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Resumo: O artigo investiga as origens do princípio da capacidade contributiva partindo da ideia aristotélica
de justiça distributiva, passando pela concepção liberal de “princípio do benefício ou equivalência” até
chegar à atual compreensão de que o princípio assume a feição de direito fundamental na Constituição
Federal brasileira de 1988, com todas as eficácias que são próprias a esse status. A partir daí identifica
dentre as eficácias do princípio a de restringir o alcance de outros direitos fundamentais, notadamente
os referentes à intimidade, vida privada e propriedade, consoante um juízo de ponderação de princípios,
a fim de municiar o Estado de mecanismos eficazes de elaboração legislativa, fiscalização, lançamento,
cobrança e execução dos tributos devidos.
Palavras-chave: Direito. Constitucional. Tributário. Capacidade contributiva. Capacidade econômica.
Justiça distributiva. Princípio da igualdade. Administração tributária. Fiscalização, lançamento, cobrança e
execução do crédito tributário. Eficácia e efetividade. Execução fiscal.
Sumário: 1 Origem e natureza jurídica – 2 O princípio nas constituições brasileiras – 3 Conceito e eficácia
– 4 Capacidade contributiva e administração tributária – 5 Conclusões – 6 Referências
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anos, pagar ao Senhor meio siclo como resgate de sua vida, “de modo que o rico não
pagasse mais, nem o pobre menos”. Também menciona que em dado momento, em
Atenas, havia um tributo em benefício da marinha nacional que era exigido de todos
os cidadãos cujo cabedal atingisse dez talentos. “Para sua cobrança, procedia-se ao
registro da importância das prestações, estimadas em função das possibilidades de
cada um dos obrigados” (NOBRE JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 18).
Dentre os romanos, a figura do tributum civile, ao qual estavam submetidos os
cidadãos com vistas à cooperação em empresas bélicas frente a povos inimigos, to-
mava por medida o censo do montante total do patrimônio da população, competindo
ao Senado a fixação de uma taxa de um tanto por mil, representativa da quantidade
a ser paga em dinheiro (NOBRE JÚNIOR, Edilson, 2001, p. 18).
Lembra Edilson Pereira Nobre Júnior (2001, p. 18), citando Carlos Palao
Taboada, a existência de textos de Santo Tomás de Aquino que orientavam as pes-
soas a pagarem os impostos justos (instituídos secundum equalitatem proportionis),
sob pena de pecado, e a não pagarem os impostos injustos, posto que arbitrários.
Ainda segundo o mesmo autor, a Magna Carta de 15 de junho de 1215 já previa
em seu texto que não seriam lançadas taxas ou tributos fora de limites razoáveis1 e
Maquiavel, consoante orientação de Alfredo Becker (1998, p. 480), já teria discorrido
sobre o princípio da capacidade contributiva, muito embora o objetivo principal fosse
afirmar a norma da generalidade do dever tributário, frequentemente violada à época
por privilégios e franquias de toda a espécie, e só em segundo plano repudiar a
iniquidade dos sistemas tributários então vigentes, fundados sobre a capitação (por
cabeça e, portanto, regressivos), violando os mais elementares princípios da justiça
distributiva.
Segundo a clássica ideia de justiça distributiva, o bem do particular ocorre
quando a sociedade dá a cada um o que lhe é devido segundo uma igualdade pro-
porcional ou relativa, conforme a necessidade, o mérito e a importância de cada indi-
víduo. Realiza-se na distribuição dos benefícios e dos encargos entre os membros de
uma comunidade, considerando-se a situação particular das pessoas (DINIZ, Maria
Helena, 1998, p. 39).
Neste diapasão, lembra Edilson Nobre Júnior (2001, p. 19) que Adam Smith,
em sua obra “A riqueza das nações” (1776), já apontava que os indivíduos deveriam
contribuir o máximo possível para a manutenção dos encargos públicos, pautando-
se tal contribuição de acordo com a capacidade de cada um, representada pela re-
tribuição desfrutada sob a proteção do Estado através da realização de obras ou
prestação de serviços públicos. Tal raciocínio acabou por caracterizar o chamado
1
A Magna Carta de 1215, que limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente o do Rei João, que
o assinou, ao submeter o rei à legalidade inaugurou o chamado “princípio do consentimento” que passou a
legitimar o poder tributante do Estado (“no taxation without representation”).
