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O CARIOCA

ARTUR AZEVEDO

Revista fluminense de 1886, em um prólogo,


três atos e 16 quadros,

em colaboração com Moreira Sampaio.

Música de diversos autores.

1887

Ao Ator

Martins

Com os agradecimentos de

Artur Azevedo
e
Moreira Sampaio

PERSONAGENS ATORES
SOARES..............................................................................Senhor Vasques
DOUTOR SÁ BICHÃO......................................................Senhor Matos
TAVARES...........................................................................Senhor Mesquita
EL-REI CONTO DE RÉIS, COMENDADOR
CAMPELO, DOUTOR CHAUVIN, TENENTE
CORONEL REGADAS, FILIPE ........................................Senhor Martins
O PATACÃO, CHUCHU, GENERAL REDONDO,
SIR JOHN, DUQUE DE VISEU.........................................Senhor Areias
DOUTOR MÁXIMO, JORNAL DO COMMERCIO,
C.V.I., O ALMIRANTE......................................................Senhor Lisboa
MELO, DOUTOR JOSÉ MARIA, XAMBI-CAIENA,
RIO DE JANEIRO (jornal), UM MESTRE-ESCOLA,
UM MANIFESTANTE, O ATOR PÓLO...........................Senhor Febo

O VINTÉM, UM SENHORIO, PAÍS (jornal)


OUTRO MANIFESTANTE..........................................................Senhor Silva
JANOS, O CAPITÃO MARTINETTI, SANTANA,
DIÁRIO OFICIAL, OUTRO MANIFESTANTE,
UM EMPRESÁRIO DE PAPAGAIOS.........................................Senhor Nino
UM FREGUÊS DA MAISON MODERNE, UM
PREVIDENTE, O COMENDADOR, DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, CONDE DE MORAY.............................................Senhor André
CINQÜENTA MIL RÉIS, OUTRO FREGUÊS DA
MAISON MODERNE, UM ENTUSIASTA, UM

2
DOENTE, O BOLETIM COMERCIAL, UM
SACRISTÃO..........................................................................Senhor Machado
NICOLAU, UM OFICIAL DE JUSTIÇA..................................Senhor J. Dias
VINTE MIL RÉIS, UM CAIXEIRO DA MAISON
MODERNE, UM CAIPIRA.........................................................Senhor César
OUTRO DOENTE, OUTRO CAIPIRA........................................Senhor Dias
DIÁRIO DO BRASIL................................................................Senhor Pertuis
BOLESLAU...............................................................................Senhor Stinger
UM TIPO....................................................................................Senhor Carlos
OUTRO..........................................................................................Senhor Leal
DEZ RÉIS.............................................................................Menino Francisco
NIQUELINA...................................................................Madame Rosa Villiot
DONA CIQUINHA........................................................................Dona Isabel
MINDOCA.......................................................................... .............Dona Febo
OLGA, GAZETA DE NOTÍCIAS, SOCIETÉ
ANONYME........................................................................ .Madame Delmary
UMA GRANDE CELEBRIDADE..................................Dona Cinira Polônio
A RAINHA APÓLICE, DONA ENGRÁCIA, A
MÁRTIR..............................................................................Dona M. Caminha
A INSPETORIA DE HIGIENE, A EMPRESA ROSSI...........Madame Oudin
GENOVEVA, MADEMOISELLE X, O GRIFO.......................Dona Eufrásia
GAZETA DA TARDE, A COMPANHIA DE DONA
MARIA II...................................................................................Dona Adelaide
1ª FINANÇA, UM VENDEDOR DE BALAS, O
RA-TA-PLÃ........................................................................Dona M. Picherrau
L’ITÁLIA, EMPRESA FERRARI............................................Signora Garcia
A PRATA DE DOIS MIL RÉIS..................................................Dona Aurélia
2ª FINANÇA, UM VENDEDOR DE JORNAIS, UM
REPÓRTER........................................................................Dona R. Bergmann
UM VENDEDOR DE FÓSFOROS, A BULICIOFF,
A MADRINHA..........................................................................Madame Jenny

CINQÜENTA MIL RÉIS, VINTE MIL RÉIS, CINCO


MIL RÉIS, DEZ MIL RÉIS, DUZENTOS MIL RÉIS,
TRINTA MIL RÉIS, CEM MIL RÉIS, DOIS MIL
RÉIS, MIL RÉIS, QUINHENTOS RÉIS, A PRATINHA
DE CEM RÉIS, A PRATINHA DE DUZENTOS RÉIS,
A PRATINHA DE QUINHENTOS RÉIS, A PRATINHA
DE MIL RÉIS, O PATACO.......................................................................N.N.

Notas e níqueis,1 jornais e periódicos, visitantes da Santa Casa, doentes, manifestantes, caipiras,
trabalhadores da Companhia de Gás, estudantes, cervejas condenadas, povo, etc.

Música de diversos autores, coordenada e instrumentada pelo Senhor Carlos Cavalier, que compôs
alguns números. Cenário dos Senhores Gáudio Rossi, Oreste Coliva, Carrancini e Frederico de
Barros. Vestuários imaginados e executados pelo Senhor F. Lisboa e Madame Victorina Pezzana.
Nesta edição não se fizeram as alterações exigidas pelo Conservatório Dramático nem pelas
conveniências de cena.

1 1887: nickeis (passim)


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PRÓLOGO

QUADRO 1

Sala em casa de Dona Chiquinha. Mesa ao centro e cadeiras. Sobre a mesa, um pequeno toucador e
respectivas pertenças.

CENA I

MINDOCA, depois DONA CHIQUINHA. (Ao levantar o pano, Mindoca está em frente à mesa,
mirando-se ao espelho, pondo pó-de-arroz no rosto, arranjando o penteado.)

DONA CHIQUINHA (Dentro.) — Mindoca!... Mindoca!

MINDOCA — Ah! c’est trop1! Enquanto chamares Mindoca, não respondo!... Que birra!

DONA CHIQUINHA (Entrando.) — Bem podia eu chamar até amanhã!... Quando a senhora se
pespega a um espelho, adeus, minhas encomendas! Sabe que horas são?

MINDOCA — Dez horas à peu pres2.

DONA CHIQUINHA — Ainda acha cedo?... Era melhor que estivesse fazendo crochê3 em vez de
namorar-se.

MINDOCA — Ainda ontem a maman ouviu o Doutor Sá explicar o ditado:


quem não se enfeita por si se enjeita. Il est drôle, le docteur!4

DONA CHIQUINHA — Aí começas com a mania do estrangeirismo!... Bem diz teu primo Soares
que mal andamos pondo-te num colégio francês. Fala brasileiro, rapariga; fala brasileiro, que é
língua de gente séria.

MINDOCA — Oh! o primo Soares! Que opinião autorizada! O primo Soares tem orgulho de ser
carioca e abomina tudo quanto é estrangeiro. Gosta de mim, como a maman sabe e, se ainda não
pediu a minha mão, é porque...

DONA CHIQUINHA — É porque tu pareces mais francesa que brasileira. Também se pedisse,
perdia o tempo... É pobre, ganha uma tuta-e-méia, e, enquanto eu for viva, só casarás com quem
possa dar-te o tratamento que mereces...

MINDOCA — Coitado do primo Soares! eu gosto dele, parole d’honneur!1

DONA CHIQUINHA — Ainda! Olha, Mindoca...

MINDOCA — Maman, já lhe pedi o favor de não me chamar Mindoca. Que brasileirismo tão chato!

1 Trad: É demais.
2 Trad: Mais ou menos.
3 1887: crochet
4 Trad: O doutor é engraçado!
1 Trad: Palavra de honra.
4
Meu nome é Arminda!... Par exemple!2 Mindoca! Que raiva.

DONA CHIQUINHA — Hei de chamar-te como quiser...

MINDOCA — Mas...

DONA CHIQUINHA — Mau, mau!... já sabes que não admito regras!

CENA II

AS MESMAS, GENOVEVA

GENOVEVA (Entrando.) — Sinhá, Pedro já veio da cidade... aqui está o coco que sinhá mandou
relar... (Mostra-lhe um prato.)

CHIQUINHA — Oh! sua relaxada!... Não tens vergonha de me trazeres um prato destes! Atrevida!
não sei onde estou, que não te quebro a cara com ele!

GENOVEVA — Sinhá, estas mancha é mesmo do prato... Lavei ele antes de relar o coco.

DONA CHIQUINHA — Não me respondas! Não vê mesmo que eu aturo escrava respondona! Sai,
some-te da minha presença, antes que eu... (Empurra-a.)

MINDOCA — Maman!

DONA CHIQUINHA — Cale-se você também... não se meta onde não é chamada! E tu, vai já pôr o
coco noutro prato!

GENOVEVA — Mas este, eu lavei ele...

DONA CHIQUINHA (Empurrando-a até a porta.) — Some-te! Este diabo quer deitar-me a perder!
(Genoveva sai empurrada. Ouve-se a queda de um corpo e a bulha de um prato quebrado.)

MINDOCA (Correndo à porta.) — Ah! mon Dieu!1 Coitada! caiu, maman! (Entra e continua a falar
no bastidor.) Cortaste-te?... Vai pôr... arnica... na despensa tem... (Tornando a aparecer.) Pobre
Genoveva! Caiu sobre o prato e cortou a mão.

DONA CHIQUINHA — Que grande desgraça!

MINDOCA — A maman um dia se arrepende. Ela foge, vai ter com os abolicionistas, eles vão à
polícia...

DONA CHIQUINHA — E o que é que a polícia há de me fazer? Eu sou histérica! Tenho uma porção
de atestados médicos que o provam.

A VOZ DO DOUTOR — Dá licença, Senhora Dona Francisca?

AS DUAS — Oh! Doutor, pode entrar.

2 Trad: Não diga.


1 Trad: Meu Deus!
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CENA III

AS MESMAS, DOUTOR SÁ BICHÃO

DOUTOR — Eu poderia dizer que porta aberta justo peca, mas receando abusar...

DONA CHIQUINHA — O Doutor é um amigo velho... bem sabe que nunca abusa.

DOUTOR — Sei, sei... mas nec semper lilia florent!1 De um dia para outro cai a casa; não há bem
que sempre dure nem mal que se não acabe; o pouco se deseja, o muito se aborrece...

DONA CHIQUINHA — Há de ser sempre o mesmo amigo bom e delicado.

DOUTOR — Sabe de onde venho?

AS DUAS — De onde?

DOUTOR — De uma conferência espírita... Dissertei sobre um ponto importantíssimo: as vidas


progressivas. Fui muito aplaudido pelo espirituoso auditório.

DONA CHIQUINHA — Ah! também se fazem conferências espíritas? Julguei que só as houvesse na
Glória.

DOUTOR — Educar o povo, chamar ao aprisco as ovelhas desgarradas, ensinar ao próximo o


verdadeiro caminho da felicidade futura, tal é a missão dos espíritas.

MINDOCA — Por mais que queira, não posso acreditar no espiritismo. C’est une blague.2

DOUTOR — Pobre espírito rebelde!... não diga semelhante coisa. Leia Allan Kardec e outros, e, se
depois de os ler, não confessar coram populo3 o seu erro, serei forçado a dizer-lhe que o pior cego é
aquele que não quer ver. A propósito, vou explicar-lhe a origem deste anexim: Nos tempos de El-rei
Nosso Senhor... quando a Rua da Carioca ainda era a Rua do Piolho, havia um marido...

DONA CHIQUINHA — Veja lá se é coisa que se possa ouvir...

DOUTOR — Essa agora! Sossegue! Havia um marido...

CENA IV

OS MESMOS, SOARES

SOARES — Bom dia, titia; adeus, Mindoca.

MINDOCA (À parte, furiosa.) —Sapristi!1

1 Trad: Nem sempre os lírios florescem.


2 Trad: É uma balela.
3 Trad: Em público, alto e sem temor.
1 Correspondente ao nosso insulto de: sacrista
6
SOARES — Ó Doutor! como vai essa bizarria? Há que tempo não o vejo!

DONA CHIQUINHA — Então hoje não houve repartição?


SOARES — Ontem trabalhei até a noite, de modo que o diretor deu-me hoje licença para sair mais
cedo. Preciso descansar.

DOUTOR — Neque semper arcum tendit Apollo!2 Faz bem, meu amigo; quem é tolo pede a Deus
que o mate...

SOARES — Como passei pela porta, subi; a prima Mindoca...

MINDOCA — Primo, já lhe disse que o meu nome é Arminda.

SOARES — Ora! desde pequeno que a chamo Mindoca, e Mindoca hei de chamá-la até morrer.
Mindoca, Mindoquinha, isto é que é bom, isto é que é brasileiro. Há de acabar por se convencer de
que tenho razão.

DOUTOR — Água mole em pedra dura tanto dá, até que fura. Este anexim tem uma origem
engraçadíssima. No tempo em que a Rua da Quitanda se chamava Rua do Sacussarará... Oh! mas isto
é uma história muito comprida. Fica para logo a explicação.

SOARES (À parte.) — Ainda bem.

DOUTOR —O amigo Soares apareceu ao pintar da faneca. Amicus certus in re incerta cernitur.3

SOARES (Que, desde que entrou, tem dado mostras de estar incomodado dos pés.) — Sempre às
suas ordens. Ui! ... ui!...

TODOS — Que é?

SOARES — Comprei umas botas na Rua do Carmo, e as malditas têm uns pregos nas solas...

DOUTOR — Por que não usa o calçado inglês? Nada mais cômodo.

SOARES — Calçado inglês? Está doido? E a indústria nacional?

Coplas

(Música de L. Gregh.)

I
Embora me digam que nisto ando mal,
Não gosto de nada que seja estrangeiro;
Eu cá só me agrado do que é nacional!

Dos pés à cabeça sou bem brasileiro,


Não há patriotas assim como eu sou!
Quem dera que destes bastantes houvesse!
Mas tipo assim puro (mentindo não estou)
Desgraçadamente bem raro aparece.
2 Trad: Nem sempre Apolo estica o arco.
3 Trad: O amigo certo se conhece nas horas incertas.
7
Danado fico e às nuvens vou,
Se nesta terra alguém me toca
E o brio meu alguém provoca;
Pois não! eu felizmente sou
Carioca!

II

Ao caro e famoso Marie Brisard


Prefiro a caninha tomada com jeito;
Um cálice apenas bastante é chupar
Pro mais macambúzio ficar satisfeito.
Prefiro ao mais belo petisco francês
Um bom prato fundo da nossa feijoada
Com lombo de porco, toicinho pra três,
Limão e pimenta, farinha torrada!

Danado fico, etc., etc.

DOUTOR — Ora a indústria nacional! O outro dia passei pelo Campo de Santana e vi numa casa o
seguinte letreiro: “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, fundada em 1836”. Ora, se há
cinqüenta anos a auxiliam e ela se acha ainda no estado em que a vemos, não é um par de botas de
mais ou de menos que há de pesar na balança do auxílio. Meu amigo, se lhe doem os pés, saiba que
quem morre por seu gosto acaba por seu regalo. Quando a Rua do Ouvidor se chamava ainda Rua
Aleixo Manuel...

SOARES — Mas o Doutor dizia?...

DOUTOR — Ah! sim... tenho uma idéia sobre a qual quisera ouvir a sua opinião.

SOARES — Que idéia é? algum novo processo para a fabricação do sol?

DOUTOR — Upa! upa!... trata-se de curar as finanças do Estado... Se a Senhora Dona Francisca
consentisse que fôssemos para a sala de visitas...

DONA CHIQUINHA — Pois não, Doutor! Genoveva! Genoveva! aquele diabo é surdo! Genoveva!

GENOVEVA (Entrando com a mão amarrada.) — Sinhá?

DONA CHIQUINHA — Vai abrir a sala. Vê se te mexes!

DOUTOR — Que foi isto na mão, minha filha?

DONA CHIQUINHA — Brincadeiras de umas com as outras. A Clotilde estava com uma faca, esta
foi puxá-la... e... cortou-se. Já não sabe como é esta gente? Amanhã ou depois está dizendo que fui
eu que a maltratei. (A Genoveva.) Vai, anda.

DOUTOR — Até já. (Acompanhando Genoveva, que sai.)

SOARES — Titia, prima Mindoca!...

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MINDOCA (Irônica.) — Primo Cazuza!

SOARES — Isso! dá cá um abraço!... Cazuza! Isto sim, é que é brasileiro!

DOUTOR (Aplaudindo.) — Pulchra, bene, recte1 ! (Sai com Soares.)

CENA V

DONA CHIQUINHA, MINDOCA, depois GENOVEVA, depois TAVARES

DONA CHIQUINHA — Agora é tratar da vida. Vai buscar o teu trabalho.

MINDOCA — Ora, maman, deixe-me primeiro acabar de ler aquele romance francês. Falta só um
capítulo.

DONA CHIQUINHA — Romances! Era melhor que lesses a Doceira Brasileira ou o Manual do
Galinheiro

GENOVEVA (Entrando.) — Sinhá, seu Tavares está aí.

DONA CHIQUINHA — Que maçante! Manda-o entrar para cá. Escusado é interromper o Doutor lá
na sala. (Genoveva sai.)

MINDOCA — Eu é que não estou para aturá-lo. Au revoir, maman!1 (Sai.)

DONA CHIQUINHA — Olha o crochê!

TAVARES (Da porta.) — Dá licença?

DONA CHIQUINHA — Pois não, seu Tavares! Seja muito bem aparecido! Como está a Maricota? E
a Teca? A Dona Josefina já ficou boa de todo?

TAVARES — Estão todas boas; não mandaram lembranças, porque não sabiam que eu vinha cá.

DONA CHIQUINHA — Qualquer dia destes hei de ir visitá-las.

TAVARES — Contanto que não seja esta semana. Com as chuvas torrenciais que caíram
ultimamente e que tantos desastres causaram...

DONA CHIQUINHA — É .. dizem que até morreu um moço...

TAVARES (Continuando.) — A casa ficou em mísero estado... Estamos de mudança para Santa
Teresa... lá, ao menos, não há perigo de enchentes...

DONA CHIQUINHA — Quando estiverem mudados, comuniquem-nos.

TAVARES (Sentando-se.) — Estimei muito encontrá-la só. Venho falar-lhe de assunto

1 Trad: Belo, muito bem, perfeitamente (Horácio, em sua Arte Poética, aconselha a
desconfiar do crítico muito benevolente)
1 Trad: Até a vista, mamãe.
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importantíssimo, que muito nos interessa.

DONA CHIQUINHA — Ah?

TAVARES — Faz hoje exatamente um mês que tive a honra de pedir-lhe a mão de Dona Arminda...

DONA CHIQUINHA — E eu respondi-lhe, com toda a franqueza, que minha filha só se casaria com
quem lhe pudesse dar um certo tratamento e, embora não fosse rico, estivesse em condições de
garantir o seu futuro. Ora, o senhor não tem emprego, não tem fortuna; passa os dias na Rua do
Ouvidor... desculpe, mas eu cá sou muito franca.

TAVARES — À vista do seu ultimatum, a mim próprio jurei mudar de vida. Quis pedir um emprego
público, mas o empregado público anda sempre com a sela na barriga e não passa de um pobre de
casaca.

DONA CHIQUINHA — Nem eu dava minha filha a empregado público; salvo a algum tesoureiro,
pagador ou coisa que o valha...

TAVARES — São lugares que exigem fiança; além do que, eu estou pouco disposto a sair do Brasil...

DONA CHIQUINHA — Sair do Brasil?

TAVARES — Sim, porque nada mais natural do que um homem alcançar-se e, depois de alcançado,
só tem um recurso: alcançar... algum paquete para os Estados Unidos.

DONA CHIQUINHA — Dizia, porém?...

TAVARES — Ah! sim!... lembrei-me do comércio, mas, não tendo capital, vi que perderia o tempo.
Em suma, começava a desesperar, quando um idéia... mas que idéia, minha senhora!... que idéia
grandiosa!

DONA CHIQUINHA — Qual?

TAVARES — Temos este ano eleição municipal... Vou ser vereador.

DONA CHIQUINHA — Realmente a idéia não me parece má. Meu finado marido dizia sempre: —
Ah! se eu fosse eleito vereador, outro galo nos cantaria! Quanto ganha por mês um vereador?

TAVARES — Nada; o cargo é gratuito.

DONA CHIQUINHA — Gratuito! mas então por que é que tanta gente quer ser?

TAVARES — Uns para fazer carreira política; outros, bem poucos, para servir o país; outros,
bastantes, para tratar da vida, que a morte é certa. Eu serei destes. Diabos me levem se, terminado o
quatriênio, ainda precisar trabalhar.

DONA CHIQUINHA — Pois, seu Tavares, vou também empenhar-me para o senhor ser eleito.

TAVARES — Isso, isso, Dona Chiquinha!

DONA CHIQUINHA — Se vencermos, a Mindoca será sua.


TAVARES — Por que não havemos de vencer? Com meia dúzia de votos está um homem eleito.

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DONA CHIQUINHA — Meia dúzia só?

TAVARES — O meu, o de meu pai, o de meu mano, o de um primo e o do meu alfaiate... já os tenho.
Com poucos mais serei... seu genro. Vou redigir uma circular aos eleitores, prometendo mundos e
fundos a bem do município. Obtida uma cadeira na edilidade...

DONA CHIQUINHA — Que vem a ser edilidade?

TAVARES — Nunca viu uma porca amamentando leitões? Deita-se a dormir e dá de mamar ao gato,
ao cachorro, ao porquinho, indiferentemente... Pois a edilidade é uma espécie de porca, em que
muitos mamam...

DONA CHIQUINHA — Pobre animal!

TAVARES — Agora com licença. Vou sondar as influências eleitorais... Daqui a dias terá notícias
minhas. Trabalhe por seu lado; o que a mulher quer, Deus quer.

DONA CHIQUINHA — Vá, e seja feliz.

TAVARES — Lembranças a Dona Mindoca... Ah! é verdade... Ela estará pelos autos?

DONA CHIQUINHA — Que remédio? Nesta casa quem manda sou eu.

TAVARES (Beijando-lhe a mão.) — Então, minha sogra, até à vista.

DONA CHIQUINHA — Recomende-nos às manas. (Tavares cumprimenta e sai.)

CENA VI

DONA CHIQUINHA, MINDOCA

DONA CHIQUINHA — Vereador!... a porca!... muitos mamam. Achei o genro que me convém!
(Chamando.) Mindoca!... Mindoca, não, que ela não gosta! Arminda!... Mademoiselle Arminda!

MINDOCA (Entrando a correr e indo beijar a mãe.) — Me voilà! me voilà1!

DONA CHIQUINHA — Sabes que dei a tua mão ao TAVARES?

MINDOCA — Ao TAVARES?... Nunca! nunca me casarei com aquele badameco!... Jamais de la


vie!2

DONA CHIQUINHA — A porca... muitos mamam... É uma sorte grande!

MINDOCA — Não quero! Gosto do primo Soares! Gosto dele!... Não hei de casar com outro! E
logo com quem, meu Deus do céu?... com um sujeito sem eira nem beira!...

