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Grupo de Pesquisa Filosofia e Interdisciplinaridade

Modernização conservadora como conciliação entre República/modernidade e


patriarcalismo/sociedade colonial: ensaio de interpretação filosófica – aula 3

1. Questão central de nosso projeto: como explicarmos os problemas de integração e


de estratificação sociais, de autoritarismo institucional e de violência social, de
periferização econômico-cultural em nosso país enquanto um continuum ao longo de
todo o século XX e entrando em cheio no século XXI?

2. Hipótese fundamental: o núcleo dinamizador desses problemas está em nossa


modernização incompleta, deficitária, uma modernização conservadora que, enquanto
conciliação entre uma perspectiva propriamente republicana e moderna e, ao mesmo
tempo, um forte componente patrimonialista, colonial e escravista, trava, deslegitima e
subverte o processo de maturação democrática, política, social, cultural e econômica
que está por trás do processo de modernização, que é uma exigência normativa (e
civilizacional) do processo de modernização.

3. Modelo paradigmático de modernização (modernização “europeia”): no âmbito


da cultura, racionalização cultural (secularização e profanização das imagens mítico-
religiosas ou metafísico-teológicas de mundo); universalismo epistemológico-moral
(perspectiva axiológica não-egocêntrica e não-etnocêntrica); direitos individuais,
políticos e sociais; democracia política; no âmbito econômico, livre mercado, livre
iniciativa, meritocracia, industrialização (ciência e tecnologia), Estado interventor e
compensatório. Nesse modelo paradigmático da modernidade-modernização europeia,
tem-se a primazia, ontogeneticamente falando, da modernidade cultural em relação à
modernização econômica; esta foi possível por causa daquela, aquela é primária em
relação a esta. Além disso, seus atores centrais foram os burgueses (e os proletários, ao
longo da modernização), seu núcleo foi a indústria, o capital industrial (hoje é também
o financeiro), e seu centro foi a cidade (e o Estado-nação e, depois, a globalização).
3.1 Revolução burguesa europeia demarca o ponto nevrálgico da dinamização da
modernidade-modernização europeia – os burgueses, a cidade e a indústria não levam
apenas a uma transformação econômica, mas também a uma reorientação cultural, em
particular em termos de derrubada do tradicionalismo, do substrato essencialista e
naturalizado próprio ao tradicionalismo, ao antigo regime.
3.2 Importante destacar, por fim, que não estamos entendendo nosso processo de
modernização enquanto estando desligado do contexto maior da modernização
europeia e recusando a própria centralidade, aqui, do colonialismo – uma vez que
entendemos a constituição de nossa sociedade de um modo geral e de nossa sociedade
moderna em particular enquanto um processo que está atrelado umbilicalmente ao
padrão de modernização ocidental, o que significa que nossa periferização econômico-
cultural responde a e é consequência de um movimento que tem seu cerne na dinâmica
colonialista e expansionista do capitalismo europeu e, depois, norte-americano.
3.3 Categoria central da modernidade-modernização europeia enquanto padrão
filosófico-sociológico prévio de nossas análises (conforme Marx, n’O Manifesto do
Partido Comunista): contradição – “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”.
3.4 Categoria central da modernização conservadora brasileira: conciliação como
ausência de dialética, como despolitização-apoliticidade, como ordem e integração
plenas (por isso apolíticas e despolitizadoras).
3.5 Indústria, no paradigma da modernização europeia: queda das fundamentações
essencialistas e naturalizadas, meritocracia, economicismo como critério do status –
incluindo-se a racionalização da gestão dos processos econômicos e do trabalho, da
relação entre burguês e proletário, entre capital e trabalho (para Marx e para Weber, a
ideologia da sociedade burguesa não estava calcada em fundamentos essencialistas e
naturalizados, como no Antigo Regime, mas em termos da ética econômica própria à
meritocracia).
3.6 Campo, no paradigma da modernização europeia: modelo de relações de poder e
de autoridade conservador porque essencialista e naturalizado, fortemente hierárquico,
autoritário e violento – sua ideologia funda-se nesse modelo de fundamentações
essencialistas e naturalizadas.

