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P la tã o

APOLOGIA DE
SÓCRATES
CRÍTON
Introdução, versão do grego
e notas
M anuel de Oliveira Pulquério

EDITORA

BS
UnB
c*
Sócrates
Em caso algum devem os, pois, ser injustos.

C r ít o n
Claro que não.

Sócrates
Nem responder a uma injustiça com outra injustiça, com o pensa a
m ultidão, um a vez que em caso nenhum devem os praticar a injustiça.

C r ít o n
Assim parece.'

Sócrates
M as quê! É perm itido ou não, Críton, fazer mal a alguém ?

C r ít o n
Não, por certo, Sócrates.

Só c r a t e s
Enfim , pagar o mal com o mal, com o pretende a m aioria, será um a
atitude ju sta ou injusta?

C r ít o n
Evidentem ente injusta.

Só c r a t e s
C ertam ente porque fazer mal a alguém é o m esm o que ser injusto.

C r ít o n
É assim, de fato.

Só crates
N ão devem os, pois, responder à injustiça com a injustiça nem fazer
mal a ninguém , qualquer que seja o agravo que nos tenham feito. M as
vê bem , Críton, se, ao concederes isso, não o fazes contra a tua própria
opinião, visto que tal princípio, não tenho dúvidas a esse respeito, é e
será sem pre perfilhado por poucas pessoas. Ora, entre os que pensam

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assim e os que pensam de m aneira oposta não pode haver acordo, pelo
contrário, desprezam -se necessariam ente uns aos outros, conscientes da
diversidade dos seus pontos de vista. Vê, portanto, com atenção, se con­
cordas com igo, se partilhas de fato a m inha opinião - e nesse caso pode­
rem os deliberar com base naquele princípio de que nunca devem os ser
injustos, nem pagar a injustiça, com a injustiça, nem tom ar vingança de
quem nos fez mal - ou se, nesse ponto, te separas de m im , negando a tua
concordância a esse princípio fundam ental. Pela m inha parte, há m uito e
que o considero verdadeiro e não mudei de opinião; se tu vês as coisas
de outro m odo, di-lo e expõe as tuas razões. M as, se m anténs o pensa­
mento de outrora, então ouve as conseqüências que dele derivam .

C r ít o n
Claro que mantenho e sou inteiramente da tua opinião. Podes continuar.

Sócrates
Vou então dizer-te as conseqüências do referido princípio, ou antes,
vou te perguntar. Q uando um a pessoa concorda com outra sobre a ju sti­
ça de um a ação a realizar, deve praticá-la ou faltar à sua palavra?

C r ít o n
D eve praticá-la.

Só c r a t e s
C onsidera agora o seguinte: saindo daqui sem consentim ento d a 50
cidade, não fazem os nós mal a alguém e precisam ente àqueles a quem
m enos o devíam os fazer? Que te parece? E estarem os nós então a obser­
var aqueles princípios que reputam os justos ou será precisam ente o con­
trário?

C r ít o n
N ão posso responder, S ócrates, ao que m e perg u n tas p o rq u e não
esto u com p reen d endo.

Sócrates
Bem, encara então a questão desta m aneira. Se, no m om ento de nos
evadirm os - ou com o quer que se cham e à ação em causa - , as leis e o
Estado nos encontrassem e, postados na nossa frente, nos perguntas-

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sem: «Diz-nos, Sócrates, que tencionas fazer? Essa açáo que em preen­
des pode ter outro fim que não seja destruir-nos, a nós, as leis, e a todo o
Estado, na m edida das tuas possibilidades? Ou parece-te possível que
um Estado subsista e não seja derrubado, quando as decisões dos tribu­
nais não têm força e se vêem desrespeitadas e abolidas por sim ples par­
ticulares?» Que resposta darem os nós, Críton, a estas perguntas e a ou­
tras sem elhantes? M uito poderia dizer qualquer pessoa, sobretudo um
orador, sobre a destruição desta lei que determ ina que as decisões de um
tribunal são para se cumprir. Ou responderem os que o Estado foi injusto
conosco não nos julgando com o devia? Será isto que direm os?

C r ít o n
P or Zeus que sim, Sócrates.

