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REFLEXÕES ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO

CIENTÍFICO

Beatriz Rosa do Carmo Silva1


(UEM)

INTRODUÇÃO

O processo de surgimento do pensamento cientifico envolveu toda uma trama social,


embora historiografia tenda a mostrar o processo como uma ruptura entre dois grupos agentes,
a Igreja Católica e os cientistas, de uma forma em que um se opunha a outra. No entanto, ao
analisarmos este momento mais cautelosamente é possível notar que, na verdade, esses agentes
não eram os únicos no processo, e menos ainda estavam em oposição, pelo menos até o século
XIX.

Neste sentido, ao analisarmos o Renascimento pelo olhar dos autores aqui trabalhados
pelo viés da micro história, constatamos que na verdade o chamado processo de ruptura se
apresenta como um processo sincrônico, a medida em que o surgimento do pensamento
cientifico se iniciou antes mesmo do surgimento da Igreja Católica, tendo futuramente se
desenvolvido dentro do viés teológico. Desta forma, neste trabalho pretendo demostrar como
este processo foi abordado a partir de três matrizes diferentes que comprovam a proposta do
surgimento do pensamento cientifico enquanto processo, e não de uma ruptura na forma de
pensar.

A primeira seria a apresentada por Arkan Simaam em “A imagem do mundo: dos


babilônios a Newton” onde o autor apresenta, numa perspectiva de longa duração da história,
como o pensamento cientifico costumava ser analisado em separado da realidade histórica e
visão de mundo dos indivíduos, revelando a fragilidade deste tipo de análise ao demonstrar
como em várias regiões do mundo pensamento e pratica cientifica esteve atrelada ao
pensamento místico ou religioso.

Em um segundo momento, iremos observar este processo a partir do olhar de Klass


Woortmann que em seu trabalho intitulado “Religião e ciência no Renascimento” discute como

1
Possui Graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (2017) e atualmente cursa mestrado na
mesma instituição, dentro da linha de pesquisa intitulada História, Cultura e Narrativas oferecida pelo programa
de Pós-graduação em História da Universidade.
o desenvolvimento do pensamento cientifico se deu dentro do campo teológico, e com o intuito
de afirmar a religiosidade cristã confirmando as Sagradas Escrituras. Por fim, tendo visto e
constatado como o pensamento cientifico se desenvolveu sem que questionasse os preceitos
cristãos, ao menos inicialmente, veremos como se deu o início do processo de rompimento entre
esses dois agentes por meio das cartas escritas por Galileu Galilei no livro “Ciência e fé: cartas
de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Bíblia”.

CIÊNCIA E FÉ: UM PROCESSO DE AMBIGUIDADES

Arkan Simaan inicia sua obra fazendo uma observação muito pertinente no que se refere
ao trabalho do historiador ao defender que o mundo cientifico, assim como os cientistas não
estavam fora de sua realidade, que durante o Renascimento, era regida por uma moral religiosa,
que influenciava o comportamento dos segmentos mais populares até os mais altos da
sociedade. Isto posto, analisar o surgimento do pensamento cientifico a parte destas influências
seria ocultar grande parte do contexto histórico, levando a análises simplificadoras, incompletas
e até mesmo enganosas do que foi este processo.

Considerando que o produto dos indivíduos é reflexo da imagem que estes fazem do
mundo e que esta é inevitavelmente influenciada pelo meio onde vivem, Simaan busca retraçar
o caminho do desenvolvimento da imagem do mundo na civilização Ocidental, a partir de uma
abordagem que considere a mentalidade de cada época e, assim, esboçar um panorama de
representações de mundo ao longo da história.

Embora Simaan ainda alerte que para o olhar de um historiador seu esquema possa
parecer demasiado simplista, devemos considerar a importância dele para uma renovação da
análise histórica. Ainda que simples, a partir do momento em que Simaan considera em sua
análise a mentalidade de cada período como influenciador direto nas ações dos indivíduos, tem
o efeito de demostrara que somos frutos de nosso tempo, desmontando a visão teleológica que
se construiu acerca das práticas cientificas. Na modernidade se tornou comum compreender
ciência enquanto separada da religião e esta concepção foi transportada para a o passado quando
se tentou determinar o nascimento do pensamento cientifico.

Todavia, Simaan nos mostra como antes mesmo do cristianismo ser difundido, ciência
e misticismo estiveram juntos, e ainda que o cristianismo o tenha negado futuramente, não foi
uma total rejeição. O autor coloca que a partir da Revolução Neolítica (aproximadamente 10
mil anos) surgiu a necessidade de se orientar no tempo e espaço, sobretudo para reger a
agricultura e viagens, mas não apenas isto, este novo tipo de calendário também era utilizado
para prever as festas religiosas.