A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes: elementos


teórico-políticos importantes para nosso projeto:
1. A modernização brasileira foi, antes de tudo, modernização econômica da grande
fazenda de café, com todo o substrato jurídico-político e socioeconômico necessário
para viabilizar a exportação. Seu ator central foi, portanto, o grande fazendeiro de
café, aquele mesmo que até pouco tempo antes fôra o senhor de escravos do antigo
regime. Seu grande núcleo, como disse, foi a fazenda de café. E o seu centro foi o
campo. Assim, sendo marcada de modo primário pela modernização econômica, não
alterou substancialmente as estruturas sociais, a hierarquia de classes e os princípios
culturais próprios a uma sociedade patrimonialista (e patriarcalista), mormente o
escravismo (raça como critério de estratificação e de acesso ao poder, autoritarismo,
violência e miséria sociais).

1.1 Portanto, a revolução burguesa não foi feita, no Brasil, por burgueses, mas sim por
fazendeiros de café; seu núcleo não foi a indústria, mas sim a fazenda cafeeira; seu centro
não foi a cidade, mas sim o campo; e seu objetivo não foi a derrubada como um todo da
ordem tradicional própria ao antigo regime (no qual o escravismo estava situado), mas a
inserção da economia brasileira no âmbito das relações de produção burguesas, modelo
paradigmático à Europa ocidental da época (Inglaterra, França e Alemanha, mais Estados
Unidos).

1.2 Nesse sentido, podemos definir a revolução burguesa brasileira como conciliação
apolítica e despolitizadora entre República-modernidade-modernização e
patrimonialismo-patriarcalismo-sociedade colonial, em que temos a ênfase preponderante
na inserção da fazenda cafeeira no contexto das relações de produção modernizantes,
próprio à Europa ocidental, e um movimento lento e tímido em relação à modernidade
cultural. Portanto, aqui, temos um capitalismo periférico sem humanismo (ou com pouco
humanismo), uma ordem econômica liberal com tradicionalismo cultural, um Estado
democrático de direito com estratificação social calcada no preconceito de raça e de cor,
uma democracia fortemente oligárquica e autoritária. Nessa conciliação, a ação prática e a
estratificação social, assim como a atuação cotidiana das instituições, são grandemente
determinadas pela necessidade de se conformarem a esse padrão essencialista e
naturalizado de compreensão social, política, cultural, epistemológica e econômica, isto é,
a transformação não pode envolver política e politização; ela não pode ser marcada pelo
protagonismo dos sujeitos sociopolíticos radicados na sociedade civil; trata-se, com isso,
de uma evolução pela despolitização, pela ordem, como que sob a forma de um
espontaneísmo cujo único protagonista são as instituições e cujo princípio fundamental
consiste na recusa da práxis, das contradições cotidianas.
2. Uma das principais características de nossa modernização conservadora está e é
representada exatamente pelo status social, cultural, político, jurídico e econômico do
negro, que mantém-se como que intacto na emergência desse nosso processo de
modernização. No caso, a condição do negro na ordem burguesa conservadora
brasileira é o ponto nevrálgico para entender-se, aqui, a centralidade da modernização
econômica e o caráter periférico da modernidade-modernização cultural enquanto
característica e caminho assumidos-tomados pela nossa modernização conservadora
enquanto conciliação.

3. Ideologia básica de nossa modernização conservadora, de nossa revolução burguesa


enquanto conciliação entre República-modernidade-modernização e patrimonialismo-
patriarcalismo-sociedade colonial: a democracia racial, que Florestan Fernandes
chama de mito da democracia racial. Seu argumento central estava que o Brasil, com
a Abolição da Escravatura e com a Proclamação da República, teria se constituído
como uma sociedade moderna, teria superado a ordem essencialista e naturalizada
própria ao antigo regime e, com isso, teria equalizado em direitos e em condições a
todos os seus sujeitos sociopolíticos. A partir de então, passaria a imperar a paridade e
a união entre as classes sociais, o universalismo político, jurídico e cultural, as
mesmas oportunidades entre todos e para todos. Aqui, nessa condição igualitária, a
meritocracia e a inserção da força de trabalho no mercado representariam as bases para
a estratificação social e a conquista da riqueza e do bem-estar por parte de cada um.
Logo, se o negro não evoluía, não se integrava, isso não era culpa da nova sociedade
brasileira, moderna e modernizante, mas da própria incapacidade do negro.

