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Anuario de Arqueología, Rosario (2016), 8:29-44 ISSN 1852-8554

REPRESENTAÇOES DAS GENITÁLIAS FEMININAS E MASCULINAS


NAS PINTURAS RUPESTRES NO PARQUE NACIONAL
SERRA DA CAPIVARA, PI, BRASIL

Michel Justamand1 y Pedro Paulo A. Funari2

Recibido 17 de octubre de 2015. Aceptado 2 de marzo de 2016.

Resumo
O Parque Nacional Serra da Capivara localiza-se no estado brasileiro do Piauí. Desde os
anos 70 do século passado se intensificaram as pesquisas no Parque, conduzidas por Niède
Guidon. Ainda hoje uma missão científica francesa atua na região, agora liderada por Eric
Boeda. As pinturas rupestres foram o deflagrador do investimento científico no local. Esse
fato permitiu ao Parque o reconhecimento nacional e internacional. Tornando-se patrimônio
universal da humanidade reconhecido pela UNESCO, desde 1991. Elas apresentam uma
infinidade de formas e cenas. Notam-se cenas de sexo, parto, andanças, lutas coletivas,
amamentação, animais e plantas das mais variadas. Nesses escritos destacamos as cenas
com antropomorfos, em posições sexuais (em duplas, grupais, homossexuais e zoofilia) ou de
excitação coletiva. Nessas aparecem as genitálias masculinas e femininas. As genitálias fe-
mininas foram caracterizadas na região, por um semicírculo embaixo das pernas. Já as mas-
culinas estão flagrantemente declaradas entre as pernas dos antropomorfos. Temos como
objetivo no processo de buscas pela temática rupestres das representações das genitálias,
apreender o que levava os artistas/comunicadores a pintarem essas cenas e não outras. Para
tanto, serão apresentadas uma seleção dessas cenas ao final do artigo.
Palavras chave: genitálias, pinturas rupestres, Piauí, Brasil.

Abstract
Serra da Capivara National Park is at Piaui, Brazil. Since the 1970s, there has been a growing
concern for archaeological research at the park, under the leadership of Niède Guidon. The
French mission is still there, now guided by Eric Boeda. Rock art has been at the root of scho-
larly attention paid to the area, being recognized as Brazilian and world heritage since 1991.
There are lots of subjects and styles, including representation of sex, competition, wandering,
as well as a variety of plant and animal images. In this paper, we pay attention to human
images, particularly in sexual intercourse (couples, group scenes, homosexual, with animals)
or collective sexual activity. There are explicit references to male and female genitalia. Female
genitalia are usually presented as a semi-circular sign, while the male genitalia are usually
phallic. We aim at exploring the reasons for the representations of genitalia, through a study
of a number of scenes.
Key words: genitalia, rock art, Piauí, Brazil.

1
Professor Adjunto, Curso de Antropologia, INC/BC, UFAM
2
Professor Titular, Departamento de História, IFCH, Universidad de Campinas (UNICAMP).
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Esclarecimentos aos leitores divisão das cenas em tradições (Nordeste,


Agreste e Geométrica, além das de Incisões
Nesse artigo temos a intenção de apre- Rupestres: chamadas de Itacoatiara) se fa-
sentar algumas cenas rupestres das geni- zia necessário, segundo os pesquisadores,
tálias de ambos os sexos, masculino e fe- para formular uma teoria para a classifi-
minino, dentro do Parque Nacional Serra cação das cenas rupestres naquele mo-
da Capivara e em sua circunvizinhança mento histórico, entre as décadas de 70
no estado brasileiro do Piauí. Nessa região até a de 90 do século passado, mas tam-
já foram catalogados mais de 1000 sítios bém ainda no inicio do século XXI.
arqueológicos (Justamand 2012). Sendo Por esses motivos elencados acima, as
que entre esses mais de 800 com pintu- pesquisadoras fundamentaram a cons-
ras e ou gravuras rupestres (Justamand trução das bases para as interpretações
2010). Seguindo as fontes dos laboratórios das tradições rupestres, subtradições e
da Fundação Museu do Homem Americano estilos. Mas atualmente esse modo de ana-
– FUMDHAM, dirigida por Niède Guidon. lise, ao menos, na região do parque, não
Pensamos que deve haver ainda uma tem sido, necessariamente usado por to-
infinidade de outros sítios rupestres, es- dos. O motivo do inicio desse desuso são
pecialmente os rupestres por se tratarem publicações que redimensionaram ou bus-
de fácil identificação, a serem cadastrados cam ver por outros prismas a classificação
e catalogados. Tendo em vista que foi as- por meios de tradições, subtradições ou
sim desde o inicio das pesquisas sistemá- algo que o valha. Assim, temos os escri-
ticas na região não cessão os encontros tos como os de Reinaldo Morales Junior
de novos sítios, fazendo crescer exponen- (Morales 2005). Mas o mais contundente,
cialmente o número de sítios. Esse é um a nosso ver, é o artigo de Guidon e Martin
fato que ocorre permanentemente. No caso (Guidon e Martin 2010). Ali as autoras re-
específico dos que tem cenas com as geni- formulam as suas opiniões, que já vinham
tálias humanas são mais de uma centena. se mantendo há mais de 40 anos, e expli-
Inclusive em muitos há mais de uma cena cam que são possíveis outras formas de se
com as demarcações genitais. interpretar os registros (as pinturas e as
No inicio das escavações metódicas rea- cenas) rupestres. Lembramos ainda para
lizadas pela Missão Francesa liderada por os leitores que Gabriela Martin em sua pa-
Niède Guidon (Guidon 1991), acompanha- lestra de abertura do X Simpósio Interna-
da de Gabriela Martin (Martin 1999), ain- cional de Arte Rupestre – X SIAR, em Tere-
da nos anos 70 do século passado, foram sina, capital do estado brasileiro do Piauí,
identificadas as tradições rupestres e se comentou sobre as novas formas de ver,
construíram suas classificações. As au- pensar e analisar a arte rupestre, que não
toras foram responsáveis pelas suas pri- somente como tradições estáticas, mas
meiras teorizações, com publicações de que elas se entrelaçaram com idas e vindas
artigos, livros e também pela formação de de saberes de outros grupos que por toda
inúmeros pesquisadores. Contaram com a região passaram (Martin e Anson 2014).
o reforço teórico posterior de Anne-Marie De qualquer forma os registros rupes-
Pessis (Pessis 1984), que publicou muito tres, em especial, as pinturas, apresentam
sobre a temática, tendo uma de suas obras datações, segundo as pesquisas locais,
(Pessis 2003) influenciado as pesquisas que podem ter até 26 mil (Lage 1998). De-
atuais. Nela a autora tratava, entre outros monstrando que a presença humana no
motivos rupestres, da questão das tra- local seria muito antiga. Mas ainda geram
dições rupestres. Para essas três autoras a muitas dúvidas essas datações e a própria
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presença humana tão antiga na América mente.


