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TAMÎKAN OU AS MULHERES NÃO VIRAM ESTRELAS

Em uma narrativa contada por Akúli, índio arecuna e um dos fiéis


tradutores de Theodor Koch-Grünberg durante sua hercúlea tarefa de coletar
material etnográfico que deu origem aos cinco volumes da coletânea Do
Roraima ao Orinoco, a sogra de Jilijoaíbu dá início a uma verdadeira cadeia
de vinganças que dará origem à constelação conhecida na língua macuxi como
Tamî’kan.
Nela, a velha espreme o próprio ventre e tira do útero peixes conhecidos
como cascudo ou acari, famosos pela couraça que lhes concede uma
aparência pouco atraente, gastronomicamente falando. Em seguida, a sogra dá
os peixes para o genro e sua filha comerem, o que acaba atiçando a ira do
índio que havia descoberto a procedência pouco convencional dos pescados, a
despeito da pouca convencionalidade de qualquer outro feito realizado pelos
personagens em narrativas indígenas. Assim, para se vingar da sogra, monta
uma armadilha no rio, repleta de pedras de cristais e coberta por folhas de
bananeira, lugar onde a sogra ia para espremer os peixes. Para lá a velha
retorna, e escorrega, morrendo dilacerada pelas pedras e onde seus órgãos
variegados transformam-se na planta chamada mureru, uma planta aquática
comum principalmente na região do lavrado.
Desconfiando da ausência da mãe, a esposa de Jilijoaíbu tem a morte
da mãe e o culpado por ela revelados em sonho e, por isso, decide vingar-se e
trama a morte do marido. Levando-o para apanhar tucumã, quando o marido
chega ao topo da árvore do fruto, decepa-lhe a perna direita e lá o deixa para
morrer. A esposa volta para casa e um passarinho, que assistiu a tudo que se
passou na mata, conta ao irmão de Jilijoaíbu que ele tivera a perna amputada
pela própria esposa. Jilijoaíbu, ainda que mutilado, consegue arrastar-se até
sua casa e pedir seu instrumento para tocar, ascendendo ao zênite e
transformando-se em constelação. Apesar da raiva, o irmão casa com a
cunhada e com ela tem filhos, mas ainda assim vinga-se, matando a esposa
encarcerada dentro de uma colmeia.
Curioso perceber que enquanto a Jilijoaíbu, ainda que tramasse a
armadilha que fatalmente atingiria a própria sogra, sua morte leva à ascensão,
transforma-se em estrelas, que aos milhares continuam atraindo o olhar e a
admiração para os céus. Já para sua esposa, resta o caráter coletivo, porém,
que em vez de atrair, expulsa aqueles que tentam contemplar um enxame de
abelhas, embora seja dele que um dos alimentos importantes para a nutrição
indígena advém: o mel.
(PESQUISAR DO MEL ÀS CINZAS, DO STRAUSS)

Não difícil podemos traçar um paralelo entre o percurso das mulheres


que deram origem à civilização semita: Lilith e Eva. Embora banida dos escritos
e da primazia original da criação, Lilith ainda figura nos escritos sagrados
judeus, na Torah. Segundo o mito
Foi banida do Jardim do Éden e transformada em uma espécie de
demonio que obsedia os homens durante o sono.
Já Eva ainda que possua o título de mulher original, não tem destino
melor que Lilith. É pelas mãos de Eva que a derrocada de Adão acontece. Ela
é responsãvel por oferecer o fruto proibido a Adão. A partir disso os dois
também são expulsos do Jardim do Éden e condenados a vagar pelo mundo
vivendo do suor de seu rosto. Além disso, Eva é condenada a dar à luz a seus
filhos em meio a dores lancinantes como punição pela sua desobediência.
Ou seja, nenhuma das duas mulheres originárias também puderam ficar
ou voltar para o Jardim do Éden. As mulheres ocidentais não vão para o ceu
Como é comum às narrativas que têm origem na tradição oral, a que
conta o surgimento da constelação Tamî’kan tem várias versões. Numa delas,
coletada por Cesáreo Armellada entre os Pemón da Venezuela, com o título de
Leyenda de Chiriköwai, na obra Tauron Panton (2012), publicada pela
primeira vez em 1964, apesar de poucas diferenças, também é a sogra que dá
início à série de vinganças familiares. Um aspecto curioso a ser observado no
conjunto das narrativas coletadas por estudiosos das culturas indígenas do
circum-Roraima (BURTT-COLSON, 1985)1 como Koch-Grünberg e Armellada
é a pouca simpatia das sogras junto aos homens indígenas.
Em Pemongon Patá: Território Macuxi, rotas de conflito (2001, p.
33), Paulo Santilli retoma Peter Rivière que afirma que a tendência de
organização social das culturas Caribe da região guianense pode ser