Só crates
Suponhamos agora que as leis nos dissessem: «Sócrates, era isso que
estava combinado entre nós ou que te submeterias às sentenças proferidas
pelo Estado?» E, se nós nos admirássemos das suas palavras, talvez obser­
vassem: «Ó Sócrates, não estranhes esta linguagem e responde, visto que
também estás habituado ao processo de interrogar e de responder. Ora veja­
mos, que razão de queixa tens contra nós e o Estado para tentares destruir-
nos? Em primeiro lugar, não é a nós que deves a vida, não foi por nosso
intermédio que o teu pai recebeu a lua m ãe e te deu o ser? Diga, tens alguma
coisa a censurar àquelas dentre nós que regulam o casamento, notas nelas
algum defeito?» «Não tenho nada a censurar-lhes», diria eu. «E àquelas
q ue regulam a criação e educação das crianças, segundo as quais tam ­
bém tu foste instruído? Porventura não eram boas aquelas leis que dis-
e punham que o teu pai te devia m andar instruir na m úsica e ginástica?
«Eram boas», diria eu. «M uito bem. E depois de teres nascido e teres
sido criado e instruído, poderás afirm ar que não és nosso, nosso filho e
nosso escravo, tu e os teus antepassados? E. se isso é assim , pensas
acaso que são iguais os nossos direitos e que te é lícito fazer-nos, a nós,
aquilo que tiverm os em preendido contra ti? Ou será que em relação ao
teu pai e ao teu senhor, no caso de teres um , não te assistiria o d ireito de
51 lhes fazer o que te fizessem , com o responder com dureza a palavras
duras ou a pancadas com outras pancadas e assim por diante, e em rela­
ção à Pátria e às leis tudo te será perm itido, de tal m odo que, se intentar-

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m os destruir-te, p or considerar que isso é ju sto , tam bém , tu tentarás, na
m edida das tuas forças, destruir-nos, a nós, as leis, e à P átria e, agindo
assim , dirás que procede com justiça, tu que te consagras sinceram ente
à virtude? Ou a tua sabedoria é tão escassa que não te apercebes que,
aos olhos dos deuses e dos hom ens que têm algum senso, a P átria é algo
m ais precioso, m ais venerável, sagrado e digno de apreço do que um a
mãe, um pai e todos os antepassados; que é preciso honrá-la, obedecer-
lhe e fazer por lhe agradar, m esm o quando está irritada, m ais do que a
um pai, e que se deve persuadi-la a m udar de opinião ou fazer o que ela
ordena, sofrer com paciência o que ela m anda sofrer e, se ela o desejar,
deixar-se bater, prender e levar para a guerra, na perspectiva de ser
ferido ou m orto? Tudo isso se deve fazer porque é justo, sem jam ais
ceder terreno, nem recuar nem abandonar o seu posto, executando pelo
contrário, aquilo que o E stado e a P átria ordenam , tanto n a guerra com o
no tribunal e em qualquer parte, ou então fazê-los m udar de opinião
com argum entos justos. Se é ím pio em pregar a violência contra um a
m ãe ou um pai, não o será m uito m ais contra a Pátria?» Q ue responde­
rem os a isto, C ríton? As leis falam a verdade ou não?

C r ít o n
Acho que falam a verdade.

S ócrates
«Vê, pois, Sócrates, acrescentariam talvez as leis, se tem os razão
ao afirm ar que não é justo que faças aquilo que intentas fazer. E fetiva­
m ente, nós que te dem os a vida, que te criam os e educam os, que te
fizem os participar, a ti e a todos os outros cidadãos, de todos os bens em
nosso poder, declaram os, no entanto, que qualquer ateniense, um a vez
que entra na posse dos seus direitos cívicos e nos conhece a nós, as leis,
e à vida d a sua cidade, pode, caso não lhe agradarm os, pegar nas suas
coisas e partir para onde quiser. E, se algum de vós, descontente conosco
e com o Estado, quer partir para um a colônia ou estabelecer-se no es­
trangeiro, qualquer que seja o lugar escolhido, nenhum a de nós faz obs­
táculo nem o proíbe de ir para onde desejar, com tudo o que lhe perten­
ce. Mas', se algum de vós fica, sabendo a m aneira com o exercem os a
ju stiça e adm inistram os o Estado, declaram os que este se com prom eteu
de fato conosco a fazer o que lhe ordenam os e afirm am os que, se não

