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Princípio da capacidade contributiva:

eficácia para contemplar o poder-dever


da administração tributária de fiscalizar,
cobrar e executar tributos

Christiano Mendes Wolney Valente


Procurador da Fazenda Nacional. Pós-graduado pela Escola Superior de Advocacia da OAB-DF
e pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Especialista
Docente em Direito Tributário pelo Instituto de Cooperação e Assistência Técnica – ICAT
da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF. Mestrando em Direito da
Universidade Católica de Brasília – UCB.

Resumo: O artigo investiga as origens do princípio da capacidade contributiva partindo da ideia aristotélica
de justiça distributiva, passando pela concepção liberal de “princípio do benefício ou equivalência” até
chegar à atual compreensão de que o princípio assume a feição de direito fundamental na Constituição
Federal brasileira de 1988, com todas as eficácias que são próprias a esse status. A partir daí identifica
dentre as eficácias do princípio a de restringir o alcance de outros direitos fundamentais, notadamente
os referentes à intimidade, vida privada e propriedade, consoante um juízo de ponderação de princípios,
a fim de municiar o Estado de mecanismos eficazes de elaboração legislativa, fiscalização, lançamento,
cobrança e execução dos tributos devidos.
Palavras-chave: Direito. Constitucional. Tributário. Capacidade contributiva. Capacidade econômica.
Justiça distributiva. Princípio da igualdade. Administração tributária. Fiscalização, lançamento, cobrança e
execução do crédito tributário. Eficácia e efetividade. Execução fiscal.

Sumário: 1 Origem e natureza jurídica – 2 O princípio nas constituições brasileiras – 3 Conceito e eficácia
– 4 Capacidade contributiva e administração tributária – 5 Conclusões – 6 Referências

1  Origem e natureza jurídica


O princípio segundo o qual cada indivíduo deve contribuir para as despesas
da coletividade em razão de sua força econômica é de origem antiquíssima. Noticia
Alfredo Augusto Becker (1998, p. 479) que já vigorava entre os antigos egípcios,
tendo por origem o ideal de justiça distributiva formulado pelos filósofos gregos e
reaparecendo na filosofia escolástica, recompositora do sistema aristotélico con-
soante os princípios da teologia católica.
Edilson Pereira Nobre Júnior (2001, p. 17) aponta já no Velho Testamento (Êxodo,
capítulo 30, versículos 11 a 16) a existência de um imposto sobre o culto, exigido
quando do recenseamento dos israelitas, que impunha a cada um, ao completar vinte

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anos, pagar ao Senhor meio siclo como resgate de sua vida, “de modo que o rico não
pagasse mais, nem o pobre menos”. Também menciona que em dado momento, em
Atenas, havia um tributo em benefício da marinha nacional que era exigido de todos
os cidadãos cujo cabedal atingisse dez talentos. “Para sua cobrança, procedia-se ao
registro da importância das prestações, estimadas em função das possibilidades de
cada um dos obrigados” (NOBRE JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 18).
Dentre os romanos, a figura do tributum civile, ao qual estavam submetidos os
cidadãos com vistas à cooperação em empresas bélicas frente a povos inimigos, to-
mava por medida o censo do montante total do patrimônio da população, competindo
ao Senado a fixação de uma taxa de um tanto por mil, representativa da quantidade
a ser paga em dinheiro (NOBRE JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 18).
Lembra Edilson Pereira Nobre Júnior (2001, p. 18), citando Carlos Palao
Taboada, a existência de textos de Santo Tomás de Aquino que orientavam as pes-
soas a pagarem os impostos justos (instituídos secundum equalitatem proportionis),
sob pena de pecado, e a não pagarem os impostos injustos, posto que arbitrários.
Ainda segundo o mesmo autor, a Magna Carta de 15 de junho de 1215 já previa
em seu texto que não seriam lançadas taxas ou tributos fora de limites razoáveis1 e
Maquiavel, consoante orientação de Alfredo Becker (1998, p. 480), já teria discorrido
sobre o princípio da capacidade contributiva, muito embora o objetivo principal fosse
afirmar a norma da generalidade do dever tributário, frequentemente violada à época
por privilégios e franquias de toda a espécie, e só em segundo plano repudiar a
iniquidade dos sistemas tributários então vigentes, fundados sobre a capitação (por
cabeça e, portanto, regressivos), violando os mais elementares princípios da justiça
distributiva.
Segundo a clássica ideia de justiça distributiva, o bem do particular ocorre
quando a sociedade dá a cada um o que lhe é devido segundo uma igualdade pro-
porcional ou relativa, conforme a necessidade, o mérito e a importância de cada indi-
víduo. Realiza-se na distribuição dos benefícios e dos encargos entre os membros de
uma comunidade, considerando-se a situação particular das pessoas (DINIZ, Maria
Helena, 1998, p. 39).
Neste diapasão, lembra Edilson Nobre Júnior (2001, p. 19) que Adam Smith,
em sua obra “A riqueza das nações” (1776), já apontava que os indivíduos deveriam
contribuir o máximo possível para a manutenção dos encargos públicos, pautando-­
se tal contribuição de acordo com a capacidade de cada um, representada pela re-
tribuição desfrutada sob a proteção do Estado através da realização de obras ou
prestação de serviços públicos. Tal raciocínio acabou por caracterizar o chamado

1
A Magna Carta de 1215, que limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente o do Rei João, que
o assinou, ao submeter o rei à legalidade inaugurou o chamado “princípio do consentimento” que passou a
legitimar o poder tributante do Estado (“no taxation without representation”).

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“princípio do benefício” que atualmente rege as contribuições de melhoria e as taxas,


respectivamente.2
Regina Helena Costa (1993, p. 16) coloca que a ideia de capacidade contri-
butiva já se encontrava devidamente arraigada na consciência dos povos civilizados
no final do século XVIII, constatando que vários episódios políticos de relevo podem
ser atribuídos direta ou indiretamente à sua inobservância. Assim, a “Boston Tea
Party”, evento no qual os norte-americanos rebelaram-se contra a tributação inglesa
das importações efetuadas pelas colônias, entre elas a de chá (1773), e que se
constituiu em importante precedente da independência; a Revolução Francesa, que
teve como causa, dentre outras, a precária situação do governo de Luis XVI, que o
obrigava a sangrar o povo com impostos (1789); e, no Brasil, a Inconfidência Mineira,
provocada pela opressiva política fiscal da Coroa Portuguesa, por ocasião da coleta
da “derrama” (1789).
A consequência histórica de tais eventos foi a positivação da ideia de justiça
distributiva que veio com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
26 de agosto de 1789, e com a Constituição Francesa de 1791 evidenciando a
necessidade de repartir igualmente entre todos os cidadãos e em razão de suas fa-
culdades, a contribuição comum para o sustento da máquina pública. Tal exemplo foi
seguido pelas constituições de índole liberal que se seguiram (inclusive a brasileira
de 1824), tendo sofrido alteração com o Estado Social de Direito para alargar-se além
do princípio do benefício, agora com a “[...] intenção de servir de veículo propulsor
da igualdade econômica e social mediante a progressividade dos impostos” (NOBRE
JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 20).
Desta maneira, o princípio outrora ligado somente à ideia de justiça passou a
ser “[...] noção necessária para dotar de conteúdo material o princípio da igualdade,
então compreendido no aspecto puramente formal” (COSTA, Regina, 1993, p. 18).
Criando um critério material de justiça para distinguir quais as situações iguais e
quais as desiguais, crescendo sua importância junto aos tributos não vinculados,
como forma de exercício do papel ativo do Estado na sociedade e instrumentalizando
a distribuição de renda para compensar as desigualdades econômico-sociais herda-
das do Estado Liberal.