DONA CHIQUINHA — Tola, se te digo que vai ser eleito vereador... a porca...

1 Trad: Eis-me aqui, eis-me aqui!


2 Trad: Nunca!
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MINDOCA — Que história de porca é essa?

DONA CHIQUINHA — Um animal em que muitos mamam...

MINDOCA (Batendo o pé.) — Não caso com o Tavares!... não caso!... não caso! Voilà3!

DONA CHIQUINHA — Não há voalás nem meio voalás! Hei de mostrar-te que quem manda não é
o vizinho! Ora, uma filha com vontades! É o que veremos! (Saindo.) Não vê mesmo que hei de
perder esta ocasião de ser sogra da Câmara Municipal!

CENA VII

MINDOCA, depois SOARES e DOUTOR SÁ [BICHÃO.]

MINDOCA — Casar-me com o Tavares! Não me faltava mais nada!

SOARES (Entrando e continuando uma conversa com o Doutor.) — Não há dúvida, e se a sua
proposta for aceita...

DOUTOR — A salus populi1 será uma realidade.

MINDOCA — Ah! primo, sabe! (Puxa-o de parte e fala-lhe muito depressa.) — A maman quer que
me case com o Tavares... se ele for eleito vereador... É preciso a todo transe impedir este
casamento... mas como?

SOARES (Com um pulo.) — Casá-la com o Tavares? Ui! malditas botas! (Com um pé no ar.) Mas eu
gosto de você e não consinto...

MINDOCA — Veja então se descobre um pé...

SOARES — Um pé!... Uma bota é o que eu quero!

MINDOCA — Mais non!2 um pretexto ou um meio... contanto que eu não case com o Tavares!
Entrego-me em suas mãos. Faça o que entender. (Sai.)

SOARES — Se eu conseguisse obstar que fosse eleito... Que patife... Quer ser vereador para casar...
Com que tenções não está ele!

DOUTOR (Aproximando-se.) — Que foi? Há alguma novidade?

SOARES — Eu lhe digo, meu amigo... minha prima está muito... aflita... A mãe quer casá-la com o
Tavares...

DOUTOR — Com aquele legallé2?... Sabe a origem desta palavra?

3 Trad: Eis aí.


1 Abreviação de uma das leis das 12 tábuas, conservada por Cícero e máxima de
direito na antiga Roma: Salus populi, suprema lex est. (Que a salvação do povo seja a
lei suprema)
2 Trad. Não mesmo!
2 1886: Ihagalhé, o m.q. joão ninguém.
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SOARES (Impaciente.) — Sei... sei... li a sua explicação no Jornal do COMMERCIO... O tratante
apresenta-se candidato à vereança, e uma vez eleito... Que fazer? Aconselhe-me! (Vai pôr o pé no
chão.) Ui! (Torna a levantar o pé.)

DOUTOR — Com dinheiro tudo se arranja... A eleição há de ser difícil... há cerca de dois mil
candidatos.

SOARES — Para um cargo gratuito?

DOUTOR — É para ver. Vamos guerrear o inimigo, acompanhar-lhe os passos, pedir que não votem
nele... comprar até os votos de quem quiser vendê-los...
SOARES — Pois ainda se compram votos?

DOUTOR — Muito mais caros, mas compra-se... Estão pela hora da morte... a falta de gênero no
mercado faz subir o preço...

SOARES — Diabo! E eu, que não tenho dinheiro!

DOUTOR — Venha comigo, que talvez arranje um meio de alcançar vitória.

SOARES — Onde?

DOUTOR — Ao Reino das Finanças, onde vou apresentar o meu projeto.

SOARES — Partamos! E que Deus nos proteja! Ui! malditas botas!

DOUTOR (Saindo.) — Mudá-las-á em caminho. Vamos!

SOARES (Idem.) — Vamos! (Forte na orquestra. Mutação)

QUADRO II

O Reino das Finanças, Palácio. Vestígios de opulência antiga.


Ruínas

CENA PRIMEIRA

O DOUTOR SÁ BICHÃO, SOARES, depois o VINTÉM, depois as FINANÇAS

SOARES — O senhor! pois é este o Reino das Finanças?

DOUTOR —A-q-u-i qui meneres.

SOARES — Que miséria! nem ao menos um criado para anunciar-nos!

DOUTOR — Quando as finanças estavam em bom pé, o que não quer dizer que não estejam em boa

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mão, não lhe faltavam todas essas comodidades. O tempora! o mores!1 Hoje anda tudo esbodegado.
(Hei de ainda explicar a origem desta palavra.) Este Palácio cai em ruínas. Hic Troja fuit.2

SOARES — Oh! aí vem, finalmente, alguém.

DOUTOR — É um moleque.

VINTÉM (Que tem entrado.) — Moleque não, hein? Veja lá como me trata! Eu tenho nome: chamo-
me o Vintém.

SOARES — Oh! o Vintém!

VINTÉM — Que desejam os senhores? Podem dizer, porque eu exerço no Palácio as funções de
pajem. Devia ser o Dez Réis, que vale menos do que eu. Mas o malandro musca-se e só aparece por
milagre!

DOUTOR — Que tagarela!

VINTÉM — É o mesmo que dizem Suas Majestades e toda a corte; mas não têm remédio senão
aturar-me: ninguém me manda embora.

SOARES — Então por quê?

VINTÉM — Porque ficariam sem vintém. Mas vamos, vamos! basta de dar à língua. Que desejam?

DOUTOR — Desejamos... Qual! o homem é capaz de não nos receber!

SOARES — Ora, há de receber...

DOUTOR — Não recebe com certeza.

SOARES — Aposto que recebe!

DOUTOR —Vamos fazer uma experiência. Cruz ou cunho? (Agarra no Vintém. )

SOARES — Cruz!

Tanto o rei como a rainha


Nesta sala vão entrar.

Coplas

CONTO DE RÉIS —
O grande rei cá está que no seu trono, outrora
Coberto já se viu de grandes ouropéis,
E é, com franqueza o diz, infelizmente agora,

1 Trad: Ó Tempos! Ó costumes! Célebre frase que Cícero propfigava, a propósito de


Catilina, os atentados e abusos aos bons costumes.
2 Aqui existiu Tróia
14
A sombra e nada mais del-rei Conto de Réis.
Hoje em dia,
Todavia,
Faz ainda o seu filé!
Se lhe tocam,
Se o provocam,
Corre tudo a pontapé!

CORO — Hoje em dia, etc.

II

CONTO DE RÉIS —
A Apólice ao meu lado andava satisfeita,
Do trono partilhando as doces comoções,
Mas essa bela vida há muito está desfeita,
E el-rei Conto de Réis vegeta aos trambolhões!
Hoje em dia, etc.

CONTO — Cessem as cantarolas, com seiscentos mil réis! Não me lembrava de que estou
desesperado da vida!

APÓLICE — Que estamos ambos muito mortificados! Que humilhação! Que degradação!

CONTO — Apólice, conta as tuas mágoas à corte.

APÓLICE — Sabei, senhores, os meus juros, aqueles belos juros, que eram o meu encanto, o meu
orgulho, a afirmação mais positiva de meu alto prestígio, acabam de ser convertidos de seis a cinco
por cento!

TODOS — Oh!

CONTO — De nada valeram os protestos da imprensa e dos particulares.

APÓLICE — Sobretudo dos particulares.

VINTÉM — E da imprensa também... porque — parece incrível — há jornalistas que têm apólices!

APÓLICE — Já se tem dito que não metas o nariz onde não és chamado.

CONTO (Explodindo.) — Ah!

TODOS (Recuando.) — Ah!

CONTO — Não é tudo ainda!

TODOS — Oh!

CONTO — A conversão não passa de uma conversa. Há coisa mais grave!

TODOS — Oh!

15
CONTO — Vamos ser obrigados pela dignidade de nosso nome e em nome de nossa dignidade — a
mandar setenta mil homens para o país onde floresce o rosbife!1

TODOS — Oh!

CONTO (Consigo.) — Também esta gente não sabe dizer senão “Ah!” ou “Oh!” (Alto.) A
diplomacia interveio e, quando a diplomacia intervém, adeus viola! Não há remédio senão curvar a
cabeça e obedecer. Setenta mil contos! Goddam?2 — Mas ora adeus! o passado passado! (Em tom de
comando.) Caras... alegres.

TODOS (Rindo.) — Ah! ah! ah!

CONTO — E repetição do último coro com um movimento de dança. (Repete-se o último coro e
dança-se.) Basta.

VINTÉM (Aproximando-se.) — Senhor... os estrangeiros...

CONTO — Ah! é verdade... Já os havia esquecido. Nomeemos a comissão que deve recebê-los. —
Quanto há de ser? (A Vintém.) É gente de certa categoria?

VINTÉM — Parece.

CONTO — Cinqüenta mil réis!

A NOTA DE CINQÜENTA (Aproximando-se.) — Presente!

CONTO — Vinte mil réis!

A NOTA DE VINTE (Idem.) — Cá estou.

CONTO — Cinco mil réis!

A NOTA DE CINCO (Idem.) — Pronto!

CONTO — A pratinha de dois mil réis!

A PRATINHA DE DOIS MIL RÉIS (Idem.) — Eis me aqui!

CONTO — Nicolau!

NICOLAU — Às tuas ordens!

CONTO — Bom: cinqüenta e vinte são setenta; e cinco, setenta e cinco; e dois, setenta e sete;
setenta e sete mil e duzentos; basta. Não haverá razão de queixa.

A quem recorre quando a quebradeira


Toda a algibeira lhe invadiu? A mim.

CONTO — Repara agora... Aí o tens contigo...


Meu nobre amigo Senhor Nicolau.
1 1886: roastbeef
2 Trad: Dane-se
16
De Botafogo a grande companhia
Diz todo o dia que o não acha mau.

NICOLAU — E não me larga!

DOUTOR e SOARES — Não?

NICOLAU — Nem mesmo a pau!

CONTO — Eis a pratinha de tostão, vadia:


Anda arredia... ninguém mais a vê...
— Você merece uma giribanda!
Por onde é que anda — diga lá! — você?
Este é o Vintém, que a gente pobre gasta...
Nem mesmo basta pra comprar um pão,
Mas, apesar de ser um João Minhoca,
Quase provoca uma revolução.

O VINTÉM — Houve nas ruas muito bofetão!

CONTO — Este é o pataco, todo empanturrado,


Que devorado ter parece um boi;
Pôs chapéu alto, bengalão, luneta,
Quando a Gazeta publicada foi.
De Três Vinténs ó lúcida pratinha,
Que bonitinha e melindrosa vens!
— Já tem causado múltiplos reparos
Serem tão raros estes três vinténs.

SOARES — Mas ainda faltam outros valores.

CONTO — Faltam a nota de Quinhentos Mil Réis e a moedinha de Dez Réis.

DOUTOR — Os extremos tocam-se.

CONTO — Ninguém lhes põe a vista em cima. Mas vamos lá, digam, que pretendem?

DOUTOR — Como já te disse, sou médico; julgo ter descoberto um remédio para a cura radical
daquelas pobres senhoras. (Aponta1 para as Finanças.) Vou propor-to.

CONTO — Fazer o quê?

DOUTOR — Como fazer o quê?

CONTO — Que vais fazer no Porto?

DOUTOR — Que Porto?

CONTO — Pois não dissestes: — “Vou pro Porto”?

1 1886: Aponte
17
DOUTOR — Um calemburgo1 Proh pudor!2

APÓLICE — Interessas-te muito pelas Finanças?


DOUTOR — Das Finanças do Estado, ou antes, do estado das Finanças...

SOARES — Também o senhor!

DOUTOR — ...depende a prosperidade da pátria. (Á Apólice.) Senhora, com toda a franqueza te


direi que és tu a principal causadora daquela reína.

APÓLICE — Insolente!

CONTO — Deixa-o, mulher. A franqueza deve agradar aos soberanos. Demais, por falar “em
soberanos”, deixemo-nos de ridículas fanfarronadas... Isto cheira a convento franciscano, e nós
reinamos..

DOUTOR — In nomine.3

CONTO — In nomine, diz muito bem; aceito e agradeço o seu latim.

DOUTOR — Não há de quê. Em precisando de mais, é só pedir por boca. Há por cá dessa fazenda
in magna quantitate.4

CONTO — Quod abundat non nocet.5

DOUTOR — Bravo! bravo! também sabe largar a sua piada! bravo!

CONTO — Todos sabem que aqui quem reina é Mistress Esterlina, essa espécie de Núncio, sem cujo
placet6 nada posso fazer. Dize-nos, dize-nos a linguagem da verdade!

DOUTOR — É sabido — vox populi7 — que as Finanças vivem a trabalhar como umas negras, para
que esta senhora se arrebique à vontade, tenha lindos vestidos da última moda, onde de carro, vá aos
teatros e aos bailes e, sobretudo, não trabalhe. Se não fosse o respeito devido a uma rainha, mais do
que a uma rainha, a uma senhora, eu te diria que és uma dessas plantas que se enroscam nas outras
plantas, e...

APÓLICE — Parasita! Ela chamou-me de Parasita!

CONTO — Deixá-la chamar, com cem milhões de dólares1!

DOUTOR — Eu não disse o nome. (Ao Conto.) Confia-me o tratamento daquelas míseras raparigas,
e verás como as Finanças ficam finas. (Baixo.) Mas é preciso que tua mulher não as esfalfe.

1 1886: Calembourg
2 Trad: Ó vergonha!
3 Trad: Em nome.
4 Trad: Em grande quantidade.
5 Trad: Não faz mal sobrar
6 Trad: Aprovo
7 Trad: Voz geral
1 1886: Dollars
18
CONTO — Que diabo! ainda agora acabaram de converter-lhe os juros.

DOUTOR — O meu receituário é infalível, mas eu só to mostrarei na certeza de que será


imediatamente aceito. O estado em que se acha o teu reino tem um reflexo fatal sobre a sociedade
brasileira; esta, como todas as outras sociedades, não pode passar sem dinheiro, sem muito dinheiro.
A vida torna-se cada vez mais penosa; o azedume e o desânimo apossam-se de todos os espíritos; a
descrença, de todos os corações. Delenda Carthago!2 As instituições ressentem-se desse mal-estar.
Os indivíduos não divertem; poucos se atordoam. O brasileiro torna-se cada vez mais melancólico.

CORO — Toca a festejar, etc.

MOEDINHA — Com que prazer


Eu vou correr!
Eu vou girar
Sem descansar!

CORO — Sim, vai girar


Sem descansar!...

(No fim das coplas, a Moedinha vai saindo a correr.)

CONTO — Vem cá! vem cá! Segurem-na! (Seguram-na todos.) Queres correr imediatamente! Deixa
estar, que tens muito tempo para entrar em circulação.

MOEDINHA — Que ordenas?

CONTO — Quero confiar-te uma incumbência.

MOEDINHA — Qual?

CONTO — Acompanhar estes senhores no Rio de Janeiro.

DOUTOR — Est modus in rebus.1

SOARES — Sim.

CONTO — Demora-te lá um ano, e traze-me, no fim desse prazo, um relatório.

SOARES — Sempre a mesma história: comissão e relatório. É a mania de todos os governos.

DOUTOR — Ad ostentationem2!

CONTO — Perdão; um relatório verbal... a narração dos acontecimentos mais importantes do ano.
Por eles poderei avaliar do espírito da população fluminense.

MOEDINHA — Estou pronta a segui-los.

CONTO — Concedo-te o dom maravilhoso de te poderes transportar de uma para outra parte, e a
quantos quiseres, apenas com o auxilio deste talismã. (Dá-lhe uma varinha de níquel.)
2 Cartago deve ser destruída.
1 Trad: Em todas as coisas há uma medida.
2 Trad: Por ostentação
19
MOEDINHA — Uma varinha de níquel!

CONTO — Basta agitá-la no ar e não precisas pagar passagens.

SOARES — Oh! que mulher preciosa! Já não a largo! Que economia! Vamos!

CONTO — Adeus! Daqui a um ano espero ver-te de volta. Repetição do coro para esta saída!

(Repetição do coro.)
(O Doutor, Soares e a Moedinha saem.)

CENA IV

CONTO, APÓLICE, notas e moedas, depois os DEZ RÉIS

CONTO (Consigo.) — Verdade, verdade, não sei o que tem o espírito da população fluminense com
as pobres Finanças. Eu poderia ter dado ouvidos ao tal Doutor, mas quem sabe se ele não é como
outros muitos que se propõem curá-las, e, em vez disso, agravam-lhes o mal. Nada! Vou empregando
os meus remédios caseiros. (Música na orquestra. Todos estremecem subitamente.) Hein? Vocês não
sentiram um estremeção? Que é isto? Acho-me mais leve. Tenho vontade de rir, de cantar, de dançar!
(Dança.)

APÓLICE — E eu! e eu! Estou mesmo uma sílfide! (Dançam.)

TODOS — E nós! e nós! (Dançam.)

CONTO — Que será isto?

DEZ RÉIS (Entrando esbaforido.) — Alvíssaras! alvíssaras!

TODOS — O Dez Réis!

CONTO (Dançando sempre.) — Ó mariola! por onde tens andado?

DEZ RÉIS — Trago uma grande notícia.

TODOS — Qual?

DEZ RÉIS — Anunciam-se dois empréstimos: um externo, outro interno. Muitos mil contos de réis!

TODOS — Dois empréstimos!

CONTO — Graças! Vão curar-se as Finanças! (Mutação.)

QUADRO III

O mesmo palácio, porém novo e esplêndido. Ouro em abundância. As Finanças transformam-se,


aparecendo resplandecentes1 de ouro e pedrarias. Cessam as danças.

1 1886: resplancedente
20
CONTO — Ó prodígio! Vejam! Vejam! Uma chuva de ouro!

TODOS (Estacando assombrados.) — Oh! (Continua a chuva de ouro até cair o pano.)

MADEMOISELLE X — Queres ser vereador?

TAVARES — Quero.

MADEMOISELLE X — Vereador! Oh! comme je t’aime! Allons souper!1

TAVARES (Saindo com ela, á parte.) — Decididamente a vereança é o melhor caminho para o
coração das mulheres. (Saem, sendo vistos por Soares, que entra com Niquelina e o Doutor Sá
Bichão.)

CENA III

SOARES, DOUTOR SÁ BICHÃO, NIQUELINA

SOARES — Ah! não estar aqui a tia Chiquinha! Sempre queria que visse com quem ali vai
publicamente o seu ai-jesus! Uma francesa! Ainda se fosse fazenda nacional.

DOUTOR — Lé com lé, cré com cré.

SOARES — Olha, Moedinha, é aquele o pretenso noivo de minha namorada.

NIQUELINA — O tal que quer ser vereador?

SOARES — Justamente. Só tu me podes salvar.

NIQUELINA — Ah! se eu fosse uma moeda de mais valor, poderias considerar-te salvo; mas, enfim,
havemos de dar-lhe as tintas.

DOUTOR — Não desespere, meu amigo; quem espera sempre alcança.

SOARES — Três votos consegui eu já tirar-lhe...

NIQUELINA — E não fizeste pouco, porque, segundo me disseste, com alguns mais...

SOARES — Ó Moedinha de minh’alma! com um pequeno esforço havemos de vencer!

DOUTOR — Moedinha não é nome que se dê a ninguém; procuremos um nome para a menina. Qual
há de ser?
SOARES — Qualquer... Argentina, por exemplo!

NIQUELINA — Não gosto... faz lembrar a República.

SOARES — Candoca... Miloca... Dodoca...

DOUTOR — Isso tem muita oca, e ela não é amarelinha.

1 Trad: Oh! como te amo! Vamos cear!


21
SOARES — Ah! achei! Belisária!

DOUTOR — Não é mau, mas tenho coisa melhor: Niquelina. Vou explicar a origem desta palavra.

SOARES — Não é preciso explicar; vem de níquel.

DOUTOR — Você é esperto.

NIQUELINA — Agrada-me muito Niquelina.

Terzettino

(Música de José Simões Júnior.)

OS TRÊS — Niquelina!
Niquelina!

NIQUELINA — Qualquer pessoa ladina


Que saiba a língua latina
Coa origem logo atina
Da palavra Niquelina.
Pois de níquel de origina,
Como de neve neblina,
De Celeste Celestina,
De brilhante brilhantina.
Niquelina
Faz-me lembrar uma chalaça:
Siá Niquelina, com você não quero graça!

OS TRÊS — Siá Niquelina, com você não quero graça!

CENA IV

OS MESMOS, DOUTOR MÁXIMO

MÁXIMO — Sentiram?

TODOS — O quê?

MÁXIMO — Pois não sentiram?

TODOS — Mas... o quê?

MÁXIMO — O terremoto!

SOARES — Terremoto! Pois houve terremoto?

22
MÁXIMO — Sim, senhor. Apesar do Observatório informar que não sentiu ali o menor movimento,
nem mesmo oscilação na luneta meridiana, afirmo que houve; porque no meu gabinete de trabalho,
que fica perto do Castelo, senti uma diminuição sensível na pêndula.

SOARES — Deveras?

DOUTOR — Mirabile dictu1

NIQUELINA — Cacete!

MÁXIMO — Além disso, houve uma baixa no termômetro, uma oscilação nas correntes fluidas do
sol, e uma ventania rija. Impressionei-me com estes fenômenos, que muitas vezes são precursores de
vulcões e terremotos. Nápoles estremeceu quinze dias antes do vulcão do Vesúvio, que sepultou
Pompéia. Para que possam compreender, vou estabelecer uma símile... Plínio estava em Como...

SOARES — Como?

MÁXIMO — Como como? Como... Imaginem que Como é como a Armação. Plínio...

DOUTOR — Mas qual: o moço ou o velho?

MÁXIMO — Um deles. Plínio viu um penacho de fumo e fogo sobre Pompéia, que é como o alto da
Tijuca. Que fez Plínio?

DOUTOR — Não sei.

SOARES — Nem eu.

NIQUELINA — Nem eu.

MÁXIMO — Sei eu. Aproximou-se na sua galera até Castellamare, que é como Botafogo, para
examinar a erupção majestosa... e morreu sufocado.

NIQUELINA — Coitado!

DOUTOR — Parce sepultis1

MÁXIMO — Mas isto foi há muito tempo.

DOUTOR — In illo tempore.2

MÁXIMO — Hoje a química dinâmica teria evitado o vulcão de Pompéia e o terremoto de Lisboa.
Infelizmente naquele tempo não havia observatórios.

DOUTOR — Mas agora que os temos...

MÁXIMO — É sua obrigação prevenir os vulcões e terremotos. E o nosso que se acautele, porquê,

1 Trad: Que declaração admirável! (por ironia)


1 Trad: Paz aos mortos.
2 Trad. Naquele tempo.
23
se as correntes telúricas convergirem para o morro de Santo Antônio, teremos um terremoto; se,
porém, convergirem para o Bico do Papagaio, na Tijuca, havemos de ter um magnífico vulcão! Mas,
mudando de assunto, não viram por aqui o Fagundes... o deputado?

TAVARES — Aqui não esteve ninguém.

