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ALGUMAS IMPRESSÕES SOBRE DEMOCRACIA E VERTIGEM

Aparentemente minha rede afetiva se divide agora entre quem chorou copiosamente assistindo
“Democracia em vertigem”, novo longa da diretora Petra Costa disponível na Netflix, e aqueles que
não se comoveram com o filme. Eu fui uma das que reagiu como o segundo grupo.
Didi-Huberman organizou uma exposição chamada Levantes, composta de imagens de atos de
revolta, com passagem em alguns museus. Infelizmente não tive a oportunidade de vê-la ao vivo,
mas já tive contato com o catálogo da mesma. Recupero aqui uma passagem de sua introdução,
na qual Didi comenta sobre os tais tempos sombrios não serem exatamente um momento no qual
ocorre a aparição de uma mal súbito que deve ser combatido a todo custo. Ele fala sobre esses
tempos operarem de forma a ofuscar o nosso olhar e aparecerem como fronteiras para nossos
corpos e pensamentos. Como seria possível então, neste tempo que se impõe, olhar, sentir, ouvir
e falar?
O filme de Petra e suas escolhas, feito o conjunto de obras na forma em que foram organizadas por
Didi-Huberman, trazem imagens que provocam visibilidade e fascínio. Em que medida os levantes
expostos no museu e a narrativa na perspectiva escolhida em “Democracia em vertigem” se
articulam com a intensidade dos acontecimentos em questão?
Aqui prefiro me centrar na crítica ao filme de Petra Costa. Trago Didi-Huberman com “Levantes”
porque me interessa pensar sobre a distinção feita pelo autor entre tomada de posição e tomar
partido. O filme em questão me parece tomar partido, isto é, realiza um recorte preciso e delimitado,
abrindo uma geografia feita de linhas duras e retas. Quando uma imagem toma uma posição, esse
gesto se inscreve muito mais em um contexto que envolve a criação de um diagrama aberto e
dialético, capaz de sustentar multiplicidades. A tomada de posição pressupõe ambiguidade e
conflito, fatores que passam ao longe da narrativa que encontro na suposta vertigem proposta por
Petra.
A política me parece inscrita em uma dinâmica permanente de deliberação e ação. Palavras são
difundidas para uma multiplicidade de vozes. Há um jogo contínuo no qual de um lado existe uma
soberania que irrompe e interrompe e do outro, a liberdade que permite a expansão de
subjetividades. Os acontecimentos políticos como retratados no filme aqui discutido estão,
ironicamente, na contramão de uma vertigem. Imagens que se bastam em fatos estanques e
perspectivas homogeneizantes apontam uma incongruência para a prerrogativa da própria
existência da democracia (também presente no título). Isto é, o fato de que a vida democrática só é
possível em permanente vulnerabilidade e diversidade, em movimento.
Petra Costa, na minha opinião, comete um erro terrível quando retrata 2013 em breves minutos,
como se o ocorrido pura e simplesmente teria aberto espaço para o processo de Impeachment (ou
golpe), sem citar a assinatura da lei antiterrorismo por Dilma, entre outras nuances. É nessas
imagens que ao meu ver a vertigem poderia aparecer como condição de aparição do levante. As
agitações de junho de 2013 deflagram o fato de que a democracia para além do Estado, para ser
viva, deve se multiplicar a todo custo.
Acredito que junho de 2013 abre rastros indeléveis. E perscrutá-los deveria ser o desafio diante do
exercício de gerar imagens para tais acontecimentos. O levante em questão chacoalhou muitas
lugares comuns da velha esquerda em um clima vertiginoso difícil, mas necessário. As jornadas de
2013 abrem um caminho para que a democracia e a esquerda possam se reconstruir como campo
de ação, a perspectiva das lutas só é possível quando sustentamos os antagonismos e a
coexistência de multiplicidades inerentes à democracia, e isso não me parece possível quando a
aposta estética é feita em imagens tendenciosas, ávidas para tomar partido. Elas acabam dobrando-
se em si mesmas em uma infinita viagem de retorno cuja crença parece mirar em um passado
dourado que nem sequer sabemos se um dia existiu. É preferível olharmos para frente em busca
de algo ainda por vir, na aposta de um novo mundo de imagens a fitar, ainda que ambíguo e mesmo
que falho.

Daniela Avellar

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