada por todos sob a pressão de
paixões; a experiência não é privilégio de mentes perturbadas que acreditam possuir o
poder da transfiguração. Uma primeira compreensão da “mágica do extremo” pode ser
obtida confrontando a auto-interpretação dos mágicos com a auto-análise conduzida por
uma mente equilibrada, pelo mestre do sonho e da realidade, de suas tensões, e da
linguagem de seus conflitos – por Shakespeare.
Se alguém deve duvidar da definição de ser aplicável para um alcance mais amplo
do que os distúrbios causados por paixão erótica, pode fazer o experimento de citar estas
linhas para um ativista sonhador e então escutando sua rejeição apaixonada da ideia de
que o espírito e a inteligência gasta pelo ativista nos seus sonhos é um desperdício na terra
da vergonha, indo sob nomes como volúpia de poder, desejo de auto-engrandecimento, e
libido dominandi. O ponto crucial foi atingido. Se o experimento deve deixá-lo ainda com
alguma dúvida sobre a validade da definição, pode então olhar para a lista de adjetivos
que Shakespeare permite seguir nas linhas de abertura. A lista caracteriza com perfeição
as atividades de um ministério totalitário de propaganda:
Dos adjetivos que distanciaram sua consciência da sua própria loucura, o auto-
observador avançou para a rima perceptiva do “sonho” com o “extremo”. “Loucura” e
“razão” não são simplesmente tipos alternativos de existência, nem necessariamente se
sucederão um ao outro no decorrer da vida de um homem; ambos estão sempre presentes
na estrutura da consciência. A tentação do “extremo” sempre irá colocar em risco o
equilíbrio, e o desequilíbrio nunca será inconsciente o bastante de sua loucura. A alegria
proposta se transformará em aflição, quando o sonhador perceber que a dinâmica de sua
alegria dependerá de atingir o extremo. As tensões estão vivas e ameaçam o equilíbrio
com a deformação. No par de versos conclusivo Shakespeare resume sua auto-análise:
“Tudo isso todo mundo bem sabe; e contudo, ninguém bem sabe
Como evitar o céu que conduz os homens a esse inferno”
A visão amorosa do amor faz mais do que oferecer uma fórmula alternativa
indiferentemente ao símbolo compacto do kosmos-akosmia no Elogio. A contra-
formulação de Platão cria uma nova situação analítica. Pois a visão da philia cósmica
permite a Platão compreender a ordem da alma como a busca amorosa da verdade em
resposta ao puxão divino do Além; o movimento e contra-movimento humano-divino do
amor é a fonte do conhecimento do homem acerca da sua existência na verdade; e uma
vez que é a fonte da verdade, tem que se tornar o centro noético do qual o filósofo pode
explorar as ambiguidades da força contrária de deformação que tinha sido compactada
concisamente pelo retórico no símbolo impressionante dos mestres poderosos, dynastes
megas.
Mas a questão do porquê a estrutura da realidade deve ter a estrutura que tem não
será silenciada pelo insight do filósofo de que uma resposta noética é impossível. Quanto
mais claramente a palavra da “narrativa salvadora” fala na história, o homem mais
obstinado, ou ao menos alguns homens, irão levantar a pergunta do porquê a existência
deve ter a estrutura do qual o homem tem que ser salvo. E se uma resposta noética é
impossível dentro da fides da visão, um sonho imaginativo deve fornecer a resposta sem
levar em conta a verdade noética. Na época em que a Palavra falou a si mesma na
plenitude de sua clareza, em Cristo, pensadores gnósticos responderiam a pergunta com
o mito de uma queda do reino da divindade e atribuíram a criação do mundo, com a
discórdia de sua tensão, a um demiurgo maléfico, a um diabo. Essa solução do problema
platônico através de uma visão satanista tornou-se uma força na história mundial. É a
resposta que acompanhou a história do Cristianismo até hoje; e qualquer forma que possa
assumir, tem o caráter de uma revolta contra a realidade. Pois no âmago da visão está a
recusa em participar do processo da realidade sob as condições de sua estrutura
misteriosa. Em seus primórdios históricos, a recusa assumiu a forma pragmática de
grupos sectários que expressavam seu desprezo pela ordem da realidade através do
ascetismo ou da libertinagem, às vezes indo ao extremo da não-propagação para pôr fim
à miséria da existência. Uma disciplina não-participatória prepararia a centelha divina do
pneuma (espírito) no homem para sua salvação através da união com o Pneuma divino na
morte. Na forma ativista moderna, os sonhadores traduzem a discórdia platônica das
cordas divinas em uma discórdia entre os homens, com o ativista representando a verdade
divina que irá pôr um fim à discórdia na realidade e seu respectivo oponente
representando a força satânica que causa a discórdia e deve ser exterminado, para que a
ordem harmoniosa projetada pelo ativista prevaleça.
