Você está na página 1de 8

ARTIGO

AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA


MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES
Robson Quinello*
Rogério da Silva Nunes**

Resumo: Este artigo analisa a relação entre memória e esquecimento organizacional na geração de vulnera-
bilidades operacionais, incorporando um estudo de caso numa equipe técnica altamente especializada de uma
multinacional do setor automobilístico. O artigo inicia com a apresentação do contexto de complexidade do setor
automobilístico brasileiro nas últimas décadas. Logo em seguida, discute o referencial teórico sobre organiza-
ções aprendizes, memória e esquecimento organizacional e individual e organizações com características de
alta confiabilidade. Por fim, apresenta um estudo de caso realizado a partir dos conceitos teóricos relatados no
corpo do artigo, mostrando as contradições e evidências dessa relação.

Palavras-chave: Aprendizagem organizacional. Comportamento organizacional. Indústria automobilística.

1 INTRODUÇÃO de escândalos, muitas vezes trágicos, no mundo


corporativo. Obstinadas a maximizarem lucros e
O paradigma organizacional sofreu profundas resultados, empresas, como a Enron Corporation,
mudanças no século XX. O “Total Quality Petrobrás, Merck, GM, NASA e Union Carbide,
Management” (TQM) foi um movimento da qualidade cometeram erros estratégicos “déjà vu”, bastante
que contaminou as organizações a partir de 1980, explorados por vários autores. O objetivo deste
principalmente nas automobilísticas americanas. Além trabalho não é expor as estratégias (corretas ou não)
dos benefícios já conhecidos, como aumento da dessas empresas nem questionar suas posições éticas
qualidade dos produtos e serviços e preocupação e políticas. Este trabalho se presta a observar mais
com os clientes, trouxeram a conscientização da detalhadamente o mecanismo das estruturas
necessidade de desenvolvimento do trabalho em cognitivas que leva essas empresas a “perderem” a
grupo, também chamado de célula de trabalho. Os memória, provocando “esquecimento” e aumentando
decisores passaram a entender que as respostas para a vulnerabilidade operacional das mesmas. No Brasil,
muitos problemas estavam, freqüentemente, nos a literatura atual sobre comportamento organizacional
baixos escalões, conhecidos no Japão como círculos não tem explorado em demasia esse processo dentro
de qualidade (ISHIKAWA, 1998). Nos anos 90, surgiu das chamadas “learning organization”.
a Reengenharia Organizacional com a redução e a O trabalho inicia com a apresentação do contexto
aproximação das camadas hierárquicas, facilitando o de complexidade do setor automobilístico brasileiro
canal de comunicação entre os níveis operacionais e nas últimas décadas. No item 3, expõem-se o re-
os estratégicos (ROBBINS, 1999). No final do século ferencial teórico sobre “organizações que aprendem”
XX, nas empresas disseminou-se o conceito de e o processo de aprendizagem organizacional nas
Organizações que Aprendem ou “Learning organizações de alta complexidade. No item 4,
Organization”, segundo o qual as organizações, pelas abordam-se estudos sobre memória e esquecimento
competências e conhecimentos armazenados através organizacional. No item 5, por meio de um estudo de
do tempo, são capazes de aprender e, com isso, caso aplicado a uma equipe técnica de uma multi-
buscar vantagem competitiva. nacional do setor automobilístico situada no Grande
Entretanto, se assiste, cada vez mais, a “reprises” ABC, Estado de São Paulo, busca-se a compreensão
* UNIFECAP- Centro Universitário Álvares Penteado (rquinell@ford.com )
** UNIFECAP- Centro Universitário Álvares Penteado – S.P. e Coordenador do curso de Mestrado Profissional – UNINOVE – S.P
(rogerionunes@fecap.br)
Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004 135
Robson Quinello
Rogério da Silva Nunes

