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A GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO BÁSICA: (DES) CAMINHOS

NA CONSTRUÇÃO DE UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

Benvinda Barros Dourado Ribeiro


Doutoranda/UFG
benvinda@uft.edu.br

RESUMO

O Brasil, a partir da segunda metade da década de 1970 e, com maior destaque, nos
anos de 1980, foi marcado pela emergência de importantes movimentos nacionais
voltados para a democratização do país. Esses movimentos constituíram as condições
para uma maior participação da sociedade civil nas discussões e proposições de políticas
públicas que se consubstanciaram no processo constituinte e na aprovação da
Constituição Federal de 1988. Assim, constitui objetivo deste trabalho compreender o
processo de inclusão do princípio da gestão democrática no texto da Constituição
Brasileira de 1988. Tomou-se por base autores que, por meio das análises de seus
objetos de estudo, sinalizam para a temática da gestão democrática da educação. Ao
percorrer alguns caminhos dos trâmites dessa legislação, os conflitos são evidenciados
por meio da participação de vários setores organizados da sociedade, como os
defensores da escola pública e os empresários do ensino, na tentativa de vislumbrar um
sentido democrático à gestão da educação. Em suma, o texto aprovado para a
Constituição Federal de 1988 incluiu entre os princípios que servirão de base à
educação nacional, no artigo 206, “a gestão democrática do ensino público, na forma da
lei”. O caráter de síntese, atribuído ao texto legal, deixou para regulamentações
posteriores definirem o significado da gestão democrática que se quer imprimir na
educação básica brasileira e as diretrizes para a sua implantação.

Palavras-chave: Educação. Gestão democrática. Constituição Brasileira/1988.


O Brasil, a partir da segunda metade da década de 1970 e, com maior destaque,
nos anos de 1980, foi marcado pela emergência de importantes movimentos nacionais
voltados para a democratização do país. Esses movimentos constituíram as condições
para uma maior participação da sociedade civil nas discussões e proposições de políticas
públicas que se consubstanciaram no processo constituinte e na aprovação da
Constituição Federal de 1988.
Considerando a democracia como um processo, uma socialização do poder,
como conquista efetiva, não só de regras do jogo, mas também de igualdade substantiva
(COUTINHO, 2002), e a educação como um campo social de disputa hegemônica,
resultante da condensação das relações de forças entre a sociedade civil e a política
(DOURADO, 2006), este trabalho tem como objetivo compreender o processo de
inclusão do princípio da gestão democrática da educação básica no texto da
Constituição Brasileira de 1988.
Para tanto, toma-se por base autores que por meio das análises de seus objetos
de estudo sinalizam para a temática do processo de democratização do País,
democratização da educação e de sua gestão, a partir, principalmente, de meados dos
anos de 1970.
Dada a importância de se atentar para o que significa um princípio
constitucional, busca-se apreender a compreensão do termo expresso por Adrião e
Camargo (2001, p.72) quando afirmam que “o termo princípio é empregado para
designar, na norma jurídica escrita, os postulados básicos e fundamentais presentes em
todo Estado de direito, ou seja, são afirmações gerais no campo da legislação a partir
das quais devem decorrer as demais orientações legais”.
Assim, para os autores, normalmente, os princípios são as referências para
validar legalmente as normas que derivam o texto constitucional. Ressaltam ainda que a
sua importância reside no fato de que, por se constituírem nas diretrizes para futuras
normalizações legais, eles não podem ser desrespeitados por qualquer medida
governamental ou pela ação dos componentes da sociedade civil.

O princípio da gestão democrática pré-constituição brasileira de 1988: discussões e


proposições

A análise de Shiroma (2000) mostra que, desde meados da década de 1970,


crescia um movimento crítico reivindicando mudanças no sistema educacional. A autora
destaca que as bandeiras de luta e de propostas dos educadores cobriam um amplo
espectro de reivindicações. No plano direcionado à democratização da gestão,
reivindicava-se:

A democratização dos órgãos públicos de administração do sistema


educacional, não só pela recomposição de suas esferas como pela
transparência de suas ações; a descentralização administrativa e pedagógica; a
gestão participativa dos negócios educacionais; a eleição direta e secreta para
dirigentes de instituições de ensino; a constituição de comissões municipais e
estaduais de educação nas políticas educativas; a supressão do Conselho
Federal de Educação em razão do seu caráter marcadamente privatista; os
colegiados escolares, que eleitos pela comunidade escolar, deveriam frear
arbitrariedades perpetradas pela administração do sistema e da escola.
(SHIROMA, 2000, p. 48)