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O “princípio do benefício” também recebe o nome de “princípio da equivalência”. Segundo Maurin Almeida
Falcão (2009), o liberalismo clássico e o Estado intervencionista deram origem a diferentes visões dos tributos
como mecanismos da atuação estatal. Para os liberais, o sacrifício fiscal decorria do preço pago pelo cidadão
para a sua segurança e pelos serviços prestados pelo Estado. Um pacto tácito estabelecido entre o contri-
buinte e o Estado cuja relação decorreria do contrato social onde os indivíduos alienariam uma parte de sua
liberdade e de seus bens em proveito do Estado. A essa ideia corresponde o “principio da equivalência”, se-
gundo o qual a repartição da carga tributária se faz em função da utilidade que cada indivíduo obtém dos bens
públicos consumidos. Já a concepção socialista estabelece o tributo como um mecanismo de solidariedade
social, favorecendo, dessa forma, o aperfeiçoamento do princípio da capacidade contributiva dos indivíduos e
a instituição da progressividade do imposto.
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Num terceiro momento, a capacidade contributiva passou a ser tida como: “uma
especificação concreta do princípio da igualdade, concebido este não mais sob a óti-
ca puramente formal, mas como um princípio autônomo, com conteúdo determinado,
sem, portanto, depender de uma concreção material específica” (NOBRE JÚNIOR,
Edilson, 2001, p. 36).
Com efeito, o conteúdo autônomo e determinado do princípio da igualdade já
foi inteligentemente investigado por Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 47):
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de bens por herança ou legado (art. 128), além de estabelecer em seu art. 185 um
limite genérico para a elevação de qualquer imposto.3
Nenhum dispositivo que prestigiasse explicitamente o princípio da capaci-
dade contributiva pôde ser encontrado na carta de 1937. Porém, na Constituição
Democrática de 1946 pode-se encontrar adesão explícita ao postulado: “Art. 202.
Os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for possível, e serão graduados
conforme a capacidade econômica do contribuinte”.
Já durante o duro regime militar instituído em nosso país, a Emenda Constitucional
nº 18, de 1º de dezembro de 1965 expulsou aquele dispositivo do texto constitucio-
nal, sendo que a Carta Magna de 1967, bem como a Emenda nº 1 de 1969 seguiram
no mesmo rumo. Aqui, importante salientar que a doutrina majoritária, esposando o
posicionamento de Aliomar Baleeiro, entendia que na Constituição Federal de 1967,
com a Emenda nº 1 de 1969, o princípio permanecia vigente, ainda que implícito,
decorrente da interpretação do seu art. 153, §36 – semelhante ao atual art. 5º, §2º
da CF/88 (MORAES, Bernardo, 1997, p. 120).
Na atual Constituição Federal de 1988 o princípio volta a ser consagrado expli-
citamente, estando assim redigido o seu art. 145, §1º:
Deve-se observar também que nesta mesma carta constitucional pode-se cole-
tar, em outros dispositivos, indícios da adoção do princípio entre nós. Tal é o caso do
disposto no art. 145, II e III (princípio do benefício); 150, II (princípio da igualdade);
150, IV (vedação do confisco); 153, §2º, I (progressividade do imposto sobre a ren-
da); 153, §3º, I (seletividade em função da essencialidade do imposto sobre produtos
industrializados) etc.
3 Conceito e eficácia
É clássico o ensinamento de Aliomar Baleeiro (1993, p. 259, grifo nosso) em
suas lições introdutórias à ciência das finanças:
3
Dizia o mencionado dispositivo da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil: “Art 128 – Ficam
sujeitas a imposto progressivo as transmissões de bens por herança ou legado”.