dos fenômenos que podem explicar o surgimento de ensinava as indústrias a usar métodos estatísticos para
eventos inesperados (erros ou falhas operacionais) melhorar a qualidade da produção militar. Não se
repetitivos. É possível, como numa metáfora de pode esquecer da significativa colaboração de Joseph
Morgan1, as empresas serem vistas como cérebros Juran e Philip Crosby nem dos grandes contribuidores
e também terem os efeitos colaterais do esquecimento Feigenbaum, Conway e dos especialistas Taguchi,
coletivo? Os erros e insucessos organizacionais são Ishikawa e Shingeo Shingo durante as décadas
tão explorados como os acertos e sucessos? Por seguintes (PIKE; BARNES, 1996).
que não explorar, também, as “Piores Práticas”, assim Ao término da guerra, as indústrias americanas
como as “Melhores Práticas”? Está a cultura começaram a buscar a satisfação da enorme
organizacional dessa organização preparada para a demanda de clientes de bens de consumo que,
“Learning Organization”? Como as organizações são durante quase 20 anos, não teve grandes concor-
afetadas pela memória organizacional? Qual a rências. Os métodos administrativos cresceram e
correlação entre ética e vulnerabilidade? prosperaram, enquanto, do outro lado do Pacífico, os
japoneses buscavam Deming para ensinar-lhes os
2 A INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA tais métodos de gestão da qualidade. Segundo
Deming, o produto, mesmo nas mãos do consumidor,
A indústria automotiva é uma das atividades está em fase de desenvolvimento. (SCHOLTES et al,
industriais de maior importância para a geração de 1992).
emprego, renda e produtos. A reconstrução industrial Com os excelentes resultados apresentados pela
japonesa, que teve grande impulso na década de 50 indústria japonesa e sua posterior entrada no mercado
através do Total Quality Control (TQC), criou americano na década de 80, a indústria americana
relevantes modificações nos sistemas de produção reagiu e imitou o processo (do qual foi criadora),
industrial em geral, mais especificamente no setor estendendo as práticas às suas filias européias,
automotivo, sendo que o mais difundido e conhecido asiáticas e latino-americanas. Para esse modelo ser
foi o Sistema Toyota de Produção (SHINGO, 1996). bem-sucedido, as empresas européias e americanas,
Basicamente, esse modelo tinha como pressuposto a principalmente, adotaram novas posturas com relação
produção de massa flexível de artigos diferenciados, aos seus fornecedores e compradores. Assim,
inserindo operações fundamentadas em novos envolveram todos os agentes integrantes da cadeia
conceitos de desempenho, qualidade e produtividade, de valores da indústria, iniciaram um complexo pro-
revolucionando o sistema fordista de divisão do cesso de implementação de sistemas de interde-
trabalho, segundo o qual o trabalhador polivalente e pendência e transferência de inovações de natureza
autônomo Hirata (apud LIMA et al, 1994) tem papel tecnológica e organizacional objetivando uma auto-
fundamental. Para esse sistema ser efetivo, Shingo sustentação do mesmo mediante riscos compar-
(1996) reforçou o papel das manutenções na tilhados, ou seja, de auto-sustentação no longo prazo.
eliminação de quebras e defeitos dos equipamentos Esse novo modelo se opunha ao modelo fordista com
e máquinas. Mecanismos de “zero defeitos” ou “poka- fornecedores independentes e concorrentes entre si.
yoke” foram aprimorados com a função de evitar as A base desse novo padrão de relacionamento está
paradas inesperadas. na aplicação de técnicas gerenciais, tais como kanban
O modelo de organização da Toyota, chamado (cartões que identificam quanto será produzido e
também de Ohnoismo, devido ao executivo principal, quando ocorrerá o reabastecimento), just-in-time (visa
rompeu com o modelo tradicional por apresentar a atender a demanda instantaneamente com qua-
quatro grandes características: a) trabalho em equipe lidade e sem desperdício) e Kaizen (uma série de
ou em células, b) autonomia aos grupos de trabalho, procedimentos que objetivam a melhoria contínua do
c) redução dos níveis hierárquicos e d) reaproxi- processo) (CASTRO, 1993).
mação funcional dentro das empresas. Essa No Brasil, de acordo com Lima et al (2000), o
abordagem, que foi difundida com o nome de TQM movimento da qualidade, nas concepções atuais,
nos Estados Unidos, foi explorada pelo estatístico W. chegou na década de 90, quando incentivos ao
Edwards Deming que desenvolveu muitas de suas segmento foram intensificados com o Regime
teorias durante a Segunda Guerra Mundial, quando Automotivo Brasileiro em 1996. Esse programa, que
136 Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004
AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES

integrava uma estratégia de política governamental 3 AS ORGANIZAÇÕES QUE (DES)APRENDEM


