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ARTUR AZEVEDO
1887
Ao Ator
Martins
Com os agradecimentos de
Artur Azevedo
e
Moreira Sampaio
PERSONAGENS ATORES
SOARES..............................................................................Senhor Vasques
DOUTOR SÁ BICHÃO......................................................Senhor Matos
TAVARES...........................................................................Senhor Mesquita
EL-REI CONTO DE RÉIS, COMENDADOR
CAMPELO, DOUTOR CHAUVIN, TENENTE
CORONEL REGADAS, FILIPE ........................................Senhor Martins
O PATACÃO, CHUCHU, GENERAL REDONDO,
SIR JOHN, DUQUE DE VISEU.........................................Senhor Areias
DOUTOR MÁXIMO, JORNAL DO COMMERCIO,
C.V.I., O ALMIRANTE......................................................Senhor Lisboa
MELO, DOUTOR JOSÉ MARIA, XAMBI-CAIENA,
RIO DE JANEIRO (jornal), UM MESTRE-ESCOLA,
UM MANIFESTANTE, O ATOR PÓLO...........................Senhor Febo
2
DOENTE, O BOLETIM COMERCIAL, UM
SACRISTÃO..........................................................................Senhor Machado
NICOLAU, UM OFICIAL DE JUSTIÇA..................................Senhor J. Dias
VINTE MIL RÉIS, UM CAIXEIRO DA MAISON
MODERNE, UM CAIPIRA.........................................................Senhor César
OUTRO DOENTE, OUTRO CAIPIRA........................................Senhor Dias
DIÁRIO DO BRASIL................................................................Senhor Pertuis
BOLESLAU...............................................................................Senhor Stinger
UM TIPO....................................................................................Senhor Carlos
OUTRO..........................................................................................Senhor Leal
DEZ RÉIS.............................................................................Menino Francisco
NIQUELINA...................................................................Madame Rosa Villiot
DONA CIQUINHA........................................................................Dona Isabel
MINDOCA.......................................................................... .............Dona Febo
OLGA, GAZETA DE NOTÍCIAS, SOCIETÉ
ANONYME........................................................................ .Madame Delmary
UMA GRANDE CELEBRIDADE..................................Dona Cinira Polônio
A RAINHA APÓLICE, DONA ENGRÁCIA, A
MÁRTIR..............................................................................Dona M. Caminha
A INSPETORIA DE HIGIENE, A EMPRESA ROSSI...........Madame Oudin
GENOVEVA, MADEMOISELLE X, O GRIFO.......................Dona Eufrásia
GAZETA DA TARDE, A COMPANHIA DE DONA
MARIA II...................................................................................Dona Adelaide
1ª FINANÇA, UM VENDEDOR DE BALAS, O
RA-TA-PLÃ........................................................................Dona M. Picherrau
L’ITÁLIA, EMPRESA FERRARI............................................Signora Garcia
A PRATA DE DOIS MIL RÉIS..................................................Dona Aurélia
2ª FINANÇA, UM VENDEDOR DE JORNAIS, UM
REPÓRTER........................................................................Dona R. Bergmann
UM VENDEDOR DE FÓSFOROS, A BULICIOFF,
A MADRINHA..........................................................................Madame Jenny
Notas e níqueis,1 jornais e periódicos, visitantes da Santa Casa, doentes, manifestantes, caipiras,
trabalhadores da Companhia de Gás, estudantes, cervejas condenadas, povo, etc.
Música de diversos autores, coordenada e instrumentada pelo Senhor Carlos Cavalier, que compôs
alguns números. Cenário dos Senhores Gáudio Rossi, Oreste Coliva, Carrancini e Frederico de
Barros. Vestuários imaginados e executados pelo Senhor F. Lisboa e Madame Victorina Pezzana.
Nesta edição não se fizeram as alterações exigidas pelo Conservatório Dramático nem pelas
conveniências de cena.
QUADRO 1
Sala em casa de Dona Chiquinha. Mesa ao centro e cadeiras. Sobre a mesa, um pequeno toucador e
respectivas pertenças.
CENA I
MINDOCA, depois DONA CHIQUINHA. (Ao levantar o pano, Mindoca está em frente à mesa,
mirando-se ao espelho, pondo pó-de-arroz no rosto, arranjando o penteado.)
MINDOCA — Ah! c’est trop1! Enquanto chamares Mindoca, não respondo!... Que birra!
DONA CHIQUINHA (Entrando.) — Bem podia eu chamar até amanhã!... Quando a senhora se
pespega a um espelho, adeus, minhas encomendas! Sabe que horas são?
DONA CHIQUINHA — Ainda acha cedo?... Era melhor que estivesse fazendo crochê3 em vez de
namorar-se.
DONA CHIQUINHA — Aí começas com a mania do estrangeirismo!... Bem diz teu primo Soares
que mal andamos pondo-te num colégio francês. Fala brasileiro, rapariga; fala brasileiro, que é
língua de gente séria.
MINDOCA — Oh! o primo Soares! Que opinião autorizada! O primo Soares tem orgulho de ser
carioca e abomina tudo quanto é estrangeiro. Gosta de mim, como a maman sabe e, se ainda não
pediu a minha mão, é porque...
DONA CHIQUINHA — É porque tu pareces mais francesa que brasileira. Também se pedisse,
perdia o tempo... É pobre, ganha uma tuta-e-méia, e, enquanto eu for viva, só casarás com quem
possa dar-te o tratamento que mereces...
MINDOCA — Maman, já lhe pedi o favor de não me chamar Mindoca. Que brasileirismo tão chato!
1 Trad: É demais.
2 Trad: Mais ou menos.
3 1887: crochet
4 Trad: O doutor é engraçado!
1 Trad: Palavra de honra.
4
Meu nome é Arminda!... Par exemple!2 Mindoca! Que raiva.
MINDOCA — Mas...
CENA II
AS MESMAS, GENOVEVA
GENOVEVA (Entrando.) — Sinhá, Pedro já veio da cidade... aqui está o coco que sinhá mandou
relar... (Mostra-lhe um prato.)
CHIQUINHA — Oh! sua relaxada!... Não tens vergonha de me trazeres um prato destes! Atrevida!
não sei onde estou, que não te quebro a cara com ele!
GENOVEVA — Sinhá, estas mancha é mesmo do prato... Lavei ele antes de relar o coco.
DONA CHIQUINHA — Não me respondas! Não vê mesmo que eu aturo escrava respondona! Sai,
some-te da minha presença, antes que eu... (Empurra-a.)
MINDOCA — Maman!
DONA CHIQUINHA — Cale-se você também... não se meta onde não é chamada! E tu, vai já pôr o
coco noutro prato!
DONA CHIQUINHA (Empurrando-a até a porta.) — Some-te! Este diabo quer deitar-me a perder!
(Genoveva sai empurrada. Ouve-se a queda de um corpo e a bulha de um prato quebrado.)
MINDOCA (Correndo à porta.) — Ah! mon Dieu!1 Coitada! caiu, maman! (Entra e continua a falar
no bastidor.) Cortaste-te?... Vai pôr... arnica... na despensa tem... (Tornando a aparecer.) Pobre
Genoveva! Caiu sobre o prato e cortou a mão.
MINDOCA — A maman um dia se arrepende. Ela foge, vai ter com os abolicionistas, eles vão à
polícia...
DONA CHIQUINHA — E o que é que a polícia há de me fazer? Eu sou histérica! Tenho uma porção
de atestados médicos que o provam.
DOUTOR — Eu poderia dizer que porta aberta justo peca, mas receando abusar...
DONA CHIQUINHA — O Doutor é um amigo velho... bem sabe que nunca abusa.
DOUTOR — Sei, sei... mas nec semper lilia florent!1 De um dia para outro cai a casa; não há bem
que sempre dure nem mal que se não acabe; o pouco se deseja, o muito se aborrece...
AS DUAS — De onde?
DONA CHIQUINHA — Ah! também se fazem conferências espíritas? Julguei que só as houvesse na
Glória.
MINDOCA — Por mais que queira, não posso acreditar no espiritismo. C’est une blague.2
DOUTOR — Pobre espírito rebelde!... não diga semelhante coisa. Leia Allan Kardec e outros, e, se
depois de os ler, não confessar coram populo3 o seu erro, serei forçado a dizer-lhe que o pior cego é
aquele que não quer ver. A propósito, vou explicar-lhe a origem deste anexim: Nos tempos de El-rei
Nosso Senhor... quando a Rua da Carioca ainda era a Rua do Piolho, havia um marido...
CENA IV
OS MESMOS, SOARES
DOUTOR — Neque semper arcum tendit Apollo!2 Faz bem, meu amigo; quem é tolo pede a Deus
que o mate...
SOARES — Ora! desde pequeno que a chamo Mindoca, e Mindoca hei de chamá-la até morrer.
Mindoca, Mindoquinha, isto é que é bom, isto é que é brasileiro. Há de acabar por se convencer de
que tenho razão.
DOUTOR — Água mole em pedra dura tanto dá, até que fura. Este anexim tem uma origem
engraçadíssima. No tempo em que a Rua da Quitanda se chamava Rua do Sacussarará... Oh! mas isto
é uma história muito comprida. Fica para logo a explicação.
DOUTOR —O amigo Soares apareceu ao pintar da faneca. Amicus certus in re incerta cernitur.3
SOARES (Que, desde que entrou, tem dado mostras de estar incomodado dos pés.) — Sempre às
suas ordens. Ui! ... ui!...
TODOS — Que é?
SOARES — Comprei umas botas na Rua do Carmo, e as malditas têm uns pregos nas solas...
DOUTOR — Por que não usa o calçado inglês? Nada mais cômodo.
Coplas
(Música de L. Gregh.)
I
Embora me digam que nisto ando mal,
Não gosto de nada que seja estrangeiro;
Eu cá só me agrado do que é nacional!
II
DOUTOR — Ora a indústria nacional! O outro dia passei pelo Campo de Santana e vi numa casa o
seguinte letreiro: “Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, fundada em 1836”. Ora, se há
cinqüenta anos a auxiliam e ela se acha ainda no estado em que a vemos, não é um par de botas de
mais ou de menos que há de pesar na balança do auxílio. Meu amigo, se lhe doem os pés, saiba que
quem morre por seu gosto acaba por seu regalo. Quando a Rua do Ouvidor se chamava ainda Rua
Aleixo Manuel...
DOUTOR — Ah! sim... tenho uma idéia sobre a qual quisera ouvir a sua opinião.
DOUTOR — Upa! upa!... trata-se de curar as finanças do Estado... Se a Senhora Dona Francisca
consentisse que fôssemos para a sala de visitas...
DONA CHIQUINHA — Pois não, Doutor! Genoveva! Genoveva! aquele diabo é surdo! Genoveva!
DONA CHIQUINHA — Brincadeiras de umas com as outras. A Clotilde estava com uma faca, esta
foi puxá-la... e... cortou-se. Já não sabe como é esta gente? Amanhã ou depois está dizendo que fui
eu que a maltratei. (A Genoveva.) Vai, anda.
8
MINDOCA (Irônica.) — Primo Cazuza!
CENA V
MINDOCA — Ora, maman, deixe-me primeiro acabar de ler aquele romance francês. Falta só um
capítulo.
DONA CHIQUINHA — Romances! Era melhor que lesses a Doceira Brasileira ou o Manual do
Galinheiro
DONA CHIQUINHA — Que maçante! Manda-o entrar para cá. Escusado é interromper o Doutor lá
na sala. (Genoveva sai.)
DONA CHIQUINHA — Pois não, seu Tavares! Seja muito bem aparecido! Como está a Maricota? E
a Teca? A Dona Josefina já ficou boa de todo?
TAVARES — Estão todas boas; não mandaram lembranças, porque não sabiam que eu vinha cá.
TAVARES — Contanto que não seja esta semana. Com as chuvas torrenciais que caíram
ultimamente e que tantos desastres causaram...
TAVARES (Continuando.) — A casa ficou em mísero estado... Estamos de mudança para Santa
Teresa... lá, ao menos, não há perigo de enchentes...
1 Trad: Belo, muito bem, perfeitamente (Horácio, em sua Arte Poética, aconselha a
desconfiar do crítico muito benevolente)
1 Trad: Até a vista, mamãe.
9
importantíssimo, que muito nos interessa.
TAVARES — Faz hoje exatamente um mês que tive a honra de pedir-lhe a mão de Dona Arminda...