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Deste modo, o Estado Social de Direito, que se caracteriza pela busca da rea
lização da igualdade material, não pode prescindir do princípio, já que este serve
como instrumental posto à sua disposição para a consecução de seus fins, sem
descaracterizá-lo como princípio autônomo já que possui aplicação fora da isonomia
(v.g. obediência na eleição pelo legislador de hipótese de incidência tributária).
Em que pese o conceito acima firmado, o eminente jurista Alfredo Augusto
Becker (1998, p. 481) faz severas críticas ao signo “capacidade contributiva”:
De fato, das críticas do grande cientista conclui-se que mais importante que
conceituar o princípio, sem embargo das lições até então expendidas pela doutrina
citada, é verificar de que maneira ele se torna eficaz no ordenamento jurídico. Nesse
sentido, é do próprio Becker (1998, p. 489 e 494) a lição de que na regra constitu-
cional da capacidade contributiva há “[...] um mínimo de certeza e praticabilidade que
revelam sua juridicidade e delimitam o restrito campo de sua eficácia jurídica”.
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Consoante a mencionada Lei nº 9.868/99: “Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado
da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial
da União a parte dispositiva do acórdão.
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação
conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia
contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal,
estadual e municipal”.
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De observar que o julgado do STF, muito embora tenha feito uso do conceito de
capacidade contributiva global, restringiu sua aferição em relação somente à carga
imposta por um só ente tributante, desconsiderando a carga tributária total suportada
pelo indivíduo proveniente das competências de entes distintos.
Continuando a exposição, tem-se que, segundo Becker (1998, p. 498 e s.), as
constrições sofridas pelo conceito de capacidade contributiva ao adentrar no mundo
jurídico direcionam a sua eficácia a quatro manifestações distintas:
1ª – a regra jurídica constitucional que jurisdiciza o princípio da capacidade
contributiva tem eficácia exclusivamente perante o legislador, obrigando-o a escolher
para hipótese de incidência da regra tributária exclusivamente fatos que sejam signos
presuntivos de renda ou de capital, sob pena de inconstitucionalidade que pode ser
declarada pelo juiz (exclui a verificação da capacidade contributiva subjetiva, posição
já criticada acima);
2ª – os fatos-signos presuntivos escolhidos pelo legislador devem evidenciar
renda ou capital acima do mínimo indispensável ou, nos casos em que tal apreciação
fica impossibilitada, deve o legislador criar isenções tributárias simultaneamente com
a lei criadora do tributo para resguardar este mínimo indispensável;
3ª – o legislador deve graduar a alíquota ou ritmar sua progressividade no senti-
do diretamente proporcional à grandeza presumível da renda ou capital do respectivo
contribuinte;
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Com efeito, muito embora todos possam interpretar e aplicar uma norma jurídi-
ca, o seu único intérprete autêntico é o Poder Judiciário no exercício de sua função
jurisdicional. A ele impende dar a última palavra fixando a interpretação e a aplicação
do dispositivo legal, de forma que, à luz do princípio da inafastabilidade da jurisdição,
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o ato do chefe do Poder Executivo pode ser por ele (órgão judicial) examinado quando
provocado. Tal circunstância não impede reconhecer a existência de um verdadeiro
poder-dever do chefe do Poder Executivo em negar execução a normas violadoras
do princípio da capacidade contributiva, mormente quando se verifica que em nos-
so ordenamento jurídico a vinculação do administrador ao princípio sob exame vem
expressa no próprio texto constitucional, mesmo que sob um aspecto positivo, ao
mencionar que é “facultado (poder-dever) à administração tributária, especialmente
para conferir efetividade a esses objetivos (capacidade contributiva), identificar, res-
peitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e
as atividades econômicas dos contribuintes”.
Outrossim, não se pode olvidar que, caracterizado o princípio da capacidade
contributiva como verdadeiro direito fundamental, a consequência imediata daí de-
corrente é a de que se submete ao regime jurídico de tais direitos. Desta forma, se
manifesta tanto na dimensão subjetiva, como na dimensão objetiva.