do Governo, articulou diferentes estágios e instrumen-
tos de política econômica visando a maior competitivi- Foi no final do século XX que o conceito de
dade das empresas já estabelecidas, como também “Organizações que Aprendem” tomou espaço no
estimular a concorrência por meio da definição de re- mundo acadêmico e, posteriormente, no mundo
gras e estímulos a empreendimentos de origem exter- corporativo. Segundo Robbins (1999), uma organi-
na. Essa política já inseria em seu eixo principal o zação que aprende é aquela que é capaz de, assim
foco no longo prazo, de abertura para o setor expandir como os indivíduos, desenvolver capacidade de
as exportações, com concessões gradativas às impor- adaptação e mudança. Essas organizações,
tações. Em 1997, por exemplo, o governo decidiu di- conscientes ou não, aprendem umas mais do que as
recionar os investimentos do setor para regiões menos
outras. Para Senge (1998), o conceito da chamada
desenvolvidas (Norte, Nordeste e Centro-Oeste) com
“quinta disciplina” seria o da organização que, por
o objetivo de acelerar, ao mesmo tempo, o crescimento
e a desconcentração da produção setorial. Para isso, meio dos seus membros, aprimora a capacidade para
garantia às montadoras que ali se instalassem: criar o futuro vislumbrado, independentemente do
a) redução de 100% do Imposto de Importação de avanço da tecnologia, sendo este apenas o meio de
bens de capital, troca da informação. Senge (1998, p. 83) ressalta
b) redução em até 90% no Imposto sobre Matéria- que “uma pessoa pode até receber mais informações
Prima, graças à tecnologia, mas, se não possuir as capaci-
d) redução de até 50% do IPI, dades necessárias para aproveitá-las, não adianta”.
e) isenção do Imposto de Renda, O autor apontou cinco características básicas de uma
f) isenção adicional do frete para renovação da ma-
rinha mercante e organização que aprende:
a) compartilhamento de uma visão entre os membros
g) isenção do IOF.
da empresa;
b) descarte de velhas rotinas padronizadas e manei-
O Gráfico 1 expõe, de forma conclusiva, como as ras de pensar na busca de resolução dos problemas;
mudanças do setor alteraram significativamente a c) entendimento dos membros de que todos os pro-
produtividade da indústria automotiva brasileira, em cessos e atividades da organização estão interligados;
especial os segmentos Montadoras e de Autopeças. d) comunicação aberta entre pessoas de quaisquer
Essas mudanças inauguraram um novo padrão níveis hierárquicos, sem medo e castigo;
tecnológico e concorrencial nas empresas estabe- e) abandono de objetivos individuais em detrimento
lecidas que foram ainda mais influenciadas pela inser- dos coletivos.
ção de veículos importados e de novos concorrentes,
tendo em vista a alteração de barreiras protecionistas Burgoyne (2003) denomina essas empresas de
aos tradicionais fabricantes e montadoras, assim como “Organizações Aprendizes” e as vê como sistemas
a instalação de novos concorrentes. Tal modificação dinâmicos que têm capacidade de alterar a si próprios
de padrão concorrencial pode ser sintetizada no para satisfazer objetivos e metas mais próximas dos
gráfico referido pela correlação entre a força de desejos dos interessados. Essas empresas apren-
trabalho empregada e o comportamento da produção, dizes incorporam em suas essências, muito prova-
o que, em termos relativos, abrange a consolidação velmente em função de uma estratégia deliberada
de novos modelos de gestão, principalmente aqueles pela alta administração, características do processo
originados da TQM, e da modificação do nível de de aprendizado organizacional, muito difundido após
competitividade dessa indústria. os movimentos da qualidade na década de 80. Con-
tudo, as organizações “de excelência” não consegui-
2,500
2,000 ram manter por muito tempo o “status”, justamente
1,500 por não terem a capacidade de adaptação e aprendi-
1,000
500 zado. Muito do que foi “aprendido”, na verdade, foi
0 apenas um exercício de legitimação perante as
pressões da concorrência e competição entre as orga-
Produção Emprego
nizações. O TQM, de acordo com Deming (1997),
Gráfico 1 - Emprego X Produção (1957-2003)
Fonte: Adaptado de ANFAVEA (2004); Produtividade (2004). pregava a participação ativa dos círculos da quali-
Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004 137
Robson Quinello
Rogério da Silva Nunes

dade, compostos por funcionários que deviam inte- no bloco de questionamento, ou seja, no segundo
ragir com as ações e decisões dos problemas do dia- tipo, existe o autoquestionamento das ações que
a-dia e do desenvolvimento da melhoria e apren- possibilita o aprender a aprender.
dizado contínuo.
Passo 1