do Sul (Adovasio e Page 2011). Evidente- Gostaríamos de ter tido mais espaços
mente que podemos questionar o trabalho para apresentar outras imagens, como ta-
dos autores estadunidenses. Observar que belas, dados da região, como alguns ma-
apresentam questões político-ideológicas pas, que evidentemente ajudariam a ca-
para não considerar as datas mais anti- racterizar o lugar, mas preferimos adotar a
gas sul americanas, mas não era o intuito estratégia, devido à quantidade solicitada/
desse nosso artigo. Por motivo de descon- indicada pela formatação e editoração do
fiança sobre as datações preferimos nesses padrão da revista, de utilizar todas as pou-
escritos não nos aprofundarmos, nem nas cas imagens permitidas diretamente das
datas das cenas rupestres nem na pre- cenas com as genitais. Pensamos que des-
sença humana, especialmente, muito an- sa forma o leitor teria contato com o que é
tiga na região. mais significativo para o artigo. Desejáva-
Dessa forma, as pesquisas arqueoló- mos abordar e mostrar as cenas de geni-
gicas da região do parque quando tratam tálias que é um recorte possível dentro da
das datações não as apresentam especi- vasta gama de possíveis temáticas das pin-
ficamente para as cenas das genitálias e turas da região do parque.
ou outras. Não se tem um trabalho com
as datações para esse fim somente. E nós
não tivemos tempo de laboratório e nem fi- Introdução
nanciamento publico ou de outra natureza
para desenvolver esse trabalho. Hoje, é comum, entrarmos em contato
Nós acreditamos que as cenas de pintu- visual de genitálias, tanto femininas, quan-
ras com genitálias, como outras temáticas, to masculinas, por meio, por exemplo, dos
eram com intenções deliberadas e decla- meios de comunicação. Nem sempre são
radas. Não sabemos quais eram essas in- vistas de forma preconceituosa, mas há
tenções graças, evidentemente, a distância locais e culturas humanas que tratam de
sociocultural e temporal que nos separam, tentar esconder tais partes dos nossos cor-
mas pensamos que deveriam ter caráter pos para esse ou aquele membro do grupo
político-cultural, social e histórico. Isso e ou da sociedade em que estão inseridos.
por que graças aos trabalhos de campo e As genitálias aparecem representadas
as nossas observações no local, as demar- em imagens, em muitas cenas de nossos
cações apareciam somente onde os autores ancentrais. Aparecem em todos os conti-
tinham interesse em determinar o gênero nentes (África, América, Ásia, Europa e
do antropomorfo representado. Do total Oceania) e em diversos períodos históri-
de milhares dos antropomorfos plasmados cos. Não é segredo que elas são vistas e ou
nas rochas da região do parque poucos sugeridas em muitas representações ima-
contém as demarcações. Logo a maioria se géticas em muitas culturas humanas. Mas
encontra sem as marcações genitais. o que levava os antigos artistas a esculpi-
Lembramos ainda caros leitores que rem ou pintarem representações das geni-
muitos dos sítios arqueológicos da região tálias humanas? Não temos uma resposta
estão localizados fora da delimitação ofi- pronta e imediata para essa questão. Nós
cial do parque, uma parte de todos eles, apenas podemos imaginar e supor, mas
tanto os de dentro quanto os de fora, esta nunca saberemos os reais motivos. Ainda
sim catalogada, mas há ainda com certeza mais quando as representações têm mais
outros tantos a serem catalogados, conhe- de seis mil anos, algumas podendo chegar
cidos, reconhecidos e tratados cientifica- até a doze mil, como em alguns casos no
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Brasil. seus futuros seguidores, perpetuadores da