DONA CHIQUINHA — E eu respondi-lhe, com toda a franqueza, que minha filha só se casaria com
quem lhe pudesse dar um certo tratamento e, embora não fosse rico, estivesse em condições de
garantir o seu futuro. Ora, o senhor não tem emprego, não tem fortuna; passa os dias na Rua do
Ouvidor... desculpe, mas eu cá sou muito franca.
TAVARES — À vista do seu ultimatum, a mim próprio jurei mudar de vida. Quis pedir um emprego
público, mas o empregado público anda sempre com a sela na barriga e não passa de um pobre de
casaca.
DONA CHIQUINHA — Nem eu dava minha filha a empregado público; salvo a algum tesoureiro,
pagador ou coisa que o valha...
TAVARES — São lugares que exigem fiança; além do que, eu estou pouco disposto a sair do Brasil...
TAVARES — Sim, porque nada mais natural do que um homem alcançar-se e, depois de alcançado,
só tem um recurso: alcançar... algum paquete para os Estados Unidos.
TAVARES — Ah! sim!... lembrei-me do comércio, mas, não tendo capital, vi que perderia o tempo.
Em suma, começava a desesperar, quando um idéia... mas que idéia, minha senhora!... que idéia
grandiosa!
DONA CHIQUINHA — Realmente a idéia não me parece má. Meu finado marido dizia sempre: —
Ah! se eu fosse eleito vereador, outro galo nos cantaria! Quanto ganha por mês um vereador?
DONA CHIQUINHA — Gratuito! mas então por que é que tanta gente quer ser?
TAVARES — Uns para fazer carreira política; outros, bem poucos, para servir o país; outros,
bastantes, para tratar da vida, que a morte é certa. Eu serei destes. Diabos me levem se, terminado o
quatriênio, ainda precisar trabalhar.
DONA CHIQUINHA — Pois, seu Tavares, vou também empenhar-me para o senhor ser eleito.
10
DONA CHIQUINHA — Meia dúzia só?
TAVARES — O meu, o de meu pai, o de meu mano, o de um primo e o do meu alfaiate... já os tenho.
Com poucos mais serei... seu genro. Vou redigir uma circular aos eleitores, prometendo mundos e
fundos a bem do município. Obtida uma cadeira na edilidade...
TAVARES — Nunca viu uma porca amamentando leitões? Deita-se a dormir e dá de mamar ao gato,
ao cachorro, ao porquinho, indiferentemente... Pois a edilidade é uma espécie de porca, em que
muitos mamam...
TAVARES — Agora com licença. Vou sondar as influências eleitorais... Daqui a dias terá notícias
minhas. Trabalhe por seu lado; o que a mulher quer, Deus quer.
TAVARES — Lembranças a Dona Mindoca... Ah! é verdade... Ela estará pelos autos?
DONA CHIQUINHA — Que remédio? Nesta casa quem manda sou eu.
CENA VI
DONA CHIQUINHA — Vereador!... a porca!... muitos mamam. Achei o genro que me convém!
(Chamando.) Mindoca!... Mindoca, não, que ela não gosta! Arminda!... Mademoiselle Arminda!
MINDOCA — Não quero! Gosto do primo Soares! Gosto dele!... Não hei de casar com outro! E
logo com quem, meu Deus do céu?... com um sujeito sem eira nem beira!...
DONA CHIQUINHA — Tola, se te digo que vai ser eleito vereador... a porca...
MINDOCA (Batendo o pé.) — Não caso com o Tavares!... não caso!... não caso! Voilà3!
DONA CHIQUINHA — Não há voalás nem meio voalás! Hei de mostrar-te que quem manda não é
o vizinho! Ora, uma filha com vontades! É o que veremos! (Saindo.) Não vê mesmo que hei de
perder esta ocasião de ser sogra da Câmara Municipal!
CENA VII
SOARES (Entrando e continuando uma conversa com o Doutor.) — Não há dúvida, e se a sua
proposta for aceita...
MINDOCA — Ah! primo, sabe! (Puxa-o de parte e fala-lhe muito depressa.) — A maman quer que
me case com o Tavares... se ele for eleito vereador... É preciso a todo transe impedir este
casamento... mas como?
SOARES (Com um pulo.) — Casá-la com o Tavares? Ui! malditas botas! (Com um pé no ar.) Mas eu
gosto de você e não consinto...
MINDOCA — Mais non!2 um pretexto ou um meio... contanto que eu não case com o Tavares!
Entrego-me em suas mãos. Faça o que entender. (Sai.)
SOARES — Se eu conseguisse obstar que fosse eleito... Que patife... Quer ser vereador para casar...
Com que tenções não está ele!
SOARES — Eu lhe digo, meu amigo... minha prima está muito... aflita... A mãe quer casá-la com o
Tavares...
DOUTOR — Com dinheiro tudo se arranja... A eleição há de ser difícil... há cerca de dois mil
candidatos.
DOUTOR — É para ver. Vamos guerrear o inimigo, acompanhar-lhe os passos, pedir que não votem
nele... comprar até os votos de quem quiser vendê-los...
SOARES — Pois ainda se compram votos?
DOUTOR — Muito mais caros, mas compra-se... Estão pela hora da morte... a falta de gênero no
mercado faz subir o preço...
SOARES — Onde?
QUADRO II
CENA PRIMEIRA
DOUTOR — Quando as finanças estavam em bom pé, o que não quer dizer que não estejam em boa
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mão, não lhe faltavam todas essas comodidades. O tempora! o mores!1 Hoje anda tudo esbodegado.
(Hei de ainda explicar a origem desta palavra.) Este Palácio cai em ruínas. Hic Troja fuit.2
DOUTOR — É um moleque.
VINTÉM (Que tem entrado.) — Moleque não, hein? Veja lá como me trata! Eu tenho nome: chamo-
me o Vintém.
VINTÉM — Que desejam os senhores? Podem dizer, porque eu exerço no Palácio as funções de
pajem. Devia ser o Dez Réis, que vale menos do que eu. Mas o malandro musca-se e só aparece por
milagre!
VINTÉM — É o mesmo que dizem Suas Majestades e toda a corte; mas não têm remédio senão
aturar-me: ninguém me manda embora.
VINTÉM — Porque ficariam sem vintém. Mas vamos, vamos! basta de dar à língua. Que desejam?
SOARES — Cruz!
Coplas
CONTO DE RÉIS —
O grande rei cá está que no seu trono, outrora
Coberto já se viu de grandes ouropéis,
E é, com franqueza o diz, infelizmente agora,
II
CONTO DE RÉIS —
A Apólice ao meu lado andava satisfeita,
Do trono partilhando as doces comoções,
Mas essa bela vida há muito está desfeita,
E el-rei Conto de Réis vegeta aos trambolhões!
Hoje em dia, etc.
CONTO — Cessem as cantarolas, com seiscentos mil réis! Não me lembrava de que estou
desesperado da vida!
APÓLICE — Que estamos ambos muito mortificados! Que humilhação! Que degradação!
APÓLICE — Sabei, senhores, os meus juros, aqueles belos juros, que eram o meu encanto, o meu
orgulho, a afirmação mais positiva de meu alto prestígio, acabam de ser convertidos de seis a cinco
por cento!
TODOS — Oh!
VINTÉM — E da imprensa também... porque — parece incrível — há jornalistas que têm apólices!
APÓLICE — Já se tem dito que não metas o nariz onde não és chamado.
TODOS — Oh!
TODOS — Oh!
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CONTO — Vamos ser obrigados pela dignidade de nosso nome e em nome de nossa dignidade — a
mandar setenta mil homens para o país onde floresce o rosbife!1
TODOS — Oh!
CONTO (Consigo.) — Também esta gente não sabe dizer senão “Ah!” ou “Oh!” (Alto.) A
diplomacia interveio e, quando a diplomacia intervém, adeus viola! Não há remédio senão curvar a
cabeça e obedecer. Setenta mil contos! Goddam?2 — Mas ora adeus! o passado passado! (Em tom de
comando.) Caras... alegres.
CONTO — E repetição do último coro com um movimento de dança. (Repete-se o último coro e
dança-se.) Basta.
CONTO — Ah! é verdade... Já os havia esquecido. Nomeemos a comissão que deve recebê-los. —
Quanto há de ser? (A Vintém.) É gente de certa categoria?
VINTÉM — Parece.
CONTO — Nicolau!
CONTO — Bom: cinqüenta e vinte são setenta; e cinco, setenta e cinco; e dois, setenta e sete;
setenta e sete mil e duzentos; basta. Não haverá razão de queixa.
CONTO — Ninguém lhes põe a vista em cima. Mas vamos lá, digam, que pretendem?
DOUTOR — Como já te disse, sou médico; julgo ter descoberto um remédio para a cura radical
daquelas pobres senhoras. (Aponta1 para as Finanças.) Vou propor-to.
1 1886: Aponte
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DOUTOR — Um calemburgo1 Proh pudor!2
APÓLICE — Insolente!
CONTO — Deixa-o, mulher. A franqueza deve agradar aos soberanos. Demais, por falar “em
soberanos”, deixemo-nos de ridículas fanfarronadas... Isto cheira a convento franciscano, e nós
reinamos..
DOUTOR — In nomine.3
DOUTOR — Não há de quê. Em precisando de mais, é só pedir por boca. Há por cá dessa fazenda
in magna quantitate.4
CONTO — Todos sabem que aqui quem reina é Mistress Esterlina, essa espécie de Núncio, sem cujo
placet6 nada posso fazer. Dize-nos, dize-nos a linguagem da verdade!
DOUTOR — É sabido — vox populi7 — que as Finanças vivem a trabalhar como umas negras, para
que esta senhora se arrebique à vontade, tenha lindos vestidos da última moda, onde de carro, vá aos
teatros e aos bailes e, sobretudo, não trabalhe. Se não fosse o respeito devido a uma rainha, mais do
que a uma rainha, a uma senhora, eu te diria que és uma dessas plantas que se enroscam nas outras
plantas, e...
DOUTOR — Eu não disse o nome. (Ao Conto.) Confia-me o tratamento daquelas míseras raparigas,
e verás como as Finanças ficam finas. (Baixo.) Mas é preciso que tua mulher não as esfalfe.
1 1886: Calembourg
2 Trad: Ó vergonha!
3 Trad: Em nome.
4 Trad: Em grande quantidade.
5 Trad: Não faz mal sobrar
6 Trad: Aprovo
7 Trad: Voz geral
1 1886: Dollars
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CONTO — Que diabo! ainda agora acabaram de converter-lhe os juros.
CONTO — Vem cá! vem cá! Segurem-na! (Seguram-na todos.) Queres correr imediatamente! Deixa
estar, que tens muito tempo para entrar em circulação.
MOEDINHA — Qual?
SOARES — Sim.
DOUTOR — Ad ostentationem2!
CONTO — Perdão; um relatório verbal... a narração dos acontecimentos mais importantes do ano.
Por eles poderei avaliar do espírito da população fluminense.
CONTO — Concedo-te o dom maravilhoso de te poderes transportar de uma para outra parte, e a
quantos quiseres, apenas com o auxilio deste talismã. (Dá-lhe uma varinha de níquel.)
2 Cartago deve ser destruída.
1 Trad: Em todas as coisas há uma medida.
2 Trad: Por ostentação
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MOEDINHA — Uma varinha de níquel!
SOARES — Oh! que mulher preciosa! Já não a largo! Que economia! Vamos!
CONTO — Adeus! Daqui a um ano espero ver-te de volta. Repetição do coro para esta saída!
(Repetição do coro.)
(O Doutor, Soares e a Moedinha saem.)
CENA IV
CONTO (Consigo.) — Verdade, verdade, não sei o que tem o espírito da população fluminense com
as pobres Finanças. Eu poderia ter dado ouvidos ao tal Doutor, mas quem sabe se ele não é como
outros muitos que se propõem curá-las, e, em vez disso, agravam-lhes o mal. Nada! Vou empregando
os meus remédios caseiros. (Música na orquestra. Todos estremecem subitamente.) Hein? Vocês não
sentiram um estremeção? Que é isto? Acho-me mais leve. Tenho vontade de rir, de cantar, de dançar!
(Dança.)
TODOS — Qual?
DEZ RÉIS — Anunciam-se dois empréstimos: um externo, outro interno. Muitos mil contos de réis!
QUADRO III
1 1886: resplancedente
20
CONTO — Ó prodígio! Vejam! Vejam! Uma chuva de ouro!
TODOS (Estacando assombrados.) — Oh! (Continua a chuva de ouro até cair o pano.)
TAVARES — Quero.
