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As transformações dos lugares fortificados no limes arabicus no século VI: o caso de

Qsar Al-Haballat em perspectiva global

1. O limes arabicus como espaço


Para a investigação proposta, recorrerei ao conceito de espaço, pautando-me nas
reflexões do geógrafo brasileiro Milton Santos a esse respeito. O autor definiu o espaço
como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os dois
sistemas seriam unidos pelas técnicas, ou seja, pelos recursos instrumentais e sociais
empregados pelos homens em sua relação com o meio para realizar a sua vida. Os objetos
consistem em tudo o que existe na superfície da Terra, tanto o “natural” quanto o
“artificial”, que é utilizado pelo homem para fins técnicos. Ao ser socialmente produzido,
o espaço determinaria os objetos, pois os organiza segundo uma lógica, que concerne às
atividades técnicas. Por estarem dispostos de maneira contígua que os obriga a agirem em
conjunto, os objetos podem ser redefinidos pelo espaço para usos distintos das suas
vocações originais (SANTOS, 2017: 21-87).
Para Santos, seria equivocado desconsiderar as ações humanas na análise dos
objetos disponíveis no espaço. Afinal, são as ações resultantes de necessidades naturais
ou criadas que conduzem à criação e ao uso de objetos, dando-lhes sentido. Justamente
por essa razão há interferência contínua entre os sistemas de objetos e de ações. No
decorrer do tempo, há a formação de novos sistemas de objetos e de novos sistemas de
ação. Não necessariamente as coisas mudam de lugar no espaço, mas novos objetos são
inseridos ou os antigos mudam de função. Nesse sentido, a paisagem, na condição de
mera porção territorial em que é possível observar objetos concretos com a visão, não se
confunde com o espaço: esse é a síntese provisória entre as formas existentes na paisagem
e o conteúdo social que lhe é atribuído no sistema de ações (SANTOS, 2017: 89-110).
Analisar o limes arabicus em sua natureza espacial, portanto, significa relacionar
sua paisagem desértica entremeada por fortificações aos usos sociais dos objetos já
disponíveis ou criados no período em questão para a realização das tarefas técnicas então
necessárias. Se a função das fortalezas romanas se transformou no século VI, é porque os
homens agiam de outra maneira, requerendo desses objetos novos empregos para que suas
demandas fossem atendidas.

2. O limes arabicus no século VI


3. Qsar Al-Haballat: de fortaleza à mosteiro
Breve histórico anterior de Qsar al-Hallabat
Atualmente, o sítio de Qsar al-Haballat é contemplado por um projeto conjunto
entre a Jordânia e a Espanha, sob a direção do arqueólogo Ignacio Arce e custeado pela
Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo (AECID), dedicado à
sua investigação científica. Os esforços de escavação e análise dos vestígios, cujos
progressos Arce vêm expondo em seus artigos, proporcionaram dados esclarecedores
sobre as transformações arquiteturais do complexo e as mudanças do uso da fortificação.
De acordo com a investigação estratigráfica empreendida por Arce, a sequência
das atividades construtivas de al-Haballat pode ser dividida em quatro fases.1 A primeira,
correspondente à estrutura mais antiga, teria ocorrido entre os séculos II e III da Era
Comum, durante a dinastia dos Severos. Nesse momento, ergueu-se uma muralha de
alvenaria ao redor do perímetro, contando apenas com um pequeno corredor de entrada
como elemento permanente; posteriormente, acrescentou-se paredes divisórias internas.
Na segunda fase, novas edificações militares foram levadas a cabo. No decorrer
do período de Diocleciano, entre o final do século III e início do IV, construiu-se um novo
forte, que foi acrescido e incorporado ao primeiro. Nesse momento, a estrutura foi dotada
de um quadriburgium e torres nos vértices da muralha. Entretanto, um terremoto ocorrido
em 551 resultou na destruição dessas construções.
A terceira fase corresponde aos esforços de reconstrução do quadriburgium, que
aproveitou as estruturas da fortificação original remanescentes. Nas torres do sudoeste,
foram instaladas cruzes no intuito de angariar a proteção divina, aludindo ao contexto
cristão em que o projeto foi levado a cabo. O novo projeto continha características que
apontavam para uma diminuição do seu valor defensivo, como a instalação de janelas nas
torres que privilegiavam iluminação e ventilação ao invés de seu uso como base para
disparo de flechas. Instalou-se, ainda, cômodos com rica decoração voltada para recepção
de visitas.
Nessa mesma fase, ocorreram uma série de intervenções que incrementaram
seções que transformaram a fortificação num complexo monástico. Essa remodelação de
Qsar al-Haballat incluiu principalmente a construção de um segundo andar e um pórtico

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Exponho, a seguir, um panorama que sintetiza as intervenções ocorridas em al-Haballat, tendo como
referência os dados apresentados por Javier Arce. Para um quadro mais pormenorizado das transformações
a que a fortificação foi submetida, cf.: CITAR!
no lado sudoeste, além da instalação de uma bacia para vinho e mosaicos. Além disso, há
indícios que um dos cômodos mais antigos foi reformulado para servir de capela para o
mosteiro. Um relicário descoberto no recinto seria indicativo de que haveria um culto a
um mártir naquela capela.
A última etapa remontaria à segunda metade do século VI e ao período omíada.
Ainda durante a sexta centúria, quando a fortificação ainda estava sob controle bizantino,
foram incorporadas estruturas palacianas ricamente decoradas, com recintos sendo
redefinidos para audiências e recepções. O uso do lugar como praetorium ou palatium
estaria diretamente relacionado ao patrocínio de um mosteiro no complexo.
Eventualmente, Qsar al-Haballat foi saqueada pelos sassânidas e depois tomada pelos
omíadas, desencadeando a retirada dos motivos cristãos, na instalação de uma mesquista
na parte extra-muros, dentre outras intervenções.

4. Conclusões
5. Referências

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