Neste artigo, mostraremos as genitálias teoria das pontas de lanças, tais  resquí-
humanas registradas nas rochas de São cios comprovariam a tese de que os pri-
Raimundo Nonato, no interior do estado meiros humanos teriam vindo somente
brasileiro do Piauí, assim como já demons- da Ásia em direção às Américas e eram os
tramos antes (Justamand 2010). Elas es- mais antigos habitantes do continente (Ne-
tão representadas e expostas em diversos ves y Humberg 1996). Tal proposição tem
sítios arqueológicos dentro do Parque Na- sido contestada por alguns estudiosos dos
cional Serra da Capivara – PARNA e em vestígios arqueológicos da Serra da Capi-
seu entorno. vara no Brasil, mas também de outros pelo
O PARNA foi constituído depois de uma continente, até mesmo por outros sinais
série intensa de pesquisas desenvolvidas humanos encontrados em muitos sítios
ali. Estudos feitos em diversas áreas do arqueológicos nos EUA (Neves y Humberg
conhecimento, especialmente da ciência 1996b).
arqueológica. Esses estudos foram, em O PARNA teve seu reconhecimento in-
grande medida, impulsionados pela missão ternacional pela UNESCO em 1991, graças
científica francesa, liderada pela arqueólo- aos achados ali encontrados serem de
ga Niède Guidon. Guidon foi responsável importância para toda a humanidade e
pela equipe que apresentou para o mundo também por muita luta de Guidon. Esse
acadêmico o Parque e seus vestígios ances- reconhecimento se deve, em especial, às
trais. Entre eles as gravuras e as pinturas gravuras e pinturas rupestres espalhadas
rupestres que contam o quotidiano dos por milhares de sítios arqueológicos. Qual-
grupos de mais de milhares de anos. quer que seja a antiguidade da ocupação
Os vestígios arqueológicos encontrados humana, o que mais importa é força das
no Parque e em seu entorno foram tam- imagens que mostram a riqueza cultural
bém responsáveis pela criação de uma das dos seres humanos que habitavam o con-
maiores polêmicas da Arqueologia. Graças tinente americano muito antes da chegada
aos achados ali encontrados foi possível dos colonizadores europeus.
imaginar que outras rotas de imigração Niède Guidon contribuiu com seus es-
para as Américas teriam sido possíveis critos para a construção de bases científi-
(Melo 2010). Dessa forma, contestava-se cas sobre as gravuras e as pinturas rupes-
o paradigma mais conhecido e reconheci- tres, e para outros achados, contou com
do sobre as origens da presença humana o apoio de diversos especialistas, desde
no continente. Esse paradigma era o mais os tempos da missão francesa para des-
aceito até aquele momento, entre as déca- vendar os registros rupestres. Entre esses
das de 70 a 90 do século passado, e era pesquisadores estão: Gabriela Martín e
conhecido por resquícios arqueológicos de Anne-Marie Pessis. Elas laboraram juntas
pontas de lanças nominados Clóvis. Mui- centenas de artigos em periódicos nacio-
tos desses vestígios encontrados nos Es- nais e internacionais, produziram também
tados Unidos da América – EUA ainda no livros, orientaram muitos pesquisadores
início do século XX. Para muitos pesquisa- do Brasil e de fora, contribuindo para a
dores de então, as pontas de Folsom, como construção dos saberes e do conhecimento
ficaram conhecidas as pontas de projéteis sobre as pinturas rupestres da região. Por
ali encontradas, atestavam a relação entre esses motivos, seus trabalhos são básicos
as populações siberianas e as primeiras da para as nossas reflexões nesse trabalho.
América, especialmente, dos EUA. Assim, As avaliações críticas (Morales, 2005) ape-
para esses pesquisadores e também para nas reforçam que, para além da saudável
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controvérsia acadêmica, sua pesquisa foi vestígios é a Revista FUMDHAMentos, edi-


