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Resumo: Este artigo analisa a relação entre memória e esquecimento organizacional na geração de vulnera-
bilidades operacionais, incorporando um estudo de caso numa equipe técnica altamente especializada de uma
multinacional do setor automobilístico. O artigo inicia com a apresentação do contexto de complexidade do setor
automobilístico brasileiro nas últimas décadas. Logo em seguida, discute o referencial teórico sobre organiza-
ções aprendizes, memória e esquecimento organizacional e individual e organizações com características de
alta confiabilidade. Por fim, apresenta um estudo de caso realizado a partir dos conceitos teóricos relatados no
corpo do artigo, mostrando as contradições e evidências dessa relação.
dos fenômenos que podem explicar o surgimento de ensinava as indústrias a usar métodos estatísticos para
eventos inesperados (erros ou falhas operacionais) melhorar a qualidade da produção militar. Não se
repetitivos. É possível, como numa metáfora de pode esquecer da significativa colaboração de Joseph
Morgan1, as empresas serem vistas como cérebros Juran e Philip Crosby nem dos grandes contribuidores
e também terem os efeitos colaterais do esquecimento Feigenbaum, Conway e dos especialistas Taguchi,
coletivo? Os erros e insucessos organizacionais são Ishikawa e Shingeo Shingo durante as décadas
tão explorados como os acertos e sucessos? Por seguintes (PIKE; BARNES, 1996).
que não explorar, também, as “Piores Práticas”, assim Ao término da guerra, as indústrias americanas
como as “Melhores Práticas”? Está a cultura começaram a buscar a satisfação da enorme
organizacional dessa organização preparada para a demanda de clientes de bens de consumo que,
“Learning Organization”? Como as organizações são durante quase 20 anos, não teve grandes concor-
afetadas pela memória organizacional? Qual a rências. Os métodos administrativos cresceram e
correlação entre ética e vulnerabilidade? prosperaram, enquanto, do outro lado do Pacífico, os
japoneses buscavam Deming para ensinar-lhes os
2 A INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA tais métodos de gestão da qualidade. Segundo
Deming, o produto, mesmo nas mãos do consumidor,
A indústria automotiva é uma das atividades está em fase de desenvolvimento. (SCHOLTES et al,
industriais de maior importância para a geração de 1992).
emprego, renda e produtos. A reconstrução industrial Com os excelentes resultados apresentados pela
japonesa, que teve grande impulso na década de 50 indústria japonesa e sua posterior entrada no mercado
através do Total Quality Control (TQC), criou americano na década de 80, a indústria americana
relevantes modificações nos sistemas de produção reagiu e imitou o processo (do qual foi criadora),
industrial em geral, mais especificamente no setor estendendo as práticas às suas filias européias,
automotivo, sendo que o mais difundido e conhecido asiáticas e latino-americanas. Para esse modelo ser
foi o Sistema Toyota de Produção (SHINGO, 1996). bem-sucedido, as empresas européias e americanas,
Basicamente, esse modelo tinha como pressuposto a principalmente, adotaram novas posturas com relação
produção de massa flexível de artigos diferenciados, aos seus fornecedores e compradores. Assim,
inserindo operações fundamentadas em novos envolveram todos os agentes integrantes da cadeia
conceitos de desempenho, qualidade e produtividade, de valores da indústria, iniciaram um complexo pro-
revolucionando o sistema fordista de divisão do cesso de implementação de sistemas de interde-
trabalho, segundo o qual o trabalhador polivalente e pendência e transferência de inovações de natureza
autônomo Hirata (apud LIMA et al, 1994) tem papel tecnológica e organizacional objetivando uma auto-
fundamental. Para esse sistema ser efetivo, Shingo sustentação do mesmo mediante riscos compar-
(1996) reforçou o papel das manutenções na tilhados, ou seja, de auto-sustentação no longo prazo.
eliminação de quebras e defeitos dos equipamentos Esse novo modelo se opunha ao modelo fordista com
e máquinas. Mecanismos de “zero defeitos” ou “poka- fornecedores independentes e concorrentes entre si.
yoke” foram aprimorados com a função de evitar as A base desse novo padrão de relacionamento está
paradas inesperadas. na aplicação de técnicas gerenciais, tais como kanban
O modelo de organização da Toyota, chamado (cartões que identificam quanto será produzido e
também de Ohnoismo, devido ao executivo principal, quando ocorrerá o reabastecimento), just-in-time (visa
rompeu com o modelo tradicional por apresentar a atender a demanda instantaneamente com qua-
quatro grandes características: a) trabalho em equipe lidade e sem desperdício) e Kaizen (uma série de
ou em células, b) autonomia aos grupos de trabalho, procedimentos que objetivam a melhoria contínua do
c) redução dos níveis hierárquicos e d) reaproxi- processo) (CASTRO, 1993).