2
O “princípio do benefício” também recebe o nome de “princípio da equivalência”. Segundo Maurin Almeida
Falcão (2009), o liberalismo clássico e o Estado intervencionista deram origem a diferentes visões dos tributos
como mecanismos da atuação estatal. Para os liberais, o sacrifício fiscal decorria do preço pago pelo cidadão
para a sua segurança e pelos serviços prestados pelo Estado. Um pacto tácito estabelecido entre o contri-
buinte e o Estado cuja relação decorreria do contrato social onde os indivíduos alienariam uma parte de sua
liberdade e de seus bens em proveito do Estado. A essa ideia corresponde o “principio da equivalência”, se-
gundo o qual a repartição da carga tributária se faz em função da utilidade que cada indivíduo obtém dos bens
públicos consumidos. Já a concepção socialista estabelece o tributo como um mecanismo de solidariedade
social, favorecendo, dessa forma, o aperfeiçoamento do princípio da capacidade contributiva dos indivíduos e
a instituição da progressividade do imposto.

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Num terceiro momento, a capacidade contributiva passou a ser tida como: “uma
especificação concreta do princípio da igualdade, concebido este não mais sob a óti-
ca puramente formal, mas como um princípio autônomo, com conteúdo determinado,
sem, portanto, depender de uma concreção material específica” (NOBRE JÚNIOR,
Edilson, 2001, p. 36).
Com efeito, o conteúdo autônomo e determinado do princípio da igualdade já
foi inteligentemente investigado por Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 47):

Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:


I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determi-
nado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa
futura e indeterminada.
II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação
de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por
tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator
‘tempo’ – que não descansa no objeto – como critério diferencial.
III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator
de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência
lógica com a disparidade de regimes outorgados.
IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato,
mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qual-
quer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente.
V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequi-
parações que não foram professadamente assumidos por ela de modo
claro, ainda que por via implícita.

Também marcando uma linha divisória entre isonomia e capacidade contribu-


tiva, pode-se citar Regina Helena Costa (1993, p. 39) que em dissertação de mes-
trado, após verificar que a própria discriminação pela capacidade contributiva para
a instituição e exigência de tributos atende ao princípio da igualdade, conclui ser a
capacidade contributiva: “[...] um subprincípio, uma derivação de um princípio mais
geral que é o da igualdade, irradiador de efeitos em todos os setores do Direito”.
Assim, temos o dito princípio como um desdobramento particular do princípio da
isonomia, consagrando-se como verdadeiro direito fundamental.

2  O princípio nas constituições brasileiras


Como acima indicado, no Brasil, o princípio foi positivado já na Constituição
Imperial de 1824, que dispunha em seu art. 179, XV que “ninguém será exempto de
contribuir para as despezas do Estado em proporção dos seus haveres”.
A Constituição Republicana de 1891 foi omissa sobre o assunto, contudo a car-
ta de 1934 reportou-se à progressividade dos impostos incidentes nas transmissões

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de bens por herança ou legado (art. 128), além de estabelecer em seu art. 185 um
limite genérico para a elevação de qualquer imposto.3
Nenhum dispositivo que prestigiasse explicitamente o princípio da capaci-
dade contributiva pôde ser encontrado na carta de 1937. Porém, na Constituição
Democrática de 1946 pode-se encontrar adesão explícita ao postulado: “Art. 202.
Os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for possível, e serão graduados
conforme a capacidade econômica do contribuinte”.
Já durante o duro regime militar instituído em nosso país, a Emenda Constitucional
nº 18, de 1º de dezembro de 1965 expulsou aquele dispositivo do texto constitucio-
nal, sendo que a Carta Magna de 1967, bem como a Emenda nº 1 de 1969 seguiram
no mesmo rumo. Aqui, importante salientar que a doutrina majoritária, esposando o
posicionamento de Aliomar Baleeiro, entendia que na Constituição Federal de 1967,
com a Emenda nº 1 de 1969, o princípio permanecia vigente, ainda que implícito,
decorrente da interpretação do seu art. 153, §36 – semelhante ao atual art. 5º, §2º
da CF/88 (MORAES, Bernardo, 1997, p. 120).
Na atual Constituição Federal de 1988 o princípio volta a ser consagrado expli-
citamente, estando assim redigido o seu art. 145, §1º:

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão gra-


duados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da
lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contri-
buintes.

Deve-se observar também que nesta mesma carta constitucional pode-se cole-
tar, em outros dispositivos, indícios da adoção do princípio entre nós. Tal é o caso do
disposto no art. 145, II e III (princípio do benefício); 150, II (princípio da igualdade);
150, IV (vedação do confisco); 153, §2º, I (progressividade do imposto sobre a ren-
da); 153, §3º, I (seletividade em função da essencialidade do imposto sobre produtos
industrializados) etc.

3  Conceito e eficácia
É clássico o ensinamento de Aliomar Baleeiro (1993, p. 259, grifo nosso) em
suas lições introdutórias à ciência das finanças:

3
Dizia o mencionado dispositivo da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil: “Art 128 – Ficam
sujeitas a imposto progressivo as transmissões de bens por herança ou legado”.

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Quer do ponto de vista objetivo, para conhecimento da base possível do


imposto, quer do ponto de vista valorativo, ou axiológico, para fundamen-
to racional da justiça do tributo, é fundamental fixar-se a noção da capa-
cidade contributiva.
A capacidade contributiva do indivíduo significa sua idoneidade econômi-
ca para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida compatível com
a dignidade humana, uma fração qualquer do custo total de serviços pú-
blicos. Não podendo medi-la em todos os casos, nem contando com a in-
teira sinceridade do contribuinte, o legislador estabelece, através do fato
gerador de cada imposto, um sistema de indícios e presunções dessa
capacidade fiscal. A propriedade de imóveis ou de riquezas mobiliárias,
como ações de sociedades anônimas, títulos públicos etc., o recebimento
de herança, a aquisição de bens, a percepção de rendas, a celebração de
atos jurídicos, a despesa, sobretudo a que não se refere ao essencial à
existência, são elementos indiciários da capacidade contributiva.