MÁXIMO — Preciso urgentemente falar-lhe. É ele quem vai apresentar à Câmara o requerimento
em que eu peço um prêmio de mil contos pela descoberta de um medicamento profilático contra a
febre amarela, e a minha nomeação de enviado extraordinário junto a todas as nações da Europa!

NIQUELINA — Todas?

MÁXIMO — Vou ver se o encontro noutra sala. (Saindo.) Ora o Observatório! (Sai.)
CENA V

SOARES, DOUTOR SÁ BICHÃO, NIQUELINA, depois


a INSPETORIA DE HIGIENE

SOARES — Será uma calamidade se o requerimento deste homem for deferido.

NIQUELINA — Por quê?

SOARES — Porque ficaremos privados dele.

DOUTOR — É uma grande cabeça. Hei de procurá-lo para comunicar-lhe a idéia do meu sol
artificial. (Outro tom.) Mas tomamos ou não tomamos alguma coisa? Que diabo viemos nós fazer
aqui?

SOARES — É verdade. (Sentam-se os três. A um caixeiro.) Olá, traga-nos cerveja nacional!

DOUTOR — Nacional? Abrenuntio!1 Traga-me uma cajuada!

NIQUELINA — Outra para mim.

SOARES — Apoiado! Isso ainda é mais brasileiro! Cajuada para três. (São servidos. Entra a
Inspetoria de Higiene, examina todas as garrafas e copos, e vem afinal à mesa em que se acham
sentados os três personagens. Tira-lhes os copos das mãos, prova e examina o conteúdo.)

INSPETORIA — Que é isto? Com licença!... Ah! cajuada!... Podem continuar... Cuidado com o
gelo... Não abusem!...

NIQUELINA — Quem é esta intrometida?

DOUTOR — É a Junta de Higiene.

INSPETORIA— Perdão, a Junta, minha irmã mais velha, morreu... Eu sou a Inspetoria de Higiene!

OS TRÊS — Ah! (Levantam-se. Durante o canto, Soares paga a despesa.)

1 Trad: Eu passo.
24
Coplas

(Música de Audran.)

I
INSPETORIA — Não, meu caro Doutor,
Não, senhor!
Eu cá não sou a Junta,
Que há muito está defunta...
Ouça o que dizer vou,
E saberá quem sou.

II

Sou da Higiene a Inspetoria


Que à Junta vem substituir,
O povo inteiro em mim confia,
E o meu dever hei de cumprir.

III

Algumas péssimas bebidas


Faço tenção de condenar;
Naturalmente, enraivecidas,
Vão mil garrafas estourar!
Não, meu caro Doutor, etc.

SOARES — De que morreu a Junta?

INSPETORIA — Afogada em vinho artificial! Ih! que de gente aí vem! Adeus! Vou ver quem tem
garrafas vazias para vender!

SOARES — Vazias, não: cheias.

(A Inspetoria sai.)

DOUTOR — Vamos nós também. Desempatemos o beco.

SOARES e NIQUELINA — Vamos! (Saem todos.)

CENA VI

CAIXEIROS, MELO, 1º e 2º FREGUÊS, fregueses de ambos os sexos.

MELO — Que bonito ato!...

1º FREGUÊS — Que bela música!...

25
2º FREGUÊS — Que belo tango!

MELO — Oh! o tango! o tango!... Que tango, meu Deus!... que tango!

TODOS (Com um suspiro.) — Ai!...

CORO

Tango

(Música de Abdon Milanês.)

Oh! que música bonita!


Que feliz inspiração!
Não há tango mais catita!
Faz pulsar o coração!
Bis! Bis! Bis!
Quem o ouve logo diz!
Bis! Bis! Bis!
Cresce do Heller o nariz!...

II

O velho torna criança,


Dá vigor a quem não tem,
A todos excita a dança...
Como é bom! como faz bem!
Bis! Bis! Bis! etc.

(No fim do canto, toque de campainha elétrica.)

TODOS — O 3º ato! O 3º ato! (Saem em confusão.)

CENA VIII

UM CAIXEIRO, só; depois TAVARES E MADEMOISELLE X

O CAIXEIRO — O patrão dá um cavacão solene com estes intervalos curtos: eu não!

TAVARES (Entrando ligeiramente embriagado e acompanhado por Mademoiselle X.) — Seis mil e
quinhentos! safa! Que rombo nos “Eventuais”!

MADEMOISELLE X (Tomando-lhe o braço.) — Dis-moi,1 vamos dar um passeio a carro?

TAVARES — Tu arranjas-me o voto do Comendador?

1 Trad: Dize-me
26
MADEMOISELLE X — Já lhe dises que sim!

TAVARES — Então, allons-nous embore... (À parte.) Cara eleição!...

MADEMOISELLE X — Vereador! oh! comme je t’aimerais, mon petit cheri!2

O CAIXEIRO — Pobre rapariga! está livre de uma penhora! (Sai. Mutação.)

QUADRO V

Rua do Ouvidor.

CENA 1

Passeantes, vendedores de jornais, baias, etc., depois DONA CHIQUINHA.


MINDOCA, depois TAVARES, depois o SENHORIO

Coro

(Música de L. Gregh)

Aqui na Rua do Ouvidor


O tempo vai rapidamente,
Distrai-se e folga toda a gente.
Ninguém se lembra até que faz calor!
De cá pra lá,
De lá pra cá,
Passeando alegremente o povo está
A palestrar,
A conversar,
A tesourar,
A difamar.
Quem amor à pele tenha
Cá não venha.

O VENDEDOR DE JORNAIS — Gazeta da Tarde! Quarenta réis!... trazendo o programa das


corridas!

O VENDEDOR DE BALAS — Balas de ovo, altéia, caju, coco à baiana, abacaxi, lima e rosa!
Freguês, quer que embrulhe cem ou duzentos?

VENDEDOR DE FÓSFOROS — Duas caixas de fósforos por cem réis!

OUTRO — Olha os fósforos de luz elétrica!

2 Trad: Oh! como te amaria, meu queridinho.


27
DONA CHIQUINHA (Entrando com Mindoca.) — Vamos, Mindoca; já é tarde, e ainda temos
muitas voltas que dar.

MINDOCA — Mindoca! Toujours1 Mindoca! Ainda se me chamasse Mendocá!

DONA CHIQUINHA — Quero saber onde diabo se meteu o diabo daquela mulata!

VENDEDOR DE JORNAIS — Gazeta da Tarde!

DONA CHIQUINHA — Gazeta da Tarde!... Sabe Deus se ela não foi para lá!

MINDOCA — Ora! para quê?

DONA CHIQUINHA — Pois não sabes que eles andaram outro dia em procissão com as escravas de
uma pobre senhora, coitadinha! que ficou com as mãos em mísero estado de tanto dar pancada? Até
tiraram o retrato com elas!

MINDOCA — Ó1 mon Dieu! Quel ennui!2 Lá vem o tal seu Tavares.

TAVARES (Entrando.) — Oh! Senhora Dona Chiquinha! Dona Arminda! Como têm passado?... Que
feliz encontro!

DONA CHIQUINHA — Vamos passando assim, assim, muito obrigada. Seja muito bem aparecido.
— Como está a Maricota? E a Teca? A Dona Josefina já ficou boa de todo?

TAVARES — Estão todas boas. Não mandaram recomendações, porque não sabiam que eu as
encontrava.

DONA CHIQUINHA — Qualquer dias desses hei de visitá-las. Já se mudaram?

TAVARES — Não, senhora; já não nos mudamos para Santa Teresa.

DONA CHIQUINHA — Por quê? a casa não serviu?

TAVARES — Servir, servia, mas o patife do senhorio teve a petulância de exigir fiador. A senhora
compreende... um homem na minha posição...

DONA CHIQUINHA — Na realidade... Um candidato a vereador! A propósito, como vamos de


candidatura?

TAVARES — Perfeitamente... perfeitamente...

DONA CHIQUINHA (Rindo-se e apontando para Mindoca.) — Olhe que o dito, dito!

TAVARES — Como sou feliz!

MINDOCA (Com mau modo, à parte.) — Imbecil!

1 Trad: Sempre
1 1886: oh!
2 Trad: Ó meu Deus! Que tédio!
28
O SENHORIO (Que, ao atravessar a cena, reparou em Tavares.) — O Senhor Tavares dá-me uma
palavra?

TAVARES (Á parte.) — O diabo! o senhorio! (Alto) Dão licença?

DONA CHIQUINHA — Pois não! Nós vamos, que ainda temos que ir à Gazeta da Tarde.

TAVARES — Fazer o quê? Tomar uma assinatura?

DONA CHIQUINHA — Não; que idéia! Vou ver se me dão notícias da Genoveva, que fugiu. Até
logo, seu Tavares. Apareça.

TAVARES — Minhas senhoras! (Saem as senhoras, porém Mindoca nem sequer olha para ele.)

TAVARES (Consigo.) — A pequena parece que não morre de amores por mim. Ora! que tem isso?
(Outro tom.) Bom! agora este cadáver! (Alto, ao senhorio.) Estou às suas ordens.

SENHORIO (De pernas abertas, ventre empinado e mãos nas cadeiras.) —O seu Tavares, há seis
meses que você não me dá um vintém de aluguel de casa!

TAVARES — Fale mais baixo, pelo amor de Deus!

SENHORIO — Já não lhe peço que me pague... isso é difícil... Peço-lhe que se mude, o que é mais
fácil.

TAVARES — Veja que estamos na Rua do Ouvidor.

SENHORIO — Há muito quem queira e... que pague.

TAVARES — Ouça cá, Senhor Magalhães... eu estou com um negócio de olho... um negócio com a
Câmara Municipal!

SENHORIO — Hum!.. negócio com a Câmara! Você!... Olhe o Lamberti!...

TAVARES — Não, o meu negócio é pela certa. Sou candidato.

SENHORIO — A vereador? (Gesto afirmativo.) O senhor? (Idem.) Não se mude, meu amigo!...

TAVARES — Posso contar com o seu voto?

SENHORIO — Não, que eu sou português. Mas tenho amigos eleitores... meu genro, por exemplo...
e vou trabalhar por Vossa Senhoria. A casa é sua (Baixo.) Há seis meses que tenho uma proposta na
Câmara. Puseram-lhe uma pedra em cima...

TAVARES — Pois o meu primeiro ato será remover essa pedra. Quer vi tomar alguma coisa ao
Pascoal?

SENHORIO — Onde Vossa Excelência quiser, mas sou eu quem convida

TAVARES (À parte.) — Acaba por me dar majestade! (Tomando-lhe braço.) Não vê, Senhor
Magalhães, que eu... (Saem, não se ouvindo o resto.)

29
CENA II

SOARES, DOUTOR SÁ BICHÃO, NIQUELINA

(Entram a espirrar e mostram-se constipados durante todo o quadro.)

DOUTOR — Atxim!

SOARES — Vi... vi... va... Atxim!...

NIQUELINA —Do... do.. . minus... Atxim!...

SOARES — Atxim!... Vi...va!...

DOUTOR — Quem nos mandou ir ao tal Lazareto?

SOARES — Que noite! Andei em camisa, com a cama-de-vento às costas de um lado para outro.

DOUTOR — Eu vi-me em papos-de-aranha. Horresco referens1... que casa!

NIQUELINA — Então, pelo que vejo, todas as obras deste país racham?

DOUTOR — É do clima, talvez.

SOARES — Mas ao menos é obra nacional. Antes isso do que ir procurar arquitetos na estranja.
Com um pequeno conserto a coisa fica boa!

NIQUELINA — Com quê, é esta a famosa Rua do Ouvidor?

DOUTOR — Antiga de Aleixo Manuel.

SOARES — Esta é ainda a rua da moda, enquanto não se apronta a do Senhor dos Passos. Outro
estrangeirismo! Uma rua com galerias! Uma espécie de Rua do Rivoli, de Paris! Ora isto! Ora isto!

NIQUELINA — Deve ser uma coisa esplêndida.

SOARES — Duvido!

NIQUELINA — Ainda hei de vê-lo mudar de opinião com o seu bairrismo. (Vendo passar Chuchu.)
— Mas o que é aquilo?

CENA III

OS MESMOS, CHUCHU

DOUTOR — Realmente, não sei o que possa ser.


1Trad: Tremo ao contá-lo. (Frase de Enéas, antes de relatar a morte de Laocoonte e
seus dois filhos devorados por duas serpentes.)
30
SOARES — Vamos sabê-lo. Olá! ó meu caro senhor!

CHUCHU (Voltando-se.) — Pum!

DOUTOR — Pum?

NIQUELINA — Pum?

SOARES — Pum!!

CHUCHU — Pum! pum! pum!

DOUTOR (À parte.) — É uma salva de artilharia! Miseret me tui.1

SOARES — Perdão, senhor, mas, para satisfazer a curiosidade aqui desta senhora, quisera pedir-lhe
que nos explicasse...

CHUCHU — Pum! Quem eu sou? Pum! Sou o Chuchu!

OS TRÊS — O Chuchu?

CHUCHU — O homem a quem está reservada uma grande glória! Um brasileiro que há de honrar o
seu país.

SOARES (Interessado.) — Um brasileiro! É comigo!

CHUCHU — Pum!

OS TRÊS — Pum!

Copla

(Música de Abdon Milanês.)

CHUCHU — A carabina tão valente


Não há valente que resista,
Com pulso firme e boa vista
Deita-se fora de combate um batalhão.
Se num minuto tão somente
Fazem-se trinta pontarias,
Numa semana, ou sete dias,
Trezentas mil e quatrocentas se farão.
Vou querer uma patente;
Hei de matar a toda gente,
E até de inveja, ouso afirmar,
Vai o Krupp estourar!
Pum! pum!
O canhão Krupp há de estourar!

TODOS — Pum! (Chuchu sai.)

1 Trad: Tenho pena de ti.


31
DOUTOR — Há de ir longe este Chuchu.

SOARES — Se o governo não lhe disser: xô! xô!

NIQUELINA — O que será caso de fazer: xi! xi!

DOUTOR — Vocês são uns Lopes Cardosos incorrigíveis! Se eu fosse governo, não hesitaria em
proteger o inventor da carabina: si vis pacem, para bellum1!
CENA V

OS MESMOS, UM PREVIDENTE

(O Previdente entra carregado com malas, botas, cama-de-vento e vários objetos; esbarra em
Soares.)

SOARES — Pedaço de bruto! Está cego?

PREVIDENTE — Desculpe, meu caro senhor, mas a pressa com que sou obrigado a mudar-me...

NIQUELINA — Por quê? Está lhe caindo a casa?

PREVIDENTE — Pior do que isso, e admira-se vê-los aqui tão sossegados. Não sabem que o mundo
vai acabar?

NIQUELINA — Acabar? pois acredita em tal caraminhola?

PREVIDENTE — O sábio Nostradamus foi que o disse há muito tempo. Se a gente não acreditar nas
profecias dos sábios, em quem há de acreditar? Além disso o Diário de Notícias já publicou o
programa do cataclisma.

DOUTOR — Mas, uma vez que o mundo se acaba, para onde se muda o senhor?

NIQUELINA — Para o outro mundo?

SOARES — Para o Mundo Novo?

PREVIDENTE — Para a Praia Grande. É possível que a coisa não chegue até lá... e, quando chegue,
há de levar seu tempo, pois o desastre, diz o programa, começará pelas grandes capitais. Pelo sim,
pelo não, já fiz testamento.

OS TRÊS — Testamento?

PREVIDENTE — Sim; há morrer ou viver; caso o mundo se acabe, não quero que minha família
fique desamparada.

DOUTOR — Olhe, meu amigo, você pode dizer como Bias...

PREVIDENTE — Que dias?

1 Trad: Se queres paz, prepara-te para a guerra.


32
DOUTOR — Dias, não; Bias, o filósofo... Omnia mecum porto!1

SOARES — Sossegue, porque, se o mundo se acabar, o senhor vai para o céu direitinho.

DOUTOR — Diz bem: beati pauperes spiritu.2

PREVIDENTE — Com sua licença; vou apanhar a barca. (Sai.)

CENA VI

OS MESMOS, depois BOLESLAU, OLGA, JANOS e ciganos

SOARES — Como este há muitos! Ah! lá vêm os ciganos que estão acampados em São Cristóvão.

DOUTOR — Já sei; a família Vovóide.

NIQUELINA — Vovóide?

DOUTOR — Quer que lhe diga a origem desta palavra?

Terceto e coro

(Música de Offenbach.)

BOLESLAU e OLGA — De terra em terra vagabundeando,


Vimos das bandas da formosa Hungria,
Comendo apenas lá de quando em quando,
Dormindo expostos à noitada fria.
Mas o viver errante não nos deixa
Pesar nenhum do coração no fundo,
Sem murmurar a sombra de uma queixa,
Vamos alegres percorrendo o mundo.

BOLESLAU — Todos nós somos bons caldereiros.

JANOS — Barateiros.

OLGA — E trazemos um bom sortimento.

JANOS — De espavento.

BOLESLAU — Caldeirões, canjirões e chaleiras.

JANOS — Cafeteiras.

OLGA — E marmitas com grandes argolas.

1 Trad: Trago comigo todos os meus bens


2 Trad: Bem-aventurados os pobres de espírito
33
JANOS — Caçarolas.

BOLESLAU e OLGA — Porém saiba a nossa freguesia


Não se fie.
Não vimos do fundo da Hungria
Para fiar.
É comprar
E pagar.

JANOS — É comprar
E pagar.

BOLESLAU e OLGA — De terra em terra vagabundeando, etc...

CORO — Lá, lá, lá, lá, lá, lá.

OLGA — Meus senhores, quem compra belas argolas para cadeados, ricos ganchos de metal para
pendurar toalhas?...

BOLESLAU — Caçarolas de cobre... tachos... canjirões...

OLGA — Tachinhas de cabeça amarela... e outras coisinhas mais... Quem compra? Quem compra?

BOLESLAU — Vamos para adiante; aqui não fazemos negócio.

OLGA — Pois vamos. (A sair.) Quem compra ricas argolas para cadeado, belos ganchos de metal
para pendurar toalhas?

DOUTOR — Pois, senhores, a tal família Vovóide é bem curiosa.

SOARES — E fala bem o português.

VOZES (Fora.) — Viva o Doutor José Maria! Viva!... Viva o ilustre democrata! Viva!

NIQUELINA — Que gritaria é esta?

SOARES — Negócios da política... resultado da apuração, ou antes, da depuração do Doutor José


Maria, que se tem visto em apuros.

DOUTOR — É bom que nos afastemos um pouco... Há certa exaltação política nestas ocasiões...
(Gesto de quem dá uma navalhada.) Cautela e caldo de galinha...

NIQUELINA e SOARES — Tem razão. (Afastam-se.)

CENA VII

OS MESMOS, DOUTOR JOSÉ MARIA, um ENTUSIASTA, POVO

JOSÉ MARIA — Esbulhado!... esbulhado do meu direito! Vou fazer um meeting1 o meu terceiro

1 Trad: Comício
34
meeting! — Cidadãos! estais convidados para esta noite, no Politeama!

UM ENTUSIASTA — Muito bem!

JOSÉ MARIA — Agora peço-vos que me deixeis tranqüilo. Vou tomar o bonde, que são horas de
jantar.

SOARES — O Doutor tem muitos com quem se console...

DOUTOR — Sim, porque mal de muitos consolo é.

SOARES — Houve este ano uma verdadeira degolação dos inocentes. (José Maria aperta-lhes a
mão e sai felicitado por pessoas do povo.)

NIQUELINA — E o gato!.. onde está o gato?

DOUTOR — Que gato!

NIQUELINA — Ouvi dizer que outro dia, na Câmara, um gato irreverente miou durante uma sessão
inteira.
UM ENTUSIASTA (A Soares.) — Ó Soares, quanto assinas para a chapa de ouro?

SOARES — Que chapa?

UM ENTUSIASTA — Ora que chapa. A chapa que vamos oferecer ao José Maria.

SOARES — Isso parece um epigrama... Oferecer uma chapa a um tribuno!

NIQUELINA (Ao Doutor.) — É uma asneira.

DOUTOR — Chapada.

SOARES — Podes contar com a minha assinatura.


UM ENTUSIASTA — Fica certo que guardaremos segredo... sei que és empregado público... não
deves comprometer-te. (Vai dirigir-se a outras pessoas, e sai.)

CENA VIII

OS MESMOS, GENERAL REDONDO, que logo sai depois um SUJEITO

REDONDO (Chegando como uma bomba.) — Uff!

VOZES DO POVO — Oh! que figura!.... Que tipo!... Quem será?

REDONDO — Pois não me conhecem? Sou o general Redondo!

TODOS — O Redondo!

Lundu

(Música popular.)

35
REDONDO — Meu senhores e senhoras,
O Redondo aqui está.
Cheguei hoje às nove horas.

CORO — O Redondo cá está!

REDONDO — Perseguido, precavido,


Combalido, foragido,
Vim fugido
Para cá.

CORO — O Redondo cá está.

SOARES — Seja bem aparecido.

CORO — O Redondo cá está.

DOUTOR — Entre nós ‘stá garantido.

CORO — Redondo cá está.

SOARES — Vendo o caso escuro,


Pôs a pele no seguro;
A lembrança não foi má.

CORO — Redondo cá está.

NIQUELINA — Chama-se isto achar um furo.

CORO — O Redondo cá está.

DOUTOR — Morreu de velho o seguro...

CORO — O Redondo cá está.

NIQUELINA — Quis meter-se em barafunda,


Mas por isso enorme tunda
Por um triz apanhou lá.

CORO — O Redondo cá está.

SOARES — Que política iracunda!

CORO — O Redondo cá está.

DOUTOR — Que terrinha furibunda!

CORO — Redondo cá está.

DOUTOR — Deu em nada a tal borrasca:

36
Pintus mortus est in casca1
Cá e lá más fadas há...

CORO — O Redondo cá está.

DOUTOR, SOARES, NIQUELINA e REDONDO —


Meus senhores e senhoras,
O Redondo aqui está...
Chegou hoje às nove horas!

CORO — O Redondo cá está.

REDONDO — Bem! Hotel dos Estrangeiros! Sempre às ordens! (Sai.)

NIQUELINA — Que é aquilo?


SOARES — Um clarão!

DOUTOR — Não há que ver!... É um incêndio! Scintilla contempta excitavit incendium.2

NIQUELINA — É muito perto!

TODOS — É sim, é bem perto!... Vamos ver!

UM SUJEITO (Que chega.) — O incêndio é nos Fenianos.

VOZES — Nos Fenianos! Vamos ver!... Ora! pobres Fenianos! Corramos! (Saída geral.)

CENA IX

DONA CHIQUINHA, MINDOCA, depois TAVARES

DONA CHIQUINHA — Nem novas nem mandados!... Onde diabo se meteria o diabo da mulata?

MINDOCA — Allons-nous en, je suis fatiguée!3

TAVARES (Entrando levemente embriagado.) — Meu senhorio pagou-me dois grogues1e quatro
coquetéis.2 Não há como a Câmara Municipal! À vista deste resultado, vou rodar e pedir o voto ao
meu taverneiro... (Sai. Mutação.)