3.1 A democracia racial, enquanto ideologia que sustentou-sustenta nossa


modernização conservadora, nesse sentido, possibilita três pontos fundamentais a esse
Brasil moderno: primeiro, a despolitização dessa modernização conservadora como
conciliação entre República e sociedade colonial, modernidade e patrimonialismo,
uma vez que os problemas de integração social apresentados nela pelos estratos mais
pobres da sociedade não se deve a esta modernização deficitária, mas à meritocracia
própria a tais estratos (ou à falta dela) – o problema é de capacidade individual, não se
déficit político-institucional; segundo, a instauração e a consolidação de um poder
político-institucional altamente autoritário, centralizador e monopolizador, que retira
da sociedade civil o protagonismo político e deslegitima – e até destrói – qualquer
sujeito sociopolítico que ameace tanto esta ordem social, política, cultural e econômica
conservadora, conciliatória, quanto seu caminho e princípio evolutivo centrais, a
apoliticidade-despolitização (própria à conciliação) (tudo está bem, portanto sem
práxis); terceiro, a legitimação da ordem social burguesa por meio da inserção
individual ao mercado e em termos de meritocracia como os critérios fundamentais
para a estratificação social, o que despolitiza seja o mercado, seja o processo mais
amplo de nossa modernização conservadora, cujas contradições e problemas acabam
silenciados ou minimizados (como tudo está em ordem e todos são iguais, então a
estratificação e a mobilidade sociais dependem fundamentalmente da meritocracia).

3.2 O mito da democracia racial, com isso, legitima e leva à inação política, à
estagnação em termos de estratificação social, ao institucionalismo forte e autoritário.
No mesmo sentido, essa falsa democracia racial é o elemento mais permanente
consolidado pela nossa modernização conservadora como conciliação, marcada pela
primazia da modernização econômica e pelo caráter periférico da modernidade-
modernização cultural. E o escravismo é a herança fundante dela que nos foi legada
até hoje em nossas relações sociais, culturais e políticas cotidianas e frente às
instituições.

Passagens e motivos importantes d’A integração do negro na sociedade de classes, de