seminal. tada pela FUMDHAM, tratando, especial-
Assim, algumas das obras de Guidon, mente, das questões relacionadas ao Par-
Pessis e Martin são basilares para muitas que em São Raimundo Nonato. Dentre as
reflexões sobre as pinturas rupestres. En- diversas edições da FUNDHAMentos, des-
tre elas estão: Peintures préhistoriques Du tacamos a primeira, publicada em 1996,
Brésil, de Niède Guidon (1991); Imagens da responsável pela polêmica arqueológica,
Pré-história, de Anne-Marie Pessis (2003); e citada acima. Mas ambos os espaços aca-
Pré-História do Nordeste, de Gabriela Mar- dêmicos têm sido utilizados para a publi-
tin (1997). Claro que elas produziram mui- cação das interpretações dadas às cenas
tas outras que também contribuíram para das gravuras e pinturas rupestres.
as discussões e debates sobre as pinturas Nas cenas rupestres verificadas nos sí-
e gravuras rupestres da região (Guidon y tios arqueológicos encontram-se diversas
Martin 2010). temáticas. Cenas que foram registradas
A partir dos trabalhos das autoras ci- pelos primeiros ocupantes da região. Há
tadas e de toda produção de uma geração ali temas do quotidiano, tais como: caça-
de pesquisadores, brasileiros e estrangei- das, andanças, lutas sociais, disputas te-
ros, foi possível construir um cabedal de rritoriais, enfrentamentos grupais, grupos
conhecimento que tem sido publicado de de animais (Justamand 2012a), grupos
forma constante e sistemática. Esses estu- humanos, sexo (Justamand 2014a), cole-
dos foram incentivados e levados adiante ta, danças (Justamand 2010), presença do
pela equipe francesa, liderada por Guidon. feminino (Justamand, 2014b) e do mascu-
O grupo levantou um enorme acervo de lino humano, representações da flora em
material de toda ordem (pinturas e gra- relação com humanos, entre outras (Mar-
vuras rupestres, ossos, líticos, cerâmicas, tin 1984).
entre outros) para a Arqueologia brasileira Dentre a infinidade dessas cenas, des-
e mundial. tacamos para as nossas reflexões, os sítios
Todo o material coletado foi analisado com pinturas em que aparecem genitá-
por especialistas de renome em suas áreas lias humanas. Algumas delas formando
e recebeu diversas interpretações ao lon- as representações dos falos (Justamand
go dos trabalhos da equipe (Martin 1984). y Furnari 2014) em conjunto com as vul-
A equipe está continua a atuar na região, vas. Mas há outras cenas em que apare-
mas sob a liderança de outro pesquisador, cem somente os falos. Em muitas cenas
Eric Boëda, pois Guidon aposentou-se, estão representados vários antropomorfos
embora continue à frente da luta pelo Par- formando grupos. A definição das repre-
que, seus vestígios e belezas naturais. sentações das vulvas foi apresentada por
O material ali coletado e suas interpre- Pessis em Imagens da pré-história (2003).
tações, frutos de intensas pesquisas rea- Ali a autora define e explica como foram
lizadas no Parque, desde os anos 70 do representadas as vulvas. Diz que os traços
século passado, como já salientado, vêm definidores das representações femininas
sendo divulgado em inúmeras revistas aparecem apenas nas cenas de sexo. E que
científicas. Entre elas a CLIO (tanto a série elas estão claras nas caracterizações dos
Arqueológica quanto a Histórica), editada antropomorfos com a exteriorização da ca-
pela Universidade Federal de Pernambuco vidade genital. A vulva apareceria apenas
(UFPE), que conta hoje com inúmeros vo- como um complemento do órgão genital
lumes. Outro espaço para a divulgação dos masculino. Teria apenas a função de re-
saberes encontrados no parque e em seus ceptor do falo (Pessis 2003).
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Esse artigo é resultante da conferência dada em disciplinas específicas. No âmbito


de um de nós no Primer Congresso Nacio- humanístico, a Arqueologia surgiu como a
nal de Arte Rupestre – CONAR, realizado busca pela materialidade dos antigos ro-
na Universidad Nacional de Rosario, entre manos e gregos, primeiro nas suas mani-
os dias 10 e 12 de setembro de 2014. A festações estéticas, e em seguida em tudo
apresentação fazia parte do Simposio 2 – que fosse material e pudesse ajudar a com-
A más de um siglo de investigaciones, re- preender melhor o mundo antigo.
visión crítica y nuevos enfoques teóricos No entanto, embora das paredes de
para El estudo del arte rupestre y mobiliar, Pompeia surgissem pinturas que represen-
coordenado pelas Professoras Doutoras tassem relações sexuais, assim como falos
Mabel Fernádez y María Teresa Boschín, e na arquitetura e nos objetos de uso diário,
foi proporcionada por Michel Justamand, e nas estátuas e nas lamparinas sobres-
no dia 12 de setembro, intitulada: Repre- saíssem aquilo que viria a ser chamado de
sentações das genitálias masculinas e fe- sexualidade, um manto diáfano encobria
mininas nas pinturas rupestres da Serra esse tema (Cavicchioli 2008). Os objetos
da Capivara (Piauí, Brasil). A exposição sexuais foram logo escondidos em com-
se transformou em artigo enviado para os partimentos fechados e suas descrições
ANAIS do evento e que se encontra no pre- encobertas pelo uso do latim para as pu-
lo, segundo informações da organização, blicações. As inúmeras inscrições tampou-
secretaria e edição do CONAR. co foram exploradas (Feitosa 2013). Isto
pode ser explicado de diversas maneiras,
a começar pela manutenção do termo ao
A arqueologia da sexualidade desejo, revestido, não mais apenas de pe-
cado, como de cientificidade. A busca dos
Antes de entrarmos no estudo de caso, prazeres era já não apenas sinal de ofensa
convém tratar, ainda que de forma breve, a Deus, mas, de forma ainda mais profun-
da epistemologia, de como a sexualidade da, de insanidade (Rago e Funari 2008). A
chegou a ser objeto da Arqueologia (Mar- Arqueologia, filha de seu tempo, originária
quetti e Funari 2013). A disciplina surgiu, do imperialismo, militarista e nacionalista,
a partir de meados do século XVIII e da des- não iria escapar dessa atitude, senão hos-
coberta de Pompeia, em 1748, em meio a til, ao menos pouco afeita ao tema sexual.
uma revolução epistemológica: o iluminis- Freud, colecionador de objetos sexuais
mo. Era todo um contexto de renovação do antigos, testemunha o fascínio que tanto
mundo, na forma da revolução industrial, a cultura material, como a cultura antiga,
do racionalismo e da ciência especializada com sua mitologia, exerciam nos intelec-
que iria constituir a moderna Universida- tuais que buscavam entender o comporta-
de. A indústria viria a aumentar a popu- mento humano à luz da ciência racional.
lação e a expectativa de vida, assim como Das narrativas antigas, surgia algo novo:
a riqueza da primeira potência industrial, o complexo de Édipo. O desejo passava ao
a Grã-Bretanha, e depois de outros países. âmbito da ordenação racional, científica,
Para essa revolução contribuiu, de forma normativa, passava a sintoma de patolo-
decisiva, o racionalismo e o empirismo ex- gias. Claro que, nestas circunstâncias, a
perimental, o que levou à transformação Arqueologia tardaria muito a debruçar-se,
da antiga universitas studiorum medieval, de forma mais consistente e menos pe-
baseada na teologia e no conhecimento jorativa, sobre o tema. Isto resultou das
universal, de onde vem o nome dessa insti- transformações sociais, em particular a
tuição, para a moderna universidade fun- partir da segunda metade do século XX.
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Os movimentos libertários de mulheres, máticas rupestres têm sua origem ainda