1
Segundo a autora, circum-Roraima é um termo curto e útil, denotando a região das terras localizadas
em torno do monte Roraima, onde vivem os povos Kapon e Pemom.
considerada uxorilocal. Ou seja, a chefia da comunidade gira em torno da
figura do líder-sogro. Assim, o casamento gera obrigações do marido com
relação à família da esposa, em específico com o sogro, para quem deve
prestar um ano de serviços. Entretanto, nas narrativas indígenas, o sogro ou
futuro-sogro quase nunca é alvo da mesma antipatia com que sofrem as
sogras. Não raro, elas são retratadas nas narrativas como mulheres velhas e
ardilosas, sempre prontas a prejudicar os incautos genros, como bem exclama
Mayuluaípu para Koch-Grünberg: “As sogras do mundo inteiro não prestam.”
(MEDEIROS, 2002, p.150)
Já o sogro é alvo de temor e respeito, como se pode constatar na
narrativa contada pelo taulipáng Mayuluaípu a Koch-Grünberg intitulada A visita
ao céu (MEDEIROS, 2002, p. 105-115). Segundo a narrativa, o sogro do índio
Maitxaúle é o urubu-rei Kasána-podole que, pelo fato de ter-lhe tomado a filha
por esposa e pelo desejo de devorá-lo, impõe uma série de desafios ao genro a
começar por secar um lago em dois dias. Tarefas que, embora penosas, são
cumpridas à risca por Maitxaúle. Assim percebe-se que as relações entre
homens e mulheres estabelecem-se vertical e desigualmente, embora os
papéis sociais exercidos sejam similares, como os de sogro e sogra.
Não raro também, as mulheres, de forma geral, são retratadas como
responsáveis pelo surgimento de grandes flagelos como os espíritos malignos
Mauarís, seja por não cumprirem suas obrigações como mãe ou por
sucumbirem aos (en)cantos dos mesmos espíritos, na ausência dos maridos.
Aliás, as mulheres que se destacam por suas qualidades são aquelas que têm
relação com outras dimensões. Elas têm origem fabulosa como a esposa de
Wei, a sol, e mãe do clã Makunaima, enviada pela entidade mística Tuenkarón
(ARMELLADA, 2012, p. 23-29), feita de jaspe, que cumpre todas as tarefas
domésticas a ela incumbidas sem sofrer nenhum dano. Quando não, são filhas
diretas de animais cujo prestígio é amplamente reconhecido entre os povos
Caribe, como o Urubu-rei (MEDEIROS, p.105-115; ARMELLADA, 2012, p. 23-
29) ou o tatu gigante (MEDEIROS, p. 135 - 141).
Desta forma, as narrativas revelam uma certa disparidade na agência
entre gêneros, desde a própria narração de histórias, como pode-se perceber
pelos relatos de Koch-Grünberg, coletados exclusivamente junto a homens
(Akúli e Mayuluaípu) até o protagonismo das narrativas, sendo os papéis
secundários ou de quase antagonismo reservado às mulheres.
Fiorotti no artigo intitulado Taren, eren, panton: poetnicidade macuxi
(2018) defende três categorias para sistematizar as artes verbais dos povos
Caribe da região do Circum-Roraima: panton, taren e eren. Das três, a
categoria denominada panton será de fundamental contribuição para o
desenvolvimento desta proposta de pesquisa. Os povos pertencentes ao tronco
linguístico caribe, em especial os Macuxi, dispõem de uma concepção que
reúne as narrativas de caráter mítico, literário e mesmo histórico: panton.
Na língua indígena macuxi a palavra panton designa história, como
declara Severino Barbosa, habitante da comunidade indígena São Jorge,
quando interpelado a contar os mitos e lendas de sua comunidade (FIOROTTI,
2015, no prelo) “Ahn, panton, história, nós chamamos panton, panton” e
também como já indicado por Paulo Santilli (2001, p. 16), Frei Cesáreo
Armellada nas obras Tauron Panton (2012; 2013) e já dicionarizado (AMÓDIO
& PIRA, 2007; RAPOSO, 2008). Entretanto, a tradução de panton enquanto
história nos leva a considerar sentidos outros, além daquele que a considera
como a sucessão de fatos ao longo do tempo, como sugere Le Goff:

Mas nas línguas românicas (e noutras), 'história' exprime dois, senão


três, conceitos diferentes. Significa: 1) esta "procura das ações
realizadas pelos homens"(Heródoto) que se esforça por se constituir
em ciência, a ciência histórica; 2) o objeto de procura é o que os
homens realizaram. [...] Mas a história pode ter ainda um terceiro
sentido, o de narração. Uma história é uma narração, verdadeira ou
falsa, com base na "realidade histórica" ou puramente imaginária –
pode ser uma narração histórica ou uma fábula. (1990, p. 18)

Sendo assim, o conceito de panton reúne em si possibilidades que


podem ser exploradas por diferentes disciplinas das ciências humanas, uma
vez que trazem em seu bojo as perspectivas dos povos indígenas acerca de
seus processos socioculturais engendrados a partir do conjunto de
conhecimentos construídos em comunidade ou resultantes do contato com as
culturas não-indígenas. Logo, essa relação entre história e narrativa deverá ser
desenvolvida no futuro para pensar as questões de gênero presentes nas
narrativas em análise.
Outros estudiosos também serão de grande valia para o referencial
teórico desta pesquisa, como o próprio Theodor Koch-Grünberg que descreveu
em seu primeiro volume da coletânea Do Roraima ao Orinoco (2006), à guisa
de objetividade científica, alguns aspectos das culturas com as quais travou
contato na região do Circum-Roraima. Richard Schomburgk, outro viajante às
terras outrora identificadas como pertencentes à República da Guyana fez
alguns apontamentos instigantes sobre as relações entre gêneros:

It is strange that it is only the women who do the painting. Is the man
ashamed of the art, or does the woman only possess the talent for it?
When my brother on his previous journey was staying with the
Taruinas, they informed him that the picture writing, which he
discovered there on several of the boulders lying round about "had
been cut in by the women ages and ages ago." As soon as the
husband has finished na implement of any kind, a weapon or similar
article, he hands it over to his wife who now starts on its artistic
complicated painting without any pattern or other guidance than her
own inborn individual love of art as it were. 2 (SCHOMBURGK, 1922,
p. 281)

Para dar continuidade às atividades de pesquisa, também recorreremos


a estudos como os de Franchetto (2018) em que a agência feminina de povos
do tronco linguístico Caribe do Alto Xingu, em específico Kalapalo e Kuikuro,
fica evidenciada. Diz ela: “tolo e jamugikumalu são festas, danças e cantos
executados exclusivamente por mulheres e que formam um complexo ritual e
musical em contraste/complementaridade com as flautas kagutu, domínio
masculino e interditas às mulheres” (FRANCHETTO, 2018, p. 23). Esses
complexos rituais e musicais revelam através das canções e poemas mitos
como, por exemplo, das mulheres que abandonadas pelos maridos,
transmutam-se em hipermulheres de clitóris inchados e que retiram-se para
viver em uma comunidade exclusivamente feminina. Tanto no tolo quanto em
jamugikumalu a voz feminina evoca o homem amado, a saudade causada pela
sua ausência, desejo de fuga, a sedução, disputa pelo ser amado e mesmo
provocações à eles lançadas. Ou seja, a voz da mulher participa ativamente
dos jogos amorosos, tendo liberdade para conduzi-los em primeira pessoa.
Assim, por referirem-se a povos também pertencentes ao tronco linguístico

2“É estranho que sejam apenas as mulheres que fazem a pintura. O homem está envergonhado da arte,
ou a mulher só possui o talento para isso? Quando meu irmão em sua jornada anterior ficou com os
Taruinas, eles o informaram que a imagem escrita, que ele descobriu lá em vários pedregulhos que se
encontravam ao redor de onde ele estava"foi cortada pelas mulheres ano após ano". Assim que o
marido acaba de fazer qualquer tipo de artefato, uma arma ou algo similar, ele entrega a sua esposa,
que começará sua pintura artística complicada, sem qualquer padrão ou outra orientação, que não seu
próprio amor inato pela arte.” [Tradução da proponente]
Caribe, os estudos encetados por Franchetto, ajudem a iluminar semelhanças
ou acentuar diferenças entre os Alto-xinguanos e os do circum-Roraima, sejam
resultantes das distâncias entre latitudes, pelas peculiaridades culturais ou pelo
tempo decorrido entre as coletas do corpora.

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