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nos obedecer, é triplam ente culpado, prim eiro porque não nos obedece,
a nós que lhe dem os vida, depois porque desobedece a quem o criou e,
finalm ente, porque, depois de nos prom eter obediência, não nos obede--
ce nem tenta esclarecer-nos, no caso de não term os procedido bem . E,
52 enquanto nós apenas lhe propom os fazer o que lhe ordenam os, sem im­
posições tirânicas, perm itindo-lhe optar entre discutir as ordens e cum-
pri-las, ele não faz nem um a coisa nem outra.
Ora bem , .Sócrates, tam bém tu, em nossa opinião, incorrerás nessas
acusações, se fizeres o que projetas, tu m ais do que a generalidade dos
atenienses». E, se eu lhes perguntasse a razão disto, talvez me atacassem
com justiça, lem brando que me encontro no núm ero dos atenienses que
b m ais solenem ente tom aram esse com prom isso. E dir-m e-iam : «Sócrates,
tem os grandes provas de que nós e o Estado te agradam os: Efetivam en­
te, tu não terias vivido nesta cidade m ais tem po do que qualquer dos
atenienses, se ela não te agradasse m ais do que aos outros. Ora, tu nunca
saíste da cidade para ir a um a festa, a não ser um a única vez, aos Istm o,x
nunca foste a qualquer país estrangeiro senão em cam panha,9 nem em-
. preendeste nunca um a viagem , com o os outros hom ens; jam ais se apo­
derou de ti o desejo de conhecer outra cidade ou outras leis. N ós e a
nossa cidade te bastávam os: tanto nos preferias a tudo e consentias em
c ser governado por nós. E a prova de que esta cidade te agradava é que
nela viveste e quiseste que nascessem os teus filhos. Enfim , m esm o no
! teu processo podias ter sido condenado ao exílio, se quiseses, e ter feito
com o consentim ento da cidade o que hoje projetas fazer sem o seu
! consentim ento. Vangloriavas-te então de que não te custava nada ter de
, morrer, afirm ando que preferias a m orte ao exílio, e agora, sem te enver-
I gonhares destas palavras nem te incom odares conosco, as leis, tentas
d destruir-nos, procedendo com o procederia o escravo m ais vil, tentando
fugir apesar dos nossos acordos e do com prom isso que assum iste conosco
de viver com o um cidadão. Responde-nos, pois, em prim eiro lugar, se é
exata a nossa afirm ação de que te com prom eteste de fato, e não apenas
por palavras, a deixares-te governar por nós». Que resposta dar a isto,
C ríton? Ser-nos-ia possível discordar?

C r ít o n
Teríam os, por força, de concordar, Sócrates.

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i
Sócrates
«Q ue vais tu fazer - continuariam elas - senão violar os nossos e
acordos e os teus com prom issos, que assum iste sem teres sido forçado
"ou enganado ou teres sido constrangido a decidir em pouco tem po, visto
que-dispuseste de setenta anos10 durante os quais podias ter partido, se
nós não te agradássem os, se os com prom issos que nos uniam não te
parecessem ju sto s? M as tu não preferiste a Lacedem ônia ou C reta, cujas 53
constituições constantem ente elogias," nem qualquer outra cidade gre­
ga ou bárbara. P elo contrário, ausentaste-te de Atenas m enos do que os
coxos, os cegos c os outros estropiados: tão evidente é que esta cidade e
nós, as leis, te agradávam os mais do que aos outros atenienses; pois
poderá um a cidade agradar a quem não am a as suas leis?JE faltarás ago-
ra_aos_teus com prom issos? N ão o farás, Sócrates, se nos quiseres dar
ouvidos, e não te exporás ao ridículo, saindo da cidade.
Na realidade, se violares os nossos acordos, se com eteres um a falta
desse gênero, pensa que bem farás com isso a ti próprio e aos teus am i- b
gos. Parece-m e quase evidente que os teus am igos correrão o risco de
ser exilados, privados do direito de cidade ou despojados dos seus bens.
Quanto a ti, em prim eiro lugar, se fores para algum a das cidades mais
próxim as, Tebas ou M égara - pois am bas são governadas por boas
leis serás recebido, Sócrates, com o inimigo d a sua constituição, e
quantos tiverem am or à sua cidade olhar-te-ão com suspeita com o a um
destruidor das leis; justificarás, assim , a opinião de todos aqueles que
entendem que os teus juizes pronunciaram um a sentença justa. Efetiva- c
m ente, quem é destruidor das leis facilm ente pode se r considerado
corruptor dos jo v en s e dos espíritos fracos. Terás, pois, de evitar as cida­
des m ais bem governadas e os hom ens mais civilizados? E se assim
fizeres, valerá a pena viver? Ou procurarás o convívio destes hom ens e
não terás vergonha de lhes dizer... o quê, Sócrates? O m esm o que dizias
aqui, que a virtude e a justiça são o que há de m ais precioso para o
hom em , assim com o a legalidade e as leis? E não crês que a conduta de d
Sócrates será considerada vergonhosa? Não pode haver dúvidas a esse
respeito. M as talvez tu te afastes desses lugares para ir para a Tessália,
para casa dos hóspedes de C ríton; aqui, pelo m enos, reina a m aior de­
sordem e im oralidade12 e talvez eles te ouçam , encantados, contar a
m aneira côm ica com o te evadiste da prisão, envolvido num m anto ou
vestido com um a pele, utilizando enfim qualquer daqueles disfarces de