trabalhadores, negros, grupos religio- na graduação em História, realizada entre
sos e étnicos, entrou outros, assim como 1995 e 1999, na Pontifícia Universidade
as transformações tecnológicas, levaram Católica de São Paulo, PUC – SP de um
a uma crescente liberação de costumes, dos autores (Justamand). Essas buscas
como bem atestado na década de 1960 se estendem no mestrado na mesma insti-
com a pílula contraceptiva e com os movi- tuição da graduação. Mas é no doutorado
mentos hippies. e no pós-doutorado, sob a supervisão do
A Arqueologia passaria a tratar das evi- segundo autor (Funari), que a temática das
dências sexuais com menos preconceito e representações das genitálias nas pinturas
mais abertura, tanto referentes à antigui- rupestres ganha mais força devido aos tra-
dade greco-romana, quanto à pré-história. balhos de campo revelarem muitas cenas e
As instituições mais venerandas, como o seus vestígios sobre esse tema em especial.
Museu Britânico, iriam publicar obras so- Por tal motivo descrevemos abaixo os per-
bre o tema, sem pudor ou restrições, em cursos acadêmicos que por que passamos
particular a partir do último quartel do sé- durante os dois momentos e que impulsio-
culo XX. Mas, qual a mudança epistemoló- naram as pesquisas.
gica que permitiu adentrar por essa temá- No período de 2003 a 2007, durante o
tica? Foram ao menos três. Em primeiro doutoramento de Justamand, em Antropo-
lugar, está a constatação que o conheci- logia, a pesquisa abriu caminho para a ob-
mento arqueológico, como qualquer outro, servação de que, além de comunicar seus
está inserido em sua época e é tributário intentos, os grupos usuários das pinturas
dos interesses contemporâneos. Num rupestres diversificaram suas temáticas e
mundo preocupado e até mesmo saturado tinham ali plasmados diversos assuntos
de curiosidade pela sexualidade, a discipli- relacionados com o quotidiano de nossos
na não poderia escapar de se ocupar disso ancestrais. Algumas delas foram apresen-
também. Em seguida, a sexualidade cons- tadas na tese e receberam, em conjunto,
titui uma maneira de inserir a disciplina o nome de Gestuais Rupestres. Neles são
nas discussões contemporâneas e, como vistas as diversas formas de caçadas, a
isso, mostrar sua relevância. Mas, em não musicalidade, as lutas sociais, os partos,
menor medida, foi constatação que as evi- a sexualidade, as andanças, as brincadei-
dências materiais, mais do que concordar, ras, as danças, a violência, a religiosidade.
ilustrar ou complementar as informações Notam-se, também, as relações entre hu-
literárias ou orais (contra Meneses 1983), manos e animais e a presença das mulhe-
podiam servir para fornecer argumentos res em muitas cenas.
novos e mesmo contraditórios em relação As cenas das pinturas rupestres rela-
às narrativas conscientes e direcionadas cionam-se com os interesses múltiplos dos
das fontes escritas ou orais (Funari 2006). grupos usuários desejosos de comunicar,
Como veremos neste artigo, isto fica muito ensinar e transmitir conhecimentos e sa-
claro no estudo das pinturas parietais an- beres acumulados ao longo do tempo para
tiquíssimas da Serra da Capivara. as gerações futuras. A tese, defendida em
outubro de 2007, no Programa de Pós-Gra-
duação de Ciências Sociais da PUC-SP teve
O que motivou a busca pela temática o nome de O Brasil desconhecido: as pin-
das genitálias? turas rupestres de São Raimundo Nonato –
Piauí e transformou-se em livro em 2010
As nossas buscas por pesquisar as te- (Justamand 2010).
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No ínterim, dos trabalhos de campo e pontos que já nos acompanham desde a