3.1 O PROCESSO DE APRENDER A APRENDER:


ORGANIZAÇÕES VISTAS COMO CÉREBROS Passo 2 Passo 3

De acordo com Morgan (1996), tendo em vista Passo 4

que a economia é baseada em conhecimento e que a


Figura 1 – Aprendizagem de circuito único e duplo
informação, o conhecimento e o aprendizado são ele- Fonte: Morgan (1996, p. 92).
mentos-chave para o que se convencionou chamar A Figura 1 ilustra o processo de aprendizagem
de nova era digital, pode-se fazer um paralelo entre em circuito único ou duplo (nesse caso, quando ocorre
o funcionamento das organizações e o cérebro o passo 2 a.). As organizações precisam entender
humano. Experiências em laboratório concluíram que como elas reforçam o aprendizado em circuito único,
os cérebros se baseiam em refinamento crescente, e ou seja, sem o autoquestionamento. As empresas, de
não em cadeias de causa e efeito, existindo um acordo com Morgan (1996), utilizam basicamente três
paralelo com a holografia e sendo o cérebro capaz tipos de sistemas:
de montar o “todo” das realidades partindo de 1. orçamentos e outros controles administrativos que
“pedaços” ou partes delas. Morgan (1996) questiona mantêm um aprendizado de circuito único, monito-
o paradoxo do cérebro ser holográfico e especializado rando a situação, mas atrapalhando o processo de
ao mesmo tempo, demonstrando que uma ação aprendizagem por serem burocráticos demais;
2. sistemas burocratizados que tendem a engessar o
inteligente pode surgir de processos quase inde-
processo de questionamento por possuírem estruturas
pendentes apenas seguindo algumas regras básicas. hierárquicas rígidas;
O pressuposto é de que as organizações sejam 3. processos de prestação de contas e outros sistemas
sistemas de informações, de comunicação e de de recompensa que estimulam os funcionários a
tomadas de decisão, isto é, também sejam fugirem da realidade e mascararem a situação real
processadores de informações. Outro ponto é que, da organização (grifo nosso).
com as novas capacidades descentralizadoras da
informática, o processo também transforma o modelo A utilização do circuito duplo, sugere Morgan
organizacional. A evolução da eletrônica e redes de (1996), é um passo para a busca das organizações
inteligência, unida ao atual estágio dos microproces- que aprendem. Elas precisam estimular o questio-
sadores, favorece o surgimento da chamada namento, antecipar mudanças e permitir o surgimento
organização virtual em que o conceito de “físico” de um padrão de organização e direção estratégicas.
mudou. A introdução de sistemas “just in time” e do Essas organizações, como por exemplo, a Apple,
comércio eletrônico criou um cenário que, até então, CNN e Canon, conseguiram se redefinir ao longo do
apenas era de ficção científica. tempo, antecipando mudanças ambientais e criando
O desafio, então, passou a ser criar sistemas incertezas para atingirem novos padrões de desen-
complexos capazes de aprender da mesma forma volvimento. O poder de operar em circuito único é tal
que o cérebro. Com a cibernética, é possível entender que muitos programas de qualidade falharam ao
o processo de troca de informações da máquina e subjugar o aprendizado contínuo e o poder do
aprender que o conceito de feedback negativo - um questionamento. Os administradores do circuito duplo
sistema auto-regulador que opera sob normas precisam estar abertos às incertezas para que novos
operacionais ou padrões de orientação – precisa padrões surjam.
sentir, monitorar e detectar o ambiente, relacionar as A abertura aos questionamentos das normas
informações, detectar desvios e iniciar ações vigentes pode ser conseguida com a utilização do
corretivas (MORGAN, 1996, grifo nosso). Esse “ringi”, sistema pelo qual as diretrizes da organização
processo tem um mecanismo chamado aprendizado passam pela comunidade local a fim de, por meio do
de circuito único que difere do de circuito duplo apenas desacordo, encontrar o consenso. Esse método
138 Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004
AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES

permite o autoquestionamento e as ações corretivas erros, relutância em simplificar interpretações,