Em sua dimensão subjetiva identifica-se o status passivo do indivíduo fren-
te ao Estado que assume função ativa, no momento em que a este é atribuído o
poder-dever de exigir do sujeito passivo o tributo já instituído na justa medida de sua
capacidade contributiva. Esta exigibilidade se dá mediante atividade administrativa
plenamente vinculada (art. 3º da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código
Tributário Nacional), culminando com o processo de execução fiscal (Lei nº 6.830,
de 22 de setembro de 1980). Quanto ao status negativo, pode-se caracterizá-lo em
todas as situações em que ao Estado é imposto um dever de abstenção, v.g. não
cobrar tributo confiscatório, ou seja, que viole o mínimo vital; não graduar a alíquota
de um tributo ou ritmar sua progressividade no sentido inversamente proporcional à
grandeza presumível da renda ou capital do respectivo contribuinte. Observa-se, em
ambos os casos, evidente alcance do dispositivo à administração tributária.
Com relação à dimensão objetiva, tem-se que o direito fundamental sob exame
possui a eficácia mínima de: servir como modelo interpretativo para as demais normas
do ordenamento jurídico, revogar as normas anteriores com ela incompatíveis, servir
como parâmetro para o controle de constitucionalidade de medidas a ela restritivas e,
traduzindo-se em valor básico da sociedade política (o que aqui mais nos interessa),
legitimar restrições aos direitos subjetivos individuais em função do próprio benefício
da comunidade através da ponderação de valores. Desta maneira, o valor da justa dis-
tribuição da carga tributária (igualdade) permite a restrição a outros direitos fundamen-
tais, desde que obedecido o princípio da proporcionalidade, em prol do bem comum.
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Tal raciocínio também assume relevo numa constatação de que se “B”, apesar
de não ter pago o tributo, não é fiscalizado, cobrado ou executado, o Estado, para
reaver esse valor, volta-se contra aqueles que cumprem com a sua obrigação tributá-
ria, aumentando-lhes a carga fiscal. “A” passaria a ser penalizado pela inadimplência
de “B”. Neste ponto é que reside o interesse de “A” na atuação do Estado contra
“B”, evidenciando-se assim verdadeiro status positivo de “A” frente ao Estado para a
realização de uma justa distribuição da carga tributária.
Retornando ao tema da aproximação entre ser e dever-ser, deve-se fazer alguns
esclarecimentos. Existência, validez e eficácia são os distintos planos do mundo jurí-
dico que orientam a análise científica de quaisquer atos jurídicos. A norma, como ato
jurídico legislativo típico, submete-se também a uma análise científica nesses três
planos. Sucintamente, pode-se dizer que no plano da existência verifica-se a presença
dos elementos constitutivos do ato (agente, objeto, forma), no plano da validez cons-
tata-se a sua conformidade com o ordenamento jurídico (nulidade ou anulabilidade)
e no plano da eficácia o que se verifica é a sua aptidão para a produção de efeitos
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(pendência de condição), para a irradiação das consequências que lhe são próprias.
Eficaz é o ato idôneo para atingir a finalidade para a qual foi gerado (BARROSO, Luís,
1996, p. 219).
Fora desses planos há o plano social ou da realidade, plano do mundo do ser,
onde se encontra a efetividade ou eficácia social da norma. Hans Kelsen (1991, p.
11) retratou este plano como sendo a verificação do “[...] fato real de ela (norma) ser
efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana con-
forme a norma se verificar na ordem dos fatos”. Da conceituação se extrai a íntima
relação entre eficácia e efetividade: a eficácia é condição de efetividade. Se a norma
não está apta a produzir efeitos, ela não está apta a moldar a realidade social sobre
a qual se aplica. Outrossim, sob outro ângulo, a efetividade é condição da eficácia,
pois não faz sentido algum se estabelecer uma norma “[...] que preceituasse um cer-
to fato que de antemão se sabe que de forma alguma se poderá verificar” (KELSEN,
Hans, 1991, p. 12). Assim, resta que, quanto maior for a eficácia de uma norma no
plano jurídico, maior poderá ser sua efetividade no plano material e vice-versa.