Segundo Bernardo Ribeiro de Moraes (1997, p. 120), o objeto em exame traduz-­


se como um princípio básico da justiça na distribuição da carga tributária, consistindo
na vinculação de que o imposto deve ser exigido dos administrados de acordo com a
capacidade contributiva (econômica) destes. O autor equivale as expressões “capaci-
dade contributiva” e “capacidade econômica” para tomá-las como a aptidão da pes-
soa para participar das despesas públicas pagando tributos. Ora, tendo em vista que
o texto constitucional pátrio faz uso da expressão “capacidade econômica”, surge o
problema de se definir o conteúdo das expressões até então utilizadas.
Edilson Nobre Júnior (2001, p. 33), citando as lições de José Maurício Conti,
afirma que por capacidade econômica pode-se entender a aptidão dos indivíduos
para obter riquezas, exteriorizada sob a forma de renda, consumo ou patrimônio. Já
capacidade contributiva refere-se à capacidade dos indivíduos de arcar com o ônus
tributário de pagar tributos, trata-se de uma capacidade econômica específica, limi-
tada à seara tributária, qualificada por um dever de solidariedade onde predomina o
interesse coletivo.
De fato, um sujeito pode ser capaz economicamente, no sentido de possuir
renda ou patrimônio, mas não ter nenhuma capacidade contributiva, se esta renda ou
patrimônio permitir somente um mínimo vital, intributável. Contudo, não há qualquer
prejuízo ao conceito quando a Constituição Federal de 1988 refere-se ao gênero “ca-
pacidade econômica” ao invés da espécie “capacidade contributiva”, na medida em
que qualifica a expressão utilizada ao contextualizá-la quando se refere a impostos.
Portanto a expressão constitucional pode ser tomada por capacidade contributiva.
Investigando as razões que levariam à positivação do princípio, Aliomar Baleeiro
(1993, p. 259) assim conclui:

Além de razões inspiradas na solidariedade social, outras de caráter práti-


co e lógico condenariam impostos sobre criaturas de reduzida capacidade

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contributiva. Segundo a concepção atual do Estado, este deve assistência


a todos os necessitados por efeito de suas condições físicas (idade, saú-
de, incapacidade de trabalho, fase escolar etc.) ou econômicas (paupe-
rismo, desemprego etc.). Seria redondamente insensato, antieconômico
e trabalhoso retirar, pelo imposto, recursos daqueles aos quais o Estado
terá de socorrer pelos canais da despesa.

Deste modo, o Estado Social de Direito, que se caracteriza pela busca da rea­
lização da igualdade material, não pode prescindir do princípio, já que este serve
como instrumental posto à sua disposição para a consecução de seus fins, sem
descaracterizá-lo como princípio autônomo já que possui aplicação fora da isonomia
(v.g. obediência na eleição pelo legislador de hipótese de incidência tributária).
Em que pese o conceito acima firmado, o eminente jurista Alfredo Augusto
Becker (1998, p. 481) faz severas críticas ao signo “capacidade contributiva”:

Tomada em si mesma, a locução ‘capacidade contributiva’ – salienta Emilio


Giardina – significa apenas: possibilidade de suportar o ônus tributário. Di-
zer que as despesas públicas devem ser partilhadas entre os contribuintes
conforme as respectivas possibilidades de suportar o peso do tributo, é
incorrer numa tautologia: as palavras ‘capacidade contributiva’, sem algu-
ma outra especificação, não constituem um conceito científico. Elas nem
oferecem um metro para determinar a prestação do contribuinte e para
adequá-la às prestações dos demais; nem dizem se existe e qual seja o
limite dos tributos. Esta expressão, por si mesma, é recipiente vazio que
pode ser preenchido pelos mais diversos conteúdos; trata-se de locução
ambígua que se presta às mais variadas interpretações.

Segundo o mesmo doutrinador, a constitucionalização do princípio em questão


foi mais um caso de “constitucionalização do equívoco”, fenômeno resultante da
transição social atualmente enfrentada:

Todas as vezes em que uma civilização se transforma, verifica-se não


‘le déclin du droit’ – mas a crise de metamorfose do direito: a legislação
jovem feita de ‘slogans’ e princípios programáticos ainda não é Direito,
enquanto que a legislação velha e esclerosada pela abundância de re-
gramentos minuciosos que a tornam impraticável, deixou de ser Direito.
(BECKER, Alfredo, 1998, p. 486)

De fato, das críticas do grande cientista conclui-se que mais importante que
conceituar o princípio, sem embargo das lições até então expendidas pela doutrina
citada, é verificar de que maneira ele se torna eficaz no ordenamento jurídico. Nesse
sentido, é do próprio Becker (1998, p. 489 e 494) a lição de que na regra constitu-
cional da capacidade contributiva há “[...] um mínimo de certeza e praticabilidade que
revelam sua juridicidade e delimitam o restrito campo de sua eficácia jurídica”.

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Para o ilustre doutrinador (BECKER, Alfredo, 1998, p. 496) o princípio da capaci-


dade contributiva configura ideia de Direito Natural e, como tal, ao adentrar ao mundo
jurídico sofre forte deformação constritora de seu conceito tanto na sua positivação
quanto na sua incidência (momento hermenêutico) em busca daquele mínimo de
praticabilidade e certeza científicas. As constrições seriam de três ordens:
a) exclusão do conceito de capacidade contributiva global, concebida esta como
o montante da riqueza (renda e capital) de um determinado indivíduo em relação à
totalidade do sistema jurídico tributário (todos os tributos que ele deverá pagar em
determinado período), portanto a riqueza de um determinado contribuinte somente
pode ser relacionada a um único tributo tomado isoladamente dos demais;
b) seleção de um fato-signo presuntivo de riqueza – não se leva em considera-
ção a totalidade da riqueza do contribuinte, mas unicamente um fato-signo presuntivo
de sua renda ou de capital, isto é, fato ou situação que revela presumidamente, da
parte de quem o realiza ou nele se encontra, condição objetiva para suportar a carga
econômica de uma particular espécie tributária (v.g. ter um carro, prestar serviço
remunerado etc.);
c) regra do mínimo indispensável – renda ou capital presumidos devem ser
renda ou capital acima do mínimo indispensável à vida com dignidade humana (v.g. o
que excede ao salário-mínimo, o consumo de bens supérfluos e dispensáveis, luxo).
Do exposto, resta claro que Becker rejeita a noção de “capacidade contributiva
relativa ou subjetiva”, entendida esta como sendo a aptidão de contribuir na medida
das possibilidades econômicas de determinada pessoa em uma situação concreta
(COSTA, Regina, 1993, p. 26). Lição no mesmo sentido (rejeitando aquele conceito)
pode ser colhida na escrita de Bernardo Ribeiro de Moraes (1997, p. 123) e Roque
Antonio Carraza. Cita-se este último:

A capacidade contributiva à qual alude a Constituição e que a pessoa


política é obrigada a levar em conta ao criar, legislativamente, os impostos
de sua competência é objetiva, e não subjetiva. É objetiva porque se refere
não às condições econômicas reais de cada contribuinte, individualmente
considerado, mas às suas manifestações objetivas de riqueza (ter um
imóvel, possuir um automóvel, ser proprietário de jóias ou obras de arte,
operar em Bolsa, praticar operações mercantis etc.).
Assim, atenderá ao princípio da capacidade contributiva a lei que, ao criar
o imposto, colocar em sua hipótese de incidência fatos deste tipo. [...]
Com o fato-signo presuntivo de riqueza tem-se por incontroversa a existên-
cia de capacidade contributiva.
Pouco importa se o contribuinte que praticou o fato imponível do imposto
não reúne, por razões personalíssimas (v.g. está desempregado), condi-
ções para suportar a carga tributária.
Exemplifiquemos: atualmente, muitos shopping centers, para estimular
as vendas, estão sorteando, entre seus clientes, automóveis de alto luxo.
Vamos admitir que o contemplado seja um jovem de dezoito anos, que

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ainda não tem economia própria. Acaso poderá eximir-se do pagamento


do IPVA cabível, demonstrando que não tem capacidade econômica? É
evidente que não. Ele terá que encontrar um meio de pagar o imposto ou
sofrerá as conseqüências da seu inadimplemento, podendo, até mesmo,
perder o veículo. (CARRAZZA, Roque, 1999, p. 67, grifo nosso)

Também do mesmo autor, em outra passagem:

A lei que cria in abstracto o imposto não precisa, no entanto, atender


às desigualdades individuais do contribuinte. No mesmo sentido, o Po-
der Judiciário, quando provocado, não pode deixar de aplicá-la, em face
das condições econômicas pessoais do contribuinte. (CARRAZZA, Roque,
1999, p. 69)

Entendimento contrário e, data venia, acertado é sustentado por Regina Helena


Costa (1993, p. 78) ao afirmar, com base na doutrina de José Marques Domingues
de Oliveira, ser possível ao Poder Judiciário examinar in concreto o excesso de carga
fiscal incidente sobre determinado contribuinte, negando efeitos à lei considerada
inconstitucional, a exemplo da violação da capacidade contributiva objetiva.
Com efeito, não se pode desvencilhar da verificação da capacidade contributiva
subjetiva a noção de mínimo vital. Um carro jamais pode ser tido como um mínimo
indispensável para uma existência digna, salvo se v.g., for utilizado como instrumen-
to de trabalho, revertendo a presunção de riqueza estatuída pela norma tributária.
Também se deve verificar que a generalidade da norma não fica afetada por tal contro-
le haja vista que o ordenamento jurídico pátrio permite a declaração de sua inconstitu-
cionalidade para aquele contribuinte e naquele caso específico levado a julgamento.
Trata-se do controle difuso de constitucionalidade, que se caracteriza justamente por
ser exercido no caso concreto. Além disso, se por construção jurisprudencial nacional
agora adotada em lei (art. 28, parágrafo único da Lei nº 9.868, de 10 de novembro
de 1999)4 admite-se a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto e a
interpretação conforme a constituição, atingindo estas declarações somente determi-
nadas interpretações possíveis que poderiam ser extraídas do texto legal no caso do
controle concentrado, porque não se admitir que determinada aplicação do texto legal
no caso concreto configura-se inconstitucional? De outra banda, basta declarar-se a
inexistência de capacidade contributiva do contribuinte, como elucida Sacha Calmon

4
Consoante a mencionada Lei nº 9.868/99: “Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado
da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial
da União a parte dispositiva do acórdão.

Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia
contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal,
estadual e municipal”.

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(2000, p. 86), para afastar-se a incidência da norma estatuidora da imposição tribu-


tária sem a necessidade de declarar sua inconstitucionalidade. Como já mencionado
anteriormente, o Estado Social não se satisfaz com a igualdade formal, impondo-se
a materialização efetiva dos direitos fundamentais, e o afastamento da capacidade
contributiva subjetiva labora contra essa premissa.
Em abono da possibilidade de verificação da capacidade contributiva subjetiva
pode-se citar extensa gama de julgados do Supremo Tribunal Federal que nesse sen-
tido sinalizaram ao reconhecer ser lícito ao Judiciário graduar ou excluir o quantum
de multa fiscal excessivamente imposta, ora formulando um juízo de equidade, ora
apontando a sua feição confiscatória: RE nº 57.904 – SP, Primeira Turma; RE nº
61.160 – SP, Segunda Turma; RE nº 81.550 – MG, Segunda Turma; RE nº 96.468
– RJ, Segunda Turma; RE nº 78.291 – SP, Primeira Turma e RE nº 91.707 – MG,
Segunda Turma. Transcreve-se os dois últimos para efeito de ilustração:

ICM. REDUÇÃO DE MULTA DE FEIÇÃO CONFISCATÓRIA. Tem o S.T.F.


admitido a redução de multa moratória imposta como base em lei, quando
assume ela, pelo seu montante desproporcionado, feição confiscatória.
Dissídio de jurisprudência não demonstrado. Recurso extraordinário não
conhecido. RE nº 91.707 – MG, STF, Segunda Turma, Rel. Min. Moreira
Alves (BRASIL, 1980).

MULTAS DO INPS. – EQUIDADE.


I. as contribuições parafiscais são tributárias e, portanto, sujeitas ao art.
108, IV, do código tributário Nacional, que admite a equidade, segundo a
qual, nos termos do art. 114, do Código de Processo Civil de 1939, o juiz
aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador.
II. concilia-se com farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o
acórdão que reduziu multas, juros, etc. pelos quais divida em mora, sem
fraude, ficou elevada a mais de 400%. RE nº 78.291 – SP, STF, Primeira
Turma, Rel. Min. Aliomar Baleeiro (BRASIL, 1978).

Também é questionável a doutrina de Becker ao impor a exclusão do conceito


de capacidade contributiva global. A necessidade de efetivação dos direitos funda-
mentais no plano material, herança do Estado Social, incompatibiliza o raciocínio.
Além disso, em nossas terras, o Excelso Pretório, por ocasião do julgamento da ADIN
nº 2.010 – MC – DF, já afirmou a juridicidade do conceito da capacidade contributiva
global, utilizando-a, inclusive, no controle abstrato de normas:

[...] A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA


REPÚBLICA. – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende ca-
bível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de a Corte
examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucio-
nal da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição.
Precedente: ADI 1.075-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (o Relator ficou
vencido, no precedente mencionado, por entender que o exame do efeito

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

confiscatório do tributo depende da apreciação individual de cada caso


concreto). – A proibição constitucional do confisco em matéria tributária
nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer
pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade,
à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos
rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilida-
de da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a
prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de
suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A
identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade
da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o
contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) -
para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá
pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os
houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a
aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observân-
cia, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar
excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público.
Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre
que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias
estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de
maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. – O
Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de
seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imode-
radamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada
pelo princípio da razoabilidade [...]. (BRASIL, 2002, grifo nosso)