Como era de se esperar, as observações do céu se multiplicam, e como o Simaan nos


mostra, estas se tornaram cada vez mais precisas, sobretudo no Crescente Fértil, onde os
fenômenos naturais passaram a ser personificados em forma de deuses. Isto demonstra mais
uma vez, que ao passo em que as ciências da natureza se desenvolviam elas passavam a ser
associadas ao misticismo ou religiosidade daquele povo, como forma de uma complementar a
outra, e não em forma de oposição. A medida em que se desenvolvia a astrologia esta era
utilizada para prever ou explicar eventos místico,

“Assim, foi em parte com vistas a operações relacionadas a magia que


os babilônios fizeram progredir o conhecimento. Eles souberam estabelecer a
regularidade de alguns fenômenos naturais e expressá-las numa forma
aritmética elaborada de forma a prever seu retorno periódico. ” (2003, p. 20).

É neste contexto de religiosidade e misticismo que se desenvolve o cristianismo. De


acordo com Simaan, conforme o cristianismo começou a se organizar enquanto doutrina e
posteriormente como instância de poder por volta do século IV e V, foi necessária uma
unificação das crenças e escrituras num processo que excluiu tudo aquilo que se considerava
herético. Ainda assim, neste ponto retornamos a questão de se pensar o objeto no seu contexto
de ação, pois, embora a Igreja continuasse a padronização, esta estava inserida numa realidade
onde a cultura pagã era ainda muito presente, e isso se consolidava nas escolas, frequentadas
por todos, inclusive cristãos, e tinha origem helenística.

As análises de Simaan para este trabalham são de grande valor, a medida em que mostra
que mesmo no surgimento do cristianismo, que foi colocado como grande opositor ao
pensamento cientifico, não havia distinções claras entre um e outro. Isto por que desde antes de
sua consolidação o conhecimento cientifico e místico estavam mesclados, e quando o
cristianismo se tornou instancia de poder, não pode fazer uma separação total entre eles e o
paganismo pois este último era ainda uma realidade muito presente naquele contexto, assim
como o cristianismo viria a se tornar futuramente.

Klass Woortmann em sua obra ’Religião e ciência no Renascimento” também nos traz
discussões historiográficas muito interessantes a serem debatidas. Sua temporalidade está
situada sobretudo entre os séculos XV e XVI, período que se chamou de Renascimento no
Ocidente. A discussão proposta pelo autor tenta demonstrar que embora o Renascimento não
tenha significado uma ruptura, foi um período muito rico onde é possível constatar o início da
transformação tanto de pensamento quanto de estrutura social. De acordo com o autor, dois
eventos ocorridos neste período foram determinantes nestas transformações: a redefinição
copernicana do sistema planetário e a descoberta do Novo Mundo por Colombo.

Em sua análise, Woortmann pretende entender o Renascimento de acordo com os


significados que este período produziu, e não nas consequências que dele resultaram, vendo
este período como um contexto de ideias, um contexto cultural, onde ciência e religião são
interlocutores mútuos. Assim como Simaan, Woortmann vai contra a corrente que vê ciência e
fé como opostas, mas, ao menos neste período, as coloca como dois agentes que estão em um
processo de transformação, a Igreja pela ciência, e o pensamento cientifico pela Igreja.

Com o advento do humanismo a partir do século XV o Ocidente se tornou mais aberto


as transformações culturais e cosmológicas. Até este momento se praticava um saber
harmônico, que buscava explicações metafisicas para os saberes sagrados, e como a maior parte
dos sábios eram parte do Clero, não existiam grandes problemas com relação a existência desses
saberes. Na passagem do século XV para o XVI, já despontava a contradição entre ciência
subordinada, ou englobada num discurso teológico, e a necessidade da crítica como condição
do avanço do conhecimento. Mais adiante se colocaria a disputa entre verdade revelada pela fé,
e o experimentalismo.

De acordo com Woortmann, embora este humanismo não tenha sido suficiente para
romper com as antigas tradições eclesiástica a muitos séculos enraizados na cultura Ocidental,
teve um papel de grande valor na gênese do pensamento cientifico, pois foi responsável por
afrouxar o controle da Igreja sobre o saber cientifico, e por vezes até um estimulo, a medida em
que estava por comprovar as escrituras.