de escrita do doutorado foram produzidas graduação. Foi realizado também na PUC/
outras publicações em artigose em livros. SP, onde havíamos feito a graduação, o
Assim, surgiram As pinturas rupestres na mestrado e o doutorado.
História e na Antropologia: uma breve con- Esse trabalho foi, no fundo, um re-
tribuição, de 2005, publicado pela Mar- torno ao nascedouro da nossa formação
gê (Justamand 2005), onde mostramos a acadêmica. Desenvolveu-se no Programa
importância das pinturas rupestres para de Pós-Graduação em História, foi inicia-
ambas as áreas, História e Antropologia, do em 2011 e concluído no ano seguinte.
do conhecimento humano. Já no trabalho O título foi: As mulheres nas pinturas ru-
intitulado As relações sociais nas pinturas pestres de São Raimundo Nonato – Piauí,
rupestres (Justamand 2007a), buscamos publicado em forma de capítulo de livro,
revelar e desvelar as relações sociais exis- com os dados preliminares, com o título de
tentes nas cenas rupestres que apareciam As “mulheres” de São Raimundo Nonato,
entre as temáticas dos Gestuais Rupes- cenas rupestres do feminino (Justamand
tres, principal capítulo da tese. 2012b). Foi uma das ações desenvolvidas
Outra obra que publicamos foi As pin- no período de estágio pós-doutoral, quan-
turas rupestres na cultura: uma integração do ocorreram também participações em
fundamental (Justamand 2006), onde eventos, orientações de mestrado e/ou
procuramos abordar as relações existen- participações em bancas de qualificação e
tes nas pinturas como formas culturais e de defesa de pós-graduações, entre outras
fundamentais para os grupos ancestrais. ações. Orientamos duas dissertações de
E mais uma publicação que lançamos du- mestrado na UNAL – Universidade Nacio-
rante a realização do doutorado foi Pintu- nal da Colômbia graças a sermos colabora-
ras rupestres do Brasil: uma pequena con- dores no Programa de Pós-Graduação em
tribuição, em 2007 (Justamand 2007b), Estudos Amazônicos, naquele momento
ano da defesa da tese. Nela, demonstramos entre 2010 e 2012, na sede de Letícia da
que as pinturas contribuem como arte e instituição colombiana.
comunicação dos intentos daqueles gru- As reflexões e as interpretações das ce-
pos ancestrais para a História Antiga do nas rupestres do feminino foram apresen-
Brasil. tadas em livro no ano de 2014 (Justamand
Dessa obra, nasceu ainda o capítulo 2014b). Demonstramos, nesses escritos,
do livro Olhares sobre a História do Brasil, que as mulheres, como mostram as cenas,
intitulado As pinturas rupestres no Brasil: participavam muito mais efetivamente da
uma discussão atual (Justamand 2008). vida e das tomadas de decisões dentro dos
Nesse capítulo, abordamos a importância grupos do que se pode imaginar (ver Wra-
das pinturas rupestres para se entender hgham 2010). Elas eram as responsáveis
melhor a história mais antiga de nosso por garantir a alimentação mais importan-
país. O que permitiu tal entendimento foi te para o grupo, por meio da coleta de fru-
o fato de trazerem, em si, uma parte das tas, verduras (Reed 1980). Talvez a caça/
histórias dos antigos habitantes do espaço domesticação de pequenos animais tam-
hoje conhecido como Brasil (Furnari 2001). bém fossem atribuições das mulheres da
Já o pós-doutorado teve como mote a época (Sahlins 1978). Esse trabalho foi um
presença das mulheres nas cenas rupes- dos desdobramentos da tese, que já trata-
tres, temática apontada, entre outras, no va das mulheres.
principal capítulo da tese de doutorado.
O trabalho teve a intenção de aprofundar
Justamand M. y Funari P. P. - “Representaçoes das genitálias femininas e masculinas...” 37

Objetivo, metodologia, laboratório e apresentadas ao final desses


hipóteses e justificativa escritos.
As cenas rupestres, em suas tomadas
Parece-nos que as genitálias apresenta- gerais e ou em seus recortes, com repre-
das pelos artistas ancestrais tinham moti- sentações genitais compõem um quadro
vos de interesse dos grupos usuários das a partir do qual é possível realizar as in-
cenas para aparecerem. Ou seja, elas não terpretações e análises. A nossa hipótese
apareciam em qualquer cena. Nosso objeti- é que houve uma seleção intencional dos
vo seria entender o porquê dessa ação deli- grupos, com seus autores e pintores, dos
berada dos artistas, de pintarem num local paredões mais adequados para sua cultu-
e em outros muito similares não o fazerem. ra, para pintarem suas cenas diversas e,
Pensamos isso porque em inúmeras cenas em especial, as genitálias. E nos nossos
de caça, por exemplo, não se notam nem trabalhos de campo buscamos recuperar
os falos nem as vulvas. Há outras cenas do entre os sítios arqueológicos dados neces-
quotidiano registradas pelos artistas onde sários para asseverar essa nossa hipótese.
também não se veem nem uma nem outra Supomos que pintavam as genitálias onde
demarcação da sexualidade ou de gêne- julgavam ser mais importantes, neces-
ro nos antropomorfos, mas não é sempre sários e significativos para si e para os que
dessa maneira, conforme será demonstra- participavam daquelas sociedades.
do mais adiante. Talvez fosse porque os Imaginamos essa hipótese pelo fato de
artesãos rupestres apenas distinguissem haver na região milhares de locais não pin-
os registros com as genitálias naqueles tados, mesmo tendo muitas semelhanças
que lhes interessassem e/ou que tivessem com aqueles que foram usados para a pro-
mais necessidades desse detalhamento dução, realização e confecção das pinturas.
naquela determinada cena. Um segundo motivo que nos leva a essa hi-
Já para a metodologia incluiu buscar, pótese é que nos sítios arqueológicos onde
encontrar e visitar o maior número de sí- se encontram pinturas que formam cenas
tios, entre os que já estão cadastrados na das mais variadas temáticas, as com as
FUMDHAM, tanto dentro do Parque, quan- genitálias poucas vezes aparecem. Mesmo
to os que fazem parte de sua circunvizin- em cenas muito recorrentemente expres-
hança, desde que tivessem cenas de repre- sas por antropomorfos masculinos, os fa-
sentações das genitais humanas. O intuito los ou as vulvas não aparecem, como é o
era localizar esses sítios rupestres com o caso das cenas de caça, relacionadas, em
apoio logístico de guias experientes e vin- geral, com afazeres masculinos ou as de
culados às associações locais de guias de coleta, em particular, indicada por muitos
São Raimundo Nonato. Alguns deles já ha- pesquisadores, como sendo um afazer atri-
viam feito trabalhos anteriores de pesquisa buído ao gênero feminino. Dessa forma, as
conosco. cenas com falos ou vulvas poderiam com-
Relaciona-se ainda a parte da metodo- por um sistema conhecido, reconhecido e
logia, escolher os sítios, fotografar, de di- respeitado entre os grupos. Elas eram um
ferentes posições, as cenas rupestres com código de conduta do período (Arrizabala-
as representações em variadas tomadas. ga 2005), pois indicavam onde era preciso
E também comporta, parece-nos, a parte aparecer genitálias (os falos e as vulvas) e
metodológica das pesquisas que fizemos a onde eram desnecessários.
dinâmica dos “recortes” das cenas nas fo- Assim, a pesquisa, sua análise e publi-
tos, buscando os detalhes de onde estão as cação dos resultados justificam-se, a nosso
genitálias, para as posteriores análises de ver, porque o número de sítios arqueológi-
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cos rupestres na região do Parque Nacio- madas em quatro formações rochosas de