De observar que o julgado do STF, muito embora tenha feito uso do conceito de
capacidade contributiva global, restringiu sua aferição em relação somente à carga
imposta por um só ente tributante, desconsiderando a carga tributária total suportada
pelo indivíduo proveniente das competências de entes distintos.
Continuando a exposição, tem-se que, segundo Becker (1998, p. 498 e s.), as
constrições sofridas pelo conceito de capacidade contributiva ao adentrar no mundo
jurídico direcionam a sua eficácia a quatro manifestações distintas:
1ª – a regra jurídica constitucional que jurisdiciza o princípio da capacidade
contributiva tem eficácia exclusivamente perante o legislador, obrigando-o a escolher
para hipótese de incidência da regra tributária exclusivamente fatos que sejam signos
presuntivos de renda ou de capital, sob pena de inconstitucionalidade que pode ser
declarada pelo juiz (exclui a verificação da capacidade contributiva subjetiva, posição
já criticada acima);
2ª – os fatos-signos presuntivos escolhidos pelo legislador devem evidenciar
renda ou capital acima do mínimo indispensável ou, nos casos em que tal apreciação
fica impossibilitada, deve o legislador criar isenções tributárias simultaneamente com
a lei criadora do tributo para resguardar este mínimo indispensável;
3ª – o legislador deve graduar a alíquota ou ritmar sua progressividade no senti-
do diretamente proporcional à grandeza presumível da renda ou capital do respectivo
contribuinte;

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4ª – sempre que utilizar o substituto legal tributário, o legislador ordinário está


juridicamente obrigado a, simultaneamente, criar a repercussão jurídica do tributo
sobre o substituído (aquela pessoa cuja renda ou capital a hipótese de incidência é
fato-signo presuntivo), outorgando ao substituto o direito de reembolso ou retenção
do valor do tributo perante o substituído.
Estas lições de Becker sobre a eficácia do princípio são majoritariamente ado-
tadas modernamente pela doutrina nacional, porém alguns doutrinadores as conside-
ram como um patamar básico eficacial que pode ser alargado, a exemplo dos citados
julgados do STF, para abranger, além dos conceitos de capacidade contributiva subje-
tiva e capacidade contributiva global, a vinculação do juiz e do administrador:

Dessarte, quer se trate de norma programática ou não, o princípio da ca-


pacidade contributiva irradia seus efeitos aos poderes estatais. Vincula,
portanto, o legislador, que não poderá, pena do vício de ilegitimidade consti-
tucional, instituir obrigação tributária sobre situação desprovida de suporte
econômico, ou violadora do mínimo vital e existência, ou ainda que implique
em encargo desproporcionado. Igualmente, impende ao administrador, em
homenagem à legalidade, que, nos dias atuais, traduz a necessidade de
respeito à lei e ao Direito, recusar a aplicação de norma que infrinja o prin-
cípio. Finalmente, ao Judiciário, na missão de velar pela inteireza positiva
da Constituição, tocará o mister de produzir postura concreta (sentença)
tornando efetiva a garantia, se porventura violentada ou ameaçada de viola-
ção. (NOBRE JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 61, grifo nosso)

Aliás, a possibilidade de o administrador, mediante autorização do chefe do


Poder Executivo, deixar de aplicar norma por entendê-la inconstitucional já foi apre-
ciada e legitimada diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. Exemplifica-se a
posição da jurisprudência do Pretório Excelso com o teor do Recurso em Mandado de
Segurança nº 14.136/ES:

Inconstitucionalidade – sem embargo de que, em princípio, compete ao


Poder Judiciário a atribuição de declarar inconstitucional uma lei, a ju-
risprudência tem admitido que o Poder Executivo, também interessado
no cumprimento da Constituição goza da faculdade de não executá-la,
submetendo-se aos riscos daí decorrentes, inclusive o do ‘impeachment’.
Nesse caso, quem for prejudicado se socorrerá dos remédios judiciais ao
seu alcance. Recusando cumprimento a lei havida como inconstitucional,
o Governador se coloca na mesma posição do particular que se recusa, a
seu risco, a desobedecer a lei, aguardando as ações e medidas de quem
tiver interesse no cumprimento dela. (BRASIL, 1966)

Com efeito, muito embora todos possam interpretar e aplicar uma norma jurídi-
ca, o seu único intérprete autêntico é o Poder Judiciário no exercício de sua função
jurisdicional. A ele impende dar a última palavra fixando a interpretação e a aplicação
do dispositivo legal, de forma que, à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição,

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

o ato do chefe do Poder Executivo pode ser por ele (órgão judicial) examinado quando
provocado. Tal circunstância não impede reconhecer a existência de um verdadeiro
poder-dever do chefe do Poder Executivo em negar execução a normas violadoras
do princípio da capacidade contributiva, mormente quando se verifica que em nos-
so ordenamento jurídico a vinculação do administrador ao princípio sob exame vem
expressa no próprio texto constitucional, mesmo que sob um aspecto positivo, ao
mencionar que é “facultado (poder-dever) à administração tributária, especialmente
para conferir efetividade a esses objetivos (capacidade contributiva), identificar, res-
peitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e
as atividades econômicas dos contribuintes”.
Outrossim, não se pode olvidar que, caracterizado o princípio da capacidade
contributiva como verdadeiro direito fundamental, a consequência imediata daí de-
corrente é a de que se submete ao regime jurídico de tais direitos. Desta forma, se
manifesta tanto na dimensão subjetiva, como na dimensão objetiva.
Em sua dimensão subjetiva identifica-se o status passivo do indivíduo fren-
te ao Estado que assume função ativa, no momento em que a este é atribuído o
poder-­dever de exigir do sujeito passivo o tributo já instituído na justa medida de sua
capacidade contributiva. Esta exigibilidade se dá mediante atividade administrativa
plenamente vinculada (art. 3º da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código
Tributário Nacional), culminando com o processo de execução fiscal (Lei nº 6.830,
de 22 de setembro de 1980). Quanto ao status negativo, pode-se caracterizá-lo em
todas as situações em que ao Estado é imposto um dever de abstenção, v.g. não
cobrar tributo confiscatório, ou seja, que viole o mínimo vital; não graduar a alíquota
de um tributo ou ritmar sua progressividade no sentido inversamente proporcional à
grandeza presumível da renda ou capital do respectivo contribuinte. Observa-se, em
ambos os casos, evidente alcance do dispositivo à administração tributária.
Com relação à dimensão objetiva, tem-se que o direito fundamental sob exame
possui a eficácia mínima de: servir como modelo interpretativo para as demais normas
do ordenamento jurídico, revogar as normas anteriores com ela incompatíveis, servir
como parâmetro para o controle de constitucionalidade de medidas a ela restritivas e,
traduzindo-se em valor básico da sociedade política (o que aqui mais nos interessa),
legitimar restrições aos direitos subjetivos individuais em função do próprio benefício
da comunidade através da ponderação de valores. Desta maneira, o valor da justa dis-
tribuição da carga tributária (igualdade) permite a restrição a outros direitos fundamen-
tais, desde que obedecido o princípio da proporcionalidade, em prol do bem comum.