A partir de Woortmann percebemos que durante o Renascimento os pensamentos


científicos e religiosos estavam caminhando lada a lado, a medida em que o conhecimento
especulativo não se sobrepunha a verdade das Sagradas Escrituras. O humanismo levou a um
ambiente rígido como as escolas eclesiásticas uma flexibilidade, que fez com que muitos
cientistas neste período ficassem sob proteção de alguns membros do Clero, possibilitando estar
imunes a certas punições. Ainda assim, aqueles que se arriscavam a usar de seu saber contra as
Escrituras Sagradas no lugar de confirmá-las estava sujeito a punições como a morte.
O primeiro grande marco renovador que Woortmann aponta em seu trabalho se refere
as concepções cosmológicas de Copérnico e sua contribuição ao elaborar uma redução
matemática da geometria complexa de Ptolomeu, tonando seu modelo mais simples e
harmonioso. Embora seu trabalho tenha sido inovador, não era inédito, pois se baseava nos
trabalhos de Ptolomeu, assim, sendo caracterizado mais como um “sincretismo” que
caracterizou o Renascimento. A grande importância de seu trabalho se dá pelo fato de que ele
foi o precursor para teorias mais revolucionarias como as de Galileu e Newton.

Foi num contexto onde o modelo hierárquico ainda prevalecia, mas que ainda se
preservava a tolerância do humanismo que as concepções de Copérnico florescem. De início
Copérnico foi encorajado pelo alto clero católico, mas isso mudou logo que ficou claro que sua
obra não se destinava apenas aos matemáticos, demonstrando o peso de sua teoria contra o
geocentrismo e antropocentrismo. Copérnico estaria reivindicando para a ciência o direito de
buscar a verdade autonomamente, dizendo que apenas os matemáticos poderiam julgar sua
obra, e que para ser um bom astrônomo não bastava ser um bom cristão.

Como nos mostra Woortmann, Copérnico não foi tão revolucionário quanto hipóteses
propostas antes dele, mas sua grande contribuição residia numa nova teoria muito baseada nos
dados de Ptolomeu, mais do em novas observações. A revolução copernicana não está no
aperfeiçoamento dos métodos astronômicos, e sim no estabelecimento de uma nova
cosmologia, numa nova visão de mundo.

Sendo assim, vemos que o sistema de Copérnico não tinha apenas implicações
astronômicas, mas também sociológicas, já que nega a ideia de lugar natural. Do ponto de vista
antropológico seu pensamento foi revolucionário, uma vez que tira o homem do centro do
mundo, alterando não somente o significado do mundo como do homem também. Disfarçadas
de hipóteses, as ideias de Copérnico continham implicitamente uma revolução teológica.

Colombo na obra de Wootmann também é sinônimo de mudanças. No seu caso por um


motivo inédito, pois ao descobrir o Novo Mundo Colombo não encontrou aquilo que se pregava
nas escrituras, como os antípodas, colocando a Igreja numa situação de preocupação, o que a
fez buscar na ciência ajuda para justificar o que a comprovação empírica de Colombo contestou.

Explicar a presença dos ameríndios foi um grande problema para as Escrituras. Os


escritos estavam cheios de desenhos míticos acerca destes povos, mas estes foram considerados
humanos, por sua potencial capacidade de se tornarem cristãos. Coube a ciência explicar como
estes povos teriam chegado até lá, para que assim, o saber empírico entrasse novamente de
acordo com as Sagradas Escrituras.

Com a ciência do Renascimento há uma profunda transformação epistemológica e a


relação do objeto com seu lugar se torna diferente. Sugere uma nova concepção de espaço. A
revolução geográfica do Renascimento estava intimamente ligada a uma outra revolução, que
também marca uma ruptura com o mundo medieval, o mercantilismo que viria a abalar as
estruturas tradicionais.

A ruptura com o conhecimento antigo, para Woortmann, era refutada pelas experiências
empíricas das navegações, representando uma ruptura com o conhecimento escolástico. Essa
transformação se expressa nos mapas, que se tornam o novo instrumento de discurso
geográfico, destinado a medir e descrever o mundo e não mais a especular sobre a natureza. O
importante não foi o fato da América ter sido descoberta, mas que tal descoberta tenha permitido
uma “reinvenção” do mundo, a formulação de um novo sistema de ideias, não apenas relativo
ao mundo físico, mas também ao mundo humano.