TAVARES (Saindo com ela, á parte.) — Decididamente a vereança é o melhor caminho para o
coração das mulheres. (Saem, sendo vistos por Soares, que entra com Niquelina e o Doutor Sá
Bichão.)
CENA III
SOARES — Ah! não estar aqui a tia Chiquinha! Sempre queria que visse com quem ali vai
publicamente o seu ai-jesus! Uma francesa! Ainda se fosse fazenda nacional.
NIQUELINA — Ah! se eu fosse uma moeda de mais valor, poderias considerar-te salvo; mas, enfim,
havemos de dar-lhe as tintas.
NIQUELINA — E não fizeste pouco, porque, segundo me disseste, com alguns mais...
DOUTOR — Moedinha não é nome que se dê a ninguém; procuremos um nome para a menina. Qual
há de ser?
SOARES — Qualquer... Argentina, por exemplo!
DOUTOR — Não é mau, mas tenho coisa melhor: Niquelina. Vou explicar a origem desta palavra.
Terzettino
OS TRÊS — Niquelina!
Niquelina!
CENA IV
MÁXIMO — Sentiram?
TODOS — O quê?
MÁXIMO — O terremoto!
22
MÁXIMO — Sim, senhor. Apesar do Observatório informar que não sentiu ali o menor movimento,
nem mesmo oscilação na luneta meridiana, afirmo que houve; porque no meu gabinete de trabalho,
que fica perto do Castelo, senti uma diminuição sensível na pêndula.
SOARES — Deveras?
NIQUELINA — Cacete!
MÁXIMO — Além disso, houve uma baixa no termômetro, uma oscilação nas correntes fluidas do
sol, e uma ventania rija. Impressionei-me com estes fenômenos, que muitas vezes são precursores de
vulcões e terremotos. Nápoles estremeceu quinze dias antes do vulcão do Vesúvio, que sepultou
Pompéia. Para que possam compreender, vou estabelecer uma símile... Plínio estava em Como...
SOARES — Como?
MÁXIMO — Como como? Como... Imaginem que Como é como a Armação. Plínio...
MÁXIMO — Um deles. Plínio viu um penacho de fumo e fogo sobre Pompéia, que é como o alto da
Tijuca. Que fez Plínio?
MÁXIMO — Sei eu. Aproximou-se na sua galera até Castellamare, que é como Botafogo, para
examinar a erupção majestosa... e morreu sufocado.
NIQUELINA — Coitado!
MÁXIMO — Hoje a química dinâmica teria evitado o vulcão de Pompéia e o terremoto de Lisboa.
Infelizmente naquele tempo não havia observatórios.
MÁXIMO — É sua obrigação prevenir os vulcões e terremotos. E o nosso que se acautele, porquê,
MÁXIMO — Preciso urgentemente falar-lhe. É ele quem vai apresentar à Câmara o requerimento
em que eu peço um prêmio de mil contos pela descoberta de um medicamento profilático contra a
febre amarela, e a minha nomeação de enviado extraordinário junto a todas as nações da Europa!
NIQUELINA — Todas?
MÁXIMO — Vou ver se o encontro noutra sala. (Saindo.) Ora o Observatório! (Sai.)
CENA V
DOUTOR — É uma grande cabeça. Hei de procurá-lo para comunicar-lhe a idéia do meu sol
artificial. (Outro tom.) Mas tomamos ou não tomamos alguma coisa? Que diabo viemos nós fazer
aqui?
SOARES — Apoiado! Isso ainda é mais brasileiro! Cajuada para três. (São servidos. Entra a
Inspetoria de Higiene, examina todas as garrafas e copos, e vem afinal à mesa em que se acham
sentados os três personagens. Tira-lhes os copos das mãos, prova e examina o conteúdo.)
INSPETORIA — Que é isto? Com licença!... Ah! cajuada!... Podem continuar... Cuidado com o
gelo... Não abusem!...
INSPETORIA— Perdão, a Junta, minha irmã mais velha, morreu... Eu sou a Inspetoria de Higiene!
1 Trad: Eu passo.
24
Coplas
(Música de Audran.)
I
INSPETORIA — Não, meu caro Doutor,
Não, senhor!
Eu cá não sou a Junta,
Que há muito está defunta...
Ouça o que dizer vou,
E saberá quem sou.
II
III
INSPETORIA — Afogada em vinho artificial! Ih! que de gente aí vem! Adeus! Vou ver quem tem
garrafas vazias para vender!
(A Inspetoria sai.)
CENA VI
25
2º FREGUÊS — Que belo tango!
MELO — Oh! o tango! o tango!... Que tango, meu Deus!... que tango!
CORO
Tango
II
CENA VIII
TAVARES (Entrando ligeiramente embriagado e acompanhado por Mademoiselle X.) — Seis mil e
quinhentos! safa! Que rombo nos “Eventuais”!
1 Trad: Dize-me
26
MADEMOISELLE X — Já lhe dises que sim!
QUADRO V
Rua do Ouvidor.
CENA 1
Coro
(Música de L. Gregh)
O VENDEDOR DE BALAS — Balas de ovo, altéia, caju, coco à baiana, abacaxi, lima e rosa!
Freguês, quer que embrulhe cem ou duzentos?
DONA CHIQUINHA — Quero saber onde diabo se meteu o diabo daquela mulata!
DONA CHIQUINHA — Gazeta da Tarde!... Sabe Deus se ela não foi para lá!
DONA CHIQUINHA — Pois não sabes que eles andaram outro dia em procissão com as escravas de
uma pobre senhora, coitadinha! que ficou com as mãos em mísero estado de tanto dar pancada? Até
tiraram o retrato com elas!
TAVARES (Entrando.) — Oh! Senhora Dona Chiquinha! Dona Arminda! Como têm passado?... Que
feliz encontro!
DONA CHIQUINHA — Vamos passando assim, assim, muito obrigada. Seja muito bem aparecido.
— Como está a Maricota? E a Teca? A Dona Josefina já ficou boa de todo?
TAVARES — Estão todas boas. Não mandaram recomendações, porque não sabiam que eu as
encontrava.
TAVARES — Servir, servia, mas o patife do senhorio teve a petulância de exigir fiador. A senhora
compreende... um homem na minha posição...
DONA CHIQUINHA (Rindo-se e apontando para Mindoca.) — Olhe que o dito, dito!
1 Trad: Sempre
1 1886: oh!
2 Trad: Ó meu Deus! Que tédio!
28
O SENHORIO (Que, ao atravessar a cena, reparou em Tavares.) — O Senhor Tavares dá-me uma
palavra?
DONA CHIQUINHA — Pois não! Nós vamos, que ainda temos que ir à Gazeta da Tarde.
DONA CHIQUINHA — Não; que idéia! Vou ver se me dão notícias da Genoveva, que fugiu. Até
logo, seu Tavares. Apareça.
TAVARES — Minhas senhoras! (Saem as senhoras, porém Mindoca nem sequer olha para ele.)
TAVARES (Consigo.) — A pequena parece que não morre de amores por mim. Ora! que tem isso?
(Outro tom.) Bom! agora este cadáver! (Alto, ao senhorio.) Estou às suas ordens.
SENHORIO (De pernas abertas, ventre empinado e mãos nas cadeiras.) —O seu Tavares, há seis
meses que você não me dá um vintém de aluguel de casa!
SENHORIO — Já não lhe peço que me pague... isso é difícil... Peço-lhe que se mude, o que é mais
fácil.
TAVARES — Ouça cá, Senhor Magalhães... eu estou com um negócio de olho... um negócio com a
Câmara Municipal!
SENHORIO — A vereador? (Gesto afirmativo.) O senhor? (Idem.) Não se mude, meu amigo!...
SENHORIO — Não, que eu sou português. Mas tenho amigos eleitores... meu genro, por exemplo...
e vou trabalhar por Vossa Senhoria. A casa é sua (Baixo.) Há seis meses que tenho uma proposta na
Câmara. Puseram-lhe uma pedra em cima...
TAVARES — Pois o meu primeiro ato será remover essa pedra. Quer vi tomar alguma coisa ao
Pascoal?
TAVARES (À parte.) — Acaba por me dar majestade! (Tomando-lhe braço.) Não vê, Senhor
Magalhães, que eu... (Saem, não se ouvindo o resto.)
29
CENA II
DOUTOR — Atxim!
SOARES — Que noite! Andei em camisa, com a cama-de-vento às costas de um lado para outro.
NIQUELINA — Então, pelo que vejo, todas as obras deste país racham?
SOARES — Mas ao menos é obra nacional. Antes isso do que ir procurar arquitetos na estranja.
Com um pequeno conserto a coisa fica boa!
SOARES — Esta é ainda a rua da moda, enquanto não se apronta a do Senhor dos Passos. Outro
estrangeirismo! Uma rua com galerias! Uma espécie de Rua do Rivoli, de Paris! Ora isto! Ora isto!
SOARES — Duvido!
NIQUELINA — Ainda hei de vê-lo mudar de opinião com o seu bairrismo. (Vendo passar Chuchu.)
— Mas o que é aquilo?
CENA III
OS MESMOS, CHUCHU
DOUTOR — Pum?
NIQUELINA — Pum?
SOARES — Pum!!
SOARES — Perdão, senhor, mas, para satisfazer a curiosidade aqui desta senhora, quisera pedir-lhe
que nos explicasse...
OS TRÊS — O Chuchu?
CHUCHU — O homem a quem está reservada uma grande glória! Um brasileiro que há de honrar o
seu país.
CHUCHU — Pum!
OS TRÊS — Pum!
Copla
DOUTOR — Vocês são uns Lopes Cardosos incorrigíveis! Se eu fosse governo, não hesitaria em
proteger o inventor da carabina: si vis pacem, para bellum1!
CENA V
OS MESMOS, UM PREVIDENTE
(O Previdente entra carregado com malas, botas, cama-de-vento e vários objetos; esbarra em
Soares.)
PREVIDENTE — Desculpe, meu caro senhor, mas a pressa com que sou obrigado a mudar-me...
PREVIDENTE — Pior do que isso, e admira-se vê-los aqui tão sossegados. Não sabem que o mundo
vai acabar?
PREVIDENTE — O sábio Nostradamus foi que o disse há muito tempo. Se a gente não acreditar nas
profecias dos sábios, em quem há de acreditar? Além disso o Diário de Notícias já publicou o
programa do cataclisma.
DOUTOR — Mas, uma vez que o mundo se acaba, para onde se muda o senhor?
PREVIDENTE — Para a Praia Grande. É possível que a coisa não chegue até lá... e, quando chegue,
há de levar seu tempo, pois o desastre, diz o programa, começará pelas grandes capitais. Pelo sim,
pelo não, já fiz testamento.
OS TRÊS — Testamento?
PREVIDENTE — Sim; há morrer ou viver; caso o mundo se acabe, não quero que minha família
fique desamparada.
SOARES — Sossegue, porque, se o mundo se acabar, o senhor vai para o céu direitinho.
CENA VI
SOARES — Como este há muitos! Ah! lá vêm os ciganos que estão acampados em São Cristóvão.
NIQUELINA — Vovóide?
Terceto e coro
(Música de Offenbach.)
JANOS — Barateiros.
JANOS — De espavento.
JANOS — Cafeteiras.
JANOS — É comprar
E pagar.
OLGA — Meus senhores, quem compra belas argolas para cadeados, ricos ganchos de metal para
pendurar toalhas?...
OLGA — Tachinhas de cabeça amarela... e outras coisinhas mais... Quem compra? Quem compra?
OLGA — Pois vamos. (A sair.) Quem compra ricas argolas para cadeado, belos ganchos de metal
para pendurar toalhas?
VOZES (Fora.) — Viva o Doutor José Maria! Viva!... Viva o ilustre democrata! Viva!
DOUTOR — É bom que nos afastemos um pouco... Há certa exaltação política nestas ocasiões...
(Gesto de quem dá uma navalhada.) Cautela e caldo de galinha...
CENA VII
JOSÉ MARIA — Esbulhado!... esbulhado do meu direito! Vou fazer um meeting1 o meu terceiro
1 Trad: Comício
34
meeting! — Cidadãos! estais convidados para esta noite, no Politeama!
JOSÉ MARIA — Agora peço-vos que me deixeis tranqüilo. Vou tomar o bonde, que são horas de
jantar.
SOARES — Houve este ano uma verdadeira degolação dos inocentes. (José Maria aperta-lhes a
mão e sai felicitado por pessoas do povo.)
NIQUELINA — Ouvi dizer que outro dia, na Câmara, um gato irreverente miou durante uma sessão
inteira.