A partir de 1980, os educadores brasileiros deram início à realização das


Conferências Brasileiras de Educação (CBEs), organizadas pela Associação Nacional de
Educação (ANDE), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd), pelo Centro de Estudos de Educação e Sociedade (CEDES) e Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC).
Buscando caracterizar a discussão da democratização da educação no âmbito
das CBEs, Gonçalves (1998) destaca que estes eventos foram palco da explicitação,
defesa e do confronto de projetos diferenciados de educação e sociedade. Além disso,
suas temáticas refletiram a conjuntura em que cada uma delas se realizou1.
A esse respeito, pode-se perceber, por meio do Manifesto aos Participantes da
III Conferência Brasileira de Educação, realizada em 1984, um sentimento de esperança
e preocupação em função da conjuntura política e econômica em que vivia o País. De
acordo com esse manifesto:

A III CBE tem lugar num momento da vida nacional em que governos
eleitos pelo povo lograram estabelecer-se a nível estadual e municipal e em
que se acena com a possível renovação de dirigentes e de orientação na
gestão pública a nível federal, com a revisão da ordem institucional e com a
realização de uma Assembléia Nacional Constituinte. Os movimentos
sociais e a mobilização cívico-política mostram hoje renovado vigor na luta
pela redemocratização. Ao mesmo tempo, porém, preocupa a todos a caótica
situação econômico-financeira do país bem como o seu submetimento aos
ditames do FMI e da banca internacional. Os educadores brasileiros estão
conscientes tanto das possibilidades abertas pelo momento político quanto
da gravidade dos problemas com que se debate a nação, de suas implicações
educacionais e da responsabilidade social que o momento lhes impõe.

1
Gonçalves (1998) classificou as CBEs em quatro períodos distintos: a contestação do autoritarismo (I e
II); a democratização e suas vicissitudes (III e IV); a democratização através da LDB (V) e o confronto de
projetos (VI). Segundo a autora, embora o perfil das conferências terem se modificado a cada versão, o
espírito de construção de uma educação democrática foi mantido.
(MANIFESTO AOS PARTICIPANTES DA III CONFERÊNCIA
BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, p. 229)

Em relação à democratização da gestão, cabe assinalar a discussão em torno


das formas de provimento dos cargos administrativos escolares e a necessidade de se
estabelecer padrões democráticos no âmbito da escola. Nestes termos, propôs-se a
eleição dos diretores de escolas e defendeu-se a presença da comunidade na escola por
meio das Associações de Pais e Mestres.
Um dos aspectos relevantes nessa discussão refere-se à questão da
participação. A defesa é de que uma escola é democrática há a participação de todos os
interessados – pais, professores e alunos – no processo educativo. Sinaliza, também, a
necessidade de organização para a participação e a elaboração de propostas pedagógicas
que transformem grupos populares em interlocutores.
A IV CBE, realizada no período de 2 a 5 de setembro de 1986, em Goiânia,
trouxe como tema central “Educação e Constituinte”. Colocou em debate os princípios
de uma política nacional de educação capaz de enfrentar os problemas desta área. O
objetivo da IV CBE era “propiciar a análise das políticas educacionais da Nova
República e a formulação de subsídios de uma política nacional de educação, que
contemplasse a democratização da educação escolar, a ser incorporados na nova
constituição” (GONÇALVES, 1998, p. 96).
Em relação à gestão da educação e ao subtema - gestão da escola - foram
apresentados variados trabalhos direcionados à discussão sobre: a definição e gestão da
política educacional, administração da educação, gestão da escola pública e particular,
os mecanismos de apoio à autonomia administrativa, pedagógica e financeira das
unidades escolares, conselhos escolares, a participação popular, natureza do trabalho
pedagógico e gestão.
Na percepção de Cunha (1991), a Carta de Goiânia, aprovada pela sessão
plenária no encerramento da IV CBE, foi o produto de maior efeito sócio-político de
todas as conferências. Dentre os dispositivos propostos nesta Carta para a nova
Constituição, faz-se necessário destacar dois pontos que tratam diretamente do processo
da gestão democrática:

19. O Estado deverá garantir à Sociedade Civil o controle da execução da


política educacional em todos os níveis (federal, estadual e municipal), através
de organismos colegiados, democraticamente constituídos.
20. O Estado assegurará formas democráticas de participação e mecanismos
que garantam o cumprimento e o controle social efetivo das suas obrigações
referentes à educação pública, gratuita e de boa qualidade em todos os níveis
de ensino. (CARTA DE GOIÂNIA, 1991, p. 228)

Percebe-se, portanto, que dentre os princípios gerais que orientaram o


documento do Fórum encontra-se a preocupação com a democratização do acesso,
permanência e gestão da educação, bem como preocupação em torno dos mecanismos
de controle e efetivação.
De acordo com Adrião e Camargo (2001, p. 73), o grupo que compunha o
Fórum acreditava que “formar cidadãos para uma sociedade participativa e igualitária
pressuporia vivências democráticas no cotidiano escolar, traduzidas na presença de
mecanismos participativos de gestão na própria escola e nos sistemas de ensino”. A
gestão democrática deveria englobar todos os níveis de ensino, incluindo tanto os
estabelecimentos de ensino públicos quanto os privados.

A gestão democrática na Constituinte de 1988: a participação da sociedade civil

O método de trabalho adotado para o funcionamento da Constituinte e a


elaboração do texto constitucional proporcionou maior organização e participação dos
educadores. Dividida em comissões temáticas e subcomissões, previa, ainda, audiências
com entidades representativas. A subcomissão de Educação, Cultura e Esporte era
constitutiva da Comissão da Família; da Educação, Cultura e Esporte; da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação.
A participação da sociedade civil se deu, principalmente, por meio da
apresentação de sugestões populares; da participação de audiências públicas, pela
presença das entidades da sociedade civil em sessões das subcomissões e por meio da
apresentação de emendas populares, encaminhadas à Comissão de Sistematização.
Ao analisar a participação dos movimentos sociais no debate sobre a educação
no processo de elaboração da Constituição Brasileira, Gohn (2005), Adrião e Camargo
(2001), dentre outros, consideram que o processo de inclusão do princípio da gestão
democrática do ensino, no texto constitucional, resultou de vários conflitos e embates
nas comissões e subcomissões encarregadas de elaborar o capítulo da educação no
processo constituinte. Os autores destacam a predominância de duas posições nos
setores organizados da sociedade civil que participaram deste debate - o sentido que
deveria ser atribuído à gestão da educação na Constituição de 1988.
O primeiro setor diz respeito ao Fórum Nacional da Educação na Constituinte
em Defesa do Ensino Público e Gratuito (Fórum),2 e o segundo setor ligado aos
interesses privados do campo educacional, composto por empresários e representantes
das escolas confessionais.
Os grupos ligados ao setor particular, leigo ou confessional, mobilizaram-se
para defender o ensino privado, realizando, em 1987, o XXI Congresso Nacional dos
Estabelecimentos Particulares de Ensino. A Federação Nacional dos Estabelecimentos
de Ensino (FENEN) atuou como porta voz do grupo empresarial. O grupo confessional
foi representado por meio de suas entidades, em destaque, a Associação de Educação
Católica do Brasil (AEC). Em relação à gestão democrática, o setor privatista resumia a
participação à possibilidade de famílias e educadores colaborarem com direções e/ou
mantenedoras dos estabelecimentos de ensino.
A plataforma do Fórum, intitulada “Proposta Educacional para a Constituição”,
foi elaborada a partir da Carta de Goiânia, aprovada na IV Conferência Brasileira de
Educação (CBE), e por contribuições específicas de cada uma das entidades sindicais,
pesquisadores e intelectuais.
Dentre as emendas apresentadas à Assembléia Nacional Constituinte, a
Emenda da Confederação de Professores do Brasil (nº. 49) advogou a ampla
democratização da gestão da escola em todos os níveis, com a participação de
professores, estudantes, funcionários, pais, comunidade científica e entidades
representativas da classe trabalhadora. Propôs também a eleição para as funções de
direção nas instituições de ensino em todos os níveis e nas instituições de pesquisa.
Segundo Cunha (1991), a preocupação com a gestão democrática dos recursos
destinados às instituições de ensino e de pesquisa apareceram em diversos artigos que
determinavam a criação de organismos de controle com a participação de estudantes,
professores, funcionários e pais de alunos, assim como representantes das sociedades
científicas e das entidades da classe trabalhadora.
De formas diversas, diferentes anteprojetos de Constituição e emendas de
iniciativa popular manifestaram o propósito de contribuir para a maior democratização
da gestão do ensino, nos seus diferentes níveis. O tema da gestão democrática esteve
presente nas várias fases da Constituinte, até o seu delineamento como um princípio
constitucional.