Visto as observações feitas por Woortemann, sobretudo sobre os feitos de Copérnico e


Colombo é possível repensar o conceito de Renascimento como ruptura e associado a oposições
ferrenhas entre Igreja e ciência. Como o próprio autor defendeu, o Renascimento foi mais um
sincretismo, um período de grandes ambiguidades, pois ao passo em que o humanismo
flexibilizou as amarras do Clero, não impediu que o desenvolvimento da ciência tenha se dado
no âmbito teológico, como nos mostra o excerto,

“Se o Renascimento não foi propriamente uma revolução foi, sem


dúvida, um momento fundamental no desenvolvimento das ideias e da cultura
ocidental. Contrastado ao pensamento medieval - embora neste, como foi
visto, já se antecipava a modernidade, desde Scott e Occam - ele marcou um
novo espaço mental, segundo a expressão de Gusdorf. ” (1996, p. 18).

Devemos lembrar novamente a proposição de Simaan de que devemos analisar os


objetos sem recorta-los de seu contexto, e neste caso, seria inviável pensar num
desenvolvimento da ciência a parte da religião, tanto pelo peso de sua influência sobre a
sociedade daquele período, tanto pelo fato de as escolas serem predominantemente
eclesiásticas, fazendo com que a educação desses eruditos perpassasse o conhecimento
teológico.
Seguindo o processo de análise temos ainda o caso de Galileu Galilei e suas cartas
publicadas no livro “Ciência e fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com
a Bíblia”, que nos mostram como esse processo de defesa das novas teorias por parte dos
cientistas era um trabalho árduo. Como o conteúdo foi apresentado por meio das
correspondências de Galilei, podemos sentir de forma mais cotidiana como estes temas estavam
sendo apresentados, bem como era a recepção do povo das ideias que estavam aflorando.

Para nossa reflexão pretendo usar de forma mais especifica as cartas escritas por ele
sobre as opiniões acerca da teoria de Copérnico. A escolha se dá pelo fato de podermos fazer
uma análise a partir de duas bases, pois a partir de Wootermann tivemos a oportunidade de ver
como o trabalho de Copérnico inicialmente foi aceito pela Igreja, e como passaram a ser
rejeitadas futuramente.

Com a carta de Galileu notamos que, assim como Woortmann já havia dado indicio,
com o passar do tempo notou-se como as concepções copernicanas contrariavam o
geocentrismo e afrontavam a Igreja a medida em que dizia poder ser julgada apenas por
matemáticos e não pelos Clérigos. Apenas a própria existência da carta já é comprovação do
impacto das teorias de Copérnico.

Nessas considerações, Galilei tenta desmontar os argumentos que estavam sendo criados
contra as afirmações de Copérnico sobre o movimento dos astros, e convencer o povo e a Igreja
que quando compreendidos adequadamente a teoria copernicana não era escandalosa ou
herética. Galilei usa de muitas estratégias para levar a este convencimento, como comparar o
trabalho de Copérnico ao de grandes filósofos e matemáticos já consagrados, como Platão e
Sêneca, que também compartilhavam da teoria de Copérnico,

“Tal doutrina não é, portanto, ridícula, visto ser sustentada por


grandíssimos homens e, embora o número destes seja pequeno, em
comparação aos seguidores da opinião comum, isto prova, antes, da
dificuldade de ser compreendida do que sua futilidade. ” (2009, p. 105)

Galilei reforça que o trabalho de Copérnico foi fruto não apenas de suposições, mas foi
embasado em riquíssimas observações da Natureza, que lhe permitiu obter um conhecimento
de grande valor, capaz de produzir sua teoria do heliocentrismo. Também afirma que sua teoria
não foi feita para satisfazer o astrônomo puro, mas para satisfazer sua necessidade, ou seja,
aceitando-a como astrônomo e filosofo, a media em que acreditava ser a verdadeira Natureza.
Sendo assim, diz que alguns astrônomos buscam apenas satisfazer seus cálculos, sem
que busque ou sustente uma “verdade”, e outros buscam dar razão e sentido a natureza.
Copérnico não busca satisfazer cálculos com sua teoria, sendo seu objetivo estabelecer uma
nova verdade acerca da Natureza do movimento dos astros,

“Não se coloque, pois, de maneira nenhuma em dúvida que Copérnico


assume a mobilidade da Terra e a estabilidade do Sol, não por outra razão nem
de outra maneira senão para estabelecer, na qualidade de filosofo natural, esta
hipótese em primeira espécie”. (2009, p. 113).
Galilei coloca que a mobilidade da terra e estabilidade do sol não se opõe a fé ou as
Sagradas Escrituras. E se nas escrituras é dito o contrário, isto decorre de um erro nosso de
interpretação, “Mas, neste caso, se algumas passagens da Escritura parecerem soar o contrário,
devemos dizer que isto acontece por franqueza de nossa inteligência que não pode penetrar o
verdadeiro ensinamento da Escritura neste particular. “ (2009, p.120).