UM ENTUSIASTA (A Soares.) — Ó Soares, quanto assinas para a chapa de ouro?
UM ENTUSIASTA — Ora que chapa. A chapa que vamos oferecer ao José Maria.
DOUTOR — Chapada.
CENA VIII
TODOS — O Redondo!
Lundu
(Música popular.)
35
REDONDO — Meu senhores e senhoras,
O Redondo aqui está.
Cheguei hoje às nove horas.
36
Pintus mortus est in casca1
Cá e lá más fadas há...
VOZES — Nos Fenianos! Vamos ver!... Ora! pobres Fenianos! Corramos! (Saída geral.)
CENA IX
DONA CHIQUINHA — Nem novas nem mandados!... Onde diabo se meteria o diabo da mulata?
TAVARES (Entrando levemente embriagado.) — Meu senhorio pagou-me dois grogues1e quatro
coquetéis.2 Não há como a Câmara Municipal! À vista deste resultado, vou rodar e pedir o voto ao
meu taverneiro... (Sai. Mutação.)
QUADRO VI
1 Latim macarrônico
2 Trad: Uma ínfima centelha provocou um incêndio
3 Trad: Vamo-nos embora, estou cansada.
1 1886:grogs.
2 1886: cocktails
37
estão ocupados no serviço de enchimento.
CENA I
(Música de Offenbach.)
DOUTOR — Queira Deus que desta vez não haja fiasco. Cá por mim desconfio que o Capitão não
passa de um troca-tintas. Troca-tintas é uma palavra composta de troca e de tintas. Havia no tempo
de Estácio de Sá um pintor...
SOARES — Ó Doutor, que mania! Pois até aqui quer explicar a origem das palavras?
DOUTOR — Tenho, e por sinal que fazem-me crescer água na boca. Hoje são as luminárias da
Avenida da Liberdade, que dizem ser um lugar lindo.
SOARES — Ontem foram as iluminações no Tejo. Queimaram-se nada menos do que cem barricas
de alcatrão. Nunca pensei que em Lisboa houvesse tanto alcatrão.
NIQUELINA — Quem sabe se o telegrama é verdadeiro... Ouvi dizer que alguns foram arranjados
aqui...
DOUTOR — Seja como for, o que é certo é que há de ser uma festa de arromba e a quê, se eu
pudesse, não deixaria de assistir.
NIQUELINA — É só querer. Esquece-se do poder que tenho, graças a esta varinha que me deu El-
Rei Conto de Réis?
DOUTOR — Então vamos! Nem vale a pena esperar pela subida do balão. (Vão para sair.)
38
SOARES — Alto! Peço a palavra para uma explicação... Entendamo-nos. E a volta? É preciso pagar
a passagem?
SOARES — E amanhã bem cedo. Não quero deixar de assinar o ponto na repartição.
NIQUELINA — Podíamos partir daqui mesmo, mas isto iria causar espanto a esta gente. É melhor
fecharmo-nos num quarto, com janela e zás! (Faz sinal com a varinha.)
CENA II
(Música de Ganée.)
CORO — Vá embora,
Capitão;
Ao balão
39
Sem demora.
E Deus lhe permita cá
Voltar, olá!
MARTINETTI — Meus senhores, a ascensão de hoje vai ter mais um atrativo. Além do novo balão
que vai substituir o Condor, que, com dor do meu coração, ardeu no último domingo, esta gentil
senhorita presta-se a acompanhar-me às alturas.
TODOS — Bravo!
MADEMOISELLE X — Bem sabes que bebo os ares por ti... é justo, pois, que vamos aos ares
juntos.
MARTINETTI — Meus senhores, até já! Nossa demora será curta. Chegando à altura do primeiro
telhado, tornamos a descer. Viva o povo brasileiro! (Entra para a barquinha com Mademoiselle X.)
Larga tudo! (Mutação.)
QUADRO VII
Nuvens
CENA ÚNICA
MARTINETTI, MADEMOISELLE X
Dueto
(O bailo do Capitão vem de esquerda com ele e Mademoiselle X; atravessa lentamente a cena e
desaparece do outro lado.)
(Música de Audran.)
40
Pelo seus olhos, feiticeira,
Senti paixão descomunal.
QUADRO VIII
A Avenida da Liberdade em Lisboa, iluminada por ocasião das festas do consórcio do Príncipe Dom
Carlos. A música do dueto prende-se à do Hino Português.
ATO II
QUADRO IX
CENA I
1º DOENTE — Vamos, meus amigos, saiamos daqui. Esta moda de visitar o Hospital com música e
foguetaria devia ser abolida.
2º DOENTE — Tem toda razão, seu Gaspar; um pobre homem doente que ature um dia inteiro
semelhante amolação! Felizmente a banda de música já está cansada de tocar!...
1º DOENTE — Parece um espetáculo! Vou me meter na cama; cubro a cabeça e deixo-me ficar. Não
estou para ainda em cima levar vaias dos malcriados que nada respeitam.
SOARES — Acho que é um verdadeiro sacrilégio, meu caro Meio Tostão... Deixa-me chamar-te
assim, já quê, para me não comprometer, resolveste enfiar as masculinas calças. Tudo isto me
revolta... Se eu fosse a administração da Santa Casa, que é na realidade uma casa santa, há muito
tempo não haveria visitação. Os infelizes doentes passam tormentos neste dia. O ruído, a música, o
perfume, os risos, a dinamite que estoura lá fora, as perguntas deste visitante, a impertinência
daquele, os olhares daquele outro, o sorriso maligno de uns, a compaixão de poucos, a indiferença de
muitos, tudo isto constitui um verdadeiro suplício para quem só precisa de resignação e sossego.
SOARES — Tanto é este o meu modo de pensar, que não quis trazer minha tia e minha prima, que
muito desejavam vir.
SOARES — O maldito tem furado como um demônio. Não há para estas coisas como ser caradura
— os durum1—, conforme diz o Doutor. Neste andar é eleito, e lá se vai a minha última esperança.
SOARES — Não; vai tu. Esperar-te-ei aqui. Incomoda-me semelhante visita. Vai.
CENA II
Tango
(Música de C. Cavalier)
XUMBI — Um seu remédio! Creio que desta não escapo. Vou para uma enfermaria de cirurgia.
43
SOARES — Trate-se, meu caro, trate-se; olhe, não vá ter a mesma sorte da erva homeriana.
XUMBI — Aquilo era uma imposturia estrangeira - ao passo que eu sou um medicamento nacional.
SOARES — Nacional! Vá depressa, meu amigo... não perca tempo... trate-se; pode ser que eu ainda
venha a precisar dos seus serviços...
XUMBI — Quando quiser tomar-me, estou às suas ordens... Verá que não tenho mau gosto... Sou
uma droga bem tragável... (Sai. Soares acompanha-o; ao voltar, encontra-se com Dona Chiquinha,
Mindoca e Tavares, que têm entrado) Oh! as senhoras aqui?
CENA III
DONA CHIQUINHA —Seu Tavares apareceu lá em casa e quis trazer-nos por força.
MINDOCA — Foi ele, sim, primo Soares; eu bem não queria vir.
TAVARES — Ô meu caro amigo, que mal faz virem senhoras ao hospital? Não se acha o senhor
também aqui?
SOARES — Não me dirijo ao senhor. (A Mindoca.) Não desejava que viesse... vai incomodar-se
sem necessidade.
DONA CHIQUINHA — Eu tinha resolvido não vir depois do que você me disse; mas lembrei-me
que podia encontrar aqui aquele diabo daquela mulata e vim. Elas são umas assanhadas que não
perdem estes pagodes. Ah! se eu lhe ponho os gadanhos! Vamos, seu Tavares!
MINDOCA — Não é preciso incomodar-se, Senhor Tavares: nós vamos com o primo.
TAVARES — Justamente. Eu fico por aqui a ver se pesco algum voto com anzol da minha simpatia.
TAVARES — A coisa vai às mil maravilhas. Em Santa Rita, Campo Grande e Guaratiba ninguém
pode com o degas.
DONA CHIQUINHA (Saindo com Mindoca, à parte.) — Ah! se eu apanho aquele diabo daquela
mulata!
CENA IV
TAVARES — Ah!
SOARES — Cartas na mesa e jogo franco. Minha prima não pode suporta-lo. Não quer ser sua
mulher, não quer, entende?
TAVARES — Por quê? Suporá a Excelentíssima Senhora Dona Arminda que seja impossível entre as
nossas famílias uma agremiação moral?
SOARES — Não se trata agora de agremiação moral, mas de sua pessoa que nem ela nem eu
podemos tragar!
SOARES — Não sabe o que está dizendo vá ele! Não seja insolente!
TAVARES — Diz isto porque está na Santa Casa, e eu quero ter a misericórdia de poupá-lo. Faz
como os moleques que atiram pedradas e fogem.
SOARES — Ah! Doutor!... chega a propósito, faça favor! (Leva-o de parte e fala-lhe baixo. O
Doutor aperta-lhe a mão, depois de um gesto de assentimento.)
TAVARES (Consigo.) — Que conspiração será aquela? Vão ver que é contra a minha eleição!
Aquele sujeitinho conhece mais gente do que anexins e pode fazer-me mal.
DOUTOR (À Tavares.) — Espere-me aqui, que já volto. Tenho que lhe propor um negócio.
CENA V
SIR JOHN (Entrando.) Estar festa muite concorrida... estar muite gente... Mim pode encontra
pagador... Aoh, Tavares? Como tem passada?
TAVARES — Oh, monsiú, como vai? Que anda fazendo por aqui?
SIR JOHN — Como sabe, mim estar diretor de banca. Mim vem procura pagador. Você não viu
anúncia que banca publica na imprensa?
SIR JOHN — Espécie de anúncia de negra fugida, prometendo grafication a quem descobre pagador
ou dá sinais certas.
TAVARES — Oh! publicaram isso? E houve jornal que aceitasse semelhante anúncio?
TAVARES — Os senhores é que podem. São os donos da terra. Mas com certeza não foram todos os
jornais?
SIR JOHN — Oh, não… Algumas não quis publica... se faz de manta de seda...
TAVARES — Fizeram muito bem: anúncios desta ordem não se devem publicar. (À parte.) Nada!
quem sabe se algum dia não me cairá o raio em casa!
SIR JOHN — Very well! Mim vai procura pagador. Ali right! (Sai.)
TAVARES — Olhe, monsiú, ouça cá... Ah! é verdade, não me lembrava que é inglesmane... ia pedir-
lhe o voto.
46
CENA VI
DOUTOR (Entrando solene.) — Senhor Tavares, fui encarregado pelo meu amigo Soares, de tratar
com Vossa Senhoria um negócio da mais alta gravidade... mesmo porque de minimis non curat
pretor1
TAVARES — Ah!
DOUTOR — O dito Senhor Soares, entendendo que quem de mel se faz, as moscas o lambem, exige
de Vossa Senhoria a retirada do burro.
DOUTOR — De Vossa Senhoria quero dizer: do burro que o Senhor Tavares atirou à cara do meu
amigo Soares.
TAVARES — Ah! já sei... Não retiro coisa alguma, salvo se o seu amigo retirar primeiramente o
grandessíssimo que me arrumou.
DOUTOR — Distingo. Burro é um insulto que não pode ser comparado a esse superlativo de
superlativo.
DOUTOR — O meu amigo Soares é o ofendido. Caso Vossa Senhoria não retire a expressão...
DOUTOR — Ele, bem a contragosto, pois que se trata de um procedimento que não está nos nossos
costumes nacionais, julga-se obrigado a exigir de Vossa Senhoria uma reparação pelas armas.
DOUTOR — Ah! ele é um atirador de primeira força. Por isso mesmo a arma há de ser a pistola!
DOUTOR — Ilha dos Melões. Cada adversário tomará o seu bonde 1 marítimo, acompanhado pelos
competentes padrinhos e por um médico, que o socorrerá no caso de morte, o que é pouco provável...
TAVARES — Serve-me... Imponho mais uma condição... e é que eu não fique colocado com a frente
para o sol.
DOUTOR — Vá lá... mesmo porque pouco lhe aproveitará, pois o ofendido, desejando um duelo de
morte, quer bater-se em manga de camisa, de modo a oferecer ao adversário o alvo mais alvo que for
possível.
TAVARES — Isto é contra todas as regras... mas, como nos bateremos a cento e cinqüenta passos...
DOUTOR — Está bom... ceda cada qual vinte e cinco... sejam cento e vinte e cinco passos...
DOUTOR — Não seja esta a dúvida... vou comprá-las na casa da Cutia ou no Rei dos Mágicos...