Que significado o poeta pretendia transmitir por esta notável variação do mito do
homem como marionete dos deuses? Certamente, ele não concebeu seu simbolismo como
uma melhoria na “história verdadeira”. Pois Platão dificilmente teria concordado com a
nomeação do diabo ao ofício de puxar as cordas, ainda que ele estivesse acessível para o
propósito na cultura helênica dos símbolos. Com o diabo como o único puxador das
cordas, não haveria um Deus para puxar as cordas de ouro; e como poderia haver um
diabo se não tem um Deus? O diabo na presença única teria obscurecido as ambiguidades
da psique que pode ser puxada em direções opostas; e acima de tudo, o simbolismo teria
ignorado o processo pessoal, social e histórico no qual a revelação da “narrativa
salvadora” reintroduz ordem à existência desordenada. O diabo, portanto, teria devastado
com o equilíbrio da consciência platônico; ele teria tornado a “história verdadeira” falsa
ao isolar um componente da experiência complexa que o mito tinha de expressar.
O presente que constitui o passado é ele próprio constituído pela interação da visão
e da noesis na parte da realidade que atende pelo nome de Platão. Estou usando tal
linguagem impessoalmente distante para reproduzir a distância reflexiva que Platão
coloca entre si e sua existência ao deixar o Estranho Ateniense relatar o evento da visão
como o autor do diálogo. Clínias de Creta elogia o Estranho por sua profunda percepção
dos assuntos histórico, e o Estranho explica esse entusiasmo como a de uma visão (hora)
que cresceu durante uma vida: “ A visão de um homem a respeito de tais assuntos é mais
estúpida quando ele é jovem, e mais perspicaz quando ele é velho (geron)” (Leis 715d-
e). A visão de Platão, assim, não é um lampejo súbito de iluminação, mas a clareza tardia
de uma verdade apreendida apenas vagamente quando jovem; a verdade da história
cresceu historicamente em sua existência. Além disso, como as referências do Estranho
ao diálogo anterior implicam, Platão quer que esse processo multifacetado seja entendido
como um todo cujo passado não deve ser descartado como irrelevante agora que culminou
no presente das Leis. Não há verdade da história além da verdade crescendo na história.
Essa concepção da verdade como um crescimento da luminosidade no processo da
realidade impõe respeito no pensador e seu presente; ele deve respeitar o seu passado
tanto quanto respeita seu presente que será um passado em um futuro presente. A
existência do filósofo deriva sua verdade de aceitar a si mesmo como um evento de
participação, mas como nada mais que tal evento, em um processo da realidade que está
se tornando luminosa; e inversamente, a estrutura do processo histórico não se tornará
luminosa para sua verdade a menos que se torne luminoso no ponto de sua ocorrência
concreta no presente da consciência do pensador. Platão estava ciente da distância
reflexiva entre sua existência como um evento da consciência participatória e a exegese
do evento através dos símbolos desenvolvidos em suas obras; e ele expressou sua
consciência mais de uma vez ao rejeitar o mal-entendido de sua palavra falada ou escrita
como a “verdade” a ser possuída como uma doutrina informativa. A verdade dos símbolos
não é informativa; é evocativa. Os símbolos não se referem à estruturas do mundo
externo, mas ao movimento existencial na metaxy, do qual misteriosamente emergem
como a exegese do movimento em uma linguagem inteligivelmente expressiva. Pode-se
dizer que seu significado é compreendido apenas se eles evocarem no ouvinte ou no leitor
o movimento correspondente de consciência participatória. O significado deles, portanto,
não é simplesmente uma questão de compreensão semântica; deve-se antes falar de seu
significado como cumprido da melhor forma possível quando o movimento que evocam
na consciência recipiente é intenso e articulado o suficiente para formar a existência de
seu portador humano e atraí-lo, por sua vez, para a busca amorosa da verdade. Apenas o
todo desse processo, e não nenhuma parte separada das outras, é a verdade da realidade
quando se torna luminosa para si mesma.