Florestan Fernandes:
Revolução burguesa conservadora no Brasil: primazia da modernização econômica em
relação à modernidade-modernização cultural; centralidade do fazendeiro de café, da
fazenda cafeeira e do campo em relação ao burguês, à indústria e à cidade; conciliação
entre República/modernidade e patrimonialismo/sociedade colonial; ordem social
burguesa como processo lento e descontínuo, marcado pela conciliação.
O esboroamento final da sociedade de castas e o processo de elaboração da ordem
social competitiva se ligam, complexamente, às condições de desenvolvimento da empresa
agrária – “a grande fazenda de café” – nas zonas em crescimento econômico, demográfico e
social acelerado. Por isso, ao mesmo tempo que a dinamização final da crise do antigo regime
veio do campo, dele também partiu a contenção ativa das tendências de reintegração da ordem
social, desencadeadas ou inerentes a essa mesma crise (p. 59-60).
É preciso ter em mente que aquela empresa agrária não se fechava sobre si mesma. Ela
surge e se desenvolve numa época em que já se podiam comercializar internamente várias
fases e proventos do processo de exportação, quase monopolizado em todo o seu conjunto, no
passado, pelos agentes da importação de produtos tropicais brasileiros. Por isso, ela se
projetava diretamente na revitalização dos núcleos urbanos com funções econômicas
específicas no referido processo, impelindo os fazendeiros a diferenciar seus papéis
econômicos e a intervir organizadamente nos diversos desdobramentos financeiros,
comerciais e políticos dos negócios de café. Em consequência, as cidades em questão se
convertem nas fronteiras econômicas da grande empresa agrária e nos verdadeiros bastiões da
luta pelos seus interesses mais profundos. Não é a sua acanhada e vacilante “burguesia” que
oferece a base econômica e o fulcro jurídico-político da formação incipiente da ordem social
competitiva. Mas o círculo dos grandes homens de negócios da época, os quais detinham em
suas mãos as engrenagens da vida econômica e política: os fazendeiros prósperos e os agentes
da comercialização do processo de exportação do café, com a vasta rede de associados e
dependentes que ambos possuíam na estrutura ocupacional, econômica e de poder das
comunidades urbanas (ou em urbanização). O protótipo do autêntico “grande empresário
rural” nos é dado pelo fazendeiro que desempenhava simultaneamente os vários papeis
socioeconômicos criados pelas ramificações dos interesses rurais nos centros urbanos (p. 60).
Desse ângulo, torna-se compreensível a marca seguida pela instauração e pela
evolução da ordem social competitiva no fim do Segundo Império e durante a Primeira
República. As inovações institucionais e a eficácia da liberalização jurídico-política
republicana foram circunscritas, na prática, às necessidades da adaptação da “grande-empresa
agrária” ao regime de trabalho livre e às relações de troca no mercado de trabalho que ele
pressupunha. Fora e acima disso, continuaram a imperar os modelos de comportamento, os
ideais de vida e os hábitos de dominação patrimonialista, vigentes anteriormente na sociedade
estamental e de castas. Para que a ordem social competitiva pudesse se expurgar desses
influxos constritivos e perturbadores, consolidando-se numa direção especificamente
“burguesa”, “liberal-democrática” e “urbana”, impunha-se que surgisse nas cidades um
sistema de produção que as equiparasse ao campo ou as tornasse independentes dele. Tal
condição se delineia lentamente e só demonstra certo vigor, malgrado as debilidades e as
incertezas da industrialização, meio século depois da Abolição e da Proclamação da
República. Nada podia impedir que o “coronelismo” como equivalente e substituto da
“nobreza agrária” convertesse o sistema republicano-presidencialista numa transação com o
antigo regime e, principalmente, que a ordem social competitiva se ajustasse às estruturas
persistentes daquele regime (p. 60).
Apesar do forte impulso inicial, provocado pela comercialização do café, e da
aceleração econômica burguesa, graças à expansão urbana e ao crescimento industrial, aquele
processo histórico-social revela extrema lentidão e notória descontinuidade. Embora ele seja
indiscutivelmente acumulativo, a projeção no tempo de seu desenvolvimento estrutural sugere
que cada fase decisiva de diferenciação progressiva e de “avanço” se intercala entre fases
alternativas, relativamente prolongadas, de compromisso com o passado e, mesmo, de
resistência seletiva a inovações socioculturais imperiosas (p. 299).
No entanto, as influências inovadoras ficaram mais ou menos confinadas, em grande
parte por causa do padrão de isolamento sociocultural vinculado seja ao escalão elevado de