nal Serra da Capivara, está em constante grande envergadura, conhecidas como se-
aumento. Esses novos sítios, como o sítio rras: a vermelha, a talhada, a branca e a
das Andorinhas, encontrado em 2013, não da capivara. As pinturas costumavam ser
ainda catalogado pela FUMDHAM, aguar- feitas nos baixões e ou boqueirões, bem
dam ser pesquisados, analisados e ganhar próximo do solo por onde se anda sem
novas reflexões, como as que apresenta- nenhuma dificuldade e ou ladeira, e nas
mos agora em seguida. Essas reflexões encostadas, com certo grau de dificulda-
poderão ser feitas em relação não somente de para a realização das produções, mas
aos novos, mas também em conjunto com também encontramos pinturas nas partes
os outros sítios já conhecidos. Alguns são mais altas das serras. Esses últimos são
importantes para a História do Brasil e da locais onde o grau de dificuldade de acesso
Humanidade, como o Boqueirão da Pedra é muito maior. O contexto que possibili-
Furada – BPF, sítio responsável pela polê- tou as pinturas é de espaços abertos, com
mica causada sobre a chegada dos primei- muita ventilação. Os sítios rupestres aqui
ros americanos. apresentados têm facilidade de acesso e
Buscamos com esta publicação pro- amplos espaços para as pinturas. Ali se
porcionar o conhecimento e o reconheci- inscreveram outros episódios do quotidia-
mento desses sítios novos e suas possíveis no da época. As cenas com a presença das
relações com os outros. Acreditamos que genitálias não costuma aparecer sozinha,
essa ação tenha razões pedagógicas, so- ou seja, em todos os sítios com esses tipos
ciais e culturais por desvelar uma História de pinturas há a comparecimento de ou-
mais antiga, muito antes de 1500, ainda tras cenas em conjunto.
desconhecida, do Brasil e, porque não, da No sítio mais famoso do Parque, o Bo-
América para o mundo. queirão da Pedra Furada – BPF há uma
cena onde os antropomorfos aparecem de
mãos dadas com seus falos eretos (Figu-
Uma breve apresentação das cenas ra 2). Imaginamos que ali também se de-
rupestres pintadas monstra a alegria, talvez porque tivessem
tempo suficiente para as realizações ar-
Imaginamos que nas cenas pintadas de tísticas (Boas 1996) e diversões, dos inte-
rituais, como é o caso da feita no sítio Toca grantes dos grupos.
da Passagem, em que aparecem as vulvas Na próxima figura plasmada nas ro-
e os falos foram necessários demonstrar chas do sítio Toca do Baixão da Vaca no-
a presença dos dois órgãos genitais para, tamos uma das cenas de representação da
quem sabe, demarcar os gêneros (Figura penetração (Figura 3). É possível ver que o
1). Diferentemente do que propõe Pessis falo esta em posição de penetração e a vul-
(2003), acreditamos, depois de muitas pes- va, em forma de semicírculo, pronta para
quisas de campo e análises laboratoriais, receber a ação sexual.
que os artistas registraram também as A próxima cena de penetração esta re-
vulvas em cenas que não eram as de sexo lacionada com animais (Figura 4). Nela,
apenas. Como aparece na figura abaixo na notam-se representações de dois antro-
cena de um ritual ancestral. pomorfos com falos e um animal. Um dos
As localizações das cenas interpreta- antropomorfos tem uma de suas mãos no
das a seguir são dos sítios arqueológicos falo do outro e o seu falo em direção à par-
do Parque Nacional da Serra da Capivara. te posterior de um animal de quatro pa-
Dentro do Parque as pinturas estão plas- tas. Parece-nos que não era fora do comum
Justamand M. y Funari P. P. - “Representaçoes das genitálias femininas e masculinas...” 39