A Visão platônica é tão abrangente e sua articulação tão minuciosa, que sua
realidade não somente se torna luminosa para si mesma mas ilumina a estrutura e a
modalidade da verdade visionária em geral. Ao confrontar os símbolos platônicos com os
símbolos cristãos será possível discernir mais claramente a estrutura noética nas visões
cristãs noeticamente menos diferenciadas, bem como as limitações pneumáticas na visão
platônica. No presente contexto estas reflexões têm que ser rigidamente limitadas a uma
ou duas questões que possuem influência direta em nossos problemas da Palavra, do
extremo, e sua mágica.
Platão tem que fazer a pergunta “Quem é este deus” – quem é “o deus” que puxa
do Além do cosmos cheio de deuses, “o deus” que emerge de uma tradição da presença
divina, mas não é um dos deuses tradicionais. Os visionários cristãos não precisam fazer
essa pergunta porque eles sabem quem é o seu deus: ele é o Deus dos Patriarcas, o Deus
de Moisés, de Israel e seus reis, o Deus dos Profetas. Eles preferem fazer a pergunta
“Quem é esse Filho de Deus?” – quem é esse Messias, esse Cristo, esse vaso da presença
divina e imortal, essa Palavra viva da verdade. Isso não quer dizer que os pensadores
cristãos podiam escapar da questão de Platão para sempre, ou que a questão de Platão não
tivesse nada a ver com o equivalente helênico a um “Deus dos Patriarcas”. Como a
história da teologia cristã mostra, o Deus inquestionável do período do Novo Testamento
teve que se submeter a sérios questionamentos noéticos, já no século II d.C., sob a pressão
dos movimentos marcionita e gnóstico. Os efeitos desse desenvolvimento noético
secundário, entretanto, nem sempre foram os mais felizes a longo prazo, como
evidenciado pelo clamor visionário do Memorial de Pascal: “Deus de Abraão, Deus de
Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e sábios”. Pascal está certo; o deus da teologização
discursiva e do filosofar na sua época não é de fato o Deus dos Patriarcas. Há alguma
substância experiencial no “Deus dos Patriarcas” que se perde no debate discursivo,
especialmente quando o debate é baseado em uma doutrina teológica que por sua vez é
baseada em uma filosofia doutrinalizada, de modo que a visão noética original tornou-se
um insight da “razão natural”. O deus dos “filósofos e sábios” não é o “deus” de Platão
também. Ainda mais, Platão já estava ciente desses problemas traiçoeiros. Como vimos,
ele fez um grande esforço para deixar a verdade de sua visão aparecer como uma verdade
a ser encontrada de forma menos articulada em várias vertentes da tradição; e quando a
novidade do ele tinha a dizer não podia ser omitida, ele a encapsulou com especial
cuidado nos relatos da sabedoria helênica preexistente. No Simpósio, por exemplo, ele
deixa o mito de Eros ser revelado a Sócrates por Diotima, a honrada por Deus; enquanto
no Filebo ele deixa a nova análise do “Um e do Múltiplo”, e do “Limitado e Inlimitado”,
ser derivada de uma tradição passada a nós pelos antigos que vivam mais perto dos deuses
do que nós agora, pelos palaioi que receberam como um “presente dos deuses aos
homens”, talvez trazido abaixo da fonte divina “por algum Prometeu junto com o fogo
brilhante” (16c). Platão sabia muito bem que o deus de sua visão era o mesmo Deus dos
Patriarcas, dos palaioi; e uma vez que era o mesmo deus, tinha que haver mais dele que
somente a divindade da salvação noética; ele também tinha que ser, como para os antigos,
o deus da criação e da ordem no cosmos. A revelação da salvação Além do cosmos deu
amplas razões para fazer a pergunta “Quem é este deus?”.