2
Ver as entidades nacionais que compunham o Fórum em Cunha (1991).
No primeiro momento do processo constituinte, quando a participação da
sociedade civil no debate sobre a educação era intensa, a Comissão de Sistematização
incorporou o conceito de gestão democrática proposto pelos defensores da escola
pública. Deste modo, os grupos conservadores assimilaram, de certa forma, as
demandas da sociedade civil no que se refere à gestão democrática. No entanto, em um
segundo momento, com a crise deflagrada na Constituinte, a formulação do princípio da
gestão democrática foi alterada, em plenário, por uma emenda coletiva apoiada pelos
setores conservadores.
Na análise de Cunha (1991), no que se refere à gestão da escola, a emenda
3
2044 do “Centrão” chocou com o projeto aprovado pela comissão de sistematização.
Nesse contexto, os legisladores, ao cederem aos lobbies dos interesses privatistas,
permitiram que a lógica do mercado se sobrepusesse à razão e aos interesses da
sociedade, inclusive isentando-os da democratização da gestão escolar. Gohn (2005)
considera que o grupo de deputados do “Centrão” foi o principal opositor do Fórum no
interior do aparelho estatal.
Finalmente, o texto aprovado para a Constituição Federal de 1988 incluiu entre
os princípios que servirão de base à educação nacional, no artigo 206, “a gestão
democrática do ensino público, na forma da lei” (BRASIL, 1988). O caráter de síntese,
atribuído ao texto legal, deixou para regulamentações posteriores definirem o
significado da gestão democrática que se quer imprimir na educação básica brasileira.
Nesse caso, delegou à Lei de Diretrizes e Base da Educação e/ou a cada sistema de
ensino legislar sobre a organização e a institucionalização de mecanismos de
implementação da gestão escolar democrática nas instituições públicas de educação
básica.

Bibliografia

ADRIÃO, T. e CAMARGO, R. B. de. A gestão democrática na Constituição Federal de


1988. In: OLIVEIRA, R. P. de; ADRIÃO, T. (Orgs.). Gestão, financiamento e direito à
educação: análise da LDB e da Constituição Federal. São Paulo: Xamã 2001. p. 69-78.
BRASIL. Constituição Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 1988.

3
Bloco majoritário dos senadores e deputados reacionários ou conservadores que tentou barrar os
avanços democráticos reivindicados pelos setores mais progressistas da sociedade civil (CUNHA, 1991).
CARTA DE GOIÂNIA. In: GHIRALDELLI JR., P. História da educação. São Paulo:
Cortez, 1991.
COUTINHO, C. N. A democracia na batalha das idéias e nas lutas políticas do Brasil de
hoje. In: FÁVERO, O. e SEMERARO, G. (Orgs.). Democracia e construção do público
no pensamento educacional brasileiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

CUNHA, L. A.. Educação, Estado e democracia no Brasil. São Paulo: Cortez, RJ:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 1991.
DOURADO, L. F.. Plano Nacional de Educação: Avaliações e retomada do
protagonismo da sociedade civil organizada na luta pela educação. In: FERREIRA, N.
S. C. (Org.). Políticas públicas e gestão da educação. Brasília: Líber Livro Editora,
2006.
GOHN, M. da G.. Movimentos sociais e educação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

GONÇALVES, A. M.. Democratização da Educação: uma leitura das CBEs


(1980/1991). Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Goiás,
Faculdade de Educação, 1998.

MANIFESTO AOS PARTICIPANTES DA III CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE


EDUCAÇÃO. In: GHIRALDELLI JR., P. História da educação. São Paulo: Cortez,
1991.
SHIROMA, E. O. Política educacional. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

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