e preventivas. Desafiar normas gera conflitos, pois sensibilidade operacional, comprometimento com
traz mudanças ao padrão vigente, sendo fundamental recuperação e consideração por competência e
o desenvolvimento de habilidades para gerir esse habilidade técnica. Um exemplo de departamento com
ambiente. De acordo com Morgan (1996), dizer o fortes características de HRO’s são os de manutenção,
que não fazer, utilizar o “ringi” e selecionar os limites por estarem mais vulneráveis a eventos inesperados
para atingir metas são atitudes que desafiam a admi- e, além disso, por terem capacidade de gerar ou
nistração moderna. Na metáfora proposta pelo autor, extinguir problemas inusitados.
a mesma capacidade de regeneração, auto-organi- De acordo com Weick; Sutcliffe (2001), uma “orga-
zação e aprendizagem do cérebro é encontrada nas nização que aprende”, preocupada com eventos não-
organizações. Empresas que perderam funcionários esperados, coloca as áreas de manutenção como
em desastres ou demissões mostraram a capacidade foco estratégico devido à capacidade de a área
de se recriarem pela absorção de novos padrões. encontrar falhas em estágios que precedem uma falha
Isso demonstra a capacidade da organização em ou erro. As falhas, atualmente, estão aumentando pela
aprender. introdução de tecnologias mais complexas nos equi-
pamentos, aumento de itens nos procedimentos inter-
3.2 A ORGANIZAÇÃO QUE DESAPRENDE nos e pressões operacionais. São exemplos recentes
de acidentes envolvendo direta ou indiretamente as
Partindo do mesmo pressuposto de Morgan manutenções, o afundamento do submarino nuclear
(1996), segundo o qual organizações (metaforica- russo Kursk em 2000, a nave espacial americana
mente vistas como cérebros) podem aprender, as Columbia em 2003 e a plataforma petrolífera brasileira
mesmas estão vulneráveis e expostas ao processo P36 em 2001. Esses acidentes ocorreram devido a
de desaprendizagem. No circuito duplo, onde há o falhas operacionais graves que culminaram em crises
passo 2 a (VER FIGURA 1), algumas empresas com (WEICK; SUTCLIFFE, 2001; RUSSIA, 2004;
fortes estruturas burocráticas desestimulam o THOMÉ, 2004). Para os autores, foi justamente o
autoquestionamento dos processos e atividades não-cumprimento dos elementos citados acima que
porque esse mecanismo pode colocar em risco a produziram o desastre químico da Union Carbide
própria estrutura de poder. Como ressaltaram March (Bhopal, Índia) em 1984 e o desastre da espaçonave
e Simon (1967), “todo processo decisório humano, americana Challenger que, em 1986, matou sete
seja no íntimo de indivíduo, seja na organização, astronautas. Alguns dos tópicos citados foram negli-
ocupa-se da descoberta e seleção de alternativas genciados gerando eventos “inesperados” (alguns
satisfatórias; somente em casos excepcionais reincidentes).
preocupa-se com a descoberta e seleção de Um dos maiores problemas, nesses casos
alternativas otimais”. Essa observação reforça o relatados por Weick; Sutcliffe (2001), é o do candidato
argumento de que o poder decisório (no passo 2 a, a reportar o erro. Esse indivíduo necessita de
isto é, do questionamento) passa pelo nível individual. confiança e passar confiabilidade, sendo essas
A resposta dada a um determinado problema pode características difíceis de serem construídas e institu-
não ser exatamente a mais ideal. Portanto, está sujeita cionalizadas, mas fáceis de serem destruídas. Aqui, a
a erro ou falha. Por sua vez, o erro ou falha não é cultura organizacional estimulada na organização é
bem aceito na cultura organizacional, principalmente fator crítico para as HRO’s. Organização segura é a
nas organizações chamadas de “High Reability organização informada, e isso depende, na visão
Organization” (HRO), isto é, organizações que dos autores, de algumas subculturas (características)
expõem vidas humanas. organizacionais, como “reporting culture” - o que
Nesse rol, encontram-se organizações do setor deve ser reportado quando ocorre um erro ou quase-
nuclear, químico, petroquímico, automobilístico, erro; “just culture” - como será abordada a responsa-
espacial, alimentício, farmacêutico e outros (WEICK; bilidade no caso de erro humano ou experiências
SUTCLIFFE, 2001). As características das HRO’s próximas a isso; “flexible culture” - como as pessoas
cuidadosas são: preocupação com falhas e se adaptam a pressões e mudanças crescentes; e
responsabilidade civil, encorajamento do reporte de “learning culture” - quão adequadas serão as pes-
Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004 139
Robson Quinello
Rogério da Silva Nunes