Figura 1. Cena do ritual: Toca da Passagem

Figura 2. Cena das mãos dadas e falos eretos: Boqueirão da Pedra Furada
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Figura 3. Cena de penetração: Toca do Baixão da Vaca

esse tipo de acontecimento, um animal lo. Nota-se, ainda, a presença de dois an-
participar das ações e nem de termos um tropomorfos a serem penetrados, mas sem
antropomorfo com falo relacionado com a demarcação das vulvas. Dessa forma não
outro também com falo. sabemos se são do gênero feminino ou não.
Reservamos para a última apresen- E ainda se nota a presença de zoomorfos e
tação a cena da penetração grupal (Figura outros antropomorfos a observar a cena.
5). Nessa cena aparece mais de um antro-
pomorfo com falo. No sítio Baixão do Perna
IV há essa especificidade que também atrai Considerações finais
a nossa atenção. Ali nota-se a presença de
cinco antropomorfos com falos prontos Ao longo do artigo procuramos apre-
para a penetração ou em posição de fazê- sentar algumas cenas rupestres de um
Justamand M. y Funari P. P. - “Representaçoes das genitálias femininas e masculinas...” 41

Figura 4. Cena da penetração animal/humana: Toca do Caldeirão dos Rodrigues

Figura 5. Cena do sexo grupal: Toca Baixão do Perna IV


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universo pouco conhecido das pinturas de de campo, no qual visitamos centenas de


São Raimundo Nonato, Piauí, Brasil. Mes- sítios arqueológicos, e nossas análises la-
mo após alguns trabalhos de campo visan- boratoriais, acreditamos que os grupos
do e visitando sítios arqueológicos com o usuários e seus artistas pintavam nas ro-
intuito de registrar as cenas rupestres com chas as genitálias quando lhes era inte-
genitálias, temos a certeza de que o trabal- ressante, necessário e importante, como
ho não se esgota. Porque ainda há muitos lembra Eiszler (1996), para marcar a iden-
sítios a serem conhecidos e outros tantos tidade de gênero nos registros.
reconhecidos na região. Isso porque novos O presente trabalho pretendeu mostrar
sítios são encontrados, frequentemente, que os artistas rupestres apresentavam
na região do Parque. para seus pares algumas cenas de pene-
Não nos preocupamos, neste artigo, em trações menos representadas alhures, pois
abordar uma determinada tradição rupes- não deixaram de mostrar a possibilidade
tre, estilo e ou subtradição, em especial, da diversidade de comportamento sexual
como são conhecidas as pinturas e gravu- que pode ter existido, nos seus modos de
ras rupestres, feitas por especialistas na ver, dentro da sociedade em que viviam.
região. Na região do Parque Nacional Se- Ou seja, eles pintaram cenas de relações
rra da Capivara apresentam-se, segundo sexuais de pessoas do mesmo sexo e ainda
especialistas, três grandes tradições que outras com animais.
englobam algumas subtradições e seus es- Esperamos por fim que esses escritos
tilos. Preocupamo-nos, sim, em apresentar possam de alguma forma contribuir com
as pinturas que contivessem o tema que os debates sobre as diversidades sexuais
queríamos abordar, ou seja, a das repre- e sociais, mostrando que desde muito an-
sentações das genitálias nas rochas. tes de 1500 outras formas de ver, pensar e
Procuramos, ainda, mostrar que as re- agir são possíveis entre os seres humanos.
presentações das genitálias, tanto as mas- Nós, de fato, não vivemos num mundo de
culinas quanto as femininas, estão plas- pensamento único, nem hoje e nem ontem!
madas nas rochas em diferentes situações
do cotidiano rupestre. As cenas com geni-
tálias aparecem em cenas da sexualida- Agradecimentos
de entre humanos, como afirmou Pessis
(2003), em duplas, trios e/ou grupais, mas Agradecemos pela realização dos tra-
também em rituais sociais, talvez, em fes- balhos de campo e de seus estudos, aná-
tas, cerimoniais, sem que saibamos seu lises, reflexões e publicações as seguintes
significado e motivações exatos, às vezes, pessoas: o guia que nos conduziu pelo
em cenas da sexualidade com animais. Parque Nacional Serra da Capivara, o Sr.
Há algumas cenas de antropomorfos com Mário Filho; e a presidente da FUMDHAM,
suas indumentárias sugerindo identidade Niède Guidon, pela possibilidade de entra-
social, como roupas e cocares, e com seus da no Parque; à supervisão no pós-douto-
falos à mostra. Pensamos que apresentar rado da Professora Dra. Yvone Dias Ave-
as genitálias nesses contextos servia para lino, realizado na PUC/SP, entre 2011 e
demonstrar a importância de determina- 2012. Agradecemos, ainda, a Marina Ré-
dos atos e a necessidade da presença das gis Cavicchioli, Lourdes Feitosa e Marga-
genitálias seria para indicar o gênero do reth Rago. Mencionamos, ainda, o apoio
humano que deveria estar ali realizando institucional do CNPq, FAPESP, Unicamp
essa ou aquela tarefa cotidiana. e UFAM. A responsabilidade pelas ideias
Assim, baseados em nossos trabalhos restringe-se aos autores.
Justamand M. y Funari P. P. - “Representaçoes das genitálias femininas e masculinas...” 43

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