4  Capacidade contributiva e administração tributária


Como visto, o princípio da capacidade contributiva vincula, além do legislador e
do juiz, também o administrador. Essa vinculação se dá não só no que diz respeito a

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negar cumprimento a uma lei violadora do preceito fundamental mediante orientação


do chefe do Poder Executivo (status negativo), como também no poder-dever da admi-
nistração tributária de exigir do sujeito passivo o tributo já instituído na justa medida
de sua capacidade contributiva (status passivo).
Neste último ponto, importante salientar que a exigência (cobrança) do tributo
instituído conforme o princípio da capacidade contributiva implica sua própria materia-
lização social (do princípio). Nesse sentido, sua eficácia no plano jurídico é condição
de sua efetividade (eficácia no plano social), aproximando dever-ser e ser, respectiva-
mente. A este respeito já nos pronunciamos por ocasião da lavra do PARECER PGFN/
CDA Nº 1674/2002 (nota de rodapé), in litteris:

O princípio da capacidade contributiva nada mais é que uma das faces do


princípio da isonomia tributária previsto no art. 150, III da Constituição Fe-
deral. Tal princípio não se realiza quando pessoas em idênticas situações
são tratadas de modo diverso. Se ‘A’ e ‘B’ devem o mesmo tributo, com
o mesmo valor, e têm o mesmo patrimônio, o Estado deve objetivar ter
dos dois a mesma quantidade de dinheiro. Se ‘A’ paga em dia e ‘B’ não,
é incorreto que este último saia em posição mais vantajosa que ‘A’. A
cobrança e posterior execução de ‘B’ devem ser efetivadas para devolvê-­
lo ao estado de igualdade a ‘A’. Desta forma, o patrimônio, rendimentos
e atividades de ‘B’ devem ser identificados na justa medida para possi-
bilitar esta execução, colocando-o novamente em situação equivalente a
‘A’. Neste sentido é que a execução fiscal funciona como instrumento de
realização da capacidade contributiva e da igualdade tributária. O ônus da
tributação deve ser suportado igualmente por ambos e a execução fiscal
é um dos mecanismos aptos a efetivar esta igualdade no plano concreto.
(Parecer não publicado)

Tal raciocínio também assume relevo numa constatação de que se “B”, apesar
de não ter pago o tributo, não é fiscalizado, cobrado ou executado, o Estado, para
reaver esse valor, volta-se contra aqueles que cumprem com a sua obrigação tributá-
ria, aumentando-lhes a carga fiscal. “A” passaria a ser penalizado pela inadimplência
de “B”. Neste ponto é que reside o interesse de “A” na atuação do Estado contra
“B”, evidenciando-se assim verdadeiro status positivo de “A” frente ao Estado para a
realização de uma justa distribuição da carga tributária.
Retornando ao tema da aproximação entre ser e dever-ser, deve-se fazer alguns
esclarecimentos. Existência, validez e eficácia são os distintos planos do mundo jurí-
dico que orientam a análise científica de quaisquer atos jurídicos. A norma, como ato
jurídico legislativo típico, submete-se também a uma análise científica nesses três
planos. Sucintamente, pode-se dizer que no plano da existência verifica-se a presença
dos elementos constitutivos do ato (agente, objeto, forma), no plano da validez cons-
tata-se a sua conformidade com o ordenamento jurídico (nulidade ou anulabilidade)
e no plano da eficácia o que se verifica é a sua aptidão para a produção de efeitos

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

(pendência de condição), para a irradiação das consequências que lhe são próprias.
Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado (BARROSO, Luís,
1996, p. 219).
Fora desses planos há o plano social ou da realidade, plano do mundo do ser,
onde se encontra a efetividade ou eficácia social da norma. Hans Kelsen (1991, p.
11) retratou este plano como sendo a verificação do “[...] fato real de ela (norma) ser
efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana con-
forme a norma se verificar na ordem dos fatos”. Da conceituação se extrai a íntima
relação entre eficácia e efetividade: a eficácia é condição de efetividade. Se a norma
não está apta a produzir efeitos, ela não está apta a moldar a realidade social sobre
a qual se aplica. Outrossim, sob outro ângulo, a efetividade é condição da eficácia,
pois não faz sentido algum se estabelecer uma norma “[...] que preceituasse um cer-
to fato que de antemão se sabe que de forma alguma se poderá verificar” (KELSEN,
Hans, 1991, p. 12). Assim, resta que, quanto maior for a eficácia de uma norma no
plano jurídico, maior poderá ser sua efetividade no plano material e vice-versa.
Esta constatação torna-se de sobremaneira relevante num contexto em que os
grandes doutrinadores do Direito Constitucional elegem a ideia de efetividade das
normas constitucionais à categoria de princípio hermenêutico:

O princípio da efetividade, embora de desenvolvimento relativamente


recente, traduz a mais notável preocupação do constitucionalismo nos
últimos tempos. Ele está ligado ao fenômeno da juridicização da Consti-
tuição, e ao reconhecimento de sua força normativa. As normas constitu-
cionais são dotadas de imperatividade e sua inobservância deve deflagrar
os mecanismos próprios de cumprimento forçado. A efetividade é a reali-
zação concreta, no mundo dos fatos dos comandos abstratos contidos na
norma. (BARROSO, Luís, 1996, p. 267)

Neste mesmo sentido, de vital importância são as lições do propalado constitu-


cionalista germânico Konrad Hesse, com a observação de que o autor toma o termo
“efetividade” por “eficácia”:

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da rea-


lidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por
ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de
eficácia (Geltungsanpruch) não pode ser separada das condições históri-
cas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de
interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconside-
radas. [...] A Constituição adquire força normativa na medida em que logra
realizar essa pretensão de eficácia. (HESSE, Konrad, 1991, p. 14 e 15)
[...] A concretização plena da força normativa constitui meta a ser almeja-
da pela Ciência do Direito Constitucional. (HESSE, Konrad, 1991, p. 27)

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O pensamento do doutrinador lusitano Jorge Miranda, ao abordar a interpreta-


ção e integração das normas constitucionais, também abona tal entendimento:

Deve assentar-se no postulado de que todas as normas constitucionais


são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no
ordenamento. A nenhuma pode dar-se uma interpretação que lhe retire
ou diminua a razão de ser. Mais: a uma norma fundamental tem de ser
atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional
é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de
capacidade de regulamentação. Interpretar a Constituição é ainda realizar
a Constituição [...]. (MIRANDA, Jorge, 2000, t. 2, p. 263)

J. J. Gomes Canotilho nomeia o princípio hermenêutico como “princípio da máxi-


ma efectividade”, ditando-lhe assim o conteúdo, verbo ad verbum:

Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princí-


pio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a
uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia
lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas
constitucionais, em embora a sua origem esteja ligada à tese da actuali-
dade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no
âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a
interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).
(CANOTILHO, J.J. Gomes, 2002, p. 1208)