vida das famílias “tradicionais”, seja ao estado de miséria e de desequilíbrio dos setores
dependentes da plebe. Nos dois extremos, pois, o desligamento dos fluxos de renovação
sociocultural tendia a ser acentuado (p. 301).
Tudo isso implica em que se dê atenção especial a certas influências socioculturais que
estabeleceram uma espécie de composição entre o presente e o passado, entre a sociedade de
castas e a sociedade de classes. O regime extinto não desapareceu por completo após a
Abolição. Persistiu na mentalidade, no comportamento e até na organização das relações
sociais dos homens, mesmo daqueles que deveriam estar interessados numa subversão total do
antigo regime (p. 302).
Ao que parece, na medida em que o “homem branco” só conseguia pôr em prática
reduzida parcela das técnicas, instituições e valores sociais inerentes à ordem social
competitiva, e ainda assim em setores mais ou menos restritos e confinados (em certos tipos
de atividades econômicas, de relações jurídicas ou de privilégios políticos dos membros da
classe “alta”), o campo ficou aberto para a sobrevivência maciça de padrões de
comportamento social e invariavelmente arcaicos. No bojo desses padrões de
comportamentos, passaram para a nova era histórica e se revitalizaram normas da velha
etiqueta de relações raciais, distinções e prerrogativas sociais que proporcionavam direitos e
as garantias sociais das “raças” em presença às posições que seus componentes ocupavam na
estrutura de poder da sociedade, representações que legitimavam, tanto racial quanto material
e moralmente, tais distinções e prerrogativas etc. (p. 305).
Durante quase meio século, permaneceu soberana e intocável uma ideologia racial que
colidia com as bases ecológicas, econômicas, psicológicas, sociais, culturais, jurídicas e
políticas de uma sociedade multirracial, de estrutura secularizada, aberta e em diferenciação
tumultuosa! Ainda que os círculos em ascensão não pertencessem à “raça branca”, eles não
possuíam motivos substanciais para se identificar, nesse plano, com as velhas elites. Acresce
que tinham, por circunstâncias especiais, bons motivos para não partilhar e até para combater
as técnicas de dominação social, às quais se conjugavam a persistência e a revitalização de
critérios obsoletos de dominação racial. No entanto, os aludidos círculos permaneceram
indiferentes quer às inconsistências dessas técnicas de dominação radical, quer à dramática
situação, bastante notória, da “população de cor” da cidade. No essencial, apropriaram-se
parcialmente daquelas técnicas, tirando algum proveito delas e aumentando a área de
manifestação de acomodações raciais, em choque irremediável com os fundamentos legais e
morais do novo estilo de vida social (p. 306).
[minimização da modernidade-modernização cultural] Nesse contexto, um único
elemento revelou tenacidade específica. Habituados a lidar com tensões raciais num mundo
social em que elas continham temível poder explosivo e, por isso, precisavam ser reprimidas
sem contemplação, os membros das elites tendiam a manter, diante dos problemas da
“população de cor”, atitudes rígidas, incompreensivas e autoritárias. Agiam como se ainda
vivessem no passado, mostrando-se propensas a exagerar os riscos potenciais de uma franca
liberalização das garantias sociais aos “negros” e a robustecer velhas formas de dissuasão dos
“prurido de gente”, a que eles tivessem, porventura, ânimo de aderir. Em particular, não viam
com bons olhos as agitações em torno ao “problema negro” que eclodiram esparsa e
desordenadamente aqui e ali, como se elas ocultassem os germes de uma inquietação social
suscetível de se converter, com o tempo, em conflito racial. Doutro lado, opunham-se a
manifestações de solidariedade para com o “negro” que escapassem ao paternalismo
tradicionalista, o qual protegia o indivíduo ou grupos restritos, resguardando a superioridade e
as posições do “branco”. A desconfiança tolhia, portanto, a modernização de atitudes e de
comportamentos em ambos os estoques raciais, sob a dupla pressuposição de que agitar certas
questões só serviria para “prejudicar o negro” e “quebrar a paz social”. com isso, as
orientações que se objetivaram socialmente, como sucedâneo da opção coletiva consciente,
equivaliam a uma prescrição e a uma condenação disfarçadas do “homem de cor”. Este não
era repelido frontalmente, mas também não era aceito sem restrições, abertamente, de acordo
com as prerrogativas que decorriam de sua nova condição jurídico-política. Persistia uma
diretriz ambivalente, de repulsa às impulsões de tratamento igualitário do “negro” e de
acatamento aparente dos resquícios do novo regime “democrático” (p. 306-307).