QUADRO VI

A Praça de touros na Rua do Marquês de Abrantes. A cena representa o espaço reservado às


ascensões aerostáticas do Capitão Martinetti. O balão, meio cheio, ocupa o centro. Alguns homens

1 Latim macarrônico
2 Trad: Uma ínfima centelha provocou um incêndio
3 Trad: Vamo-nos embora, estou cansada.
1 1886:grogs.
2 1886: cocktails
37
estão ocupados no serviço de enchimento.

CENA I

Povo, empregados, depois o DOUTOR SÁ BICHÃO, SOARES, NIQUELINA

(Música de Offenbach.)

CORO — Eis a postos toda a gente,


Vai subir o tal balão;
Vamos ver se finalmente
Subir pode o capitão.

(Entram Soares, Doutor e Niquelina.)

SOARES — Cá estamos na praça de touros.

DOUTOR — Queira Deus que desta vez não haja fiasco. Cá por mim desconfio que o Capitão não
passa de um troca-tintas. Troca-tintas é uma palavra composta de troca e de tintas. Havia no tempo
de Estácio de Sá um pintor...

SOARES — Ó Doutor, que mania! Pois até aqui quer explicar a origem das palavras?

NIQUELINA — Deixa isso para a gazetinha do Jornal.

SOARES — E para o livro que pretende publicar...

DOUTOR — Que há de ser um manancial precioso para o estudo da língua portuguesa...

DOUTOR — Tenho, e por sinal que fazem-me crescer água na boca. Hoje são as luminárias da
Avenida da Liberdade, que dizem ser um lugar lindo.

SOARES — Ontem foram as iluminações no Tejo. Queimaram-se nada menos do que cem barricas
de alcatrão. Nunca pensei que em Lisboa houvesse tanto alcatrão.

DOUTOR — Sempre a zombar!

NIQUELINA — Quem sabe se o telegrama é verdadeiro... Ouvi dizer que alguns foram arranjados
aqui...

DOUTOR — Seja como for, o que é certo é que há de ser uma festa de arromba e a quê, se eu
pudesse, não deixaria de assistir.

NIQUELINA — É só querer. Esquece-se do poder que tenho, graças a esta varinha que me deu El-
Rei Conto de Réis?

SOARES — É exato. Podes viajar com a rapidez do pensamento...


NIQUELINA — E sem pagar transporte, que é o melhor.

DOUTOR — Então vamos! Nem vale a pena esperar pela subida do balão. (Vão para sair.)

38
SOARES — Alto! Peço a palavra para uma explicação... Entendamo-nos. E a volta? É preciso pagar
a passagem?

NIQUELINA — Nada. Está claro que voltamos pelo mesmo processo.

SOARES — E amanhã bem cedo. Não quero deixar de assinar o ponto na repartição.

NIQUELINA — Podíamos partir daqui mesmo, mas isto iria causar espanto a esta gente. É melhor
fecharmo-nos num quarto, com janela e zás! (Faz sinal com a varinha.)

DOUTOR — Neste caso vamos!

SOARES e NIQUELINA — Vamos! (Saem.)

CENA II

Povo, empregados, depois CAPITÃO MARTINETTI e MADEMOISELLE X, vestida de


MEFISTÓFELES

(Música de Ganée.)

CORO — Eis o grande Martinetti,


Eis o grande Capitão.
Que promete e repromete
Ir às nuvens num balão.
Que topete! que topete!
Que tipão
Tão charlatão!
Martinetti, como vai?
Não suba, Martinetti,
Porque quem sobe cai!

MARTINETTI — Sou o famoso aeronauta


Que pregou mais de uma flauta,
E que às nuvens foi, pois não,
Sem auxilio de balão;
Porém hoje estão tomadas
Providências acertadas.
Vênus, Marte, Juno, Júpiter,
Hei de tocar coa mão.
Tenho gente; desta feita
Vou fazer bela receita;
Graças, graças ao balão,
Vou ganhar um dinheirão.

CORO — Vá embora,
Capitão;
Ao balão

39
Sem demora.
E Deus lhe permita cá
Voltar, olá!

MARTINETTI — Sem receio vou subir,


Hão de todos aplaudir.

CORO — Sim, se desta vez subir,


Vamos todos aplaudir.

MARTINETTI — Meus senhores, a ascensão de hoje vai ter mais um atrativo. Além do novo balão
que vai substituir o Condor, que, com dor do meu coração, ardeu no último domingo, esta gentil
senhorita presta-se a acompanhar-me às alturas.

TODOS — Bravo!

MADEMOISELLE X — Bem sabes que bebo os ares por ti... é justo, pois, que vamos aos ares
juntos.

MARTINETTI — Eia? à ascensão!

TODOS — À ascensão! (Capitão circula a praça dando a mão a Mademoiselle X.)

MARTINETTI — Meus senhores, até já! Nossa demora será curta. Chegando à altura do primeiro
telhado, tornamos a descer. Viva o povo brasileiro! (Entra para a barquinha com Mademoiselle X.)
Larga tudo! (Mutação.)

QUADRO VII

Nuvens

CENA ÚNICA

MARTINETTI, MADEMOISELLE X

(A orquestra toca a introdução do seguinte.)

Dueto

(O bailo do Capitão vem de esquerda com ele e Mademoiselle X; atravessa lentamente a cena e
desaparece do outro lado.)

(Música de Audran.)

MARTINETTI — Mademoiselle em tal altura,


Sem recear indiscrições,
Podemos ambos, que ventura!
Abrir os nossos corações.
Desde que a vi a vez primeira
Comer no Hotel Continental,

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Pelo seus olhos, feiticeira,
Senti paixão descomunal.

MADEMOISELLE X — Gostas de mim?

MARTINETTI — Você duvida?

MADEMOISELLE X — Não sei, não sei se deva crer.

MARTINETTI — És o meu amor, minha vida,


Eu hei de amar-te até morrer.

MADEMOISELLE X — Devo crer?

MARTINETTI — Deves crer.

MADEMOISELLE X — Meu somente hás de ser?

MART1NETTI — Teu somente hei de ser.

MARTINETTI — Meu doce amor, virás comigo


Sempre que às nuvens eu vier,
Pois ao teu lado nem sequer
Tenho consciência do perigo.
Que mulher!

AMBOS — Oh! como é delicioso


Amar.
Eu vou morrer de gozo,
Eu vou morrer no ar.

(Some-se o balão. Mutação.)

QUADRO VIII

A Avenida da Liberdade em Lisboa, iluminada por ocasião das festas do consórcio do Príncipe Dom
Carlos. A música do dueto prende-se à do Hino Português.

ATO II

QUADRO IX

O Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

CENA I

Doentes de ambos os sexos. Visitantes. Empregados do Hospital depois:


SOARES, NIQUELINA
41
(Música de Genée.)

CORO — Oh! que falta de piedade!


Que maldade!
Quanta bulha! quanta gente!
Não têm pena de um doente!
Justos céus! que disparate!
É provável que nos mate
Tal dislate!
A tresler tanto rumor,
Vai nos pôr!
Oh! que horror!

1º DOENTE — Vamos, meus amigos, saiamos daqui. Esta moda de visitar o Hospital com música e
foguetaria devia ser abolida.

2º DOENTE — Tem toda razão, seu Gaspar; um pobre homem doente que ature um dia inteiro
semelhante amolação! Felizmente a banda de música já está cansada de tocar!...

1º DOENTE — Parece um espetáculo! Vou me meter na cama; cubro a cabeça e deixo-me ficar. Não
estou para ainda em cima levar vaias dos malcriados que nada respeitam.

2º DOENTE — Nem eu.

TODOS — Nem eu... nem eu! (Saem repetindo o coro.)

SOARES (Entrando, a Niquelina.) — Só o desejo de mostrar-te o Hospital me faria acompanhar-te.

NIQUELINA — Pois tão aborrecido achas tudo isto?

SOARES — Acho que é um verdadeiro sacrilégio, meu caro Meio Tostão... Deixa-me chamar-te
assim, já quê, para me não comprometer, resolveste enfiar as masculinas calças. Tudo isto me
revolta... Se eu fosse a administração da Santa Casa, que é na realidade uma casa santa, há muito
tempo não haveria visitação. Os infelizes doentes passam tormentos neste dia. O ruído, a música, o
perfume, os risos, a dinamite que estoura lá fora, as perguntas deste visitante, a impertinência
daquele, os olhares daquele outro, o sorriso maligno de uns, a compaixão de poucos, a indiferença de
muitos, tudo isto constitui um verdadeiro suplício para quem só precisa de resignação e sossego.

NIQUELINA — O fato é que não deixas de ter razão.

SOARES — Tanto é este o meu modo de pensar, que não quis trazer minha tia e minha prima, que
muito desejavam vir.

NIQUELINA — Por falar nela: como vai o outro com a eleição?

SOARES — O maldito tem furado como um demônio. Não há para estas coisas como ser caradura
— os durum1—, conforme diz o Doutor. Neste andar é eleito, e lá se vai a minha última esperança.

NIQUELiNA — Pobre municipalidade!

1 Trad: imprudência, descaramento


42
SOARES — Ah! mas ele que se livre de que o pilhe a jeito. Olha, Meio Tostão, sou capaz de esganá-
lo!

NIQUELINA — Sossega. Há de se lhe dar um jeito. Vamos até lá acima?

SOARES — Não; vai tu. Esperar-te-ei aqui. Incomoda-me semelhante visita. Vai.

NIQUELINA — Então até já. (Sai.)

CENA II

VISITANTES, SOARES, XUMBI-CAIENA

XUMBI (Chorando.) — Ih! ih! ih!

SOARES — Que tem, meu amigo? por que chora?

XUMBI — Estou queimado!

SOARES — Queimado? Pois não parece... Queimado física ou moralmente?

XUMBI — Física e pecuniariamente. Peguei fogo.

SOARES — Pegou fogo? Essa agora! mas então quem é o senhor?

XUMBI — Eu? Ouça lá...

Tango

(Música de C. Cavalier)

Eu sou o Xumbi Caiena...


Xumbi... Xumbi...
E já fama não pequena
Adquiri
Na ciência do Direito
Eu sou doutô,
Mas hoje cura do peito,
Se faz favô.
Doentes desenganados
Posso tratá,
Que os ponho logo curados,
Se os não matá.
Agora às portas da morte
Me vejo aqui!
Como é triste a minha sorte!
Pobre Xumbi!

SOARES — Ah! você é que é o Xumbi Caiena?

XUMBI — Um seu remédio! Creio que desta não escapo. Vou para uma enfermaria de cirurgia.

43
SOARES — Trate-se, meu caro, trate-se; olhe, não vá ter a mesma sorte da erva homeriana.

XUMBI — Aquilo era uma imposturia estrangeira - ao passo que eu sou um medicamento nacional.

SOARES — Nacional! Vá depressa, meu amigo... não perca tempo... trate-se; pode ser que eu ainda
venha a precisar dos seus serviços...

XUMBI — Quando quiser tomar-me, estou às suas ordens... Verá que não tenho mau gosto... Sou
uma droga bem tragável... (Sai. Soares acompanha-o; ao voltar, encontra-se com Dona Chiquinha,
Mindoca e Tavares, que têm entrado) Oh! as senhoras aqui?

CENA III

OS MESMOS, DONA CHIQUINHA, MINDOCA e TAVARES

DONA CHIQUINHA —Seu Tavares apareceu lá em casa e quis trazer-nos por força.

SOARES — Ah! foi o Senhor Tavares...

MINDOCA — Foi ele, sim, primo Soares; eu bem não queria vir.

TAVARES — Ô meu caro amigo, que mal faz virem senhoras ao hospital? Não se acha o senhor
também aqui?

SOARES — Então eu sou senhora?

TAVARES — Isto é uma festa como outra qualquer. É boa!

SOARES — Não me dirijo ao senhor. (A Mindoca.) Não desejava que viesse... vai incomodar-se
sem necessidade.

MINDOCA — Que havia de fazer? Maman l’a voulu1

DONA CHIQUINHA — Eu tinha resolvido não vir depois do que você me disse; mas lembrei-me
que podia encontrar aqui aquele diabo daquela mulata e vim. Elas são umas assanhadas que não
perdem estes pagodes. Ah! se eu lhe ponho os gadanhos! Vamos, seu Tavares!

MINDOCA — Não é preciso incomodar-se, Senhor Tavares: nós vamos com o primo.

TAVARES — Justamente. Eu fico por aqui a ver se pesco algum voto com anzol da minha simpatia.

SOARES (À parte.) — Olha que não te cuspam no anzol.

TAVARES — A coisa vai às mil maravilhas. Em Santa Rita, Campo Grande e Guaratiba ninguém
pode com o degas.

DONA CHIQUINHA (À Soares.) — Então vamos, Cazuza. — Mindoca!

MINDOCA (Amuada.) — Toulours Mindoca! Allons!

1 Trad: A mamãe o quis.


44
SOARES — Dispense-me, minha tia; vá a senhora com a prima. Por ali... Preciso falar com o
Senhor Tavares.

MINDOCA — Viens, maman!2

DONA CHIQUINHA (Saindo com Mindoca, à parte.) — Ah! se eu apanho aquele diabo daquela
mulata!

CENA IV

SOARES, TAVARES, depois o DOUTOR SÁ BICHÃO

SOARES (À parte.) — Eu disparo com este sujeito de uma vez!

TAVARES — Então deseja falar-me? Quer talvez dar-me alguns votos?


SOARES — Ah! efetivamente o meu maior desejo é dar-lhe... mas não votos.

TAVARES — Ah!

SOARES — Cartas na mesa e jogo franco. Minha prima não pode suporta-lo. Não quer ser sua
mulher, não quer, entende?

TAVARES — Por quê? Suporá a Excelentíssima Senhora Dona Arminda que seja impossível entre as
nossas famílias uma agremiação moral?

SOARES — Não se trata agora de agremiação moral, mas de sua pessoa que nem ela nem eu
podemos tragar!

TAVARES — Ora, você não sabe o que está dizendo!

SOARES — Não sabe o que está dizendo vá ele! Não seja insolente!

TAVARES — Diz isto porque está na Santa Casa, e eu quero ter a misericórdia de poupá-lo. Faz
como os moleques que atiram pedradas e fogem.

SOARES — Oh! grandessíssimo!

TAVARES — Grandessíssimo o quê?

SOARES — O que quiser. Preencha o claro à vontade.

TAVARES — Grandessíssimo é ele! Não seja burro!

SOARES — Retire o burro, senão...

TAVARES — Não retiro!... (O Doutor entra e ouve.)

SOARES — Ah! Você não retira o burro?...

2 Trad: Venha, mamãe.


45
DOUTOR — Então que é isto? Onde está o burro que querem retirar?

SOARES — Ah! Doutor!... chega a propósito, faça favor! (Leva-o de parte e fala-lhe baixo. O
Doutor aperta-lhe a mão, depois de um gesto de assentimento.)

TAVARES (Consigo.) — Que conspiração será aquela? Vão ver que é contra a minha eleição!
Aquele sujeitinho conhece mais gente do que anexins e pode fazer-me mal.

DOUTOR (Baixo.) — Então: vamos combinar as condições?

SOARES (Baixo.) Vamos. (Saindo, a Tavares.) Eu lhe direi quem é burro!

DOUTOR (À Tavares.) — Espere-me aqui, que já volto. Tenho que lhe propor um negócio.

CENA V

TAVARES, depois SIR JOHN BANK

TAVARES — Um negócio... Hum... Aqui há marosca... Enfim, o que for soará.

SIR JOHN (Entrando.) Estar festa muite concorrida... estar muite gente... Mim pode encontra
pagador... Aoh, Tavares? Como tem passada?

TAVARES — Oh, monsiú, como vai? Que anda fazendo por aqui?

SIR JOHN — Como sabe, mim estar diretor de banca. Mim vem procura pagador. Você não viu
anúncia que banca publica na imprensa?

TAVARES — Anúncio? Não! Que anúncio?

SIR JOHN — Espécie de anúncia de negra fugida, prometendo grafication a quem descobre pagador
ou dá sinais certas.

TAVARES — Oh! publicaram isso? E houve jornal que aceitasse semelhante anúncio?

SIR JOHN — Por quê nóo?... Nós paga, imprensa publica.

TAVARES — Os senhores é que podem. São os donos da terra. Mas com certeza não foram todos os
jornais?

SIR JOHN — Oh, não… Algumas não quis publica... se faz de manta de seda...

TAVARES — Fizeram muito bem: anúncios desta ordem não se devem publicar. (À parte.) Nada!
quem sabe se algum dia não me cairá o raio em casa!

SIR JOHN — Very well! Mim vai procura pagador. Ali right! (Sai.)

TAVARES — Olhe, monsiú, ouça cá... Ah! é verdade, não me lembrava que é inglesmane... ia pedir-
lhe o voto.

46
CENA VI

TAVARES, o DOUTOR SÁ BICHÃO

DOUTOR (Entrando solene.) — Senhor Tavares, fui encarregado pelo meu amigo Soares, de tratar
com Vossa Senhoria um negócio da mais alta gravidade... mesmo porque de minimis non curat
pretor1

TAVARES — Ah!

DOUTOR — O dito Senhor Soares, entendendo que quem de mel se faz, as moscas o lambem, exige
de Vossa Senhoria a retirada do burro.

TAVARES — Do burro? que burro?

DOUTOR — De Vossa Senhoria quero dizer: do burro que o Senhor Tavares atirou à cara do meu
amigo Soares.

TAVARES — Ah! já sei... Não retiro coisa alguma, salvo se o seu amigo retirar primeiramente o
grandessíssimo que me arrumou.

DOUTOR — Distingo. Burro é um insulto que não pode ser comparado a esse superlativo de
superlativo.

TAVARES — E se eu não retirar?

DOUTOR — O meu amigo Soares é o ofendido. Caso Vossa Senhoria não retire a expressão...

TAVARES — E não retiro mesmo!

DOUTOR — Ele, bem a contragosto, pois que se trata de um procedimento que não está nos nossos
costumes nacionais, julga-se obrigado a exigir de Vossa Senhoria uma reparação pelas armas.

TAVARES (Com um salto.) — Um duelo! Está doido?

DOUTOR — Doido é você! Veja agora se quer bater-se também comigo!


TAVARES — Pois o Soares tem coragem para bater-se?

DOUTOR — Ah! ele é um atirador de primeira força. Por isso mesmo a arma há de ser a pistola!

TAVARES — Quer assassinar-me, então?

DOUTOR — Não! diz ele que quer lavar-se.

TAVARES — No meu sangue!

DOUTOR — Não creio que fique muito limpo.

TAVARES — E que mais?

DOUTOR — Cem passos de distância...

1 Trad: O pretor não cuida de banalidades.


47
TAVARES — É pouco, mas enfim seja... Lugar?

DOUTOR — Ilha dos Melões. Cada adversário tomará o seu bonde 1 marítimo, acompanhado pelos
competentes padrinhos e por um médico, que o socorrerá no caso de morte, o que é pouco provável...

TAVARES — Serve-me... Imponho mais uma condição... e é que eu não fique colocado com a frente
para o sol.

DOUTOR — Vá lá... mesmo porque pouco lhe aproveitará, pois o ofendido, desejando um duelo de
morte, quer bater-se em manga de camisa, de modo a oferecer ao adversário o alvo mais alvo que for
possível.

TAVARES — Isto é contra todas as regras... mas, como nos bateremos a cento e cinqüenta passos...

DOUTOR — Cem!... não faça trapaça!

TAVARES — Cem, não; cento e cinqüenta.

DOUTOR — Está bom... ceda cada qual vinte e cinco... sejam cento e vinte e cinco passos...

TAVARES — Pistolas novas... não quero armas já conhecidas do meu adversário...

DOUTOR — Não seja esta a dúvida... vou comprá-las na casa da Cutia ou no Rei dos Mágicos...
Agora o que é indispensável é guardar o maior segredo... do contrário a polícia entorna-nos o caldo,
e com a polícia não podemos, porquê, como sabe, com teu amo não jogues as peras... Este rifão faz-
me lembrar um caso... que...

TAVARES — E quando será o encontro?

DOUTOR — Amanhã às duas horas... Pelo sim, pelo não, despeça-se da família. Até manhã...
Aequo2 animo3!

TAVARES — Até manhã. (À parte, saindo.) Diabo!... cento e vinte e cinco passos... Se eu pudesse
arranjar duzentos! Os meus padrinhos tratarão deste ponto.

CENA VII

DOUTOR SÁ, só; depois o DOUTOR CHAUVIN

DOUTOR — Cumpri o meu dever... fui o amicus certus1 de que fala a artinha.

CHAUVIN (Entrando e dirigindo-se ao Doutor sem conseguir dizer o que pretende.) — Oh! que...

1 1886: bond
2 1886: equo
3 Trad: coragem
1 Redução de: Amicus certus in re incerta cernitur – Trad.: Conhece-se o amigo certo
na ocasião incerta.
48
que... que... que...

DOUTOR (À parte.) — Mau!

CHAUVIN — O ... o ... o ... o ...

DOUTOR — Qual! é melhor que o senhor fale por música... assim não arranja nada!

CHAUVIN — Que.. que...

Copla

(Música de C. Cavalier.)
Eu tenho um pro... pro... pro... pro...
Processo X.P.T.O.
Que tem sido si... si... sido
Muito bem re... re... cebido
Para fazer com que o ga...
Ga... ga... go possa fa... fa...
Fa... falar... co... co... corrente
Co... co... correntemente.
O pobre gago
Mais renitente
Faz um discur...
faz um discurso
Se cai com o bago
E assiduamente
Fre... fre... fre... fre...qüenta o meu curso.

DOUTOR — Bom; já compreendo... o senhor tem um processo para fazer com que os gagos falem
correntemente, e vai abrir um curso... Diga então: que quer que lhe faça?

CHAUVIN — Que... que... que...

DOUTOR — Ora, quem é gago não conversa! (Volta-lhe as costas. Chauvin mostra-se indignado.
Quer articular algumas palavras, mas não o consegue.)

CENA VIII

OS MESMOS, SANTANA

SANTANA — Ah!... Doutor... viu por aí o... o ... o... doutor chefe de polícia?... Disseram-me que...
que... tinha vindo pa... para cá!

DOUTOR — Não... não vi...

SANTANA — Pré... preciso mui... to dele.

CHAUVIN — Um ga... ga... go! que... que... acha... que achado!... (Vai abraçar Santana.)

SANTANA — Que é isto?

49
DOUTOR — Aqui o senhor pensa que você é gago e quer metê-lo no curso.

SANTANA (Repelindo Chauvin.) — Estou ga... ga... go... mas é de raiva!

CHAUVIN — É que... que... que... (Sai furioso.)

DOUTOR — Mas que lhe aconteceu? Quid novi1?

SANTANA — O comandante da estação prendeu um homem e não me a... apresentou o pre... o


preso. Dei ordem que o soltassem... Fui desobedecido... Prendi o comandante... o comandante quis
trancafiar-me no xa... no xadrez.... Tinha por si a força...