Agora o que é indispensável é guardar o maior segredo... do contrário a polícia entorna-nos o caldo,
e com a polícia não podemos, porquê, como sabe, com teu amo não jogues as peras... Este rifão faz-
me lembrar um caso... que...
DOUTOR — Amanhã às duas horas... Pelo sim, pelo não, despeça-se da família. Até manhã...
Aequo2 animo3!
TAVARES — Até manhã. (À parte, saindo.) Diabo!... cento e vinte e cinco passos... Se eu pudesse
arranjar duzentos! Os meus padrinhos tratarão deste ponto.
CENA VII
DOUTOR — Cumpri o meu dever... fui o amicus certus1 de que fala a artinha.
CHAUVIN (Entrando e dirigindo-se ao Doutor sem conseguir dizer o que pretende.) — Oh! que...
1 1886: bond
2 1886: equo
3 Trad: coragem
1 Redução de: Amicus certus in re incerta cernitur – Trad.: Conhece-se o amigo certo
na ocasião incerta.
48
que... que... que...
DOUTOR — Qual! é melhor que o senhor fale por música... assim não arranja nada!
Copla
(Música de C. Cavalier.)
Eu tenho um pro... pro... pro... pro...
Processo X.P.T.O.
Que tem sido si... si... sido
Muito bem re... re... cebido
Para fazer com que o ga...
Ga... ga... go possa fa... fa...
Fa... falar... co... co... corrente
Co... co... correntemente.
O pobre gago
Mais renitente
Faz um discur...
faz um discurso
Se cai com o bago
E assiduamente
Fre... fre... fre... fre...qüenta o meu curso.
DOUTOR — Bom; já compreendo... o senhor tem um processo para fazer com que os gagos falem
correntemente, e vai abrir um curso... Diga então: que quer que lhe faça?
DOUTOR — Ora, quem é gago não conversa! (Volta-lhe as costas. Chauvin mostra-se indignado.
Quer articular algumas palavras, mas não o consegue.)
CENA VIII
OS MESMOS, SANTANA
SANTANA — Ah!... Doutor... viu por aí o... o ... o... doutor chefe de polícia?... Disseram-me que...
que... tinha vindo pa... para cá!
CHAUVIN — Um ga... ga... go! que... que... acha... que achado!... (Vai abraçar Santana.)
49
DOUTOR — Aqui o senhor pensa que você é gago e quer metê-lo no curso.
DOUTOR — Moral?
CENA IX
DOUTOR — Ó Comendador!
COMENDADOR — Sabe que estou na lista tríplice? Assim o quis o meu partido...
COMENDADOR — Houve sim. Todo o Partido Liberal reunido!... Treze ou quatorze pessoas...
COMENDADOR — Todos nós somos chefes. Soldados é que não há. Então posso contar com o seu
voto?
DOUTOR — Perfeitamente. Ilha dos Melões. Duas horas da tarde. Pistola. Cento e vinte e cinco
passos. Bonde marítimo.
SOARES — Não ponha mais na carta. Vamo-nos embora, que tenho que fazer o meu testamento.
CENA X
DONA CHIQUINHA — Que é isto? É verdade o que me disse seu Tavares? Vão bater-se em duelo?
SOARES — O tratante foi dizer tudo! Covarde! É verdade, é, minha tia, mas não diga nada a
ninguém, senão eu mato aquele diabo!
(Mutação)
QUADRO X
O salão da imprensa.
CENA I
Coro
(Música de C. Cavalier.)
Somos as várias
Folhas diárias
Que se publicam na capital;
Do Sul ao Norte
Poder mais forte
Não há decerto que o do jornal.
52
RIO DE JANEIRO (Na Itália.) —
Vá passando.
DIÁRIO DO BRASIL (Vai a dar no Diário Oficial, que lhe agarra o pé.) —
Alto lá!
Em mim não se dá
(Repetição do Coro)
JORNAL DO COMMERCIO — Bom; uma vez que estamos todos aqui reunidos, uma idéia...
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Apoiado! Nomeamos uma comissão para organizar os estatutos. Quem
há de ser?
JORNAL DO COMMERCIO — Não se meta onde não é chamada. Você pensa que estamos na
banca da jogatina?
ITÁLIA — Ma dun que, colleghi.... perchê tanto rumore?... pace! pace! pace!1
PAÍS — É uma vergonha!... Não sei o que isto parece!... É preciso que sejam todos muito idiotas
para darem-se a tal desfrute!
PAÍS — É ela, que tem macaquinhos no sótão! Impostora! Quer fazer crer ao público que tem uma
tiragem maior do que a minha!
GAZETA DE NOTÍCIAS — Tenho, sim, senhor; e, para prova, aqui está a sentença do juiz da 2a.
Vara Comercial, por onde se vê que tiro trinta mil exemplares. Se és capaz, apresenta-me uma
sentença igual!
1 Trad.: Mas colegas, por que tanto barulho?... calma! calma! Calma!
53
RIO DE JANEIRO — Ora com efeito! deixem-se disso!
JORNAL DO COMMERCIO — Ora vá pentear monos, sua sirigaita! E todos vocês também, que,
afinal de contas, não passam de uns pedaços d’asnos!
(Protestam todos com grande algazarra, à vontade dos atores. Da disputa não se percebe palavra.
A Itália e o Rio de Janeiro tentam debalde apaziguar os colegas. Pode haver mesmo de vez em
quando um murro ou um pontapé. O Diário Oficial, durante toda a disputa, conserva-se imóvel,
como se nada se passasse, e o Diário do Brasil desaparece por um alçapão, de modo que os
personagens, exceção feita do Diário Oficial, o não vejam.)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Também eu! Estou no meu canto... por que bolem comigo?
ITÁLIA — Bravi.1
ITÁLIA — Ecco2 (Ficam todos de mãos dadas, menos o Diário Oficial, que continua no seu canto.)
JORNAL DO COMMERCIO — Que bela coisa é a amizade! (Reparando.) Mas falta um!...
JORNAL DO COMMERCIO — Você não, que é tola! (Repete-se o barulho. Falam todos a um
tempo. Itália e Rio de Janeiro sempre apaziguando.)
CENA II
DOUTOR (Da porta.) — Bravo!... Similia similibus!1 Assim é que eu gosto de ver a imprensa. Que
doce fraternidade! Santa beatitude!
DOUTOR — Duelo que deu em droga... Parturient montes1? Uma das balas matou uma vaca que
pastava, e a outra ficou dentro da pistola.
SOARES — Com licença, deixa-me falar. Vendo que algumas pessoas mal intencionadas não
tomaram a sério o duelo ultimamente havido entre dois jornalistas, venho pedir a todos os senhores
que não dêem notícia do meu encontro.
JORNAL DO COMMERCIO — Por minha parte, conte que não publicarei o fato.
GAZETA DE NOTÍCIAS — Ah! e eu, que me esquecia!... Adeus, colegas; tenho que tirar da
Alfândega um caixão negro que acabo de receber da América do Norte com escala por Paris. (Sai.)
RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal... mas sempre a conheci assim.
DIÁRIO DA TARDE — A propósito, colega Jornal, o que quer dizer a Gazeta com aquele problema:
Deixa-me morder essa cruz?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Tomando na mais alta consideração o meu sacerdócio de imprensa livre
e independente, propus ao sufrágio universal a solução de um grave problema sociológico que me
parece complexo e profundo!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Trata-se de saber qual das duas sociedades carnavalescas primou este
ano em luxo, espírito e bom gosto; se a dos Fenianos, se a dos Democráticos.
TODOS—Ah! ah!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Os meus numerosos leitores vieram trazer-me os seus votos com uma
prontidão e um patriotismo dignos realmente de tão elevado assunto. Vou apurá-los. Até logo. (Sai.)
2 Trad: unanimemente
1 Trad: Calma! Calma! Repito: calma, meus caros amigos.
56
JORNAL DO COMMERCIO — Este também é uma boa firma, não há dúvida. Nasceu ontem e já
quer ter fidúcias.
GAZETA DA TARDE — Um adulador! está sempre a dar parabéns a quem faz anos.
RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal, mas ele só dá parabéns a quem tem certa
importância.
RIO DE JANEIRO — Não é por querer falar mal, mas é tão insignificante!
NIQUELINA (A Soares e ao Doutor.) — Assim mesmo, pode-se dizer que foi poupada.
GAZETA DA TARDE — Até logo; vou providenciar para que fiquem prontas as minhas gravuras.
GAZETA DA TARDE — Pois não sabe? E as minhas ilustrações têm feito um sucesso colossal. Eis
aqui uma delas, reproduzida em ponto grande. (Desenrola um papel em que se vê um borrão preto.)
TODOS — Bonito!
PAÍS — Diz bem; desmancha com os pés o que faz com as mãos.
PAÍS — Bom; vou ver as provas do Caminho do Mal. (Ao Doutor.) Tem lido, Doutor?
DOUTOR — Não.
PAÍS — Ó senhores! ninguém lê o Caminho do Mal! Pois olhem que é a continuação dos Lazaristas.
JORNAL DO COMMERCIO — Este é o maior parlapatão que tem vindo à luz desde que há jornais
no Rio de Janeiro.
RIO DE JANEIRO — Isso é; não é por falar mal, mas é. (Apertando a mão ao Jornal do
COMMERCIO.) Colega, eu retiro-me, mas veja lá como me trata.
JORNAL DO COMMERCIO — Não tenha receio; vá. (Rio de Janeiro vai a sair.) Este sujeito...
(Vendo que Rio de Janeiro tem ficado à porta.) Oh! ainda aí está?
JORNAL DO COMMERCIO — Este sujeito não é capaz de dar uma notícia que não seja atrasada.
(Vendo o Diário Oficial.) Mas que diabo faz ali aquele estafermo? Eh! Olá! Você não tem que fazer?
Em que pensa?
DIÁRIO OFICIAL — Penso em transformar ainda uma vez o meu cabeçalho. E é o que vou fazer.
(Sai.)
JORNAL DO COMMERCIO — Sim, que se não fosse isso, era tão bom como os outros diários que
não são oficiais.
58
CENA III
OFICIAL DE JUSTIÇA — Nada disso. Ando a ver se descubro uma sala para o julgamento de Dona
Chiquinha Calças Largas. Creio que afinal o senhor Presidente resolve-se a alugar por três dias o
teatro de São Pedro ou o Politeima.
SOARES — Então a sala do Juri2?
OFICIAL DE JUSTIÇA — Vem abaixo... justamente pelo contrário; por ser construção moderna.
OFICIAL — Boa idéia! Vou comunicá-la ao Senhor Presidente. Às ordens de Vossas Senhorias.
OS QUATRO — Viva! (Oficial sai e esbarra no Repórter, que vem entrando muito apressado com
um papel na mão.)
OS TRÊS — Eleito!
JORNAL DO COMMERCIO — E eu, que o conheci pau-de-laranjeira! Um tratante, que fez o que
fez em Casa Branca!
NIQUELINA — Meu amigo, se podes arranjar alguns documentos contra esse homem, não percas a
ocasião.
NIQUELINA — Não nos despedimos do favor, mas nós mesmos iremos lá. (Ao Doutor e Soares.)
Que diabo! possuímos ainda o precioso talismã que num abrir e fechar d’olhos nos transportou a
Lisboa.
DOUTOR — Pois sim, mas desta vez quem os não acompanha sou eu. Tenho muito que fazer na
corte.
CENA IV
RA-TA-PLÃ — Rrrra-ta-plã!...
JORNAL DO COMMERCIO — Bom, venham comigo, meus filhos; quero apresentá-los aos
colegas, que os hão de receber com o mesmo prazer sincero com que recebem quantos jornais
aparecem. (Aos outros.) Entrem também para combinarmos a viagem. Quero, além disso, mostrar-
lhes uma infinidade de questões muito interessantes.
SOARES — Deveras?
TODOS — Vamos.
CENA V
DIÁRIO DE NOTÍCIAS (Trazendo uma cesta cheia de papelinhos.) —Vai, vai por aí, corre a cidade
inteira e espanta esta gente, compadre!
BOLETIM — Prometo fazer uma revolução nos costumes da imprensa diária. Arrumo-lhes o
Lombard Street, o Potencial e mesmo o Potencial Aval.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS — Vá, compadre! Você é dos diabos! Não perca tempo! (Empurra para
fora o Boletim, que sai.) Foi um achado, um grande achado! (Olhando para a cesta.) Isto é que é o
diabo! A vitória está do lado dos Democráticos... Mas os Fenianos são tão bons rapazes!... dão-me
uns anúncios tão compridos! Tenho aqui esta cesta cheia de votos e quase todos para os
Democráticos. Mas, oh! que idéia! Vou dar sumiço a estes papelinhos, e digo depois em letra
redonda que o homem do lixo, não sabendo que eram documentos de tanta importância, despejou-os
da carroça. O veredictum desta eleição ficará para sempre sepultado no mais profundo mistério.