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que se costum am servir os fugitivos e adotando as atitudes de outrem .
Pensas que ninguém dirá que, sendo tu um hom em velho e restando-te
já pouco tem po de vida, ousaste, no entanto, desejar vergonhosam ente
m ais vida, a ponto de transgredires as leis m ais im portantes? Talvez isso
não aconteça, se náo ofenderes ninguém , porque, se o fizeres, hás de
ouvir m uitas palavras hum ilhantes. Viverás lisonjeando toda a gente,
sujeito a todos. Que poderás fazer na Tessália senfio assistir a banque­
tes, com o se tivesses ido lá só para jantar? E onde estarão então aqueles
teus discursos sobre a justiça e as outras virtudes? M as será que tu que­
res viver por causa dos teus filhos, para os criares e educares? O quê?
Vais levá-los para a Tessália para aí os criares e educares, dando-lhes a
condição de estrangeiros que um dia terão de te agradecer? Ou será de
outra m aneira, ficarão para serem criados aqui? B pensas que, só por
estares vivo, serão m ais bem criados e educados, em bora sem a tua pre­
sença? Os teus am igos, sem dúvida, cuidarão deles. Mas será que só o
farão se fores para a Tessália, ao passo que, se fores para o H ades,13 não
se interessarão por eles? Se aqueles que se dizem teus am igos têm al­
gum préstim o, deves pensar que os não abandonarão.
O bedece-nos, pois, Sócrates, a nós que te criam os, e não prezes os
teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, m ais do que a justiça, para
que, ao chegar ao Hades, possas alegar isto em tua defesa aos que ali
governam . Pois o que te propões fazer não parece que seja, neste m un­
do, nem o melhor, nem o mais justo, nem o m ais piedoso, para ti ou para
qualquer dos teus, e tam pouco será o m elhor em relação ao outro m un­
do, quando lá chegares. Se deixares esta vida agora, m orrerás vítim a de
um a injustiça, praticada não por nós, as leis, m as pelos hom ens; se, pelo
contrário, te evadires assim vergonhosam ente, respondendo à injustiça
com a injustiça e ao mal com o mal, violando os teus com prom issos e os
acordos que fizeste conosco, e prejudicando aqueles a quem m enos de­
vias prejudicar, a ti próprio, aos teus am igos, à tua Pátria e a nós, a nossa
cólera perseguir-te-á durante a vida e, quando m orreres, as nossa irmãs,
as leis do Hades, não te acolherão favoravelm ente, sabendo que fizeste
lodo o possível para nos destruir. Não deixes, pois, que C ríton te co n ­
vença a fazer o que diz. segue antes os nossos conselhos».
Estes são, caríssim o Críton, os discursos que julgo ouvir, tal com o
os iniciados no culto dos coribantes14 julgam ouvir as flautas; c o som
destas palavras, que vibra cm mim, não me deixa ouvir nada. Podes

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estar certo, é essa pelo menos a m inha convicção, que tudo o que d isse­
res contra isso será dito em vão. N o entanto fala, se pensas que podes
conseguir algum a coisa.

C r ít o n
Não, Sócrates, não tenho nada a dizer.

Só crates
Então deixa isso, Críton, e sigam os este cam inho, visto que é por
ele que a divindade nos conduz.

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