mação funcional dentro das empresas. Essa No Brasil, de acordo com Lima et al (2000), o
abordagem, que foi difundida com o nome de TQM movimento da qualidade, nas concepções atuais,
nos Estados Unidos, foi explorada pelo estatístico W. chegou na década de 90, quando incentivos ao
Edwards Deming que desenvolveu muitas de suas segmento foram intensificados com o Regime
teorias durante a Segunda Guerra Mundial, quando Automotivo Brasileiro em 1996. Esse programa, que
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AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES
dade, compostos por funcionários que deviam inte- no bloco de questionamento, ou seja, no segundo
ragir com as ações e decisões dos problemas do dia- tipo, existe o autoquestionamento das ações que
a-dia e do desenvolvimento da melhoria e apren- possibilita o aprender a aprender.
dizado contínuo.
Passo 1
soas para converterem as lições que elas aprenderam individual, reflete conhecimentos adquiridos pelas ex-
na reconfiguração de procedimentos e ações. periências individuais (episódios da memória),
Como a sociedade em que se vive está exces- 2. semântica – trata do conhecimento factual (um fato
histórico) e
sivamente direcionada aos casos de sucesso, a orga- 3. processual – contém as habilidades que devem
nização dificilmente expõe suas fraquezas, erros, ser adquiridas para o aprendizado (por exemplo,
falhas ou insucessos, assim dificultando o processo um manual de natação).
de aprendizagem que pressupõe a retro alimentação
dos aspectos positivos e negativos das ações. Essa As organizações utilizam sistemas informacionais
pressão pelo “sucesso” pode ocorrer por mecanismos para armazenar as experiências individuais que
de coerção e na dimensão microssocial em que os constantemente são solicitadas e compartilhadas para
indivíduos podem ser estimulados a não delatarem o entendimento e previsão de eventos. De acordo
erros e falhas por medo ou acomodação. Sendo as- com Croasdell (2001, p.9), “todo novo conhecimento
sim, Pfeffer (1997) desafia os administradores e deci- gera distúrbio no sistema”, e a memória influencia o
sores para que entendam as organizações não so- comportamento individual porque fornece “insight”
mente por meio das melhores práticas (“best para a resolução de problemas e tomada de decisão.
practices”), mas também pelas piores prática (“worst A memória serve de referência para o entendimento
practices”). das atividades humanas, pois está associada à
O processo de aprendizado raramente ocorre memória coletiva (um dos fatores que ajudam na
sem que erros aconteçam, pois é um sistema de criação do modelo para um sistema automático de
processamento de informação com capacidade memória). Todo esse sistema, por sua vez, auxilia na
limitada de acordo com os recursos cognitivos lembrança da aplicabilidade de um conhecimento e
disponíveis (GARCIA-MARQUES, 2000). Os erros esse, na criação de eficiência e de produtividade.
acabam sendo parte integrante do processo de Machado-da-Silva; Fonseca; Fernandes (2000, p.
aprendizagem. Foi com esse argumento que Downs 134) ressaltam que o processo de resolução de
(2001) relatou um estudo realizado em um grupo de problemas
“trainees” subdividido em cinco equipes. A cada grupo
gradualmente foi exposto um conjunto de nomes de [...] pode não ocorrer necessariamente de acordo
vilarejos relativamente conhecidos e de condes não com as experiências ambientais; [...] a acumulação
muito conhecidos. Cada grupo teve um tempo de de dificuldade; a repetição de erros ou a ocor-
aprendizagem e checagem diferentes, devendo rência de problemas graves podem levar à con-
correlacionar os nomes aos vilarejos. Foram, então, testação radical do paradigma, gerando mudan-
computados os acertos. Presumia-se que idade e ças de natureza fundamental.
tempo de exposição às informações estivessem
diretamente correlacionados ao grau de acerto. A memória organizacional é um conceito genérico
Contudo, o estudo mostrou que não necessariamente. que descreve armazenamento, representação e
O grupo mais velho acertou mais vezes, demonstran- divisão do conhecimento, da cultura, do poder, das
do que os erros, muitas vezes, estão correlacionados práticas e da política dentro de uma organização.
não às experiências, mas ao processo de rotinização Sua finalidade é a redução dos custos de transação,
de tarefas que, freqüentemente, alieniza funcionários. a velocidade de acesso às práticas e soluções
passadas, o auxílio na tomada de decisão, a divisão
4 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO do conhecimento entre os membros e times de trabalho
ORGANIZACIONAL e a redução da dependência da organização em
relação aos indivíduos (no caso de “turnover”). Se
A memória é o poder ou processo de reproduzir essa memória é facilmente perdida ou de pouca
ou recuperar o que se aprendeu ou reteve, serventia, não ajuda a organização na busca de
principalmente através de mecanismos associativos. vantagens competitivas, desenvolvimento do conceito
Pode ser classificada em três tipos distintos de “organization learning”, aumento de autonomia e
(CROASDELL, 2001, p. 8): competências para mudanças bruscas de mercado
1. episódica – também conhecida como memória (CROASDELL, 2001).