DOUTOR — Moral?

SANTANA — Não, a pública!

DOUTOR — E dizem que lobo não come lobo!

SANTANA — Quero encontrar o chefe e expor-lhe o fato.

DOUTOR — É provável que o chefe os ponha a ambos ocuios1 ruorum.2

SANTANA — Não vê! a mim?... Por quê?

DOUTOR — Porque se deixou prender...

SANTANA — Ora... tam... também o senhor! (Saindo a gesticular.) Ora bolas!

DOUTOR (Só.) — Stultorum numerus est infinitus3

CENA IX

DOUTOR, COMENDADOR MINERVINO, depois SOARES, NIQUELINA

COMENDADOR — Ó meu ilustre mestre!... quanto estimo encontrá-lo.

DOUTOR — Ó Comendador!

COMENDADOR — Sabe que estou na lista tríplice? Assim o quis o meu partido...

DOUTOR — Ah! estimo!... Então houve escrutínio prévio?

COMENDADOR — Houve sim. Todo o Partido Liberal reunido!... Treze ou quatorze pessoas...

1 Trad: Que há de novo?


1 1886: occulos
2 Locução macarrônica e interjeitiva, usada jocosa e familiarmente. Trad.: Fora! Rua!
Vai-te!
3 Trad.: O número de todos é infinito
50
DOUTOR — Quê! pois o partido só tem treze ou quatorze pessoas?

COMENDADOR — Pouco mais, depois da mudança da situação... O Visconde presidiu à reunião...

DOUTOR — Ah! o Visconde é agora o chefe?

COMENDADOR — Todos nós somos chefes. Soldados é que não há. Então posso contar com o seu
voto?

DOUTOR — Pois não, com todo o gosto.

COMENDADOR — Até mais ver. Obrigado. (Sai.)

DOUTOR — São impagáveis os tais escrutínios prévios.

SOARES (Entrando.) — Então?

NIQUELINA (Idem.) — O Soares contou-me tudo... Estão ajustadas as condições do duelo?

DOUTOR — Perfeitamente. Ilha dos Melões. Duas horas da tarde. Pistola. Cento e vinte e cinco
passos. Bonde marítimo.

SOARES — Não ponha mais na carta. Vamo-nos embora, que tenho que fazer o meu testamento.

DOUTOR e NIQUELINA — Vamos! (Entram Dona Chiquinha e Mindoca.)

CENA X

OS MESMOS, DONA CHIQUINHA e MINDOCA

DONA CHIQUINHA — Que é isto? É verdade o que me disse seu Tavares? Vão bater-se em duelo?

MINDOCA — Um duelo! Et pour moi!… Comme je t’aime!1

SOARES — O tratante foi dizer tudo! Covarde! É verdade, é, minha tia, mas não diga nada a
ninguém, senão eu mato aquele diabo!

DONA CHIQUINHA — Matá-lo!... ai!... (Tem um ataque de nervos.)

DOUTOR — Levemo-la daqui!

SOARES — Minha tia!

MINDOCA — Maman! (Carregam-na para fora.)

CORO — Bonito! bonito!


Houve um faniquito!
Que sucedeu?
Que aconteceu?
Desmaiada está!

1 Trad: E por minha causa! Como eu te amo!


51
Meu Deus! que terá
A pobre senhora?
Que caso! que horror!
Que venha um doutor
Sem demora!

(Mutação)

QUADRO X

O salão da imprensa.

CENA I

O JORNAL DO COMMÉRCIO, a GAZETA DE NOTÍCIAS, o PAÍS, o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, a


GAZETA DA TARDE, o RIO DE JANEIRO,
a ITÁLIA, o DIÁRIO DO BRASIL e o DIÁRIO OFICIAL

Coro

(Música de C. Cavalier.)

Somos as várias
Folhas diárias
Que se publicam na capital;
Do Sul ao Norte
Poder mais forte
Não há decerto que o do jornal.

GAZETA DE NOTÍCIAS — Entre nós reina a amizade,


Toda a gente o poder crer.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Maior solidariedade


Entre nós não pode haver.

JORNAL DO COMMERCIO — Apenas de vez em quando


Brincamos — o vá-passando —

(Dando um pontapé na Gazeta de Notícias.)

GAZETA DE NOTÍCIAS (Idem no País.) —


Vá passando.

PAÍS (Idem no Diário de Notícias.) —


Vá passando.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS (Idem na Gazeta da Tarde.) —


Vá passando.

GAZETA DA TARDE (No Rio de Janeiro) —


Vá passando.

52
RIO DE JANEIRO (Na Itália.) —
Vá passando.

ITÁLIA (No Diário do Brasil.) —


Vá passando.

DIÁRIO DO BRASIL (Vai a dar no Diário Oficial, que lhe agarra o pé.) —
Alto lá!
Em mim não se dá

(Repetição do Coro)

Somos as várias, etc., etc.

JORNAL DO COMMERCIO — Bom; uma vez que estamos todos aqui reunidos, uma idéia...

PAIS — Uma idéia!... É extraordinário!... Qual?

JORNAL DO COMMERCIO — Vamos fundar a Sociedade dos Jornalistas e Homens de Letras?

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Apoiado! Nomeamos uma comissão para organizar os estatutos. Quem
há de ser?

DIÁRIO DO BRASIL — Se quiserem, posso fazer parte dela.

GAZETA DA TARDE — Você não, que é muito estúpido.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Veja como fala; não seja tola!

JORNAL DO COMMERCIO — Chama, antes que te chamem.

GAZETA DE NOTÍCIAS — Cale-se você também, que tem o miolo mole!

JORNAL DO COMMERCIO — Não se meta onde não é chamada. Você pensa que estamos na
banca da jogatina?

ITÁLIA — Ma dun que, colleghi.... perchê tanto rumore?... pace! pace! pace!1

PAÍS — É uma vergonha!... Não sei o que isto parece!... É preciso que sejam todos muito idiotas
para darem-se a tal desfrute!

GAZETA DE NOTÍCIAS — Idiota é ele!

PAÍS — É ela, que tem macaquinhos no sótão! Impostora! Quer fazer crer ao público que tem uma
tiragem maior do que a minha!

GAZETA DE NOTÍCIAS — Tenho, sim, senhor; e, para prova, aqui está a sentença do juiz da 2a.
Vara Comercial, por onde se vê que tiro trinta mil exemplares. Se és capaz, apresenta-me uma
sentença igual!

1 Trad.: Mas colegas, por que tanto barulho?... calma! calma! Calma!
53
RIO DE JANEIRO — Ora com efeito! deixem-se disso!

PAÍS — Eu sou a folha mais séria da América do Sul.

JORNAL DO COMMERCIO — Tire o cavalo da chuva, vizinho. E então eu?

GAZETA DE TARDE — Sério?... Você?... tem graça!

JORNAL DO COMMERCIO — Ora vá pentear monos, sua sirigaita! E todos vocês também, que,
afinal de contas, não passam de uns pedaços d’asnos!

(Protestam todos com grande algazarra, à vontade dos atores. Da disputa não se percebe palavra.
A Itália e o Rio de Janeiro tentam debalde apaziguar os colegas. Pode haver mesmo de vez em
quando um murro ou um pontapé. O Diário Oficial, durante toda a disputa, conserva-se imóvel,
como se nada se passasse, e o Diário do Brasil desaparece por um alçapão, de modo que os
personagens, exceção feita do Diário Oficial, o não vejam.)

JORNAL DO COMMERCIO — Sou sempre provocado!

GAZETA DE NOTÍCIAS — E eu!

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Também eu! Estou no meu canto... por que bolem comigo?

GAZETA DA TARDE — Façamos as pazes.

JORNAL DO COMMERCIO — Valeu!

PAÍS — Apertemo-nos mutuamente as mãos.

ITÁLIA — Bravi.1

RIO DE JANEIRO — Bonito!

GAZETA DE NOTÍCIAS — A tua mão, Jornal.

JORNAL DO COMMERCIO — Aqui a tens. A tua mão, País.

PAÍS — Ei-la. Diário, a tua mão.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Com todo o gosto. Gazeta da Tarde?

GAZETA DA TARDE — Muito bem! Rio de Janeiro?

RIO DE JANEIRO — Pronto! Itália?

ITÁLIA — Ecco2 (Ficam todos de mãos dadas, menos o Diário Oficial, que continua no seu canto.)

JORNAL DO COMMERCIO — Que bela coisa é a amizade! (Reparando.) Mas falta um!...

RIO DE JANEIRO — Falta o Diário do Brasil!... Onde está ele?


1 Trad: Bravo!
2 Trad: Eis aí!
54
DIÁRIO OFICIAL — Desapareceu.

JORNAL DO COMMERCIO — E ninguém deu por isso. Vamos, abracemo-nos! (Abraçam-se


todos, formando um grupo.) Uma vez que estamos todos reconciliados, vamos fundar a Sociedade
dos Jornalistas e Homens de Letras?

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Apoiado. Nomeemos uma comissão para organizar os estatutos.

GAZETA DE NOTÍCIAS — Quem há de ser?

JORNAL DO COMMERCIO — Você não, que é tola! (Repete-se o barulho. Falam todos a um
tempo. Itália e Rio de Janeiro sempre apaziguando.)

DIÁRIO OFICIAL — Silêncio! vem gente!

JORNAL DO COMMERCIO — Gente!... abracemo-nos depressa! (Abraçam-se.) Como somos


amigos.

CENA II

OS MESMOS, menos o DIÁRIO DO BRASIL, e mais o DOUTOR SÁ BICHÃO SOARES e


NIQUELINA

DOUTOR (Da porta.) — Bravo!... Similia similibus!1 Assim é que eu gosto de ver a imprensa. Que
doce fraternidade! Santa beatitude!

SOARES — Que harmonia!


NIQUELINA — Que confraternização!

JORNAL DO COMMERCIO (Aproximando-se.) — Que desejam os senhores?

SOARES — Pouca coisa... Tive um duelo.

DOUTOR — Duelo que deu em droga... Parturient montes1? Uma das balas matou uma vaca que
pastava, e a outra ficou dentro da pistola.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Bom! que temos nós com isto?

NIQUELINA — O meu amigo...

SOARES — Com licença, deixa-me falar. Vendo que algumas pessoas mal intencionadas não
tomaram a sério o duelo ultimamente havido entre dois jornalistas, venho pedir a todos os senhores
que não dêem notícia do meu encontro.

1 Abreviação da frase: Simília simílibus curantur. Trad.: Curam-se os semelhantes


com os semelhantes, lema da homeopatia oposto ao: Contraria contrariis curantus.
1 Abreviação da frase de Horácio: Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus
equivalente a – as montanhas estão em trabalho de parto, e nascerá um ratinho.
Aplica-se a coisas grandemente anunciadas que se realizaram de modo inexpressivo.
1888 – Parturient montes, nascentur ridiculus.
55
DOUTOR — De mais a mais, o meu amigo é carioca da gema, e não quer introduzir no seu país este
costume estrangeiro, que é una você2 condenado.

JORNAL DO COMMERCIO — Por minha parte, conte que não publicarei o fato.

TODOS (Simultaneamente.) — Nem eu.

GAZETA DE NOTÍCIAS — Ah! e eu, que me esquecia!... Adeus, colegas; tenho que tirar da
Alfândega um caixão negro que acabo de receber da América do Norte com escala por Paris. (Sai.)

JORNAL DO COMMERCIO — Já viram sirigaita mais pedante?

PAÍS — Há de ser sempre ridícula.

RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal... mas sempre a conheci assim.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Julga que tem o rei na barriga.

GAZETA DA TARDE — Quem não a conhecer que a compre.

DIÁRIO DA TARDE — A propósito, colega Jornal, o que quer dizer a Gazeta com aquele problema:
Deixa-me morder essa cruz?

JORNAL DO COMMERCIO — São cá coisas.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Ah! Percebo!

JORNAL DO COMMERCIO — Amanhã nas “Várias” há de ver uma bicha comigo!

ITÁLIA — Pace! pace! ripeto; pace, miei cari amici1.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Eu também me retiro. Vou apurar a votação.

JORNAL DO COMMERCIO — Que votação?

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Tomando na mais alta consideração o meu sacerdócio de imprensa livre
e independente, propus ao sufrágio universal a solução de um grave problema sociológico que me
parece complexo e profundo!

TODOS — Oh! oh! de que se trata?

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Trata-se de saber qual das duas sociedades carnavalescas primou este
ano em luxo, espírito e bom gosto; se a dos Fenianos, se a dos Democráticos.

TODOS—Ah! ah!

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Os meus numerosos leitores vieram trazer-me os seus votos com uma
prontidão e um patriotismo dignos realmente de tão elevado assunto. Vou apurá-los. Até logo. (Sai.)

2 Trad: unanimemente
1 Trad: Calma! Calma! Repito: calma, meus caros amigos.
56
JORNAL DO COMMERCIO — Este também é uma boa firma, não há dúvida. Nasceu ontem e já
quer ter fidúcias.

GAZETA DA TARDE — Um adulador! está sempre a dar parabéns a quem faz anos.

RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal, mas ele só dá parabéns a quem tem certa
importância.

PAIS — um bobo! Persuadido que tem mais anúncios do que eu!

ITÁLIA —Mio Dio! Mio Dio! Sempre come cani e gatti!1

JORNAL DO COMMERCIO — Ora deixe-me! meta-se lá com a sua vida!

ITÁLIA — Me ne vado nau seata... e una vergogna... un’indignità2 (Sai.)

SOARES (Ao Doutor.) — Vejamos o que dizem dela.

JORNAL DO COMMERCIO — Ora dá-se, que intrometida!

PAÍS — Coitadinha! não lhe demos importância.

GAZETA DA TARDE — Sim, não vale a pena.

RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal, mas é tão insignificante!

NIQUELINA (A Soares e ao Doutor.) — Assim mesmo, pode-se dizer que foi poupada.

DOUTOR — Faz-lhes pouca sombra.

GAZETA DA TARDE — Até logo; vou providenciar para que fiquem prontas as minhas gravuras.

NIQUELINA — Ah! a senhora é ilustrada?

GAZETA DA TARDE — Pois não sabe? E as minhas ilustrações têm feito um sucesso colossal. Eis
aqui uma delas, reproduzida em ponto grande. (Desenrola um papel em que se vê um borrão preto.)

TODOS — Bonito!

GAZETA DA TARDE — Até logo. (Sai.)

SOARES (Ao Doutor.) — É agora!

DOUTOR — Video lupum3!

JORNAL DO COMMERCIO — Aquilo é a nossa vergonha, colegas.

PAÍS — Diz bem; desmancha com os pés o que faz com as mãos.

1 Trad: Meu Deus! Meus Deus! Sempre, como cães e gatos!


2 Trad: Vou-me embora engulhando... é uma vergonha... uma indignidade.
3 Trad: Vejo o lobo. (Diz-se de uma pessoa temida que aparece de repente)
57
RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal, mas é uma grande tipa.

PAÍS — Bom; vou ver as provas do Caminho do Mal. (Ao Doutor.) Tem lido, Doutor?

DOUTOR — Não.

SOARES — Nem eu.

NIQUELINA — Nem eu.

JORNAL DO COMMERCIO — Nem eu.

RIO DE JANEIRO — Nem eu.

DIÁRIO OFICIAL — Nem ninguém.

PAÍS — Ó senhores! ninguém lê o Caminho do Mal! Pois olhem que é a continuação dos Lazaristas.

DOUTOR — Dia de muito, véspera de nada.

PAÍS — Embora, o sucesso é enorme. Vou ver as provas. (Sai.)

JORNAL DO COMMERCIO — Este é o maior parlapatão que tem vindo à luz desde que há jornais
no Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO — Isso é; não é por falar mal, mas é. (Apertando a mão ao Jornal do
COMMERCIO.) Colega, eu retiro-me, mas veja lá como me trata.

JORNAL DO COMMERCIO — Não tenha receio; vá. (Rio de Janeiro vai a sair.) Este sujeito...
(Vendo que Rio de Janeiro tem ficado à porta.) Oh! ainda aí está?

RIO DE JANEIRO — Veja lá, colega! (Sai.)

JORNAL DO COMMERCIO — Este sujeito não é capaz de dar uma notícia que não seja atrasada.
(Vendo o Diário Oficial.) Mas que diabo faz ali aquele estafermo? Eh! Olá! Você não tem que fazer?
Em que pensa?

DIÁRIO OFICIAL — Penso em transformar ainda uma vez o meu cabeçalho. E é o que vou fazer.
(Sai.)

JORNAL DO COMMERCIO (Aos circunstantes, em tom de proteção.) —Hum! o Diário Oficial! um


pobre diabo! Não quer anúncios! Não diz mal de ninguém.

SOARES — Mal nem bem.

NIQUELINA — É o que lhe vale.

JORNAL DO COMMERCIO — Sim, que se não fosse isso, era tão bom como os outros diários que
não são oficiais.

SOARES — Perdão; são oficiais... do mesmo ofício.

58
CENA III

JORNAL DO COMMERCIO, DOUTOR SÁ [BICHÃO], SOARES, NIQUELINA, um OFICIAL


DE JUSTIÇA, depois um REPÓRTER

OFICIAL DE JUSTIÇA — Às ordens de Vossas Senhorias.

JORNAL DO COMMERCIO — Livra! que deseja?

OFICIAL DE JUSTIÇA — Senhor, eu sou oficial de justiça.

DOUTOR — Ex digito gigans.1

SOARES — Está se vendo.

JORNAL DO COMMERCIO — Que vem cá fazer? Alguma citação literária?

OFICIAL DE JUSTIÇA — Nada disso. Ando a ver se descubro uma sala para o julgamento de Dona
Chiquinha Calças Largas. Creio que afinal o senhor Presidente resolve-se a alugar por três dias o
teatro de São Pedro ou o Politeima.
SOARES — Então a sala do Juri2?

OFICIAL DE JUSTIÇA — A sala do Júri, se duvidam muito, vem abaixo.

NIQUELINA — É tão velha assim?

OFICIAL DE JUSTIÇA — Vem abaixo... justamente pelo contrário; por ser construção moderna.

SOARES — Começo a embirrar com a arquitetura nacional.

DOUTOR — Há de acabar se convencendo de que só temos o Corpo de Bombeiros (Ao Oficial de


Justiça.) Aluguem o Conservatório de Música.

NIQUELINA — Armem um barracão no Campo de São Cristóvão.

OFICIAL — Boa idéia! Vou comunicá-la ao Senhor Presidente. Às ordens de Vossas Senhorias.

OS QUATRO — Viva! (Oficial sai e esbarra no Repórter, que vem entrando muito apressado com
um papel na mão.)

REPÓRTER — Cá está o resultado das eleições municipais. (Sai correndo)

SOARES — Das eleições?

JORNAL DO COMMERCIO (Vendo.) — O mais votado não teve nenhuma votação!

OS TRÊS — E o Tavares? E o Tavares?

1 Aliás:Ex digito gigas. Trad: pelo dedo se conhece o gigante.


2 1886: jury (passim)
59
JORNAL DO COMMERCIO — Eleito.

OS TRÊS — Eleito!

SOARES — Está tudo perdido.

NIQUELINA — Pobre Soares.

DOUTOR — Consummatum est.1

SOARES (Com desânimo.) — Eleito!

JORNAL DO COMMERCIO — E eu, que o conheci pau-de-laranjeira! Um tratante, que fez o que
fez em Casa Branca!

SOARES (Vivamente.) — Que fez ele?

JORNAL DO COMMERCIO — Contos largos! Peça informações ao Tenente-coronel Regadas,


fazendeiro em Casa Branca. Ele que lhe diga quem é o Tavares.

NIQUELINA — Meu amigo, se podes arranjar alguns documentos contra esse homem, não percas a
ocasião.

DOUTOR — Apoiado. Quem seu inimigo poupa, às mãos lhe morre.

JORNAL DO COMMERCIO — Se quiserem... eu em poucos dias me acharei em Casa Branca...


Tenho que acompanhar a excursão que o ilustre, sábio Doutor Velocípede vai fazer à província de
São Paulo. Posso encarregar-me de obter tais documentos.

NIQUELINA — Não nos despedimos do favor, mas nós mesmos iremos lá. (Ao Doutor e Soares.)
Que diabo! possuímos ainda o precioso talismã que num abrir e fechar d’olhos nos transportou a
Lisboa.

DOUTOR — Pois sim, mas desta vez quem os não acompanha sou eu. Tenho muito que fazer na
corte.

CENA IV

OS MESMOS, GRIFO e RA-TA-PLÃ

AMBOS (Entrando alegremente.) — Olá... Vivam!...

JORNAL DO COMMERCIO — Temos imprensa nova?

RA-TA-PLÃ — Imprensa caricata.

JORNAL DO COMMERCIO — Como se chama o amigo?

RA-TA-PLÃ — Rrrra-ta-plã!...

1 Trad: Está consumado.


60
GRIFO — E eu o Grifo, cuja missão é mostrar onde está o gato!

JORNAL DO COMMERCIO — Bom, venham comigo, meus filhos; quero apresentá-los aos
colegas, que os hão de receber com o mesmo prazer sincero com que recebem quantos jornais
aparecem. (Aos outros.) Entrem também para combinarmos a viagem. Quero, além disso, mostrar-
lhes uma infinidade de questões muito interessantes.

SOARES — Deveras?

JORNAL DO COMMERCIO — Ah! eu sou colecionador. Tenho lá dentro o crime da Paraíba, a


supressão das pules e outros assuntos muito divertidos. Venham.

TODOS — Vamos.

SOARES (Saindo, à parte.) — Ora, o Tavares eleito! (Saída geral.)

CENA V

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, BOLETIM COMERCIAL

DIÁRIO DE NOTÍCIAS (Trazendo uma cesta cheia de papelinhos.) —Vai, vai por aí, corre a cidade
inteira e espanta esta gente, compadre!

BOLETIM — Prometo fazer uma revolução nos costumes da imprensa diária. Arrumo-lhes o
Lombard Street, o Potencial e mesmo o Potencial Aval.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Quem é esse Potencial Aval?

BOLETIM — É cá uma coisa.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Bom; é segredo.

BOLETIM — Falo-lhes do velhote da Rua da Alfândega e de outras coisas esquisitas. Ninguém me


entende e está o Diário com a fortuna feita.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Vá, compadre! Você é dos diabos! Não perca tempo! (Empurra para
fora o Boletim, que sai.) Foi um achado, um grande achado! (Olhando para a cesta.) Isto é que é o
diabo! A vitória está do lado dos Democráticos... Mas os Fenianos são tão bons rapazes!... dão-me
uns anúncios tão compridos! Tenho aqui esta cesta cheia de votos e quase todos para os
Democráticos. Mas, oh! que idéia! Vou dar sumiço a estes papelinhos, e digo depois em letra
redonda que o homem do lixo, não sabendo que eram documentos de tanta importância, despejou-os
da carroça. O veredictum desta eleição ficará para sempre sepultado no mais profundo mistério.
Quem quiser saber a quem coube a vitória, que vá à Ilha da Sapucaia. Vamos Já!... vamos deitar fora
esta papelada! Oh! mas que vejo? Que procissão será aquela?... Para o lixo! (Atira a cesta para o
bastidor.) É o meu colega País que vem rebocando a imprensa fluminense! Que será?