Deste modo, Galilei coloca que as tentativas de se comprovar devem partir da recém-
descoberta da Natureza, pois se as Escrituras dizem o contrário da matemática e astronomia,
este ocorre por um erro de interpretação por falta de conhecimento necessário para compreender
tal assunto. Galilei lembra, desta forma, que uma verdade não pode contrariar outra verdade.

Este cuidado seria para não incorrer no risco de afirmar uma verdade absoluta das
Escrituras, que nas observações ou experimentações poderiam ser desmentidas. Seria um
escando uma vez que a Escritura não erra. Este cometeria um erro chamado de “Petição de
princípio”. A natureza não se modifica, mas a oposição da Escritura sim, afirmando termos
incorrido num erro, de interpretação.

CONCLUSÃO

De todo modo, a partir das leituras aqui apresentadas tivemos a oportunidade de


acompanhar o processo de surgimento do pensamento cientifico no Ocidente por uma
perspectiva ainda nova. Roger Chartier em “À beira da Falésia: a história entre incertezas e
inquietudes” endossa a perspectiva da “Nova História”, que se coloca contrária ao modelo
estruturalista até então predominante, que propunha análises mais gerais, baseadas na
identificação das estruturas, que independentemente das ações dos indivíduos, comandam os
mecanismos econômicos, organizam as relações sociais e engendram as formas de discurso.
A chegada da Nova História foi acompanhada pela micro história que pretendia
reconstruir, a partir de situações particulares, a maneira como os indivíduos produzem o mundo
social, por meio de suas alianças e confrontos, através das dependências que os ligam e dos
conflitos que os opõem. Como Jacques Revel viria a defender em “jogos de escala: a
experiência da micro analise”, a microanálise não subordina o conhecimento dos elementos
individuais a uma generalização mais ampla, ao contrário, destaca as particularidades e acentua
os detalhes contingentes nas vidas e nos acontecimentos individuais. A abordagem micro não
rejeita a abstração, pois os fatos aparentemente insignificantes podem servir para revelar um
fenômeno mais geral.

Isto posto, vemos que os estudos feitos a partir de um viés historiográfico mais
sociológico permitiram que se observasse na gênese do pensamento cientifico mais do que um
jogo de tensões entre a Instituição cientifica e a Igreja. Simaan apresenta uma questão valiosa
sobre o contexto e o objeto, e que recortar um do outro leva a conclusões que não condiziam
com a realidade.

Por outro lado, as análises de Woortmaan demonstram esta nova perspectiva


historiográfica a medida em que compreende que num contexto onde Igreja católica exercia
tanto poder e influência sobre a moral e os costumes da sociedade ocidental, não poderia deixar
de demostrar que o surgimento do pensamento cientifico surgiu dentro do campo teológico e
com a intenção de afirma-lo e não contradize-lo, compreendendo assim, como o humanismo
foi pertinente, não enquanto revolução, mas como fator permissivo para um processo de
transformação na estrutura social, concepções de tempo e espaço, e da visão de mundo que se
começou a se alterar nesse momento.

As cartas de Galilei, sobretudo suas considerações sobre a teoria do heliocentrismo


defendida por Copérnico vem justamente para selar este debate, demonstrando o valor da
microanálise no trabalho do historiador. Por meio de suas cartas é possível acessar o passado
de forma mais direta que por um documento oficial, e acessamos o acontecimento por um olhar
mais pessoal, onde podemos constatar os reflexos da teoria copernicana no povo, e constatar
que além de um escândalo ou heresia ela foi também objeto de debate, por aqueles que
pretendiam sufoca-la ou apenas compreender.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARTIER, Roger. A história entre narrativa e conhecimento. In: CHARTIER, Roger. À


beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos.
Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002

REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da mico análise. Trad. Dora Rocha. Ed.
Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1998.

GALILEI, Galileu. Ciência e fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano
com a Bíblia. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

SIMAAN, A.; FONTAINE, J. A imagem do mundo: dos babilônios a Newton. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 11-22 e 65-98.
WOORTMANN, K. Religião e Ciência no Renascimento. Brasílias: UNB, 1997.

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