Nesta linha de pensar, objetivando dar maior efetividade ao princípio da capaci-


dade contributiva, entendemos que o poder constituinte originário de 1988, ao alterar
a redação do art. 202 da Constituição Federal de 1946 (ver 2), transmutando-o no
atual §1º do art. 145 da Carta Magna, fê-lo adicionando nova eficácia ao princípio para
contemplar também o poder-dever da administração tributária de fiscalizar, cobrar e
executar o contribuinte que não tenha cumprido com sua obrigação tributária. Esse
poder-dever, que outrora se encontrava implícito na medida em que correspondia a
meio imprescindível para a realização do fim (justa distribuição da carga tributária),
agora assume explicitamente status constitucional como eficácia (jurídica) mesmo do
princípio, na medida em que representa condição de sua efetividade (eficácia social).
Neste ponto, convém observar que o constituinte originário faz uso da palavra “efeti-
vidade” e não “eficácia”, uso este que, ao nosso ver, não é sem propósito, fazendo
da fiscalização e cobrança verdadeiras eficácias do princípio examinado, sendo esta
a interpretação que melhor se coaduna com o princípio da máxima efetividade das
normas constitucionais. Assim, o princípio da capacidade contributiva implica o poder-­
dever da administração tributária de fiscalizar, cobrar e executar tributos.
Em que pese o desenvolver do raciocínio, a conclusão que chegamos não che-
gou à doutrina em geral dado o direcionamento do foco de seus estudos à questão de

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

se verificar quais são os limites dos poderes atribuídos ao Fisco como instrumental
posto à disposição do cumprimento do princípio da capacidade contributiva. A maioria
dos doutrinadores admite ser implícito o poder de fiscalizar da administração tributá-
ria sob a lógica de que “quem dá os fins dá os meios”, têm-no como mero poder de
polícia sem lhe investigar a base constitucional. Sacha Calmon chega ao extremo de
não admitir que os poderes conferidos ao Fisco pelo art. 145, §1º da Constituição
sirvam para embasar uma fiscalização a posteriori, entendendo que somente po-
dem ser utilizados para aferir a priori a capacidade contributiva dos estamentos de
contribuintes:

A investigação que o §1º do art. 145 permite ao Estado-Administração


é justamente para aferir a capacidade contributiva dos estamentos de
contribuintes, e não para fiscalizá-los a posteriori. Esse poder de polícia
o Fisco sempre teve, obedecidos os devidos processos e procedimentos
legais e respeitados os direitos individuais, do contrário não faria senso
fosse ele esculpido na Constituição. Onde a novidade? É princípio ins-
trumental de Direito o que proclama: quem tem fins, deve ter meios. O
dever de contribuir pode ser descumprido total ou parcialmente. Compete
ao Estado, olhos postos na lei, conferir a correspondência do dever em
face da lei, isto, é sua a função indeclinável e obrigatória de fiscalizar os
contribuintes. O constituinte desejou obrigar a Administração a cumprir, a
realizar, o princípio da capacidade contributiva, autorizando-a a investigar
a realidade e, conseqüentemente os contribuintes, sem intuito fiscaliza-
tório, senão preparatório, com vistas a estabelecer um sistema efetivo e
justo de tributação. (COÊLHO, Sacha, 2000, p. 90)

Contudo, a possibilidade do uso dos poderes conferidos pelo artigo sob exame
à administração tributária com o intuito de fiscalizar a atuação do contribuinte (fis-
calização a posteriori) já é majoritariamente aceita pela doutrina, que parte dessa
premissa justamente para criticá-los:

Qual a base para a graduação do imposto? Base para graduação do im-


posto, quando pessoal, será a apuração da capacidade econômica do
contribuinte e, nesse caso, a administração tributária poderá, respeitados
os termos da lei e os direitos individuais, alcançar os objetivos visados,
identificando (a) o ‘patrimônio’, (b) os ‘rendimentos’, (c) as ‘atividades
econômicas do contribuinte’. Identificar foi o vocábulo eufêmico, empre-
gado pelo legislador constituinte, para designar a investigação que os
agentes fazem para descobrir, na realidade, o que o contribuinte recolheu
aos cofres públicos, o que deveria ter recolhido, ao declarar o montante
do patrimônio, o quantum dos rendimentos e até o tipo de atividades de-
sempenhadas. Trata-se de verdadeira devassa, que invade a privacidade
do cidadão, seus costumes, hábitos, modos de vida. (CRETELLA JÚNIOR,
José, 1993, p. 3499)

No mesmo sentido e tecendo críticas semelhantes, também é a lição de Ives


Gandra Martins (1998, p. 61) e Luciano Amaro (1999, p. 138), entendendo o primeiro

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que o comando é meramente regulamentar, não devendo estar constitucionalizado,


e o segundo que a faculdade de investigar deve ser compatibilizada com os direitos
individuais.
De outro ângulo, Roque Antônio Carrazza (1999, p. 64), admitindo como os ou-
tros autores que o dispositivo “[...] autoriza a fazenda pública, observados os direitos
individuais e a lei, a avaliar os sinais exteriores de riqueza do contribuinte, de modo
a detectar possíveis fraudes tributárias [...]”, afirma categoricamente que a norma
não diz respeito ao princípio da capacidade contributiva, apontando-a, inclusive, como
um erro de técnica legislativa. Quanto a este último aspecto, sem razão o renomado
autor. Se a tributação segundo a capacidade contributiva foi erigida à condição de
princípio, de direito fundamental na constituição, imperioso é interpretá-la à luz dos
princípios hermenêuticos próprios, ao invés de seguir por uma opção simplista apon-
tando “erro de técnica legislativa”. Nesse sentido, o princípio da máxima efetividade
indica o caminho adequado para se considerar a atividade fiscalizatória como verda-
deira eficácia do princípio da capacidade contributiva, evidenciada pela consideração,
na sua (do princípio da capacidade contributiva) dimensão subjetiva, do status passi-
vo do indivíduo frente ao Estado.
Portanto, com a devida vênia dos renomados autores, pelas razões já expos-
tas, ousamos manter nosso ponto de vista de que o poder-dever da administração
tributária de fiscalizar, cobrar e executar tributos é uma das eficácias do princípio da
capacidade contributiva.
A conclusão a que se chegou implica que os poderes concedidos à administra-
ção tributária – quais sejam: identificar o patrimônio, o rendimento e as atividades
econômicas dos contribuintes – podem e devem ser utilizados nas atividades de
fiscalização, cobrança e execução do sujeito passivo. Não se pode olvidar que tal
exercício de poder-dever não se faz sem as limitações estatuídas na própria letra da
Constituição: o respeito aos direitos individuais e a existência de lei disciplinadora.
Com efeito, as limitações apontadas invocam a consideração do princípio agora
sob a sua dimensão objetiva, já que como direito fundamental pode traduzir-se em
valor básico da sociedade política para legitimar restrições aos direitos subjetivos
individuais em função do próprio benefício da comunidade, através da ponderação de
valores. Tal é o caminho apontado por dois outros princípios hermenêuticos constitu-
cionais: o princípio da concordância prática e o princípio da proporcionalidade.
Segundo a lição de Canotilho (2002, p. 1166), a Constituição, como sistema
aberto de princípios, evidencia fenômenos de tensão recíproca entre os mesmos.
Tal característica lhe é inerente na medida em que, na sua origem, deriva de um
compromisso entre vários atores sociais transportadores de ideias, aspirações e in-
teresses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios. Assim,
a validade absoluta de determinados princípios em detrimento de outros implicaria a
destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental, de modo