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AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES
Hodge; Anthony; Gales (1996, p. 296) alertam CASO COMPRESSORES (1° evento)
Measurements Materials Personnel
que, para os sistemas de gerenciamento da
Sensor
informação, dois fatores são críticos para as de nível
Painel de
organizações: validade e confiabilidade. Os autores controle d Purgadores
acrescentam que “[...] as organizações são entupidos
Desligamento da máquina
basicamente processadoras de informações [...]
usadas para tomadas de decisão sobre o que e como Umidade Drenar Registro de purga fechado
fazer e não fazer as coisas”. do ar manualmente 1
Compressor (purgador
Environment Methods Machines
5 EVENTOS INESPERADOS: O CASO
Figura 2 – Diagrama de Ishikawa do 1º evento
Fonte: Equipe de manutentores (Minitab).
Para análise do processo de memória e esque-
A conclusão a que a equipe chegou foi que a
cimento organizacional na geração de vulnerabili-
parada da máquina ocorreu em virtude de um registro
dades organizacionais, tomou-se como o caso dois
de purga do sistema estar fechado. Passados três
eventos ocorridos numa empresa do setor auto-
dias, um mesmo evento ocorreu. Novamente, foram
mobilístico do Grande ABC – Estado de São Paulo -
levantadas as causas prováveis e, para surpresa,
em 2004. A manutenção industrial dessa organização
detectou-se que foi um purgador entupido o causador
é responsável, entre outras atividades, em manter
da parada de produção.
disponível (100%) o abastecimento de ar comprimido
para o processo produtivo da fábrica. O não-cum- CASO COMPRESSORES (2° evento)
Measurements Materials Personnel
primento desse objetivo pode causar parada da
Sensor
produção; conseqüentemente, produtos deixarão de de nível
Painel de
ser produzidos. controle d Purgadores
Sempre que ocorre um evento inesperado (para- entupidos
Desligamento da máquina
da total de equipamentos), a equipe rapidamente é
alertada e direcionada à tomada de ação. Por se tra- Umidade Drenar Registro de purga fechado
tar de uma equipe altamente especializada numa do ar manualmente 1
Compressor (purgador
organização altamente burocratizada, para cada ação
Environment Methods Machines
há um procedimento operacional específico. Esses
Figura 3 – Diagrama de Ishikawa do 2º evento
procedimentos são armazenados em um banco de Fonte: equipe de manutentores (Minitab).
dados para consulta (memória organizacional) e Por que um mesmo evento, com uma mesma
acionados quando necessário. Porém, nos eventos causa se repetiu? Analisando mais criteriosamente os
inesperados (como nos dois que serão descritos), dois eventos, pode-se constatar que os dois diagra-
parece que os mecanismos de ação são diferentes mas de Ishikawa elaborados não denunciaram as
dos de um evento comum. Nesse caso, cada técnico reais causas. A causa principal dos eventos foi um
busca seu registro ou memória individual na tentativa erro operacional, pois as válvulas, que são auto-
de solucionar o problema. O tempo para uma tomada máticas, não apresentavam defeitos, segundo o rela-
de decisão, nesses casos, precisa ser breve devido tório diário da área. Os operadores, inadvertidamente,
às pressões operacionais e ao tempo para reiniciar não monitoraram os equipamentos nas freqüências
as operações. Após a resolução do evento, as equipes corretas, provocando as falhas. Como o primeiro
elaboram diagramas de Ishikawa1 para elucidarem o evento abasteceu a “memória organizacional” com
caso e, então, armazenam os diagnósticos num banco ruído, ou seja, com uma informação equivocada, toda
de dados para futuras consultas e “best practices”. vez que essa falha ocorreu, houve uma parada de
O primeiro evento ocorreu num dos compressores produção, pois a mesma não condisse com a “ver-
de ar comprimido durante o expediente normal de dade”. A “verdade” custou uma advertência aos fun-
produção. A equipe deslocou-se até a sala de cionários. Portanto, optou-se, por razões políticas,
máquinas e restabeleceu o processo. Para esse buscar uma solução menos polêmica.
evento, foi elaborado um diagrama de Ishikawa Laroche e Nioche (apud MACHADO-DA-SILVA;
descrito na Figura 2. FONSECA; FERNANDES, 2000) identificaram,
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Robson Quinello
Rogério da Silva Nunes