Os visionários judaico-cristãos acharem-se em uma cultura bastante diferente de
experiência e simbolização. Através de mais de um milênio de luta política, pneumática
e noética, e competição com as culturas cosmológicas dos impérios vizinhos, o Deus tribal
dos Patriarcas veio revelar a verdade de sua divindade como o deus criador do cosmos,
bem como da ordem humana na existência pessoal, social e histórica; ele havia, além
disso, crescido numa figura de exclusividade imperial, relegando a todos os outros deuses,
dentro ou fora do domínio de Israel, a um status de “falsos deuses” ou “não-deuses”; em
suma, ele se tornou suficientemente Uno para ser experienciado como o Além divino, em
cuja presença criativamente amorosa toda a realidade dependia de sua existência, a
verdade de sua ordem, e a verdade da Palavra que salva do fardo da mortalidade. Mesmo
que os significados dos símbolos Uno e Além não tenham sido diferenciados, os
visionários podiam experienciar pneumaticamente o Deus dos Patriarcas como o divino
Uno-Além sem fazer maiores perguntas. O que eles tinham que ver, e viram, era a
presença de Deus no homem cuja palavra falava a verdade do sofrimento e salvação, no
homem Jesus; e o conteúdo da visão revelatória inevitavelmente levantou questões acerca
do critério de sua verdade. Estas questões não foram escondidas; ao contrário, quando se
lê os textos do Evangelho, fica-se sempre espantado pela astúcia noética das visões
pneumáticas. No episódio no caminho para Cesaréia de Filipe (Mt 16.13-20), Jesus
pergunta aos discípulos quem as pessoas dizem ser ele. Tendo recebido a resposta que as
pessoas acreditavam ser ele um dos profetas, um João Batista, um Elias, um Jeremias, ele
pergunta aos discípulos quem eles acreditam que seja ele; e quando Pedro irrompe: “Tu
és o Messias, o Filho do Deus vivo”, Jesus responde: “Não foi a carne e o sangue que te
revelou, mas o meu Pai que está nos céus”. A passagem distingue cuidadosamente entre
pessoas comuns que experienciam a presença divina no homem sob o símbolo tradicional
do “profeta”; os discípulos que caem em silêncio porque estão conscientes de algo mais
que “profetismo”, mas não sabem bem o que mais é; Pedro, que pode “ver” o Filho de
Deus, não porque ele recebeu a informação de Jesus ou de qualquer outra pessoa, mas
porque a presença divina nele mesmo o moveu a ver a presença ainda mais plena do “Deus
vivo” em Jesus. A mesma consciência crítica inspira a passagem citada anteriormente em
João 6.44: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o atrair”, e a
observação concluindo o episódio em João 6.66: “Daquela hora em diante, muitos dos
seus discípulos voltaram atrás e deixaram de segui-lo”. Não há Filho de Deus a não ser
que haja um Deus cujo filho um homem possa ser sem se tornar falso para a verdade da
existência; e o Filho de Deus não pode ser reconhecido por outros homens a não ser que
“vejam” nele a presença plena do Deus a cuja presença respondem eles mesmos nos
movimentos ordenadores da sua existência. Esse problema da consciência noética na
visão pneumática foi formulado com precisão admirável pelo autor de Colossenses (2.9-
10): “Pois nele (Cristo), em sua existência corporal, a realidade divina habita em toda sua
plenitude (pan to pleroma tes theotes), e nele as suas próprias vidas chegaram a sua
plenitude”. O Deus de quem as visões pneumáticas são verdadeiras tem que ser a theotes
anônima, o Além imortal que pode salvar da luta pela sua participação sofredora na
existência mortal. Os visionários apostólicos foram melhores filósofos que alguns dos
teólogos doutrinários da nossa própria época.