soas para converterem as lições que elas aprenderam individual, reflete conhecimentos adquiridos pelas ex-
na reconfiguração de procedimentos e ações. periências individuais (episódios da memória),
Como a sociedade em que se vive está exces- 2. semântica – trata do conhecimento factual (um fato
histórico) e
sivamente direcionada aos casos de sucesso, a orga- 3. processual – contém as habilidades que devem
nização dificilmente expõe suas fraquezas, erros, ser adquiridas para o aprendizado (por exemplo,
falhas ou insucessos, assim dificultando o processo um manual de natação).
de aprendizagem que pressupõe a retro alimentação
dos aspectos positivos e negativos das ações. Essa As organizações utilizam sistemas informacionais
pressão pelo “sucesso” pode ocorrer por mecanismos para armazenar as experiências individuais que
de coerção e na dimensão microssocial em que os constantemente são solicitadas e compartilhadas para
indivíduos podem ser estimulados a não delatarem o entendimento e previsão de eventos. De acordo
erros e falhas por medo ou acomodação. Sendo as- com Croasdell (2001, p.9), “todo novo conhecimento
sim, Pfeffer (1997) desafia os administradores e deci- gera distúrbio no sistema”, e a memória influencia o
sores para que entendam as organizações não so- comportamento individual porque fornece “insight”
mente por meio das melhores práticas (“best para a resolução de problemas e tomada de decisão.
practices”), mas também pelas piores prática (“worst A memória serve de referência para o entendimento
practices”). das atividades humanas, pois está associada à
O processo de aprendizado raramente ocorre memória coletiva (um dos fatores que ajudam na
sem que erros aconteçam, pois é um sistema de criação do modelo para um sistema automático de
processamento de informação com capacidade memória). Todo esse sistema, por sua vez, auxilia na
limitada de acordo com os recursos cognitivos lembrança da aplicabilidade de um conhecimento e
disponíveis (GARCIA-MARQUES, 2000). Os erros esse, na criação de eficiência e de produtividade.
acabam sendo parte integrante do processo de Machado-da-Silva; Fonseca; Fernandes (2000, p.
aprendizagem. Foi com esse argumento que Downs 134) ressaltam que o processo de resolução de
(2001) relatou um estudo realizado em um grupo de problemas
“trainees” subdividido em cinco equipes. A cada grupo
gradualmente foi exposto um conjunto de nomes de [...] pode não ocorrer necessariamente de acordo
vilarejos relativamente conhecidos e de condes não com as experiências ambientais; [...] a acumulação
muito conhecidos. Cada grupo teve um tempo de de dificuldade; a repetição de erros ou a ocor-
aprendizagem e checagem diferentes, devendo rência de problemas graves podem levar à con-
correlacionar os nomes aos vilarejos. Foram, então, testação radical do paradigma, gerando mudan-
computados os acertos. Presumia-se que idade e ças de natureza fundamental.
tempo de exposição às informações estivessem
diretamente correlacionados ao grau de acerto. A memória organizacional é um conceito genérico
Contudo, o estudo mostrou que não necessariamente. que descreve armazenamento, representação e
O grupo mais velho acertou mais vezes, demonstran- divisão do conhecimento, da cultura, do poder, das
do que os erros, muitas vezes, estão correlacionados práticas e da política dentro de uma organização.
não às experiências, mas ao processo de rotinização Sua finalidade é a redução dos custos de transação,
de tarefas que, freqüentemente, alieniza funcionários. a velocidade de acesso às práticas e soluções
passadas, o auxílio na tomada de decisão, a divisão
4 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO do conhecimento entre os membros e times de trabalho
ORGANIZACIONAL e a redução da dependência da organização em
relação aos indivíduos (no caso de “turnover”). Se
A memória é o poder ou processo de reproduzir essa memória é facilmente perdida ou de pouca
ou recuperar o que se aprendeu ou reteve, serventia, não ajuda a organização na busca de
principalmente através de mecanismos associativos. vantagens competitivas, desenvolvimento do conceito
Pode ser classificada em três tipos distintos de “organization learning”, aumento de autonomia e
(CROASDELL, 2001, p. 8): competências para mudanças bruscas de mercado
1. episódica – também conhecida como memória (CROASDELL, 2001).
140 Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004
AMBIENTES COMPLEXOS VULNERABILIZADOS PELA
MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DAS ORGANIZAÇÕES