Quem quiser saber a quem coube a vitória, que vá à Ilha da Sapucaia. Vamos Já!... vamos deitar fora
esta papelada! Oh! mas que vejo? Que procissão será aquela?... Para o lixo! (Atira a cesta para o
bastidor.) É o meu colega País que vem rebocando a imprensa fluminense! Que será?
CENA VI
61
RA-TA-PLÃ, GRIFO e os outros jornais fluminenses.
(Música de C. Cavalier.)
O PAÍS — Mademoiselle!
QUADRO XI
Uma praça na cidade de Casa Branca, em dia de festa. Arcos de folhagens, bandeiras, etc.
CENA I
62
Fazendeiros, habitantes de Casa Branca, caipiras e o MESTRE-ESCOLA
Coro
(Música de Offenbach.)
O MESTRE-ESCOLA — Qua de vacés qué i comigo esperá o doutô na estrada? Premero qu’o
home chegue aqui, tem tempo. O mió é esperá ele no caminho.
1º CAIPIRA — Diz bem, seu mestre; eu vou com mecê. Tou morto pru vê o nosso doutô!
MESTRE — Eu tenho duas agirândolas de foguete pr’atacá condo ele chegá. É pum! pum! xim!
pum! pum! Viva!... E convido ele logo pra visita minha escola e izaminá os menino. O doutô há de
ficá ademirado do adiantamento e porgresso dos fio do tenente-coroné e do Juca da Quebrada. Que
meninos! ainda não tem doze anos e já assoletra todo o Simão de Nântua e já sabe a Cartia do Padre
Inácio.
MESTRE — Também eu cá não estou com impaliativo. Não admeto vadiações e imoralidades lá na
escola. É bolo de parmatória e, quando Deus qué, junco, que é o que ensina os rnadarço.
MESTRE — Quá poribido, quá nada! Ainda s’outro dia eu apanhei o filho do Ramualdo Gome
numa diabrura, e li fui assentando o reio, que até fiz vergãos. O pai foi levá o menino nas foia de
Casa Branca, mas eu arranjei logo um nós embaixo-assinado dos outro menino e chimpei na
imprensa. Depois eu tenho muita porteção: dei e hei de dar nos marcriado e nos malandro. Mas
vamos a sabê: quem qué i esperá o doutô comigo?
TODOS — A caminho!
(Repetição do coro.)
CENA II
63
NIQUELINA — Meu amigo, pode dar-me uma palavra?
MESTRE — Pois não! que é que mecê deseja? Mecê não parece cá da terra?
NIQUELINA — Não sou; por isso desejava saber se não há por aqui hotel, uma casa, uma sala, um
quarto, onde eu me possa hospedar com um amigo.
MESTRE — Uê! Mecê deve saber mió do que eu. Tudo tá tomado pro bandão de gente que tá pra
chegá co doutô, nem que mecê pague cumo pagá, não arranja nada.
NIQUELINA — Que diabo, diga-me então outra coisa: a fazenda do Tenente-coronel Regadas é
muito longe daqui?
MESTRE — A fazenda de seu tenente-coroné fica muito pertinha. A gente vai por ali... toma a
esquerda... quebra a mão direita... segue em frente... vorta pra esquerda outra vez... sobe a picada que
fica pra trás e desce pr’outra banda... Toma o ataio e vai chegá lá direitinho. É muito perto...
NIQUELINA (Só.) — O Soares está se demorando. Queira Deus que encontre o que deseja.
SOARES — O Tenente-coronel é um idiota. Está maluco com a vinda do Doutor, que é esperado na
terra, e mal me prestou atenção.
NIQUELINA — E os papéis?
SOARES — Não sabe onde os guardou: se aqui, se noutra fazenda que possui em Mogi das Cruzes.
Não os pode procurar agora. Logo que fique desembaraçado e os encontre, prometeu remeter-mos
para a corte.
SOARES — Qual história! Espera a comitiva na fazenda e diz que não tem um só cantinho
disponível. Pois olha, não foi por falta de vontade da tenente-coronela, que me deitava cada olho...
64
NIQUELINA — Então, meu caro, voltemos para a corte, porque toda a cidade está nas mesmas
condições que a casa do Tenente-coronel.
NIQUELINA — Então! Vamos embora ou não? Já agora nada mais fazemos aqui!
SOARES — Com franqueza: não se me dava de esperar a chegada dos viajantes. Ao menos
assistiríamos à recepção. Estás também tentada, bem vejo. Anda! confessa!...
SOARES — Então fiquemos. O Tenente-coronel não tarda aí com a sua gente. Vamos ter mosquitos
por cordas e moscas por aranhas. Olha! Que dizia eu? Lá vem ele!
CENA III
Coro e coplas
Que folia!
Que alegria!
O Doutor já vai chegar!
Que alvoroço no lugar!
(Dançam.)
II
65
Nestes dia de festança
Sinto cócegas nos pé;
Quando se trata de dança,
Não sou tenente-croné!
(A Dona Engrácia.)
Sinhá dona companheira,
Faz favô, venha dançá!
Pra puxá uma fieira
Não há outra no lugá!
(Dançam.)
TENENTE-CORONEL — São quase hora. O home não pode tardá. Perfile-se siá dona... perfile-se,
nada de molezas! vá com o que eu lhe digo! Mecê deve parecê quem é a muié de seu marido!
DONA ENGRÁCIA — Sim, seu Regadas... deixe está, que não hei de lhe envergonhá. (Vendo
Soares.) Olhe... o moço bonito que esteve hoje lá na fazenda.
TENENTE-CORONEL — E é memo.
TENENTE-CORONEL — Soare... Mecê descurpe... Eu tenho uma cabeça muito dura pra decorá
nome... Vá com o que eu lhe digo... Mas agora não me esquece mais!
SOARES — Permita que lhe apresente o meu amigo Meio Tostão, que veio comigo à Casa Branca.
TENENTE-CORONEL — Pois, seu Meio Tostão, estimo muito de conhecê mecê... Tenho muita
honra.
NIQUELINA — Honra recebo eu, por travar conhecimento com uma das primeiras influências do
lugar, e principalmente por ter a ventura de ser apresentado à Excelentíssima Esposa do Senhor
Tenente-Coronel.
66
DONA ENGRÁCIA (À parte.) — Fermosa! Ai, minha Nossa Senhora, estou entre dois fogo!
TENENTE-CORONEL — O nosso Doutô... Não se pode demorá vá com o que lhe digo. Quero ser
o premero a lhe apresentá as minhas homenage. Em farta de banda lá na fazenda, trouxe este realejo
(Indica um pequeno realejo que um moleque traz.) pra eu mesmo tocá quando o home chegá. Há de
ter uma sorpresa de admiração que eu não lhe digo, seu aquele, vá com o que lhe digo.
SOARES — Talvez que até o brinde com uma tetéia. O Doutor é muito relacionado nas altas regiões.
Ainda hei de vê-la baronesa, minha senhora.
SOARES —E por que não? Muito maiores caval... quero dizer: pessoas muito menos dignas o têm
sido.
TENENTE-CORONEL — Home, meu retrato já saiu do Mequetrefe, vá com o que lhe digo.
TENENTE-CORONEL — Mecê é dos diacho! Fala numas coisa que faz mamo a gente ficá co água
na boca! Mas me diga mecê, que é lá da corte: já falou arguma vez co Doutô?
TENENTE-CORONEL — Porque eu quero indagá se ele é memo como se diz. Tenho umas
conversa co ele... umas conversa séria, vá com o que lhe digo. A tá porpaganda abolicionista tá
danada! É preciso tomá porvidência. Senão os Crapes e seu rancho deixa a gente na miséria forrando
todos os escravinho da gente, vá com o que lhe digo!
TENENTE-CORONEL — Eu não sou nada: sou sinhô da fazenda co escravatura e tudo; isso é que
eu sou, e querem tirar a minha porpriedade: não admeto.
TENENTE-CORONEL — Aí! Agora é que mecê falou direito. Eu quero que os escravo todo fique
forro, mas é quando morrê; enquanto for vivo, que trabalhe, que é pra isso é que se fez o negro, vá
com o que lhe digo. Inda bem que a nova lei arrumou tudo no tronco por mais ano e meio, e ainda há
de vi outra que há de arrumá eles na escravidão por toda a vida, vá com o que lhe digo.
67
TENENTE-CORONEL — Uma vitória? Diga mecê qual foi.
TENENTE-CORONEL — O reio? O bacaiau? Não me diga isto pelo amô de Deus, seu aquele!
TENENTE-CORONEL — Que importa co códio! O códio lá em casa sou eu e mais a dona, vá com
que lhe digo!
TENENTE-CORONEL — Eu hei de mostrá aos negrinho se ronca ou não ronca o bacaiau. Apôs!
Negro nasceu pra sê surrado, cumo porco pra sê comido. Vá com o que eu lhe digo! (Ouvem -se
foguetes.)
CENA IV
JORNAL DO COMMERCIO — Perdão, creio que estão enganados... Eu não sou quem os senhores
supõem...
TODOS — Viva!
TENENTE-CORONEL — Nós bem sabemo quem é... Escusa de está co partes, vá com o que eu lhe
digo!
SOARES — É sim, que eu bem o conheço, vá com o que [eu] lhe digo!
1 1886: moço
2 1886: reporters
68
JORNAL DO COMMERCIO — Ó meu caro! Já está por cá?
JORNAL DO COMMERCIO — Vem aí; ficou visitando a cadeia. Adiantamo-nos um pouco dos
outros viajantes, para podermos ver Casa Branca. Viajamos com tanta rapidez, que nem tempo temos
para comer.
JORNAL DO COMMERCIO — Se é! Tem muitas sorocas, mas também tem muita moça bonita.
NIQUELINA — Palpáveis.
DONA ENGRÁCIA (Revirando os olhos, à parte.) — Ai! ai! Estão bolindo coa gente!
JORNAL DO COMMERCIO — Senti-me inspirado; tanto assim, que improvisei um mote e dei-o
aos meus ilustres companheiros de viagem para que o glosassem.
Lundu
69
Vejam que verso puxado à sustância:
O poeta vê-se em apuros,
Acha trocas e baldrocas,
Mas a rima não lhe agrada,
Apesar de tais sorocas.
SOARES — Bravo!
SOARES — Pudera! O Serzedelo, que também vem na comitiva, tem dado cópia deles a todo o
mundo.
TENENTE-CORONEL — Entonces mecês têm viajado muito? Têm visto tudo que há de bom na
terra?
JORNAL DO COMMERCIO — Qual! andamos num vai vem vertiginoso. Não há tempo nem para
dormir. Vamos a toda parte1, vimos, mas não vemos nada...
SOARES — Tenho lido as correspondências. Por que não visitaram o Colégio de Itu?
JORNAL DO COMMERCIO — Pois ainda o pergunta? Ó vós, qui cum Jesus itis, non ite cum
Jesuitis2.
DONA ENGRÁCIA — Se mecês quisé dormi hoje na fazenda, eu arranjo lugá. Ai! ai!
ATO III
QUADRO XIII
CENA I
Coro
(Música de Sullivan.)
TAVARES (Entrando e encontrando-se com o 1º e o 2º tipos.) — Ó meu caro Guedes! por aqui? E o
Senhor Graça também?
TAVARES — Muito obrigado. (Vendo Dona Chiquinha e Mindoca, que entram.) Com licença, vou
cumprimentar aquelas senhoras. (Dirigindo-se a elas.) Minhas senhoras, como têm passado?
DONA CHIQUINHA — Viva, seu Tavares, seja bem aparecido, já não há quem o veja!
71
DONA CHIQUINHA — Por quê?
DONA CHIQUINHA — Não o vejo desde o seu duelo! Está se vendendo muito caro!
TAVARES — Oh! não fale nisso, Senhora Dona Chiquinha! Que duelo!
DONA CHIQUINHA (A Tavares.) — É sempre a mesma! Como está Dona Maricota? E a Tecla? A
Dona Josefina não teve mais nada?
TAVARES — Estão todas boas. Pediram que as recomendasse muito às senhoras, se as encontrasse.