Déficit da modernidade-modernização cultural e o racismo como núcleo e dinâmica


socioculturais de nossa modernização conservadora como conciliação; o mito da
democracia racial como ideologia da modernização conservadora
Imposto de cima para baixo, como algo essencial à respeitabilidade do brasileiro, ao
funcionamento normal das instituições e ao equilíbrio da ordem nacional, aquele mito acabou
caracterizando a “ideologia racial brasileira”, perdendo-se por completo as identificações que
o confinavam à ideologia e às técnicas de dominação de uma determinada classe social.
O mito em questão teve alguma utilidade prática, mesmo no momento em que emergia
historicamente. Ao que parece, tal utilização se evidencia em três planos distintos. Primeiro,
gerou um estado de espírito farisaico, que permitia atribuir à incapacidade ou à
irresponsabilidade do “negro” os dramas humanos da “população de cor” da cidade, com o
que eles atestavam como índices insofismáveis de desigualdade econômica, social e política
na ordenação das relações raciais. Segundo, isentou o “branco” de qualquer obrigação,
responsabilidade ou solidariedade morais, de alcance social e de natureza coletiva, perante os
efeitos sociopáticos da espoliação abolicionista e da deterioração progressiva da situação
socioeconômica do negro e do mulato. Terceiro, revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as
relações entre “negros” e “brancos” através de exterioridades ou aparências dos ajustamentos
raciais, formando uma consciência falsa da realidade racial brasileira. Essa técnica não teve
apenas utilidade imediata. Graças à persistência das condições que tornaram possível e
necessária a sua exploração prática, ela se implantou de tal maneira que se tornou o
verdadeiro elo entre as duas épocas sucessivas da história cultural das relações entre “negros”
e “brancos” na cidade. Em consequência, ela também concorreu para difundir e generalizar a
consciência falsa da realidade racial, suscitando todo um elenco de convicções etnocêntricas:
1º - a ideia de que o negro não tem problemas no Brasil; 2º - a ideia de que, pela própria
índole do povo brasileiro, “não existem relações raciais entre nós”; 3º - a ideia de que as
oportunidades de acumulação da riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta e
igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e industrial de São Paulo; 4º - a
ideia de que o preto “está satisfeito” com sua condição social e estilo de vida em São Paulo; 5º
- a ideia de que não existe, nunca existiu e não existirá outro problema de justiça social com
referência ao “negro” excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e
pela universalização da cidadania – o que pressupõe o corolário segundo o qual a miséria, a
prostituição, a vagabundagem, a desorganização da família etc., imperantes na “população de
cor”, seriam efeitos residuais, mas transitórios, a serem tratados pelos meios tradicionais e
superados por mudanças qualitativas espontâneas (p. 311-312).
É patente que só depois da Abolição e no contexto jurídico-político do Estado
republicano seria possível se cogitar da situação de contato entre “negros” e “brancos”,
imperante em São Paulo, como sendo uma “democracia racial”. Na realidade, porém, as
coisas não caminharam nessa direção. De um lado, enquanto a ordem jurídico-política da
sociedade inclusiva passou por verdadeira revolução, sua ordem racial permaneceu quase
idêntica ao que era no regime de castas. De outro, o “negro” jamais encontrou no “branco”
um ponto de apoio efetivo às suas tentativas de tomada de consciência e de melhoria de sua
situação histórico-social. em vez de ser “democrática” nessa esfera, a sociedade paulistana,
proscrevendo e reprimindo as manifestações autênticas de autonomia social das “pessoas de
cor”. Considerada em termos desse contexto histórico, a convicção de que as relações entre
“negros” e “brancos” correspondiam aos requisitos de uma democracia racial não passa de um
mito. Como mito, ela se vincula aos interesses sociais dos círculos dirigentes da “raça
dominante”, nada tendo que ver com os interesses simétricos do negro e do mulato. Por isso,
não operava também como uma força social construtiva, de democratização dos direitos e
garantias sociais na “população de cor”. Inscrevia-se, contrariamente, entre os mecanismos
que tendiam a promover a perpetuação, em bloco, de relações e processos de dominação que
concentravam o poder nas mãos dos mencionados círculos dirigentes da “raça branca”, como