Hodge; Anthony; Gales (1996, p. 296) alertam CASO COMPRESSORES (1° evento)
Measurements Materials Personnel
que, para os sistemas de gerenciamento da
Sensor
informação, dois fatores são críticos para as de nível
Painel de
organizações: validade e confiabilidade. Os autores controle d Purgadores
acrescentam que “[...] as organizações são entupidos
Desligamento da máquina
basicamente processadoras de informações [...]
usadas para tomadas de decisão sobre o que e como Umidade Drenar Registro de purga fechado
fazer e não fazer as coisas”. do ar manualmente 1
Compressor (purgador
Environment Methods Machines
5 EVENTOS INESPERADOS: O CASO
Figura 2 – Diagrama de Ishikawa do 1º evento
Fonte: Equipe de manutentores (Minitab).
Para análise do processo de memória e esque-
A conclusão a que a equipe chegou foi que a
cimento organizacional na geração de vulnerabili-
parada da máquina ocorreu em virtude de um registro
dades organizacionais, tomou-se como o caso dois
de purga do sistema estar fechado. Passados três
eventos ocorridos numa empresa do setor auto-
dias, um mesmo evento ocorreu. Novamente, foram
mobilístico do Grande ABC – Estado de São Paulo -
levantadas as causas prováveis e, para surpresa,
em 2004. A manutenção industrial dessa organização
detectou-se que foi um purgador entupido o causador
é responsável, entre outras atividades, em manter
da parada de produção.
disponível (100%) o abastecimento de ar comprimido
para o processo produtivo da fábrica. O não-cum- CASO COMPRESSORES (2° evento)
Measurements Materials Personnel
primento desse objetivo pode causar parada da
Sensor
produção; conseqüentemente, produtos deixarão de de nível
Painel de
ser produzidos. controle d Purgadores
Sempre que ocorre um evento inesperado (para- entupidos
Desligamento da máquina
da total de equipamentos), a equipe rapidamente é
alertada e direcionada à tomada de ação. Por se tra- Umidade Drenar Registro de purga fechado
tar de uma equipe altamente especializada numa do ar manualmente 1
Compressor (purgador
organização altamente burocratizada, para cada ação
Environment Methods Machines
há um procedimento operacional específico. Esses
Figura 3 – Diagrama de Ishikawa do 2º evento
procedimentos são armazenados em um banco de Fonte: equipe de manutentores (Minitab).
dados para consulta (memória organizacional) e Por que um mesmo evento, com uma mesma
acionados quando necessário. Porém, nos eventos causa se repetiu? Analisando mais criteriosamente os
inesperados (como nos dois que serão descritos), dois eventos, pode-se constatar que os dois diagra-
parece que os mecanismos de ação são diferentes mas de Ishikawa elaborados não denunciaram as
dos de um evento comum. Nesse caso, cada técnico reais causas. A causa principal dos eventos foi um
busca seu registro ou memória individual na tentativa erro operacional, pois as válvulas, que são auto-
de solucionar o problema. O tempo para uma tomada máticas, não apresentavam defeitos, segundo o rela-
de decisão, nesses casos, precisa ser breve devido tório diário da área. Os operadores, inadvertidamente,
às pressões operacionais e ao tempo para reiniciar não monitoraram os equipamentos nas freqüências
as operações. Após a resolução do evento, as equipes corretas, provocando as falhas. Como o primeiro
elaboram diagramas de Ishikawa1 para elucidarem o evento abasteceu a “memória organizacional” com
caso e, então, armazenam os diagnósticos num banco ruído, ou seja, com uma informação equivocada, toda
de dados para futuras consultas e “best practices”. vez que essa falha ocorreu, houve uma parada de
O primeiro evento ocorreu num dos compressores produção, pois a mesma não condisse com a “ver-
de ar comprimido durante o expediente normal de dade”. A “verdade” custou uma advertência aos fun-
produção. A equipe deslocou-se até a sala de cionários. Portanto, optou-se, por razões políticas,
máquinas e restabeleceu o processo. Para esse buscar uma solução menos polêmica.
evento, foi elaborado um diagrama de Ishikawa Laroche e Nioche (apud MACHADO-DA-SILVA;
descrito na Figura 2. FONSECA; FERNANDES, 2000) identificaram,
Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004 141
Robson Quinello
Rogério da Silva Nunes

dentro do processo de resolução de problemas e que a dificuldade em treinar equipes em simulações