TAVARES — Nem nos mudamos. O senhorio abateu trinta mil réis no aluguel da casa e trata-me nas
palminhas.
DONA CHIQUINHA — Sabe, seu Tavares? A Genoveva não apareceu! Não sei onde diabo se meteu
o diabo daquela mulata!
TAVARES (Vivamente.) — Mas com mil vontades, Senhora Dona Chiquinha, com mil vontades!
Nem é próprio da senhora andar metida nisso. Olhe, amanhã passe-me uma procuração dando-me
poderes para dispor da Genoveva como se fosse minha. Prometo em poucos dias dar-lhe conta da
mulata.
DONA CHIQUINHA — Pois está dito; amanhã mesmo vou ao Saião Lobato, a quem conheço desde
menino1.
CENA II
1 1886: nino
72
1º MANIFESTANTE — Que diabo! E nós, que despedimos a banda de música por não o acharmos
em casa!
1º MANIFESTANTE — Apoiado! (Tirando muitas tiras de papel do bolso.) Lá vai obra! (Lê.)
“Ilustríssimo Senhor Faustino Tavares, os vossos amigos, satisfeitos pela confiança com que acaba
de distinguir-vos o digno eleitorado fluminense...
3º MANIFESTANTE — Bonito!
TAVARES (Interrompendo.) — Mas, meus amigos, reparem que estamos numa praça pública.
Vamos inevitavelmente cair no ridículo!
3º MANIFESTANTE — Tem razão; fique com o retrato, que é obra asseada do Petit. Lá iremos
sábado à sua casa para o copo dágua.
TAVARES (Vivamente.) — Perdão, não estou em casa... Negócio urgente me chama amanhã à roça...
Parto no trem das cinco horas da madrugada.
2º MANIFESTANTE — Não; isso é que não! Manifestação sem copo dágua não é manifestação. Ao
menos vamos à Maison Moderne.
MINDOCA — Não, senhor; vá o senhor só... Nós ficamos... (A Dona Chiquinha.) Il est abominable,
cet homme1!
TAVARES — Enfim, uma vez que não há remédio... (À parte.) Queira Deus que o Desiré me fie!
(Alto.) Minhas senhoras!... Dona Chiquinha, não se esqueça da procuração!
DONA CHIQUINHA — Fazes mal em tratar este moço com tanta indiferença. Ele é teu noivo.
SOARES — Nem ao menos os castelos do ano passado e as salvas de artilharia no morro de Santo
Antônio! Só um homem tinha patriotismo para promover os festejos deste dia. Morreu, e com ele
desapareceu o Sete de Setembro.
SOARES — Houve, porém creio que morreu também. Oh! mas hei de organizá-la!... Está pronto a
auxiliar-me?
DOUTOR — Ex corde2! Ponho ao seu dispor todo o meu entusiasmo... faça dele o que quiser.
SOARES — Amanhã mesmo começarei a tratar disso. (Outro tom.) E Niquelina? Vim aqui na
esperança de encontrá-la e nada! Que fim teria levado? Desapareceu como por encanto!
DOUTOR — Ninguém me arranca da minha convicção... ab ímo pectore3 ... Niquelina foi raptada...
Tem havido ultimamente tantos raptos!
SOARES — Raptada?
DOUTOR — Raptada, sim. Ela foi outro dia, como sabe, à Sociedade de Quartetos, assistir a uma
sessão de música de câmara. Era o vigésimo concerto clássico que ia na semana. Eles são tantos!
SOARES — Já é mania. Acho insuportável a tal música clássica. Só aturo a do Padre José Maurício,
porque era brasileiro.
DOUTOR — Algum sujeito que precisava de miúdos deu com ela e abiscoitou-a. Não sei se já lhe
expliquei a origem do verbo abiscoitar...
SOARES — Não, mas não é preciso; vem de biscoito. Vamos ver isto por aqui... talvez que a
encontremos.
DOUTOR — Vamos lá. (Subindo com Soares.) No tempo em que a Rua da Alfândega se chamava a
Rua do Oratório de Pau... (Perdem-se entre os grupos.)
CENA III
DONA CHIQUINHA — Vamo-nos embora, que já deram oito horas. Depois fica muito tarde.
DONA CHIQUINHA — Seu Doutor Sá! Que feliz encontro! (Conversam baixo.)
SOARES — E você, não tendo forças para resistir, vai casar com aquele patife! (A Dona
Chiquinha.) Minha tia?
SOARES — Ainda uma vez repito-lhe: o casamento de Mindoca com o Tavares é impossível.
DONA CHIQUINHA — Mudemos de assunto. Eu sei o que faço.
SOARES — Não mudemos, não. O Tavares é um tratante... em breve devo ter as provas...
DONA CHIQUINHA — Ora qual! Não há de ser tanto assim. Quem é que acusa seu Tavares?
DOUTOR — Em negócios como é o casamento, toda a cautela é pouca. Casar não é casaca. Aposto
que não sabe a origem deste ditado!
SOARES — Ora, Doutor, deixe-se agora de ditados! (A Dona Chiquinha.) E se eu lhe apresentar as
provas?
DONA CHIQUINHA — É justamente para quando está combinado o casório... Mas olhe que, se o
apanho em mentira, fico mal com você.
DONA CHIQUINHA — Bem; o tempo está passando e ainda temos que ir à quermesse3 do Cassino.
DOUTOR — Nada. O outro dia caí em lá ir, e tive que dar dez mil réis por um copo d’água.
SOARES — Vejam só. Entretanto temos tão boa água de vintém. Bem faço eu que não vou a
quermesses. E mais uma estrangeirice que não me entra nem a pau.
SOARES (Beijando-lhe a mão com efusão.) — Ah! vai-se chegando!... Ainda bem! (Dona
Chiquinha e Mindoca cumprimentam e saem.)
DOUTOR — Ora você sempre me saiu um namorado das dúzias! Deixa a menina ir só em vez de
acompanhá-la!... Decididamente não é um homem prático! Diga-me: que fim levaram os papéis do
fazendeiro?
SOARES — Espero-os a todo o momento. Já lhe escrevi de novo. Mas, ah! que vem a ser aquilo?
CENA IV
Coro de cervejas
(Música de Audran)
Cervejas cá estão,
Que vítimas são,
Sem apelação,
Da mais cruel condenação.
Tenham compaixão
Da nossa posição...
Ríspida foi tal punição.
SOARES — Que pena! Palavra! Eu tomava aquela Poço-rico com muito gosto. É bem boa!
SOARES — Ora! um beijo só não faria mal. E foram-se. Mas por que andam elas com tanta
precaução?
CENA V
NIQUELINA (Entrando perseguida por CVI.) Deixe-me, senhor!... deixe-me!... que importuno!
SOARES (Voltando com o Doutor) — Então? não lhe disse? É ela!... Niquelina!
NIQUELINA — Ah! és.... Chegas a propósito! Este senhor não me quer deixar.
SOARES — Que sem — cerimônia. Pois digo-lhe que ela está perfeitamente na minha. Afinal de
contas, quem é o senhor?
SOARES — Agora compreendo. É a Companhia de Vila Isabel, que estabeleceu passagens de meio
tostão e precisa para elas da moedinha de cinqüenta réis que é Niquelina.
C.V.I. — A, q, u, i qui...
C.V.I. — Juras?
C.V.I. — Oh! que ventura! (Saindo.) Que ferro para meus colegas da São Cristóvão!
SOARES — Com que então, a senhora deixou-nos e deu às de Vila Isabel, hein?
DOUTOR — E adormeceu? (A Soares.) Então, dei ou não dei no vinte? Ninguém escapa do sono.
QUADRO XIV
SOARES (Entrando com os outros, a Niquelina.) — Está acabada a tua comissão, mas não quero
que deixes de mencionar no teu relatório alguma coisa relativa aos teatros de minha terra.
DOUTOR — Para começar, vou fazer-te uma apresentação. (Indo ao encontro da Empresa Ferrari,
que entra.) Apresento-te a conceituada Empresa Ferrari.
EMPRESA FERRARI — Fui eu que trouxe ao Rio de Janeiro o Gayarre e a Aída; o Tamagno e o
Profeta; a Durand e a Hebréia; a Borghi-Mano e a Gioconda... E o Salvador Rosa, e o Excelsior... e
tutti quanti1. Sou uma empresa benemérita.
EMPRESA ROSSI (Entrando.) — Mas este ano cessou o teu reinado. Cairás aos golpes que vou
vibrar contra ti.
EMPRESA FERRARI — Insolente! Pretendes atravessar-te no meu caminho! Por que não ficaste
em São Paulo?
SOARES — Trate cada qual de sua vida e não se importe com a outra.
EMPRESA FERRARI — Diz bem, senhor; vou preparar o meu Brama! (Sai.)
EMPRESA ROSSI — Uma tola, que quer abarcar o mundo com as pernas!
SOARES — Como bom carioca, não morro de amores por estes forasteiros que fazem de nossa terra
um entreposto artístico-comercial, deixando à fome os pobres artistas nacionais. Entretanto,
reconheço que a Empresa Ferrari tem direitos adquiridos, porque nos tem trazido muita coisa boa.
NIQUELINA — Naturalmente esta senhora vem aproveitar o terreno preparado pela outra?
EMPRESA ROSSI — Engana-se. A Empresa Ferrari não traz este ano ópera lírica, mas ópera
NIQUELINA — Mas digam-me: não houve este ano nenhum drama nacional?
SOARES — Um único: o Caboclo, uma peça bem carioca; bem nossa e muito bem escrita.
DOUTOR — Mas um jornal afirmou ser adaptada de não sei que peça espanhola.
SOARES — Um disparate. Os dois trabalhos não se parecem nada. Vê lá, Niquelina, vê lá como isto
é. Tivemos um único drama nacional, um único, e esse mesmo achou quem o tachasse de plagiado.
SOARES — O Vasques.
DOUTOR — Saiu-se perfeitamente num papel dramático, ou antes, trágico. Estive às duas por três a
bradar do meu camarote: plaudite, cives.2 (Ouve-se um grande barulho no bastidor.)
CENA II
CELEBRIDADE (Entrando furiosa a brandir um chicote.) — Vous êtes des brutes; je m‘en vais!3
FILIPE (Entrando a segurar a mulher.) — Si vous voulez continuer, ne faites pas de cérémonie; je la
tiens.4
SOARES (A Filipe.) — Oh! que é isto? Pois o senhor agarrou na outra para a Madama dar de
chicote?
FILIPE (Com sotaque francês.) — Pardon, mas, o senhor não sabe o que esta mulher tem feito. Ela
teve a audácia de lever6 a mão contra a primaira artista deste siècle.7
1 Trad: Raros náufragos nadando no vasto abismo. (após o naufrágio do fiel Orantes)
2 Trad: Aplaudam, cidadãos.
3 Trad: Vocês são uns estúpidos; vou-me embora.
4 Trad: Se você quiser continuar, não faça cerimônia, eu a seguro.
5 Trad: Não, já basta!
6 Trad: levantar
7 Trad: século
80
DOUTOR — Pois é pena, que a primeira artista deste século se entregue a tais excessos. Si parva
licet componere magnis1 parece-me uma Maria da Fonte.
SOARES — Esta mulher extraordinária sabe tudo. Representa, caça, faz estátuas, joga o florete e
pinta.
FILIPE — Porque eu representou a Dame aux Camélias como se representa à Paris, e não fez de
Armand Duval um bonequinho d’água-de-cheiro. Madame, allons faire notre première scéne
d’amour de la Dame aux Camélia? Ces messieurs et dame verront si le public a été juste4
FILIPE — Os senhores preste toda attention. Premier acte. (Tomam posição.) Si je vous disais,
Marguerite, que j‘ai passé des mois entiers sous vos fenêtres... (Interrompendo-se.) Pardon! (Tira
um bigode postiço do bolso, e aplica-o em si.) Je garde depuis six mois un bouton tombé de votre
gant6
FILIPE — Vous avez raison. Je suis un extravagant; riez de moi, c‘est ce qu’il y a de mieux à faire.
(Com voz de trovão.) Adieu!8 (Vai saindo.)
CELEBRIDADE — Armand!