CENA VI

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, PAÍS, o REPÓRTER ESPECIAL, o JORNAL DO COMMERCIO,


GAZETA DE NOTÍCIAS, GAZETA DA TARDE, ITÁLIA, RIO DE JANEIRO, DIÁRIO OFICIAL,

61
RA-TA-PLÃ, GRIFO e os outros jornais fluminenses.

Coro, marcha e concertante

(Música de C. Cavalier.)

CORO GERAL — Eis aqui toda a imprensa fluminense,


Modelo de confraternização;
Vendo-nos juntos ninguém há que pense
Lavas haver no fundo do vulcão.

O PAÍS — Eu convoquei-vos sem mais demora,


Pois grande nova tenho que dar;
Chegou às nossas plagas agora
Mademoiselle Sarah Bernhardt!

GAZETA DE NOTÍCIAS — Mademoiselle?! Diga madame.

O PAÍS — Mademoiselle!

GAZETA DE NOTÍCIAS — Ó fluminense,


Que as almas falem!
Que as mãos estalem!
Vibrar! Vibrar!
Tu nos pertences
Hoje, ó divina,
Ó peregrina
Sarah Bernhardt!
Pois, quando toda
Paixão e fogo,
Fédora logo
Se envenenar,
A.turba doida
Terá um grito
Longo, infinito:
Sarah Bernhardt!

CORO — Ó fluminense, etc...

O PAÍS — Vamos! vamos!


Mais tempo não percamos!

CORO — Eis toda a imprensa fluminense, etc.

(Saída geral. Mutação.)

QUADRO XI

Uma praça na cidade de Casa Branca, em dia de festa. Arcos de folhagens, bandeiras, etc.

CENA I

62
Fazendeiros, habitantes de Casa Branca, caipiras e o MESTRE-ESCOLA

Coro

(Música de Offenbach.)

Vai haver hoje em Casa Branca


Festa que há de dar que falar;
Vamos dar hospedagem franca
Ao Doutor que está pra chegar.

O MESTRE-ESCOLA — Qua de vacés qué i comigo esperá o doutô na estrada? Premero qu’o
home chegue aqui, tem tempo. O mió é esperá ele no caminho.

1º CAIPIRA — Diz bem, seu mestre; eu vou com mecê. Tou morto pru vê o nosso doutô!

2º CAIPIRA — Eu já vi a figura dele pintada na foinha do ano. É um bonito véio!

MESTRE — Eu tenho duas agirândolas de foguete pr’atacá condo ele chegá. É pum! pum! xim!
pum! pum! Viva!... E convido ele logo pra visita minha escola e izaminá os menino. O doutô há de
ficá ademirado do adiantamento e porgresso dos fio do tenente-coroné e do Juca da Quebrada. Que
meninos! ainda não tem doze anos e já assoletra todo o Simão de Nântua e já sabe a Cartia do Padre
Inácio.

1º CAIPIRA — Apôs já! Seu mestre é um bom porfessô!

MESTRE — Também eu cá não estou com impaliativo. Não admeto vadiações e imoralidades lá na
escola. É bolo de parmatória e, quando Deus qué, junco, que é o que ensina os rnadarço.

1º CAIPIRA — Junco? Mas é poribido!

MESTRE — Quá poribido, quá nada! Ainda s’outro dia eu apanhei o filho do Ramualdo Gome
numa diabrura, e li fui assentando o reio, que até fiz vergãos. O pai foi levá o menino nas foia de
Casa Branca, mas eu arranjei logo um nós embaixo-assinado dos outro menino e chimpei na
imprensa. Depois eu tenho muita porteção: dei e hei de dar nos marcriado e nos malandro. Mas
vamos a sabê: quem qué i esperá o doutô comigo?

TODOS — Eu... eu!...

MESTRE — Entonces a caminho.

TODOS — A caminho!

(Repetição do coro.)

(Saem todos, menos o Mestre, a quem Niquelina se dirige.)

CENA II

O MESTRE-ESCOLA, NIQUELINA, depois Soares

63
NIQUELINA — Meu amigo, pode dar-me uma palavra?

MESTRE — Pois não! que é que mecê deseja? Mecê não parece cá da terra?

NIQUELINA — Não sou; por isso desejava saber se não há por aqui hotel, uma casa, uma sala, um
quarto, onde eu me possa hospedar com um amigo.

MESTRE — Uê! Mecê deve saber mió do que eu. Tudo tá tomado pro bandão de gente que tá pra
chegá co doutô, nem que mecê pague cumo pagá, não arranja nada.

NIQUELINA — Que diabo, diga-me então outra coisa: a fazenda do Tenente-coronel Regadas é
muito longe daqui?

MESTRE — A fazenda de seu tenente-coroné fica muito pertinha. A gente vai por ali... toma a
esquerda... quebra a mão direita... segue em frente... vorta pra esquerda outra vez... sobe a picada que
fica pra trás e desce pr’outra banda... Toma o ataio e vai chegá lá direitinho. É muito perto...

NIQUELINA — Faço idéia!

MESTRE — Mecê não qué mais nada?

NIQUELINA — Muito obrigada... muito obrigada...

MESTRE — Entonces com sua licença.Vou esperá o doutô. (Sai.)

NIQUELINA (Só.) — O Soares está se demorando. Queira Deus que encontre o que deseja.

SOARES (Entrando.) — Ah! Meio-tostão!

NIQUELINA — Ora graças, que voltaste!

SOARES — E desanimado, filha, aborrecido, furioso!

NIQUELINA — Por quê? Dar-se-á caso que o Tenente-coronel...

SOARES — O Tenente-coronel é um idiota. Está maluco com a vinda do Doutor, que é esperado na
terra, e mal me prestou atenção.

NIQUELINA — E os papéis?

SOARES — Não sabe onde os guardou: se aqui, se noutra fazenda que possui em Mogi das Cruzes.
Não os pode procurar agora. Logo que fique desembaraçado e os encontre, prometeu remeter-mos
para a corte.

NIQUELINA — E não te ofereceu hospedagem?

SOARES — Qual história! Espera a comitiva na fazenda e diz que não tem um só cantinho
disponível. Pois olha, não foi por falta de vontade da tenente-coronela, que me deitava cada olho...

NIQUELINA — Bonita, hein?

SOARES — Uma bruxa, uma verdadeira soroca.

64
NIQUELINA — Então, meu caro, voltemos para a corte, porque toda a cidade está nas mesmas
condições que a casa do Tenente-coronel.

SOARES — Patetas! Como se o Doutor esquentasse lugar!

NIQUELINA — Então! Vamos embora ou não? Já agora nada mais fazemos aqui!

SOARES — Com franqueza: não se me dava de esperar a chegada dos viajantes. Ao menos
assistiríamos à recepção. Estás também tentada, bem vejo. Anda! confessa!...

NIQUELINA — Para falar verdade...

SOARES — Então fiquemos. O Tenente-coronel não tarda aí com a sua gente. Vamos ter mosquitos
por cordas e moscas por aranhas. Olha! Que dizia eu? Lá vem ele!

CENA III

OS MESMOS, TENENTE-CORONEL REGADAS, DONA ENGRÁCIA,


habitantes de Casa Branca, escravos da fazenda, caipiras, depois o
MESTRE-ESCOLA

Coro e coplas

(Música de Abdon Milanês.)

Que folia!
Que alegria!
O Doutor já vai chegar!
Que alvoroço no lugar!

TENENTE-CORONEL — Oh! que dia de ventura!


Vai chegá nosso doutô!
Haja pândega em fartura,
Muita folha e muita flô!
E com tanta matinada,
Que três dia há de durá.
Fica as moças assanhadas,
E as soroca há de dançá!
Quebra tudo bem quebrado!
Repenica o violão!
Que um fadinho bem dançado
Ergue um morto do caixão!

(Dançam.)

II

65
Nestes dia de festança
Sinto cócegas nos pé;
Quando se trata de dança,
Não sou tenente-croné!
(A Dona Engrácia.)
Sinhá dona companheira,
Faz favô, venha dançá!
Pra puxá uma fieira
Não há outra no lugá!

Quebra tudo bem quebrado, etc.

(Dançam.)

TENENTE-CORONEL — São quase hora. O home não pode tardá. Perfile-se siá dona... perfile-se,
nada de molezas! vá com o que eu lhe digo! Mecê deve parecê quem é a muié de seu marido!

DONA ENGRÁCIA — Sim, seu Regadas... deixe está, que não hei de lhe envergonhá. (Vendo
Soares.) Olhe... o moço bonito que esteve hoje lá na fazenda.

TENENTE-CORONEL — E é memo.

SOARES (Baixo a Niquelina.) — Repara na velha... vê que olhos me deita!

NIQUELINA (Idem.) — Apresenta-me.

TENENTE-CORONEL — Ah! o senhô... senhô quê?

SOARES — Soares, um seu criado.

TENENTE-CORONEL — Soare... Mecê descurpe... Eu tenho uma cabeça muito dura pra decorá
nome... Vá com o que eu lhe digo... Mas agora não me esquece mais!

SOARES — Permita que lhe apresente o meu amigo Meio Tostão, que veio comigo à Casa Branca.

TENENTE-CORONEL — Meio-tostão? Que nome engraçado! Aqui na Casa Branca já


houve um Pataca, mas Meio Tostão é o premero, vá com o que eu lhe digo.

DONA ENGRÁCIA (Ao Tenente-coronel.) — Que moço de simpatia!

TENENTE-CORONEL — Pois, seu Meio Tostão, estimo muito de conhecê mecê... Tenho muita
honra.

NIQUELINA — Honra recebo eu, por travar conhecimento com uma das primeiras influências do
lugar, e principalmente por ter a ventura de ser apresentado à Excelentíssima Esposa do Senhor
Tenente-Coronel.

DONA ENGRÁCIA (Cumprimentando com aflição.) — Ó moço!

SOARES — Decerto; o meu amigo não exagera, formosa senhora.

66
DONA ENGRÁCIA (À parte.) — Fermosa! Ai, minha Nossa Senhora, estou entre dois fogo!

SOARES — Pelo que veio, o Senhor Tenente-Coronel vem esperar...

TENENTE-CORONEL — O nosso Doutô... Não se pode demorá vá com o que lhe digo. Quero ser
o premero a lhe apresentá as minhas homenage. Em farta de banda lá na fazenda, trouxe este realejo
(Indica um pequeno realejo que um moleque traz.) pra eu mesmo tocá quando o home chegá. Há de
ter uma sorpresa de admiração que eu não lhe digo, seu aquele, vá com o que lhe digo.

NIQUELINA — E há de ficar-lhe reconhecido e à Excelentíssima.

SOARES — Talvez que até o brinde com uma tetéia. O Doutor é muito relacionado nas altas regiões.
Ainda hei de vê-la baronesa, minha senhora.

DONA ENGRÁCIA — Ué! quem sou eu, moço?

TENENTE-CORONEL — Barão! Pois mecê supõe que?...

SOARES —E por que não? Muito maiores caval... quero dizer: pessoas muito menos dignas o têm
sido.

TENENTE-CORONEL — Home, meu retrato já saiu do Mequetrefe, vá com o que lhe digo.

NIQUELINA — E como há de ir bem na Senhora Baronesa uma coroa de viscondessa!

DONA ENGRÁCIA (À parte.) — Meu Deus! que tentação! cruzes!

TENENTE-CORONEL — Mecê é dos diacho! Fala numas coisa que faz mamo a gente ficá co água
na boca! Mas me diga mecê, que é lá da corte: já falou arguma vez co Doutô?

SOARES — Nunca. Por quê?

TENENTE-CORONEL — Porque eu quero indagá se ele é memo como se diz. Tenho umas
conversa co ele... umas conversa séria, vá com o que lhe digo. A tá porpaganda abolicionista tá
danada! É preciso tomá porvidência. Senão os Crapes e seu rancho deixa a gente na miséria forrando
todos os escravinho da gente, vá com o que lhe digo!

SOARES — Ah! o senhor é escravocrata?

TENENTE-CORONEL — Eu não sou nada: sou sinhô da fazenda co escravatura e tudo; isso é que
eu sou, e querem tirar a minha porpriedade: não admeto.

NIQUELINA — O Tenente-coronel é talvez emancipador.

TENENTE-CORONEL — Aí! Agora é que mecê falou direito. Eu quero que os escravo todo fique
forro, mas é quando morrê; enquanto for vivo, que trabalhe, que é pra isso é que se fez o negro, vá
com o que lhe digo. Inda bem que a nova lei arrumou tudo no tronco por mais ano e meio, e ainda há
de vi outra que há de arrumá eles na escravidão por toda a vida, vá com o que lhe digo.

SOARES — Engana-se, Senhor Tenente-coronel: os abolicionistas acabam de alcançar uma grande


vitória e, com o favor de Deus, não há de ser a última.

67
TENENTE-CORONEL — Uma vitória? Diga mecê qual foi.

SOARES — A pena de açoite foi abolida.

TENENTE-CORONEL — O reio? O bacaiau? Não me diga isto pelo amô de Deus, seu aquele!

SOARES — Pois foi! já não há no Código semelhante pena!

TENENTE-CORONEL — Que importa co códio! O códio lá em casa sou eu e mais a dona, vá com
que lhe digo!

DONA ENGRÁCIA — É. Nós é o códio. (Baixo a Niquelina.) O que é códio, moça1?

NIQUELINA — Uma coisa ao que parece desconhecida nestas paragens.

TENENTE-CORONEL — Eu hei de mostrá aos negrinho se ronca ou não ronca o bacaiau. Apôs!
Negro nasceu pra sê surrado, cumo porco pra sê comido. Vá com o que eu lhe digo! (Ouvem -se
foguetes.)

CENA IV

OS MESMOS, o MESTRE-ESCOLA, CAIPIRAS, depois o JORNAL DO


COMMERCIO, VIAJANTES, REPÓRTERES2

O MESTRE (Entrando a correr.) — Lá vem o home, seu Tenente-corné, lá vem o home!

TENENTE-CORONEL — Vem? Tudo pro seu lugá! Dá cá o realejo, Gabrié! Dá cá o realejo!


(Entra o Jornal do Commercio acompanhado de outros personagens. O Tenente-coronel toca o
realejo e, sempre tocando, vai ajoelhar-se e beijar a mão do Jornal do Commercio.)MNJHUY76

JORNAL DO COMMERCIO — Perdão, creio que estão enganados... Eu não sou quem os senhores
supõem...

TENENTE-CORONEL — Viva o nosso Doutô!

TODOS — Viva!

JORNAL DO COMMERCIO — Obrigado, mas eu sou... quero dizer, eu não sou...

TENENTE-CORONEL — Nós bem sabemo quem é... Escusa de está co partes, vá com o que eu lhe
digo!

JORNAL DO COMMERCIO — Eu represento o Jornal do Commercio.

DONA ENGRÁCIA (À parte.) — Que velho bonito! ai! ai!

TENENTE-CORONEL — O Jornal do Commercio!

SOARES — É sim, que eu bem o conheço, vá com o que [eu] lhe digo!
1 1886: moço
2 1886: reporters
68
JORNAL DO COMMERCIO — Ó meu caro! Já está por cá?

MESTRE-ESCOLA (À parte.) — Diacho! eu, que gastei minhas agirândoas de rojão!

TENENTE-CORONEL — Mas entonces o Doutô?

JORNAL DO COMMERCIO — Vem aí; ficou visitando a cadeia. Adiantamo-nos um pouco dos
outros viajantes, para podermos ver Casa Branca. Viajamos com tanta rapidez, que nem tempo temos
para comer.

NIQUELINA — Pois isto aqui é bem bonito. Vale a pena ver-se.

SOARES — Vale, sim. É um lugar encantador, como todos do Brasil.

JORNAL DO COMMERCIO — Se é! Tem muitas sorocas, mas também tem muita moça bonita.

SOARES — Temos bem perto de nós exemplos vivos.

NIQUELINA — Palpáveis.

DONA ENGRÁCIA (Revirando os olhos, à parte.) — Ai! ai! Estão bolindo coa gente!

JORNAL DO COMMERCIO — Senti-me inspirado; tanto assim, que improvisei um mote e dei-o
aos meus ilustres companheiros de viagem para que o glosassem.

SOARES — Vá; diga-nos o mote, que nós também o glosaremos.

DONA ENGRÁCIA (À parte.) — O ladrão é poeta!...

JORNAL DO COMMERCIO — Lá vai. Atenção!

Lundu

De Casa Branca a cidade


Alegra quem a visita,
Pois ao lado das sorocas
Há muita moça bonita.

SOARES — Lá vai obra!


Se querem ver do paulista
A franca sinceridade,
Visitem como fizemos
De Casa Branca a cidade.

NIQUELINA — Agora eu!


Tal como noutros torrões
Da Paulicéia bendita,
O agasalho, o carinho
Alegra quem a visita.

TENENTE-CORONEL — Agora eu!

69
Vejam que verso puxado à sustância:
O poeta vê-se em apuros,
Acha trocas e baldrocas,
Mas a rima não lhe agrada,
Apesar de tais sorocas.

SOARES — Bravo!

NIQUELINA — Mas o que o estro lhe inflama


E o que com força o agita
É ouvir a cada canto:
Há muita moça bonita.

TODOS — Bravo! Bravo! (Palmas.)

DONA ENGRÁCIA (À parte.) — Estes moço me deita a perdê!

JORNAL DO COMMERCIO — É célebre! Os versos são os mesmos dos meus ilustres


companheiros de viagem.

SOARES — Pudera! O Serzedelo, que também vem na comitiva, tem dado cópia deles a todo o
mundo.

JORNAL DO COMMERCIO — Logo vi! Aquele Serzedelo!

TENENTE-CORONEL — Entonces mecês têm viajado muito? Têm visto tudo que há de bom na
terra?

JORNAL DO COMMERCIO — Qual! andamos num vai vem vertiginoso. Não há tempo nem para
dormir. Vamos a toda parte1, vimos, mas não vemos nada...

SOARES — Tenho lido as correspondências. Por que não visitaram o Colégio de Itu?

JORNAL DO COMMERCIO — Pois ainda o pergunta? Ó vós, qui cum Jesus itis, non ite cum
Jesuitis2.

SOARES (À parte.) — Julguei que era o Doutor Sá Bichão quem falava!

MESTRE-ESCOLA (Correndo do fundo.) — Ah! desta vez é o home, seu Tenente-corné!... É o


home! E eu, que gastei as agirândoas! Xi! pum! pá tá pum! pum! (Sai a correr.)

TENENTE—CORONEL — Vamo, meu povo! Vamos encontrá os viajante!

SOARES — Vão depressa, se querem vê-los; eles viajam eletricamente!

(Saem todos a correr. Dona Engrácia segura Soares e Niquelina.)

DONA ENGRÁCIA — Se mecês quisé dormi hoje na fazenda, eu arranjo lugá. Ai! ai!

OS DOIS — Muito obrigado! (Saem os três. Mutação.)


1 1886: toda a parte
2 Trad. do trocadilho macarrônico: Ó vós, que com Jesus ides; não vades com Jesuítas
70
QUADRO XII

Apoteose fantástica à viagem imperial.

ATO III

QUADRO XIII

A Praça da Constituição na noite de Sete de Setembro de 1886

CENA I

Passantes, 1º TIPO, 2º TIPO, depois TAVARES, depois DONA CHIQUINHA e MINDOCA

Coro

(Música de Sullivan.)

Para ver iluminações


Ninguém mais do seu canto sai...
Já não há manifestações!
Nesta terra o que é bom se vai!
Oh! que Sete de Setembro!
Com franqueza: não me lembro
De haver visto um Sete assim!
Sim!
Oh, que Sete tão chinfrim!...

TAVARES (Entrando e encontrando-se com o 1º e o 2º tipos.) — Ó meu caro Guedes! por aqui? E o
Senhor Graça também?

1º TIPO — É verdade... vendo as luminárias...

2º TIPO — Vossa Senhoria tem passado bem?

TAVARES — Assim, assim...

2º TIPO — Dou-lhe os parabéns pelo seu triunfo nas eleições municipais.

TAVARES — Muito obrigado. (Vendo Dona Chiquinha e Mindoca, que entram.) Com licença, vou
cumprimentar aquelas senhoras. (Dirigindo-se a elas.) Minhas senhoras, como têm passado?

DONA CHIQUINHA — Viva, seu Tavares, seja bem aparecido, já não há quem o veja!

TAVARES — Ando fugindo às manifestações... Um retrato a óleo ou uma escrivaninha de prata


saem sempre pelo triplo do valor, porque o manifestado é obrigado a dar um copo d’água. Quem me
dera pertencer à Marinha!

71
DONA CHIQUINHA — Por quê?

TAVARES — Porque na Marinha foram este ano proibidas as manifestações.

DONA CHIQUINHA — Não o vejo desde o seu duelo! Está se vendendo muito caro!

TAVARES — Oh! não fale nisso, Senhora Dona Chiquinha! Que duelo!

MINDOCA — Se o senhor matasse o primo Soares, eu mataria o senhor!

DONA CHIQUINHA — Cala a boca, Mindoca!

MINDOCA — Que Mindoca!

DONA CHIQUINHA (A Tavares.) — É sempre a mesma! Como está Dona Maricota? E a Tecla? A
Dona Josefina não teve mais nada?

TAVARES — Estão todas boas. Pediram que as recomendasse muito às senhoras, se as encontrasse.

DONA CHIQUINHA — Já se mudaram?

TAVARES — Nem nos mudamos. O senhorio abateu trinta mil réis no aluguel da casa e trata-me nas
palminhas.

DONA CHIQUINHA — Sabe, seu Tavares? A Genoveva não apareceu! Não sei onde diabo se meteu
o diabo daquela mulata!

TAVARES — Sim? (À parte.) Se soubesse...

DONA CHIQUINHA — Se o senhor fosse um bom moço, me desencantava aquele diabo!...

TAVARES (Vivamente.) — Mas com mil vontades, Senhora Dona Chiquinha, com mil vontades!
Nem é próprio da senhora andar metida nisso. Olhe, amanhã passe-me uma procuração dando-me
poderes para dispor da Genoveva como se fosse minha. Prometo em poucos dias dar-lhe conta da
mulata.

DONA CHIQUINHA — Pois está dito; amanhã mesmo vou ao Saião Lobato, a quem conheço desde
menino1.

MINDOCA (À parte.) — Que cacete?

CENA II

OS MESMOS, um grupo de MANIFESTANTES, com um retrato a óleo

1º MANIFESTANTE — Apanhei-te, cavaquinho!

2º MANIFESTANTE — É ele! É o Tavares! Bravo!...

1 1886: nino
72
1º MANIFESTANTE — Que diabo! E nós, que despedimos a banda de música por não o acharmos
em casa!

3º MANIFESTANTE — Não faz mal... Ainda cá está o retrato. (Mostra-o.)