paradigma estratégico, a ação de grupos de interesse de emergência e a falta de mecanismos eficientes de
e defesa política na solução incremental ou definição policiamento das condutas dos técnicos agravaram a
dos problemas organizacionais. Essa, por sua vez, atuação durante as crises. Esses fenômenos precisam
foi ao encontro dos interesses do time, mas não da de estudos mais aprofundados.
organização. Essa interpretação corrobora com Para as burocracias mecanizadas em Mintzberg
Morgan (1996) que destacou os processos de (1995, p. 164-165), os mecanismos de coordenação
prestação de contas como estimuladores de são as padronizações de processos de trabalho. A
mecanismos da fuga e mentira nas organizações. estrutura básica é definida pelo autor:
O simples caso relatado ilustrou uma enorme
dificuldade enfrentada pelas organizações burocra- [...] altamente especializada; tarefas operacionais
tizadas. Faz-se o seguinte raciocínio: se cada evento, rotinizadas; procedimentos no núcleo operacional
numa grande organização, gera um diagrama de muito padronizados; proliferação de normas, re-
Ishikawa irreal, tem-se uma organização igualmente gulamentos e comunicações através da organiza-
irreal. A memória organizacional será afetada, ção; unidades ao nível operacional com grandes
podendo gerar um esquecimento organizacional pro- dimensões; confiança na base funcional para
vocado pelo abastecimento de ruídos no repositório agrupar tarefas; poder relativamente centralizado
de memória. Uma grande organização pode gerar para a tomada de decisão; e uma administração
centenas ou milhares de soluções inúteis anualmente elaborada com uma nítida distinção entre linha e
(esse dado não foi possível investigar nesse estudo). assessoria.
Como preconizou Etzioni (apud MAXIMIANO, 2002),
as organizações são caracterizadas em função do Uma vez que surge o evento inesperado (crise),
poder e da obediência (“compliance”) gerada. O tipo essa ordem é alterada (o choque dos ratos), deso-
de poder determina o tipo de obediência (envolvi- rientando o processo de tomada de decisão que passa
mento ou contrato psicológico) que definirá a natureza a ser individual e passível de erros. O processo de
da organização. Portanto, ficou claro que o tipo de esquecimento organizacional ocorre devido à
organização encontrada é a utilitária. Esse tipo de repressão exercida pelas organizações contra o in-
empresa utiliza poder manipulativo através de sucesso. Izquierdo (2004) ressalta que, “muitas vezes,
recompensas (benefícios, promoções e participações somos obrigados a extinguir imediatamente uma me-
nos lucros e resultados) gerando um tipo de contrato mória e substituí-la por outra completamente contrária”.
psicológico calculista (obediência interesseira) entre Assim como os indivíduos são capazes de reprimir
o grupo (MAXIMIANO, 2002). memórias cujas evocações são prejudiciais aos
Em psicologia experimental, como definiu resultados, a organização (formada pelos in-divíduos)
Izquierdo (2004), o processo ocorrido acima é tem, aparentemente, a mesma capacidade. Garcia-
chamado de aprendizado de reversão (“reversal Marques (2000) acrescenta que, nos es-quemas de
learning”). Como exemplo, pode-se tomar o caso cognição social, é possível encontrar procedimento
dos ratos treinados de laboratório que foram automático e controlado. Em ambientes complexos,
estimulados a percorrerem um labirinto para conseguir esses processos podem se chocar entre si. No surgi-
água. Uma vez aprendido, sempre percorreram o mento de um evento esperado, o me-canismo cognitivo
mesmo caminho. Um dia, decidiu-se aplicar choques acionado pode ser automático, enquanto que, em
quando os mesmos chegassem ao fim do labirinto. eventos inesperados, o indivíduo pode recorrer aos
Essa ação fez com que os ratos desaprendessem o não-automáticos que consumirão maior quantidade
labirinto e aprendessem a não percorrê-lo (ficaram de recursos cognitivos. Estes, por sua vez, são
desorientados). Fazendo um paralelo com esse limitados dentro de burocracias meca-nizadas.
estudo, notou-se que, no momento do evento (parada No grupo analisado, a improvisação que,
da máquina), o choque vislumbrado pelas repreen- segundo Cunha; Cunha (2000), é objeto de estudo
sões futuras, levou os técnicos a desaprenderem os negligenciado nos estudos de ciências organiza-
esquemas padronizados e a buscarem outras fontes cionais, muitas vezes é acionada para a resolução
para resolução dos problemas. Observou-se, ainda, de problemas. Analisando os dados dos eventos,
142 Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p. 135-146, julho/setembro 2004

Você também pode gostar