Esta constatação torna-se de sobremaneira relevante num contexto em que os
grandes doutrinadores do Direito Constitucional elegem a ideia de efetividade das
normas constitucionais à categoria de princípio hermenêutico:
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se verificar quais são os limites dos poderes atribuídos ao Fisco como instrumental
posto à disposição do cumprimento do princípio da capacidade contributiva. A maioria
dos doutrinadores admite ser implícito o poder de fiscalizar da administração tributá-
ria sob a lógica de que “quem dá os fins dá os meios”, têm-no como mero poder de
polícia sem lhe investigar a base constitucional. Sacha Calmon chega ao extremo de
não admitir que os poderes conferidos ao Fisco pelo art. 145, §1º da Constituição
sirvam para embasar uma fiscalização a posteriori, entendendo que somente po-
dem ser utilizados para aferir a priori a capacidade contributiva dos estamentos de
contribuintes:
Contudo, a possibilidade do uso dos poderes conferidos pelo artigo sob exame
à administração tributária com o intuito de fiscalizar a atuação do contribuinte (fis-
calização a posteriori) já é majoritariamente aceita pela doutrina, que parte dessa
premissa justamente para criticá-los:
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que tal óbice guia o intérprete aplicador a aceitar que, em caso de conflito, não se
deve fazer uso da “lógica do tudo ou nada” (uma norma revogando a outra), mas sim
da lógica da ponderação e concordância prática consoante as circunstâncias de cada
caso, de modo a preservar a multiplicidade de princípios desejados pelo legislador
constituinte, bem como sua carga valorativa.
Tal circunstância evidencia o princípio da unidade hierárquico-normativa que
“[...] significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dig-
nidade (não há normas só formais, nem hierarquia de surpra-infra-ordenação dentro
da lei constitucional)” (CANOTILHO, 2002, p. 1167). Assim, a interpretação consti-
tucional deve ser feita de modo a evitar contradições entre suas normas, devendo
o intérprete considerar a constituição na sua globalidade, procurando harmonizar os
espaços de tensão entre as normas constitucionais a concretizar. Este objetivo é al-
cançado mediante o princípio interpretativo da concordância prática ou harmonização
que “[...] impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma
a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros” (CANOTILHO, 2002, p. 1209).
Aplicando o raciocino ao caso sob exame, temos que quando o legislador cons-
tituinte escreveu na 2ª parte do §1º do art. 145 da Constituição Federal “facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,
identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes”, evidenciou a possibi-
lidade de conflito de princípios decorrente da aplicação do princípio da capacidade
contributiva que se tornaria suscetível de concordância prática com outras normas
constitucionais, mormente os direitos fundamentais e especialmente aqueles refe-
rentes à intimidade, vida privada e propriedade (art. 5º, X e XXII, da CF/88). Essa
concordância prática se daria através da concretização legislativa (“[...] e nos termos
da lei [...]”) facultada ao legislador como forma de densificação dos princípios consti-
tucionais identificada pelo mestre lusitano (CANOTILHO, 2002, p. 1167), sendo que
esta lei concretizadora haveria de obedecer a uma lógica de ponderação entre meios
sacrificados e fins salvaguardados, segundo a dogmática do princípio da proporciona-
lidade ou devido processo legal material.
5 Conclusões
1. O princípio da capacidade contributiva tem sua origem na ideia de justiça
distributiva desenvolvida pelos filósofos gregos, expandida para os antigos egípcios,
recebida em Roma, posteriormente ressuscitada na filosofia escolástica e finalmente
positivada nas declarações de direitos do século XIX. Segundo aquela clássica ideia,
o bem do particular ocorre quando a sociedade concede benefícios e impõe encargos
a cada um de acordo com o que lhe é devido segundo uma igualdade proporcional ou
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