2º MANIFESTANTE — Nesse caso, faz-se aqui mesmo a manifestação.

1º MANIFESTANTE — Apoiado! (Tirando muitas tiras de papel do bolso.) Lá vai obra! (Lê.)
“Ilustríssimo Senhor Faustino Tavares, os vossos amigos, satisfeitos pela confiança com que acaba
de distinguir-vos o digno eleitorado fluminense...

2º MANIFESTANTE — Muito apoiado!

3º MANIFESTANTE — Bonito!

1º MANIFESTANTE — “...nomearam-me a mim, o mais insuficiente...”

TODOS — Não apoiado!

TAVARES (Interrompendo.) — Mas, meus amigos, reparem que estamos numa praça pública.
Vamos inevitavelmente cair no ridículo!

3º MANIFESTANTE — Tem razão; fique com o retrato, que é obra asseada do Petit. Lá iremos
sábado à sua casa para o copo dágua.

TAVARES (Vivamente.) — Perdão, não estou em casa... Negócio urgente me chama amanhã à roça...
Parto no trem das cinco horas da madrugada.

2º MANIFESTANTE — Não; isso é que não! Manifestação sem copo dágua não é manifestação. Ao
menos vamos à Maison Moderne.

TAVARES — Oh! de modo algum! Na Maison Moderne!

2º MANIFESTANTE — Ora adeus! Há de ir! Que diabo! Um retrato a óleo!

1º e 3º MANIFESTANTES — Vamos! vamos!

TAVARES — Perdão, mas estou com estas senhoras...

1º MANIFESTANTE — Melhor; irão também. Teremos o belo sexo...

TAVARES — Na Maison Moderne, oh!

3º MANIFESTANTE — Por que não? Iremos para um gabinete particular.

MINDOCA — Não, senhor; vá o senhor só... Nós ficamos... (A Dona Chiquinha.) Il est abominable,
cet homme1!

TAVARES — Enfim, uma vez que não há remédio... (À parte.) Queira Deus que o Desiré me fie!
(Alto.) Minhas senhoras!... Dona Chiquinha, não se esqueça da procuração!

1 Trad: É abominável esse homem!


73
DONA CHIQUINHA — Fique descansado... Pode mandar buscá-la amanhã à tarde... (Tavares sai
com os manifestantes.)

1º MANIFESTANTE (Saindo.) — Foi o diabo termos despedido a banda de música! (Tocando.) Tá


rá tá txim bum! bum!

DONA CHIQUINHA — Fazes mal em tratar este moço com tanta indiferença. Ele é teu noivo.

MINDOCA — Qual noivo nem meio noivo! Jamais!

DONA CHIQUINHA — Eu te direi se é ou não é. Vamos ver as luminárias.

MINDOCA — Casar-me com semelhante homem Dieu m‘engarde2. (Saem.)

SOARES (Entrando, ao Doutor.) — Decididamente os brasileiros perderam o sentimento da


nacionalidade. Veja se isto algum dia foi Sete de Setembro!

DOUTOR — Quantum mutatus ab illo1!

SOARES — Nem ao menos os castelos do ano passado e as salvas de artilharia no morro de Santo
Antônio! Só um homem tinha patriotismo para promover os festejos deste dia. Morreu, e com ele
desapareceu o Sete de Setembro.

DOUTOR — Mas não há uma sociedade comemorativa da Independência do Império?

SOARES — Houve, porém creio que morreu também. Oh! mas hei de organizá-la!... Está pronto a
auxiliar-me?

DOUTOR — Ex corde2! Ponho ao seu dispor todo o meu entusiasmo... faça dele o que quiser.

SOARES — Amanhã mesmo começarei a tratar disso. (Outro tom.) E Niquelina? Vim aqui na
esperança de encontrá-la e nada! Que fim teria levado? Desapareceu como por encanto!

DOUTOR — Ninguém me arranca da minha convicção... ab ímo pectore3 ... Niquelina foi raptada...
Tem havido ultimamente tantos raptos!

SOARES — Raptada?

DOUTOR — Raptada, sim. Ela foi outro dia, como sabe, à Sociedade de Quartetos, assistir a uma
sessão de música de câmara. Era o vigésimo concerto clássico que ia na semana. Eles são tantos!

SOARES — Já é mania. Acho insuportável a tal música clássica. Só aturo a do Padre José Maurício,
porque era brasileiro.

DOUTOR — Naturalmente, e muito naturalmente, a rapariga ferrou no sono...

2 Trad: Deus me livre!


1 Trad: Quão diferente do que era.
2 Trad: De coração!
3 Trad: Do fundo do peito.
74
SOARES — Eu faria o mesmo.

DOUTOR — Algum sujeito que precisava de miúdos deu com ela e abiscoitou-a. Não sei se já lhe
expliquei a origem do verbo abiscoitar...

SOARES — Não, mas não é preciso; vem de biscoito. Vamos ver isto por aqui... talvez que a
encontremos.

DOUTOR — Vamos lá. (Subindo com Soares.) No tempo em que a Rua da Alfândega se chamava a
Rua do Oratório de Pau... (Perdem-se entre os grupos.)

CENA III

DONA CHIQUINHA, MINDOCA, SOARES e o DOUTOR

MINDOCA — Oh! quelle insipidité! Quel ennui!1

DONA CHIQUINHA — Vamo-nos embora, que já deram oito horas. Depois fica muito tarde.

MINDOCA —Allons donc.2

SOARES (Voltando com o Doutor.) — Oh! tia Chiquinha! Mindoca!

MINDOCA (Alegre.) — Oh! o primo Soares (Corre a ele.)

DOUTOR — Um seu criado, Senhora Dona Francisca.

DONA CHIQUINHA — Seu Doutor Sá! Que feliz encontro! (Conversam baixo.)

SOARES (Que tem conversado com Mindoca.) — Então?

MINDOCA — Não há meio... a maman quer por força... e eu...

SOARES — E você, não tendo forças para resistir, vai casar com aquele patife! (A Dona
Chiquinha.) Minha tia?

DONA CHIQUINHA — Que é, Cazuza?

SOARES — Ainda uma vez repito-lhe: o casamento de Mindoca com o Tavares é impossível.
DONA CHIQUINHA — Mudemos de assunto. Eu sei o que faço.

SOARES — Não mudemos, não. O Tavares é um tratante... em breve devo ter as provas...

DONA CHIQUINHA — Ora qual! Não há de ser tanto assim. Quem é que acusa seu Tavares?

DOUTOR — Latet anguis in herba1, Senhora Dona Francisca.

1 Trad: Quanta insipidez! Quanto tédio!


2 Trad: Vamos la!
1 Trad: Esta frase de Virgilio que, ao pé da letra, se traduz por A cobra se oculta na relva, metaforicamente vale por: A
falsidade muita vez se esconde sob a máscara de belas palavras.
75
DONA CHIQUINHA — Não sei quem é, mas é o mesmo... Há de ser algum intrigante.

DOUTOR — Em negócios como é o casamento, toda a cautela é pouca. Casar não é casaca. Aposto
que não sabe a origem deste ditado!

SOARES — Ora, Doutor, deixe-se agora de ditados! (A Dona Chiquinha.) E se eu lhe apresentar as
provas?

DONA CHIQUINHA — Ah! então o caso mudará de figura.

SOARES — Pois bem; peço-lhe um mês só de espera.

DONA CHIQUINHA — É justamente para quando está combinado o casório... Mas olhe que, se o
apanho em mentira, fico mal com você.

SOARES — Está dito! Viva a tia Chiquinha! Toca o hino!

MINDOCA — Ah! maman!... que vaus éter bonne.2

DONA CHIQUINHA — Bem; o tempo está passando e ainda temos que ir à quermesse3 do Cassino.

SOARES — Ah! vão à quermesse?

MINDOCA — Não querem acompanhar-nos?

DOUTOR — Nada. O outro dia caí em lá ir, e tive que dar dez mil réis por um copo d’água.

SOARES — Vejam só. Entretanto temos tão boa água de vintém. Bem faço eu que não vou a
quermesses. E mais uma estrangeirice que não me entra nem a pau.

DONA CHIQUINHA — Então vamos nós. Boa noite.

MINDOCA —Allons-y1. Adeus, primo Cazuza!

SOARES (Beijando-lhe a mão com efusão.) — Ah! vai-se chegando!... Ainda bem! (Dona
Chiquinha e Mindoca cumprimentam e saem.)

DOUTOR — Ora você sempre me saiu um namorado das dúzias! Deixa a menina ir só em vez de
acompanhá-la!... Decididamente não é um homem prático! Diga-me: que fim levaram os papéis do
fazendeiro?

SOARES — Espero-os a todo o momento. Já lhe escrevi de novo. Mas, ah! que vem a ser aquilo?

DOUTOR — Uma porção de garrafas ambulantes! Vejamos!

CENA IV

2 Trad: Que bondosa é você.


3 1886: kermesse.
1 Trad: Vamos lá.
76
OS MESMOS, as CERVEJAS CONDENADAS

(As cervejas entram e percorrem a cena com precaução.)

Coro de cervejas

(Música de Audran)

Cervejas cá estão,
Que vítimas são,
Sem apelação,
Da mais cruel condenação.
Tenham compaixão
Da nossa posição...
Ríspida foi tal punição.

DOUTOR — Percebo. É o casus belli1 entre a Inspetoria de Higiene e os fabricantes de cerveja.

SOARES — Que pena! Palavra! Eu tomava aquela Poço-rico com muito gosto. É bem boa!

DOUTOR — Oh! e o ácido salicílico? (As cervejas vão saindo.)

SOARES — Ora! um beijo só não faria mal. E foram-se. Mas por que andam elas com tanta
precaução?

DOUTOR — Sancta simplicitas.2 Se a Inspetoria as apanha, estão arranjadas.

SOARES — Olhe para ali, Doutor: não é a Niquelina?

DOUTOR — Parece. Vamos ver.

SOARES — Venha depressa. (Saem.)

CENA V

NIQUELINA, C.V.I., depois SOARES e DOUTOR

NIQUELINA (Entrando perseguida por CVI.) Deixe-me, senhor!... deixe-me!... que importuno!

C.V.I.— Oh! não me fujas! Amo-te! Adoro-te!

NIQUELINA — Que impertinência!

C.V.I. — Idolatro-te! Em ti deposito todas as minhas esperanças.

SOARES (Voltando com o Doutor) — Então? não lhe disse? É ela!... Niquelina!

NIQUELINA — Ah! és.... Chegas a propósito! Este senhor não me quer deixar.

1 Trad: Pomo da discórdia


2 Trad: Santa ingenuidade
77
C.V.I. — Decerto. Preciso muito de ti para a minha companhia.

SOARES — Que sem — cerimônia. Pois digo-lhe que ela está perfeitamente na minha. Afinal de
contas, quem é o senhor?

C.V.I. — Não vê? (Mostra o letreiro.)

DOUTOR — Cento e seis!

C.V.I. — Cento e seis? Que conta é essa?

DOUTOR — Pois então? C, cem; V, cinco; I, um; são cento e seis.

C.V.I. — Engana-se, isto não é letra romana: C, Companhia; V, Vila; I, Isabel.

SOARES — Agora compreendo. É a Companhia de Vila Isabel, que estabeleceu passagens de meio
tostão e precisa para elas da moedinha de cinqüenta réis que é Niquelina.

C.V.I. — A, q, u, i qui...

DOUTOR — Meneres!1 Já expliquei isto.

C.V.I. (A Niquelina) — Então? Vens ou não? Vê como te amo; não me abandones!

NIQUELINA — Está bem; vai e conta comigo. Prometo não abandonar-te.

C.V.I. — Juras?

NIQUELINA — Pelo rei Conto de Réis!

C.V.I. — Oh! que ventura! (Saindo.) Que ferro para meus colegas da São Cristóvão!

SOARES — Com que então, a senhora deixou-nos e deu às de Vila Isabel, hein?

NIQUELINA — Que queres? Fui raptada!

DOUTOR — Na sessão de música de câmara, não?

NIQUELINA — Exatamente. Tocava-se uma sinfonia de Jadassohn!

DOUTOR — E adormeceu? (A Soares.) Então, dei ou não dei no vinte? Ninguém escapa do sono.

DOUTOR — Vamo-nos embora... Não saímos hoje daqui?

SOARES e NIQUELINA — Vamos! (Saem os três. Mutação.)

QUADRO XIV

O Palácio dos Teatros

1 Expressão popular equivalente a: Isso mesmo! Assim é que é!


78
CENA I

DOUTOR, SOARES, NIQUELINA , depois a EMPRESA FERRARI, depois a EMPRESA ROSSI

SOARES (Entrando com os outros, a Niquelina.) — Está acabada a tua comissão, mas não quero
que deixes de mencionar no teu relatório alguma coisa relativa aos teatros de minha terra.

NIQUELINA — Que palácio é este?

SOARES — O empório dos teatros: o armazém de todas as novidades teatrais.

DOUTOR — Para começar, vou fazer-te uma apresentação. (Indo ao encontro da Empresa Ferrari,
que entra.) Apresento-te a conceituada Empresa Ferrari.

EMPRESA FERRARI — Fui eu que trouxe ao Rio de Janeiro o Gayarre e a Aída; o Tamagno e o
Profeta; a Durand e a Hebréia; a Borghi-Mano e a Gioconda... E o Salvador Rosa, e o Excelsior... e
tutti quanti1. Sou uma empresa benemérita.

EMPRESA ROSSI (Entrando.) — Mas este ano cessou o teu reinado. Cairás aos golpes que vou
vibrar contra ti.

DOUTOR — Esta é a Empresa Rossi.

EMPRESA FERRARI — Insolente! Pretendes atravessar-te no meu caminho! Por que não ficaste
em São Paulo?

EMPRESA ROSSI — E tu, por que não vais para lá?

EMPRESA FERRARI — Eu mato-te, malcriada!

EMPRESA ROSSI — Eu espatifo-te, orgulhosa!

DOUTOR — Mau!... neste andar as duas atracam-se unguibus et rostro!1

SOARES e NIQUELINA (Apartando-as.) — Então?... o que é isto?

SOARES — Trate cada qual de sua vida e não se importe com a outra.

EMPRESA FERRARI — Diz bem, senhor; vou preparar o meu Brama! (Sai.)

EMPRESA ROSSI — Uma tola, que quer abarcar o mundo com as pernas!

SOARES — Como bom carioca, não morro de amores por estes forasteiros que fazem de nossa terra
um entreposto artístico-comercial, deixando à fome os pobres artistas nacionais. Entretanto,
reconheço que a Empresa Ferrari tem direitos adquiridos, porque nos tem trazido muita coisa boa.

NIQUELINA — Naturalmente esta senhora vem aproveitar o terreno preparado pela outra?

EMPRESA ROSSI — Engana-se. A Empresa Ferrari não traz este ano ópera lírica, mas ópera

1 Trad Quantos mais tantos outros.


1 Trad; Com unhas e dentes.
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cômica e baile. Ópera lírica sou eu que a trago. Adeus; vou tratar da vida, que a morte é certa.

SOARES — Isso é. (Empresa Rossi sai.)

NIQUELINA — Mas digam-me: não houve este ano nenhum drama nacional?

SOARES — Um único: o Caboclo, uma peça bem carioca; bem nossa e muito bem escrita.

DOUTOR — Mas um jornal afirmou ser adaptada de não sei que peça espanhola.

SOARES — Um disparate. Os dois trabalhos não se parecem nada. Vê lá, Niquelina, vê lá como isto
é. Tivemos um único drama nacional, um único, e esse mesmo achou quem o tachasse de plagiado.

NIQUELINA — Que estímulo!

SOARES — Felizmente, alguns espectadores de boa fé aplaudiram sempre o Caboclo.

DOUTOR — Rari nantes in gurgite vasto1.

NIQUELINA — É realmente lastimável este estado de coisas. Quem era o Cabloco?

SOARES — O Vasques.

DOUTOR — Saiu-se perfeitamente num papel dramático, ou antes, trágico. Estive às duas por três a
bradar do meu camarote: plaudite, cives.2 (Ouve-se um grande barulho no bastidor.)

OS TRÊS — Que é isto?

CENA II

OS MESMOS, uma CELEBRIDADE, uma MULHER, que logo sai e FILIPE

CELEBRIDADE (Entrando furiosa a brandir um chicote.) — Vous êtes des brutes; je m‘en vais!3

FILIPE (Entrando a segurar a mulher.) — Si vous voulez continuer, ne faites pas de cérémonie; je la
tiens.4

CELEBRIDADE — Non, ça suffit5 (FILIPE larga a mulher, que desaparece.)

SOARES (A Filipe.) — Oh! que é isto? Pois o senhor agarrou na outra para a Madama dar de
chicote?

FILIPE (Com sotaque francês.) — Pardon, mas, o senhor não sabe o que esta mulher tem feito. Ela
teve a audácia de lever6 a mão contra a primaira artista deste siècle.7

1 Trad: Raros náufragos nadando no vasto abismo. (após o naufrágio do fiel Orantes)
2 Trad: Aplaudam, cidadãos.
3 Trad: Vocês são uns estúpidos; vou-me embora.
4 Trad: Se você quiser continuar, não faça cerimônia, eu a seguro.
5 Trad: Não, já basta!
6 Trad: levantar
7 Trad: século
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DOUTOR — Pois é pena, que a primeira artista deste século se entregue a tais excessos. Si parva
licet componere magnis1 parece-me uma Maria da Fonte.

CELEBRIDADE (Com sotaque francês.) — Quero ir me embora... no Brasil eu só tenho tido


desgostos.

NIQUELINA — Como fala bem o português!

SOARES — Esta mulher extraordinária sabe tudo. Representa, caça, faz estátuas, joga o florete e
pinta.

DOUTOR — Pinta, sobretudo.

NIQUELINA — E o senhor? está também desgostoso com a terra?

FILIPE — Certainement2 Pois a senhora não sabe que eu foi pateado?

NIQUELINA — Olhem! ele também fala português!

FILIPE — Pateado! Moi! un premier prix du Conservatoire de Paris3.

DOUTOR — Mas em quê e por quê o patearam?

FILIPE — Porque eu representou a Dame aux Camélias como se representa à Paris, e não fez de
Armand Duval um bonequinho d’água-de-cheiro. Madame, allons faire notre première scéne
d’amour de la Dame aux Camélia? Ces messieurs et dame verront si le public a été juste4

CELEBRIDADE — Mais, volontiers, mon cher5

FILIPE — Os senhores preste toda attention. Premier acte. (Tomam posição.) Si je vous disais,
Marguerite, que j‘ai passé des mois entiers sous vos fenêtres... (Interrompendo-se.) Pardon! (Tira
um bigode postiço do bolso, e aplica-o em si.) Je garde depuis six mois un bouton tombé de votre
gant6

CELEBRIDADE — Je ne vous croirais pás7

FILIPE — Vous avez raison. Je suis un extravagant; riez de moi, c‘est ce qu’il y a de mieux à faire.
(Com voz de trovão.) Adieu!8 (Vai saindo.)

CELEBRIDADE — Armand!

FILIPE (Voltando.) — Vous me repellez?9

1 Trad: Se é lícito comparar pequenas coisas às grandes.


2 Trad: Sem dúvida
3 Trad: Eu! Um primeiro prêmio do Conservatório de Paris.
4 Trad.: Senhora, vamos fazer nossa primeira cena de amor da Dama das Caméllas? Esses senhores e a senhora verso se
o público foi justo;
5 Trad: Mas, de bom grado, meu caro.
6 Trad: Se vos disser, Margarida, que passei meses inteiros sob vossas janelas... (...) Perdão! (...) Há seis meses que
guardo um botão caído de vossa luva.
7 Trad.: Eu não acreditaria em vós.
8 Trad.: Tendes razão. Sou muito extravagante, ride de mim, é o que há de melhor a fazer Adeus.
9 Trad.: Chamaste-me?
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SOARES — Ele diz — adieu — como quem diz — ora viva!

CELEBRIDADE — Eh! bien! Donnez-moi una poignée de main... venez me voir quelquefois...
souvent... naus en reparlerons1

FILIPE — C’est trop.... et ce n‘est pas assez.2

CELEBRIDADE — A ce qu‘i1 para it , je vous dois quelque chose?3

FILIPE — Ne parlez pas ainsi. Je ne veux plus vaus voir rire avec les choses sérieuses4

DOUTOR — Ele ainda acaba dando-lhe pancada!

CELEBRIDADE — Je ne ris plus5

FILIPE — Voulez-vaus être aimée.6?


CELEBRIDADE — C’est selon. Par qui7?

FILIPE — Par moi.8

CELEBRIDADE — Aprês?9

FILIPE — Etre aimée d’un amour profound, éternel?10

CELEBRIDADE — Et si je vaus crois tout de salte, que direz-vous de moi.11?

FILIPE — Que vaus êtes un ange!12

NIQUELINA (Arremedando-o.) — Que vaus Etes un ange.

FILIPE (A Niquelina.) — Attention, Madame.

CELEBRIDADE — Non: vous direz de moi ce que tout le monde en dit. Qu ‘importe? Puis que j’ai
à vivre moins longtemps que les autres, il faut bien que/e vive plus vite.13

FILIPE (Com um berro.) — Marguerite!

SOARES (Com um pulo.) — Ó senhor! assustou-me.

1 Trad.: Está bem! Dai-me um aperto de mão... vinde ver-me alguma vez... muitas vezes... nós voltaremos a conversar.
2 Trad.: demais... e não e o bastante.
3 Trad.: Ao que parece, eu vos devo alguma coisa.
4 Trad.: Não faleis assim. Não quero mais ver-vos rir de coisas sérias.
5 Trad.: Não rio mais.
6 Trad.: Queres ser amada?

7 Trad.: Depende. Por quem?


8 Trad.: Por mim.
9 Trad.: Depois?
10 Trad.: Ser amada com um amor profundo, eterno?
11 Trad.: E se eu acreditar logo em vós, que direis de mim?
12 Trad.: Que sois um anjo.
13 13 Não. direis de mim o que todo mundo diz. Que me importa? Já que terei a vida mais curta que os outros, é mister
que eu viva mais depressa.
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CELEBRIDADE — Tout cela mérite quelque chose. Prenez cette fleur1 (Dá-lhe o chicote.)

FILIPE — Pourquoi cette fleur?2

CELEBRIDADE — Vaus me la reporterez3?

FILIPE — Quand?
CELEBRIDADE — Quand elle sera fanée4.

DOUTOR — Há de ser difícil.

FILIPE — Et combien de temps lui faudra-t-il pour cela?5

CELEBRIDADE — Mais ce qu‘il faut à toute fleur pour se faner: L ‘espace d’un soir ou d‘un
matin.6

FILIPE —Ah! Marguerite, que je suis heureux!7

CELEBRIDADE — Eh! bien! Dites-moi encare que vaus m‘aimez.8

FILIPE — Oh! oui! Je vous aime!9

SOARES — Ele diz — Je vaus aime — como quem diz — Ora bolas!

CELEBRIDADE — Et maintenant partez10

FILIPE (Tirando o bigode e guardando-o.) Faz o favor de me dizer se isto não é grand art? Voilà ce
que aprend au Conservatoire de Paris.