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

que tal óbice guia o intérprete aplicador a aceitar que, em caso de conflito, não se
deve fazer uso da “lógica do tudo ou nada” (uma norma revogando a outra), mas sim
da lógica da ponderação e concordância prática consoante as circunstâncias de cada
caso, de modo a preservar a multiplicidade de princípios desejados pelo legislador
constituinte, bem como sua carga valorativa.
Tal circunstância evidencia o princípio da unidade hierárquico-normativa que
“[...] significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dig-
nidade (não há normas só formais, nem hierarquia de surpra-infra-ordenação dentro
da lei constitucional)” (CANOTILHO, 2002, p. 1167). Assim, a interpretação consti-
tucional deve ser feita de modo a evitar contradições entre suas normas, devendo
o intérprete considerar a constituição na sua globalidade, procurando harmonizar os
espaços de tensão entre as normas constitucionais a concretizar. Este objetivo é al-
cançado mediante o princípio interpretativo da concordância prática ou harmonização
que “[...] impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma
a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros” (CANOTILHO, 2002, p. 1209).
Aplicando o raciocino ao caso sob exame, temos que quando o legislador cons-
tituinte escreveu na 2ª parte do §1º do art. 145 da Constituição Federal “facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,
identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes”, evidenciou a possibi-
lidade de conflito de princípios decorrente da aplicação do princípio da capacidade
contributiva que se tornaria suscetível de concordância prática com outras normas
constitucionais, mormente os direitos fundamentais e especialmente aqueles refe-
rentes à intimidade, vida privada e propriedade (art. 5º, X e XXII, da CF/88). Essa
concordância prática se daria através da concretização legislativa (“[...] e nos termos
da lei [...]”) facultada ao legislador como forma de densificação dos princípios consti-
tucionais identificada pelo mestre lusitano (CANOTILHO, 2002, p. 1167), sendo que
esta lei concretizadora haveria de obedecer a uma lógica de ponderação entre meios
sacrificados e fins salvaguardados, segundo a dogmática do princípio da proporciona-
lidade ou devido processo legal material.

5 Conclusões
1. O princípio da capacidade contributiva tem sua origem na ideia de justiça
distributiva desenvolvida pelos filósofos gregos, expandida para os antigos egípcios,
recebida em Roma, posteriormente ressuscitada na filosofia escolástica e finalmente
positivada nas declarações de direitos do século XIX. Segundo aquela clássica ideia,
o bem do particular ocorre quando a sociedade concede benefícios e impõe encargos
a cada um de acordo com o que lhe é devido segundo uma igualdade proporcional ou

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relativa conforme a necessidade, o mérito e a importância de cada indivíduo, isto é,


considerando-se a situação particular das pessoas.
2. Durante o seu desenvolvimento, o princípio da capacidade contributiva evo-
luiu de um papel de conteúdo material do princípio da igualdade para tornar-se um
princípio autônomo em relação àquele, podendo ser atualmente considerado um
desdobramento particular do princípio da isonomia, consagrando-se como verdadeiro
direito fundamental.
3. Capacidade contributiva e capacidade econômica são conceitos distintos.
Por capacidade econômica pode-se entender a aptidão dos indivíduos para obter ri-
quezas, exteriorizada sob a forma de renda, consumo ou patrimônio. Já capacidade
contributiva refere-se à capacidade dos indivíduos de arcar com o ônus tributário de
pagar tributos, sem sacrifício do indispensável à vida com dignidade, trata-se de uma
capacidade econômica específica, limitada à seara tributária, qualificada por um de-
ver de solidariedade onde predomina o interesse coletivo. Neste sentido, o uso de um
termo por outro no texto constitucional não lhe prejudica o significado de capacidade
contributiva, posto que contextualizado.
4. Além do conceito de capacidade contributiva objetiva (verificação das mani-
festações objetivas de riqueza), são jurídicos os conceitos de capacidade contributiva
subjetiva (aptidão de contribuir na medida das possibilidades econômicas de determi-
nada pessoa em uma situação concreta) e capacidade contributiva global (montante
da riqueza de um determinado indivíduo em relação a todos os tributos que ele deverá
pagar em determinado período).
5. O princípio da capacidade contributiva vincula, além do legislador e do juiz,
também o administrador. Essa vinculação se dá não só no que diz respeito a negar
cumprimento a uma lei violadora do preceito fundamental mediante orientação do
chefe do Poder Executivo (status negativo), como também no poder-dever da adminis-
tração tributária de exigir do sujeito passivo o tributo já instituído na justa medida de
sua capacidade contributiva (status passivo).
6. Na sua dimensão objetiva o princípio da capacidade contributiva possui a efi-
cácia mínima, dentre outras, de: servir como parâmetro para o controle de constitucio-
nalidade de medidas a ela restritivas e, traduzindo-se em valor básico da sociedade
política, legitimar restrições aos direitos subjetivos individuais em função do próprio
benefício da comunidade através da ponderação de valores.
7. O poder constituinte originário de 1988, ao alterar a redação do art. 202
da Constituição Federal de 1946, transmutando-o no atual §1º do art. 145 da Carta
Magna, fê-lo adicionando nova eficácia ao princípio da capacidade contributiva para
contemplar também o poder-dever da administração tributária de fiscalizar, cobrar e
executar o contribuinte que não tenha cumprido com sua obrigação tributária. Esse
poder-dever, que outrora se encontrava implícito na medida em que correspondia a
meio imprescindível para a realização do fim (justa distribuição da carga tributária),

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Princípio da capacidade contributiva: eficácia para contemplar o poder-dever...

agora assume explicitamente status constitucional como eficácia (jurídica) mesmo do


princípio, na medida em que representa condição de sua efetividade (eficácia social).
8. Os poderes concedidos à administração tributária de identificar o patrimônio,
o rendimento e as atividades econômicas dos contribuintes podem e devem ser utili-
zados nas atividades de fiscalização, cobrança e execução do sujeito passivo.
9. Quando o legislador constituinte escreveu na 2ª parte do §1º do art. 145 da
Constituição Federal “facultado à administração tributária, especialmente para confe-
rir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos
termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contri-
buintes”, evidenciou a possibilidade de conflito de princípios decorrente da aplicação
do princípio da capacidade contributiva que se tornaria suscetível de concordância
prática com outras normas constitucionais, mormente os direitos fundamentais refe-
rentes à intimidade, vida privada e propriedade, através da concretização legislativa.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

VALENTE, Christiano Mendes Wolney. Princípio da capacidade contributiva: eficácia


para contemplar o poder-dever da administração tributária de fiscalizar, cobrar e
executar tributos. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, Ano
13, n. 75, p. 91-112, maio/jun. 2015.

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