sucedera no recente passado escravista (p. 318-319).
Tomando-se a rede de relações raciais como ela se apresenta em nossos dias, poderia
parecer que a desigualdade econômica, social e política, existente entre o “negro” e o
“branco”, fosse fruto do preconceito de cor e da discriminação racial. A análise histórico-
sociológica patenteia, porém, que esses mecanismos possuem outra função: a de manter a
distância social e o padrão correspondente de isolamento sociocultural, conservados em bloco
pela simples perpetuação indefinida de estruturas parciais arcaicas. Portanto, qualquer que
venha a ser, posteriormente, a importância dinâmica do preconceito de cor e da discriminação
racial, eles não criaram a realidade pungente que nos preocupa. Esta foi herdada como parte
de nossas dificuldades em superar os padrões de relações raciais inerentes à ordem social
escravocrata e senhorial. Graças a isso, ambos não visavam, desde o advento da Abolição,
instituir privilégios econômicos, sociais e políticos para beneficiar a “raça branca”. Tinham
por função defender as barreiras que resguardavam, estrutural e dinamicamente, privilégios já
estabelecidos e a própria posição do “branco” em face do “negro”, como raça dominante (p.
303).
[...] o “homem branco” continuou preso a um sistema de valores sociais e de
dominação racial que acarretava a vigência de um padrão de ajustamento intersocial análogo
ao que vigorava na sociedade estamental e de castas (p. 304).
Aliás, ainda hoje seria possível descrever ao vivo tais estruturas raciais persistentes.
Elas se preservaram com tamanha tenacidade que seria perfeitamente possível e logicamente
legítimo estudar o passado através do presente. É sabido que, em certas circunstâncias, o
passado não se conserva apenas nos documentos e nas lembranças dos homens; ele também se
evidencia por sua mentalidade, por seu comportamento e pelo funcionamento das instituições.
Só não exploramos sistematicamente essa possibilidade de reconstrução histórica porque
contamos com dados suficientes para assinalar os aspectos da realidade que nos interessavam
agora com documentação própria da época (p. 328).
Exemplos dessas relações entre “brancos” e “negros”, do “branco” em relação a si
mesmo e ao “negro”, do “negro” em relação a si mesmo e frente ao “branco”. [...] Trata-se do
conflito no trabalho, que envolveu F. com seu novo chefe no banco. Este não gostou de
encontrar um “negro” em posição respeitável e o mandou limpar seus sapatos, asseverando
que “negro é para isso mesmo...” (p. 334).
A mesma senhora costumava receber a visita de antiga “cria” e cozinheira da casa, que
ia lá, de vez em quando, em companhia da filha. “A filha, sem a menor cerimônia, entra,
senta, conversa; a mãe não senta, ‘não acha jeito de sentar na frente do patrão’. Só por causa
da insistência da avó e da impaciência da filha – ‘sente, minha mãe!’ – é que acabou sentando-
se, na beiradinha da cadeira” (p. 335).
O “preto” aparecia no cenário social como o substituto do “escravo”, do “liberto”, do
“cria da casa” etc. (p. 336).
Esses casos são suficientes para demonstrar o que nos importa no momento. “Negros”,
“brancos” e “mulatos” interagiam entre si como se ainda fossem separados e unidos pela
antiga etiqueta de relações raciais, vigente na ordem senhorial e escravocrata. Onde os direitos
e os deveres sociais se objetivassem em conexão com a condição racial das pessoas, estas não
só deveriam “conhecer o seu lugar”, mas, ainda, saber se mostrar à altura dele, agindo e
vivendo de acordo com as conveniências, as obrigações ou as imposições dele decorrentes.
[...] Dentro desse contexto psicossocial e cultural, o “escravo” e o “liberto” não
desapareceram: subsistiam no “preto” como categoria a um tempo racial e social (p. 338).
Tudo isso evidencia que se deve dar especial atenção à forma assumida pela
acomodação racial igualitária. Esta não nasceu nem vingou, imediatamente, como uma
relação típica da sociedade de classes. Foi pervertida e assimilada pelos padrões
tradicionalistas de relações raciais, adquirindo a aparência da ordem social democrática, mas
preservando, tenazmente, a subsistência do antigo regime. Onde parecia fluir plena igualdade
nas acomodações raciais, preservava-se, quase intacta e completa, a velha relação
heteronômica, que separava o “branco” do “negro” como o “senhor” do “escravo” e do
“liberto”. As condições histórico-sociais de formação e de desenvolvimento do regime de
classes em nossa sociedade tornaram esse destino do “negro” inelutável. A situação de classe