CELEBRIDADE — Sim, mas nós podemos apresentar coisa melhor. Nous y reviendrons! Suivez-
moi11

FILIPE (Saindo com ela.) —A vez-vaus lu Manon Lescaut, Madame?12

CENA III

DOUTOR, NIQUELINA, SOARES, EMPRESA ROSSI,


coberta de andrajos, depois a EMPRESA FERRARI, depois um
grupo de estudantes

SOARES — Que grande trovoada!

1 Trad: Tudo isso merece alguma coisa. Tome esta flor.


2 Trad.: Por que esta flor?
3 Trad.: Vós ma devolvereis.
4 Trad.: Quando ela murchar.
5 Trad.: E quanto tempo será necessário para isso?
6 Trad.: O que for necessário para que qualquer flor fique murcha. O espaço de uma tarde ou de uma manhã.
7 Trad.: Ah! Margarida, como sou feliz!
8 Trad.: Está bem! Dizei-me que me amais ainda.
9 Trad.:Oh! sim! Eu vos amo.
10 Trad.: E agora parti.
11 Trad.: Voltaremos aí. Siga-me.
12 Trad.: A senhora leu Manon Lescaut?
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EMPRESA ROSSI (Entrando furiosa.) — Fischiato! fischiato il mio direttore d ‘orchestra13

NIQUELINA — Fischiato?

EMPRESA ROSSI —Pateato?

DOUTOR — Ó senhor! mais pateada! Pateado por quê?

EMPRESA ROSSI — O público queria um direttore braziliana, eu só lhe podia dar um direttore
italiano.

DOUTOR — Ad impossibilia nemo tenetur.2

SOARES — Com esta gente não há meio de falar português.

EMPRESA ROSSI — Mas tenho esperanças no Hamleto e na Laureana. (Sai.)

SOARES — Pobres artistas!

NIQUELINA — Vão ficar todos a pão e água!

SOARES — Se não ficarem a água só.

DOUTOR — E os empresários? Resperit domino3?

EMPRESA FERRARI (Entrando coberta de andrajos.) — A que estado me vejo reduzida! E tudo
isto por ter reduzido o preço dos bilhetes! Decididamente este ano acabo na mais negra miséria.
(Apontando para o vestiário.)4 Vejam como está isto! Felizmente ainda tenho alguns vestuários de
baile. Vou mudar de fato. (Sai. Música.)

TODOS — Oh! (Atravessa o fundo um grupo5 de estudantes carregando um ramilhete colossal.)

CORO DE ESTUDANTES

(Música de C. Cavalier.)

A mocidade acadêmica
Vai neste instante ofertar
Um ramo pantagruélico
À grande Sarah Bernhardt.

(Desaparece o grupo.)

SOARES — Safa! Aquilo não é ramilhete, é uma montanha!

13 Trad.: Vaiado! vaiado o meu regente.


2 Trad.: Ninguém é obrigado a fazer milagres.
3 Trad.: A coisa perece por culpa do dono.
4 1886: vestuário.

5 1886: grugo
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DOUTOR — E que estudantes! Há alguns quase da minha idade!

NIQUELINA — Cada latagão!

CENA IV

OS MESMOS, EMPRESA ROSSI, depois uma CANTORA, acompanhada por admiradores, depois
o EMPRESÁRIO DOS PAPAGAIOS

EMPRESA ROSSI (Entrando furiosa.) — Fischiato! fischiato!

DOUTOR — Ainda! Estamos em maré de pateadas!

SOARES — Com efeito! E quem foi agora o pateado?

EMPRESA ROSSI — Il Bertini! o tenor mais caro da companhia. (Entra a cantora, acompanhada
pelos admiradores, que a aclamam.)

ADMIRADORES — Viva a Buliccioff! Viva!

BULICCIOFF — Oh! grazie! Non ho fatto niente1

TODOS — Viva a grande abolicionista! Viva! (Saem.)

NIQUELINA — Mas por que toda aquela festa?

EMPRESA ROSSI — Ah! Aquela artista cedeu para a liberdade dos escravos as jóias que lhe
haviam de dar na noite de seu benefício. Vou ver o resto da festa. (Sai.)

DOUTOR — É um belo exemplo, que naturalmente não há de ser imitado!

EMPRESA DE PAPAGAIOS (Entrando.) — Qual dos senhores me empresta cem mil réis?

SOARES — Essa agora! Não o conheço.

DOUTOR — Nem eu...

EMPRESÁRIO — Preciso de dinheiro para mandar buscar a minha Companhia Lírica de Papagaios,
que há seis meses está anunciada!

SOARES — Pensa, então, que nós comemos araras?

NIQUELINA — Espere... parece-me que o estou conhecendo. Não foi o senhor que pretendeu o
outro dia apresentar uma mulher mutilada?

EMPRESÁRIO — Sim, senhora. Mas não engoliram a pílula. Fui pateado.

DOUTOR — Tu quo que?2

1 Trad: Oh! Agradecida! Não fiz nada!


85
EMPRESÁRIO — Então nem ao menos vinte mil réis?

SOARES — Nada! ponha-se ao fresco! Vá impingir os seus papagaios mais adiante.

EMPRESÁRIO — Paciência! (Sai.)

NIQUELINA — Aí está um sujeito que pode dizer que vive à sombra dos seus louros.

SOARES — Neste caso o periquito é quem come o milho e o papagaio quem leva a fama.

CENA V

DOUTOR, SOARES, NIQUELINA, COMPANHIA DE DONA MARIA, depois o DUQUE DE


VISEU

DONA MARIA — Vossências sabem me dizer onde é o Recreio Dramático?

NIQUELINA — Vá entrando. Pergunte lá dentro.

DONA MARIA — Conhecem-me! Sou a Companhia de Dona Maria.

SOARES — Ó Senhora Dona Maria!

DOUTOR — Há muito tempo que a conheço de reputação. A sua fama já havia cá chegado. Já sei
que nos vem trazer alguma boa produção do moderno teatro português.

DONA MARIA — Engana-se, meu caro senhor: o meu repertório é todo francês.

DOUTOR — Em casa de ferreiro, espeto de pau.

DONA — Ah! é verdade! trago uma peça nacional, que vale muito.

OS TRÊS — Qual?

O DUQUE DE VISEU (Entrando.) —

— Eu, meus senhores, eu!


Eu chamo-me, senhora, o Duque de Viseu.
Amo.perdidamente, adoro como um louco
A cândida e gentil Margarida Tinoco,
Que parente não é de um repórter famoso.
Sou irmão da rainha; o seu medonho esposo
Dom João Segundo, um dia, ó fúnebre lembrança,
Mandou matar meu mano, o Duque de Bragança;
Esse Nero feroz, esse monstro, essa harpia
Vai dar cabo de mim, mais dia, menos dia.

SOARES — Que família, meu Deus! Que sorte mais tirana! O rei os manos mata! E o que é que faz

2 Abreviação da célebre frase de César ao ver entre seus assassinos o próprio filho Bruto: tu quoque, Brute, flui mi!
Trad.: Até tu, Bruto, meu filho!
86
a mana?

DOUTOR — Ó Duque de Viseu, por que de lá não foges?


Improbus amor quod mortalia pectora cogis.1
É comprido, mas é verso.

NIQUELINA — Pobre vítima, vai! Cumpre o destino teu! O povo inteiro espera o Duque de Viseu.

DUQUE — Vamos, Dona Maria.

DONA MARIA — A ocasião é bela.

DOUTOR — Enquanto o vento sopra, é bem molhar a vela. (Saem o Duque e Dona Maria.)

CENA VI

DOUTOR, SOARES, NIQUELINA, depois FILIPE , CELEBRIDADE, ESTUDANTES

SOARES — É uma das importações estrangeiras que mais me têm agradado.

DOUTOR — A mim também. (Ouve-se grande vozeria. Filipe, vestido de Hipólito, e a Celebridade,
vestida de Fedra, entram perseguidos pelos estudantes em mangas de camisa.)

CELEBRIDADE — Laissez-moile vous prie2? (Aclamações.)

FILIPE — Vous allez é touffer, madame.3

SOARES — Que é isto? Os estudantes em mangas de camisa?

FILIPE — C’est de l’enthousiasme!4… Os senhores podem ir embore e... Madame fica muito grata à
sua fineza... Podem ir apanhar no palco os paletós5 (Os estudantes saem dando vivas.)

NIQUELINA — Ah! atiraram os paletós no palco?

SOARES — Já é!

DOUTOR — Eu sabia que ela era atriz de se lhe tirar o chapéu, mas o paletó!

CELEBRIDADE (A Filipe.) — Oh! si d’un sang trop vil ta main serait trempée, Au défaut de ton
bras prête-moi ton épée.6 Donne. (Arranca a espada de Filipe e quer matar-se.)

NIQUELINA — Que faites-vous, madame! Juste Dieu7! (Leva-a para dentro.) Theramêne, fuyons8!

1 Trad.:O infiel amor, que angustiará os corações mortais.


2 Trad.: Deixai-me;eu vos peço.
3 Trad.: Ficareis abafada, senhora.
4 1886: l’enthusiasme. Trad.: É de entusiasmo!
5 1886: paletots.
6 Trad.: Ah! Se tua mão vai molhar-se com sangue tão vil. Na falta de teu braço, empresta-me tua espada. Dá-
me.
7 Trad.: Que faze, senhora! Meu Deus!
8 Trad.: Teramene, fujamos!
87
DOUTOR — Theramêne será ele!

FELIPE — Ma surprise est extréme Je ne puis sans horreur me regarder moi-méme. 1 (Sai a passos
trágicos.)

SOARES — Ó maluco! (Niquelina volta.)

CENA VII

DOUTOR, NIQUELINA, SOARES, a MÁRTIR, depois o


CONDE DE MORA, depois o ALMIRANTE

A MÁRTIR (Entrando e lançando-se aos pés do Doutor.) — Senhor, interceda por... Ele aí vem, meu
marido, o conde de Moray!

SOARES — Conheço a sua história porque a li nos folhetins do Diário de Notícias, mas permita que
lhe diga: se a senhora é mártir, a culpa é sua.

A MÁRTIR (Levantando-se.) — Minha!

NIQUELINA — Sua, sim! Eu também conheço a história. Por que não confessa que o rapaz
assassinado por seu marido é seu irmão?
MÁRTIR — Oh! pois não sabeis que ele é o fruto do crime de minha mãe e que eu me sacrifico por
ela?

DOUTOR — Mas a senhora — eu também conheço a história —, a senhora tem uma filha: não deve
sacrificar a pobre criança.

MÁRTIR — Diz bem... o senhor abriu-me os olhos... Por minha mãe eu me sacrifiquei, mas por
minha filha sacrificarei o mundo inteiro! (Indo ao encontro do Conde, que entra.) Roger... tu amas-
me?

CONDE — Eu adoro-te, mas, obrigado a curvar a cabeça ao peso...

NIQUELINA — De quê?

CONDE — Da vergonha!

SOARES — Mas desgraçado! O moço que assassinaste é irmão dela, é teu cunhado, é filho de tua
sogra, e não é nada de teu sogro!

DOUTOR — Compreendes agora?

CONDE — Que me diz você? Ora sempre sou um grande pedaço d’asno!

NIQUELINA — Eu há muito tempo estava desconfiada disso.

MÁRTIR — Abraça-me, Roger! (Abraçam-se.)

ALMIRANTE (Entrando.) — Onde está ela? Não quero vê-la!... Oh! que vejo!... abraçados!

1 Trad.: Minha surpresa é extrema: Não posso olhar para mim nem horrorizar-me.
88
reconciliados!... Então ela justificou-se.

CONDE — Eu lhe digo...

SOARES — Não vê que...

NIQUELINA — Há coisas...

DOUTOR — Imagine que...

MÁRTIR (Interrompendo.) — Silêncio! Meu pai, eu não me justifiquei:


Roger perdoou.

CONDE (À parte.) — O diabo é que, durante a nossa separação, o frontispício ficou muito
deteriorado!... Vamos, meu anjo; vamos recomeçar a nossa lua-de-mel. (Saem.)

ALMIRANTE (Aos outros personagens.) — Pois, senhores! este meu genro saiu um grande filósofo!
(Sai.)

SOARES (Ao Doutor.) — Se nós lhe disséssemos tudo?

DOUTOR — Deus nos livre! Haveria matéria para outro dramalhão em cinco atos, o que seria uma
desgraça!

CENA VIII

OS MESMOS, o ATOR PÓLO, depois EMPRESA FERRARI, Bailarinas

ATOR PÓLO (Entrando a procurar um objeto pelo chão.) — Perdão! com licença!... Não está!...
Nada!...

SOARES — Perdeu alguma coisa?

ATOR PÓLO — Ah! deixe-me! Estou aflitíssimo!... Sou um dos empresários da Companhia
Príncipe Real de Lisboa... Já estava a bordo, pronto para partir, quando dei por falta da minha melhor
jóia.. uma cruz esplêndida!...

NIQUELINA — Uma cruz!

ATOR PÓLO — Não a encontro em parte alguma; faz-me uma falta enorme!

SOARES — E era de valor?

ATOR PÓLO — Era a mais rica da minha coleção. E bonita.

SOARES — Então, meu caro, perca-lhe as esperanças!... Quem a achou levou-a consigo.

ATOR PÓLO — Minha rica cruz! Minha rica cruz! (Vai a sair e deixa cair uma margarida.)

SOARES — Olá! ó amigo! olhe que deixou cair a flor!

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ATOR PÓLO — Que importa a flor! Fiquei sem a cruz, fico também sem a margarida.

DOUTOR — Pobre Companhia! Bifaram-lhe a cruz!...

SOARES — Algum amador! (Música.)

NIQUELINA — Não me engano. Esta musica é do Brama! (Entra a Empresa Ferrari perseguida
em mímica pelas bailarinas.)

DOUTOR — Bom; temos um pouco de mímica!

NIQUELINA — Nada de mímicas. Vamos-nos embora. Tenho que aprontar o meu relatório e partir.

SOARES — Já?

NIQUELINA — E então? Está a terminar o ano...

DOUTOR — Só lhe peço que não se esqueça de mim. As finanças continuam mal e eu tenho o meu
projeto.

NIQUELINA — Fique descansado. Vamos.

DOUTOR e SOARES — Vamos! (Saem. Bailado do Brama. Mutação.)


QUADRO XV

A mesma sala do prólogo.

CENA PRIMEIRA

O SACRISTÃO, DONA CHIQUINHA

SACRISTÃO (Da porta.) — Dá licença, Senhora Dona Francisca?

DONA CHIQUINHA (Aparecendo da direita, vestida de cerimônia.) — Entre, quem é?

SACRISTÃO — Sou eu, sim, senhora; um servo de Deus e de Vossa Excelência.

DONA CHIQUINHA — Ah! é seu Couto?


SACRISTÃO — O Senhor Vigário manda saber se é sempre hoje.

DONA CHIQUINHA — sim; às cinco horas. Chegamos há pouco do Castelo, onde fomos em
romaria à gruta de Lourdes, pedir a Nossa Senhora que nos ampare neste mundo.

SACRISTÃO — À gruta de Lourdes... no Castelo?

DONA CHIQUINHA — Então?... pois não sabe que fizeram uma gruta de Lourdes... de verdade?

SACRISTÃO — De verdade é que não... acho até esta história de gruta um tanto grotesca.

DONA CHIQUINHA — Não diga isto, seu Couto! Que heresia!

SACRISTÃO — Não discuto. Por causa de discussões, me atraquei ontem com o padre Guerra. Ele

90
aprumou-me com um cálice...

DONA CHIQUINHA — E o senhor calou-se?

SACRISTÃO — Não... cálice... com i...e [com] c.1 E eu fui lhe dando o troco em miúdos...

DONA CHIQUINHA — Credo! Santo nome de Jesus!

SACRISTÃO — Pudera! nestes tempos, qualquer que seja o jogo, trunfo é paus. Olhe o outro do
Matadouro! Era um bom empregado, mas como queriam ver-se livres dele, foram-he ao pelego.

DONA CHIQUINHA — Está bom, basta de seca, que são quatro horas dadas.

SACRISTÃO — Então às cinco.

DONA CHIQUINHA — Às cinco..

SACRISTÃO — Que bom casamento. Um vereador! Às ordens! (Sai.)

CENA II

DONA CHIQUINHA, depois TAVARES,o SENHORIO, a MADRINHA,


depois o DOUTOR SÁ [BICHÃO]

DONA CHIQUINHA — Finalmente vou ver a Mindoca casada. Já não era sem tempo. Além do
dote, dou-lhe a Genoveva... mesmo porque não há meio de descobrir onde se meteu o diabo da
mulata. (Batem palmas.) Quem é?

TAVARES (Da porta.) — Somos nós: eu e os padrinhos.

DONA CHIQUINHA — Ah! o noivo. (Entram Tavares, o Senhorio e a Madrinha.) Então que é da
Maricota, e a Tecla? Dona Josefina ainda não ficou boa de todo? (Vai cumprimentar a Madrinha.)

TAVARES — Foram esperar-nos à igreja. Não mandaram recomendações... porque... hão de


encontrar-se daqui a pouco...

DONA CHIQUINHA — Mas que demora foi esta?

TAVARES — Faça idéia! Como sabe, estou servindo no júri. Fui ontem sorteado e gramei até hoje
pela manhã... Era o processo da...

DONA CHIQUINHA — Eu sei.... e então?

TAVARES — Que dia e que noite! mas também, que jantar! que jantar e que vinhos! Que pândega!

DONA CHIQUINHA — E a ré?

TAVARES — Absolvida...

O SENHORIO — Não era possível condená-la. Ela estava tão bem vestida! E que bons brilhantes!

1 1886: y... e dois ss


91
DONA CHIQUINHA — Fizeram muito bem... Coitadinha!

SENHORIO — Mas podiam tê-la absolvido com mais decência. Procurassem a justificativa.

DOUTOR (Entrando.) — Adsum1! Sempre se espera pela pior figura.

TAVARES — Oh! não diga semelhante coisa!

DOUTOR (Baixo a Dona Chiquinha, apertando-lhe a mão.) — Vim como amigo velho, mas bem
contra a vontade. O Soares lá foi para o Correio à procura de cartas. Pobre rapaz!

DONA CHIQUINHA — Meu sobrinho é um visionário. Mindoca faz um casamentão.

DOUTOR (Torcendo o nariz.) — Hum! (A Tavares.) Já soube que o 2º escrutínio foi anulado?

TAVARES — Pois o juiz anulou?

DONA CHIQUINHA — O quê?... seu Tavares não é mais vereador?

SENHORIO (À parte.) — E eu quê, além dos aluguéis, lhe emprestei o dinheiro para o enxoval!
Estou roubado!

TAVARES — Que importa a anulação? Sairei eleito novamente.

DONA CHIQUINHA — Se eu soubesse isto ontem, transferia o casamento.

DOUTOR — Agora é pegar-lhe com um trapo quente... Sabe a origem deste ditado?

DONA CHIQUINHA — Ora eu mesmo estou agora para origens! Aí vem Mindoca!

CENA III

OS MESMOS, MINDOCA, depois SOARES

TAVARES (Indo-lhe ao encontro.) — Minha senhora, permita que. (Mindoca dá-lhe as costas e
desata a chorar nos braços do Doutor.)

DOUTOR — Sunt lacrymae rerum2.

SENHORIO (À Madrinha.) — A noiva não parece morrer de amores pelo nosso inquilino!

TAVARES — Então vamos? (Ouvem-se dar cinco horas.)

DONA CHIQUINHA — Vamos. São horas! (À parte.) Se arrependimentos salvassem... (O Senhorio


vai dar o braço a Mindoca que está em prantos. O Doutor à Dona Chiquinha e Tavares à Madrinha.
Dirigem-se para a porta muito tristes.)
1 Trad: Presente!
2 Abreviação da frase de Enéias diante da visão dos combates de Tróia num templo que Dido ergueu à rainha dos deuses:
Sunt lacrtmae rerum et mentem mortalta tangunt. Trad.: - Há infortúnios que arrancam lágrimas das coisas e tocam o
coração.

92
SENHORIO (À parte.) — Parece uma missa de sétimo dia. (Vão a sair, quando entra Soares,
agitando nas mãos uns papéis.)

SOARES — Chego a tempo! Dão licença para um?

MINDOCA — Ah! (Larga o braço do Senhorio e corre a Soares.)

SOARES (A Tavares e Dona Chiquinha.) Com estes papéis, que acabo de receber do Tenente-
coronel Regadas, de Casa Branca...

TAVARES (À parte.) —De Casa Branca! Já não estou bem, aqui1...

SOARES — Posso provar luz meridiana...

TAVARES (Baixo.) — Cale-se!... renuncio a tudo.

SOARES — Então raspe-se!

TAVARES — Mas...

SOARES (Alto.) — Raspe-se e sem dizer palavra!

DOUTOR — A porta da rua é serventia da casa!

TAVARES — Ora! não faltam casamentos! (Põe com violência o chapéu na cabeça e sai.) Vivam!

SENHORIO — Vamos, Crispiniana! Vamos trabalhar pela eleição do homem, senão estou roubado!
(Saem.)
DONA CHIQUINHA — Mas afinal o que fez ele em Casa Branca?

SOARES — Não se pode dizer ao pé de senhoras.

DONA CHIQUINHA (Entregando-lhe Mindoca.) — Aqui a tens! Soubeste conquistá-la.

MINDOCA — Oh! quel bonheur2!

SOARES — Prima, peço-lhe um único favor: fale em português... Você com o francês e o Doutor
com o latim põem-me grego. (O Doutor ri-se.)

DONA CHIQUINHA — E eu, que passei procuração ao patife para tratar do negócio do diabo
daquela mulata!

SOARES — De Genoveva? Acabo de encontrá-la.

DONA CHIQUINHA (Contentíssima.) — Ah!

SOARES — A Câmara Municipal libertou-a no dia dois, por trezentos mil réis que o Tavares
recebeu.

1 1886: bem aqui...


2 Trad.: Que felicidade!
93
DONA CHIQUINHA — Ah! tratante! Ainda uma vez: tome a Mindoca! (Mindoca e Soares
abraçam-se.)

DOUTOR — Uma vez que chegamos ao desenlace, é tempo de acabar com isto. Finis coronat opus1
Vamos ao couplet final.

SOARES (Desenlaçando-se de Mindoca e tomando uma atitude dramática.) — Um instante (Desce


ao proscênio.)

Permiti que o artista, ao concluir-se a farsa


Que teve unicamente a inglória pretensão
Do riso despertar, que a lágrima disfarça,
Venha a memória honrar de um grande cidadão.

Na nossa curta história


A página mais bela agora o reclamou.
No Panteon da Glória
De José Bortifácio o vulto altivo entrou.

(Apontam todos para o fundo. Música na orquestra. Mutação.)

QUADRO XVI

O PANTEON BRASILEIRO

Apoteose a José Bonifácio.

(Cai o pano.)

1 Trad.: O final coroa a obra.


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