Mas não se deve exagerar o componente noético nas visões cristãs. A theotes
anônima ocorre somente duas vezes no Novo Testamento (Cl 2.9; Rm 1.20); e o famoso
Deus Desconhecido do discurso do Areópago, que se oferece como evidência noética, é
provavelmente um estratagema retórico para a situação ateniense. O símbolo dominante
expressando a força revelatória nas visões cristãs não é o nous, mas o pneuma tou theou,
o espírito de Deus.
Não escapará ao leitor que o resumo das características históricas surgiu de uma
meditação à qual se deveria pôr em prática. Estou enfatizando essa relação de
distanciamento reflexivo, interna ao processo. Não há um ponto de vista arquimédico fora
da história a partir do qual uma exploração da consciência existencial possa ser
empreendida; não há outra verdade da existência que não a verdade emergindo no fluxo
da presença. A história é, de fato, mais que um objeto da consciência intencionalista; o
mistério do seu processo é uma dimensão da consciência mesma.
Uma vez que a realidade se tornou luminosa para sua verdade no fluxo histórico da
presença, a situação concreta no qual o homem deve encontrar as imagens e símbolos de
sua ordem existencial mudam com o curso da história. A situação do filósofo no século
XX d.C. da civilização ocidental não é a situação de Platão na Hélade, dos séculos V e
IV a.C. Platão teve que ver, articular, e simbolizar o Além do cosmos e seus deuses como
a divindade imortal que o puxava irresistivelmente na questão e busca da verdadeira
ordem na existência. A resposta amorosa ao puxamento amoroso do Além revelou-se
experiencialmente como a verdade que sozinha, como centro analítico, tornou a análise
noética da realidade e sua estrutura possíveis. Mas por que, se a visão noética aconteceu
em e através de Platão, temos que voltar-nos a isto em nossa própria meditação como se
fosse desconhecida hoje, mais de dois mil anos depois? Com essa questão tocamos no
grande problema da situação contemporânea, o fenômeno social que chamei de
“inconsciente público” que se prova memoravelmente resistente ao apelo do equilíbrio
noético. Temos que encarar não apenas uma perda, mas uma rejeição do equilíbrio, a
morbus animi no sentido ciceroniano de aspernatio rationis. Sua síndrome é a separação
entre o desejo intencionalista de conhecer e a consciência do mistério da realidade. Em
relação à dimensão histórica da consciência, somos confrontados por um lado, com um
enorme avanço das ciências históricas, e por outro lado, com a rejeição de toda a história
anterior (alle bisherige Geschicte) pelos sonhadores socialmente dominantes que estão
obcecados com a fantasia de serem os possuidores pleromáticos e cumpridores da
verdade. A presença pleromática da verdade nos segundos Cristos do século XIX –
Fourier, Saint-Simon, Comte, Hegel, Marx – é seguida pelo seu cumprimento pleromático
através dos executores do século XX. Estar ciente desta situação, e não fazer quaisquer
concessões ao anoia de consciência desequilibrada e fragmentada, é a obrigação do
filósofo hoje. Ele não tem permissão, como Nietzsche tentou há um século atrás, de
retirar-se na mache athanatos, glorificá-la como o eterno retorno nos jogos da vontade de
poder, e ignorar seu movimento imortalizador em direção ao Além – embora se deva
admirar a perspicácia filosófica de Nietzsche em reconhecer essa possibilidade de fuga.
Nem é permitido a ele repetir a meditação cartesiana, retirando-se no res cogitans e
ignorando o mistério experienciado da realidade no qual este res ocorre – embora deva-
se admirar sua sensibilidade de se concentrar em uma estrutura importante na consciência
existencial ainda para ser mais explorada. Ele é obrigado a reconhecer a mache athanatos
como o movimento em direção ao eschaton experienciado da imortalidade e, ainda assim,
não ceder na fantasia do sonhador de uma transfiguração escatológica a ser
pleromaticamente realizada por seus próprios sonhos e ações. No cumprimento desta
obrigação, tentei recuperar, através de uma meditação anamnética, certas estruturas da
consciência cuja repressão ao inconsciente público é uma das causas da desordem
contemporânea.