só encontra vigência quando determinada categoria social conquista os requisitos econômicos,
sociais e culturais de uma classe (ou de parte de uma classe). Em termos raciais, somente os
estoques “brancos” da cidade de São Paulo adquiriram, desde logo, os caracteres psicossociais
e culturais típicos da formação de classe. Os “negros” e os “mulatos” ficaram variavelmente
ausentes desse processo, misturados com os segmentos dos estoques raciais “brancos” que
também encontraram dificuldades em participar das novas formações sociais, constituindo a
“gentinha” uma sobrevivência da “ralé” do antigo regime. Enquanto se manteve nessa
condição, o “negro” vivia numa sociedade organizada em classes sem participar do regime de
classes. O termo “preto” permitia selecionar a cor como marca racial para distinguir, a um só
tempo, um estoque racial e uma categoria social em situação societária ambígua, para não
dizer marginal (p. 339).
Isso nos leva, naturalmente, ao segundo tópico da presente discussão. Na medida em
que os negros e os mulatos não se inseriram, senão tardia e lentamente, nas classes sociais em
emergência, eles não partilharam das situações de classe existentes e suas relações com os
“brancos” também não eram tipicamente relações de classes. A acomodação de classe se
processava segundo modelos reconhecidamente aberrantes, antes conformes à relação
tradicionalista e patrimonialista que à relação heteronômica inerente à ordem social
competitiva. O “branco” preservava ciosa e ferrenhamente a posição ativa e dominante da
polarização “senhorial”, enquanto o “negro” se conservava (ou era mantido) na posição
subordinada correspondente, como se ainda fosse despido da condição civil de “pessoa”.
Portanto, o que se deve enfatizar não é, propriamente, a existência de relações de dominação.
Em toda a sociedade de classes existem formas legítimas de exercício da dominação, da
liderança e da autoridade. Mas a interpenetração entre o regime de classes e formas arcaicas
de dominação racial (grifos meus) (p. 339-340).
[dupla corrupção gerada por esta situação] De um lado, a sociedade de classes foi
abertamente solapada e pervertida por distinções sociais fundadas em privilégios raciais
incompatíveis com a estrutura e a dinâmica da “sociedade democrática”. De outro, a
persistência da dominação da “raça branca” ao velho estilo se deu além e acima de sua fonte
de legitimação jurídica e histórica, o que lhe imprimia o caráter de uma violação irreparável
dos direitos fundamentais do “homem de cor” e lhe tirava todo e qualquer fundamento ético-
jurídico. Perdido na sociedade de classes, sem desfrutar das garantias sociais estabelecidas, o
“preto” ficava à mercê de uma tutelagem que carecia de sentido moral e que não se impunha
nenhum freio, fosse ele alicerçado no interesse material, no decoro ou na obrigação subjetiva.
O paradoxo final se apresenta com a tendência de se conceber, historicamente, as relações
raciais assim desenvolvidas sob os modelos vigentes de ordenação societária. Tais modelos se
aplicavam ás relações dos “brancos” entre si, com inconsistências notórias em se tratando da
democratização do poder ou do comércio social das elites com a “gentinha”. Apenas de modo
esporádico, porém, chegavam a afetar a convivência dos “brancos” com os “negros”. No
entanto, convencionou-se que os princípios democráticos imperavam nas relações inter-
raciais e que a forma de acomodação racial predominante seria “igualitária” (p. 340-341).
[...] a forma de acomodação que se estabeleceu e se perpetuou praticamente até nossos
dias (embora com algumas atenuações e substanciais alterações na perspectiva social do
“negro”) provinha do passado tradicionalista e patrimonialista, como se os “brancos”
pretendessem preservar o paternalismo nas relações com os “homens de cor” (p. 341).
Esse padrão de tratamento racial introduzia, natural e inevitavelmente, certas
deformações bem conhecidas na organização da personalidade do “branco” e do “negro”.
Quanto ao primeiro, parecia evidente que ele fomentava um tipo de autoritarismo que tem
sido descrito sob os conceitos de mandonismo e de paternalismo. A tradição escravocrata
associou de tal modo “cor” e “posição social” que o “branco” recém egresso do regime de
castas ainda se comportava como se fosse o senhor e revelava extrema intransigência diante
de qualquer quebra ostensiva da velha etiqueta das relações raciais (p. 361-362).

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