CELEBRIDADE — Eh! bien! Donnez-moi una poignée de main... venez me voir quelquefois...
souvent... naus en reparlerons1
FILIPE — Ne parlez pas ainsi. Je ne veux plus vaus voir rire avec les choses sérieuses4
CELEBRIDADE — Aprês?9
CELEBRIDADE — Non: vous direz de moi ce que tout le monde en dit. Qu ‘importe? Puis que j’ai
à vivre moins longtemps que les autres, il faut bien que/e vive plus vite.13
1 Trad.: Está bem! Dai-me um aperto de mão... vinde ver-me alguma vez... muitas vezes... nós voltaremos a conversar.
2 Trad.: demais... e não e o bastante.
3 Trad.: Ao que parece, eu vos devo alguma coisa.
4 Trad.: Não faleis assim. Não quero mais ver-vos rir de coisas sérias.
5 Trad.: Não rio mais.
6 Trad.: Queres ser amada?
FILIPE — Quand?
CELEBRIDADE — Quand elle sera fanée4.
CELEBRIDADE — Mais ce qu‘il faut à toute fleur pour se faner: L ‘espace d’un soir ou d‘un
matin.6
SOARES — Ele diz — Je vaus aime — como quem diz — Ora bolas!
FILIPE (Tirando o bigode e guardando-o.) Faz o favor de me dizer se isto não é grand art? Voilà ce
que aprend au Conservatoire de Paris.
CELEBRIDADE — Sim, mas nós podemos apresentar coisa melhor. Nous y reviendrons! Suivez-
moi11
CENA III
NIQUELINA — Fischiato?
EMPRESA ROSSI — O público queria um direttore braziliana, eu só lhe podia dar um direttore
italiano.
EMPRESA FERRARI (Entrando coberta de andrajos.) — A que estado me vejo reduzida! E tudo
isto por ter reduzido o preço dos bilhetes! Decididamente este ano acabo na mais negra miséria.
(Apontando para o vestiário.)4 Vejam como está isto! Felizmente ainda tenho alguns vestuários de
baile. Vou mudar de fato. (Sai. Música.)
CORO DE ESTUDANTES
(Música de C. Cavalier.)
A mocidade acadêmica
Vai neste instante ofertar
Um ramo pantagruélico
À grande Sarah Bernhardt.
(Desaparece o grupo.)
5 1886: grugo
84
DOUTOR — E que estudantes! Há alguns quase da minha idade!
CENA IV
OS MESMOS, EMPRESA ROSSI, depois uma CANTORA, acompanhada por admiradores, depois
o EMPRESÁRIO DOS PAPAGAIOS
EMPRESA ROSSI — Il Bertini! o tenor mais caro da companhia. (Entra a cantora, acompanhada
pelos admiradores, que a aclamam.)
EMPRESA ROSSI — Ah! Aquela artista cedeu para a liberdade dos escravos as jóias que lhe
haviam de dar na noite de seu benefício. Vou ver o resto da festa. (Sai.)
EMPRESA DE PAPAGAIOS (Entrando.) — Qual dos senhores me empresta cem mil réis?
EMPRESÁRIO — Preciso de dinheiro para mandar buscar a minha Companhia Lírica de Papagaios,
que há seis meses está anunciada!
NIQUELINA — Espere... parece-me que o estou conhecendo. Não foi o senhor que pretendeu o
outro dia apresentar uma mulher mutilada?
NIQUELINA — Aí está um sujeito que pode dizer que vive à sombra dos seus louros.
SOARES — Neste caso o periquito é quem come o milho e o papagaio quem leva a fama.
CENA V
DOUTOR — Há muito tempo que a conheço de reputação. A sua fama já havia cá chegado. Já sei
que nos vem trazer alguma boa produção do moderno teatro português.
DONA MARIA — Engana-se, meu caro senhor: o meu repertório é todo francês.
DONA — Ah! é verdade! trago uma peça nacional, que vale muito.
OS TRÊS — Qual?
SOARES — Que família, meu Deus! Que sorte mais tirana! O rei os manos mata! E o que é que faz
2 Abreviação da célebre frase de César ao ver entre seus assassinos o próprio filho Bruto: tu quoque, Brute, flui mi!
Trad.: Até tu, Bruto, meu filho!
86
a mana?
NIQUELINA — Pobre vítima, vai! Cumpre o destino teu! O povo inteiro espera o Duque de Viseu.
DOUTOR — Enquanto o vento sopra, é bem molhar a vela. (Saem o Duque e Dona Maria.)
CENA VI
DOUTOR — A mim também. (Ouve-se grande vozeria. Filipe, vestido de Hipólito, e a Celebridade,
vestida de Fedra, entram perseguidos pelos estudantes em mangas de camisa.)
FILIPE — C’est de l’enthousiasme!4… Os senhores podem ir embore e... Madame fica muito grata à
sua fineza... Podem ir apanhar no palco os paletós5 (Os estudantes saem dando vivas.)
SOARES — Já é!
DOUTOR — Eu sabia que ela era atriz de se lhe tirar o chapéu, mas o paletó!
CELEBRIDADE (A Filipe.) — Oh! si d’un sang trop vil ta main serait trempée, Au défaut de ton
bras prête-moi ton épée.6 Donne. (Arranca a espada de Filipe e quer matar-se.)
NIQUELINA — Que faites-vous, madame! Juste Dieu7! (Leva-a para dentro.) Theramêne, fuyons8!
FELIPE — Ma surprise est extréme Je ne puis sans horreur me regarder moi-méme. 1 (Sai a passos
trágicos.)
CENA VII
A MÁRTIR (Entrando e lançando-se aos pés do Doutor.) — Senhor, interceda por... Ele aí vem, meu
marido, o conde de Moray!
SOARES — Conheço a sua história porque a li nos folhetins do Diário de Notícias, mas permita que
lhe diga: se a senhora é mártir, a culpa é sua.
NIQUELINA — Sua, sim! Eu também conheço a história. Por que não confessa que o rapaz
assassinado por seu marido é seu irmão?
MÁRTIR — Oh! pois não sabeis que ele é o fruto do crime de minha mãe e que eu me sacrifico por
ela?
DOUTOR — Mas a senhora — eu também conheço a história —, a senhora tem uma filha: não deve
sacrificar a pobre criança.
MÁRTIR — Diz bem... o senhor abriu-me os olhos... Por minha mãe eu me sacrifiquei, mas por
minha filha sacrificarei o mundo inteiro! (Indo ao encontro do Conde, que entra.) Roger... tu amas-
me?
NIQUELINA — De quê?
CONDE — Da vergonha!
SOARES — Mas desgraçado! O moço que assassinaste é irmão dela, é teu cunhado, é filho de tua
sogra, e não é nada de teu sogro!
CONDE — Que me diz você? Ora sempre sou um grande pedaço d’asno!
ALMIRANTE (Entrando.) — Onde está ela? Não quero vê-la!... Oh! que vejo!... abraçados!
1 Trad.: Minha surpresa é extrema: Não posso olhar para mim nem horrorizar-me.
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reconciliados!... Então ela justificou-se.
NIQUELINA — Há coisas...
CONDE (À parte.) — O diabo é que, durante a nossa separação, o frontispício ficou muito
deteriorado!... Vamos, meu anjo; vamos recomeçar a nossa lua-de-mel. (Saem.)
ALMIRANTE (Aos outros personagens.) — Pois, senhores! este meu genro saiu um grande filósofo!
(Sai.)
DOUTOR — Deus nos livre! Haveria matéria para outro dramalhão em cinco atos, o que seria uma
desgraça!
CENA VIII
ATOR PÓLO (Entrando a procurar um objeto pelo chão.) — Perdão! com licença!... Não está!...
Nada!...
ATOR PÓLO — Ah! deixe-me! Estou aflitíssimo!... Sou um dos empresários da Companhia
Príncipe Real de Lisboa... Já estava a bordo, pronto para partir, quando dei por falta da minha melhor
jóia.. uma cruz esplêndida!...
ATOR PÓLO — Não a encontro em parte alguma; faz-me uma falta enorme!
SOARES — Então, meu caro, perca-lhe as esperanças!... Quem a achou levou-a consigo.
ATOR PÓLO — Minha rica cruz! Minha rica cruz! (Vai a sair e deixa cair uma margarida.)
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ATOR PÓLO — Que importa a flor! Fiquei sem a cruz, fico também sem a margarida.
NIQUELINA — Não me engano. Esta musica é do Brama! (Entra a Empresa Ferrari perseguida
em mímica pelas bailarinas.)
NIQUELINA — Nada de mímicas. Vamos-nos embora. Tenho que aprontar o meu relatório e partir.
SOARES — Já?
DOUTOR — Só lhe peço que não se esqueça de mim. As finanças continuam mal e eu tenho o meu
projeto.
CENA PRIMEIRA
DONA CHIQUINHA — sim; às cinco horas. Chegamos há pouco do Castelo, onde fomos em
romaria à gruta de Lourdes, pedir a Nossa Senhora que nos ampare neste mundo.
DONA CHIQUINHA — Então?... pois não sabe que fizeram uma gruta de Lourdes... de verdade?
SACRISTÃO — De verdade é que não... acho até esta história de gruta um tanto grotesca.
SACRISTÃO — Não discuto. Por causa de discussões, me atraquei ontem com o padre Guerra. Ele
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aprumou-me com um cálice...
SACRISTÃO — Não... cálice... com i...e [com] c.1 E eu fui lhe dando o troco em miúdos...
SACRISTÃO — Pudera! nestes tempos, qualquer que seja o jogo, trunfo é paus. Olhe o outro do
Matadouro! Era um bom empregado, mas como queriam ver-se livres dele, foram-he ao pelego.
DONA CHIQUINHA — Está bom, basta de seca, que são quatro horas dadas.
CENA II
DONA CHIQUINHA — Finalmente vou ver a Mindoca casada. Já não era sem tempo. Além do
dote, dou-lhe a Genoveva... mesmo porque não há meio de descobrir onde se meteu o diabo da
mulata. (Batem palmas.) Quem é?
DONA CHIQUINHA — Ah! o noivo. (Entram Tavares, o Senhorio e a Madrinha.) Então que é da
Maricota, e a Tecla? Dona Josefina ainda não ficou boa de todo? (Vai cumprimentar a Madrinha.)
TAVARES — Faça idéia! Como sabe, estou servindo no júri. Fui ontem sorteado e gramei até hoje
pela manhã... Era o processo da...
TAVARES — Que dia e que noite! mas também, que jantar! que jantar e que vinhos! Que pândega!
TAVARES — Absolvida...
O SENHORIO — Não era possível condená-la. Ela estava tão bem vestida! E que bons brilhantes!
SENHORIO — Mas podiam tê-la absolvido com mais decência. Procurassem a justificativa.
DOUTOR (Baixo a Dona Chiquinha, apertando-lhe a mão.) — Vim como amigo velho, mas bem
contra a vontade. O Soares lá foi para o Correio à procura de cartas. Pobre rapaz!
DOUTOR (Torcendo o nariz.) — Hum! (A Tavares.) Já soube que o 2º escrutínio foi anulado?
SENHORIO (À parte.) — E eu quê, além dos aluguéis, lhe emprestei o dinheiro para o enxoval!
Estou roubado!
DOUTOR — Agora é pegar-lhe com um trapo quente... Sabe a origem deste ditado?
DONA CHIQUINHA — Ora eu mesmo estou agora para origens! Aí vem Mindoca!
CENA III
TAVARES (Indo-lhe ao encontro.) — Minha senhora, permita que. (Mindoca dá-lhe as costas e
desata a chorar nos braços do Doutor.)
SENHORIO (À Madrinha.) — A noiva não parece morrer de amores pelo nosso inquilino!
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SENHORIO (À parte.) — Parece uma missa de sétimo dia. (Vão a sair, quando entra Soares,
agitando nas mãos uns papéis.)
SOARES (A Tavares e Dona Chiquinha.) Com estes papéis, que acabo de receber do Tenente-
coronel Regadas, de Casa Branca...
TAVARES — Mas...
TAVARES — Ora! não faltam casamentos! (Põe com violência o chapéu na cabeça e sai.) Vivam!
SENHORIO — Vamos, Crispiniana! Vamos trabalhar pela eleição do homem, senão estou roubado!
(Saem.)
DONA CHIQUINHA — Mas afinal o que fez ele em Casa Branca?
SOARES — Prima, peço-lhe um único favor: fale em português... Você com o francês e o Doutor
com o latim põem-me grego. (O Doutor ri-se.)
DONA CHIQUINHA — E eu, que passei procuração ao patife para tratar do negócio do diabo
daquela mulata!
SOARES — A Câmara Municipal libertou-a no dia dois, por trezentos mil réis que o Tavares
recebeu.
DOUTOR — Uma vez que chegamos ao desenlace, é tempo de acabar com isto. Finis coronat opus1
Vamos ao couplet final.
QUADRO XVI
O PANTEON BRASILEIRO
(Cai o pano.)