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O RESSURGIMENTO DA NARRATIVA: REFLEXÕES SOBRE UMA NOVA VELHA

HISTÓRIA

Lawrence Stone1

Os historiadores sempre contaram estórias 2. Desde Tucídides e Tácito a


Gibbon e Macaulay, a composição de uma narrativa em prosa viva e elegante
sempre foi considerada como sua maior ambição. A história era vista como um
ramo da retórica. Nos últimos cinquenta anos, porém, essa função de contar
estórias adquiriu uma reputação negativa entre os que se consideram a si
mesmos na vanguarda da profissão, os praticantes da chamada "nova história"
do período posterior a Segunda Guerra Mundial 3. Na França, o contar estórias foi
desqualificado como "historie événementielle". Agora, porém, vejo sinais de uma
tendência subterrânea que vem atraindo muitos "novos historiadores"
importantes de volta para alguma forma de narrativa.
Antes de iniciar um exame das indicações de tal mudança e de avançar al-
gumas especulações sobre suas possíveis causas, seria melhor esclarecer uma
série de coisas. A primeira é a acepção em que aqui se entende a "narrativa” 4. A
narrativa aqui designa a organização de materiais numa ordem de sequência
cronológica e a concentração do conteúdo numa única estória coerente, embora
possuindo sub-tramas. A história narrativa se distingue da história estrutural por
dois aspectos essenciais: sua disposição é mais descritiva do que analítica, e seu
enfoque central diz respeito ao homem, e não às circunstâncias. Portanto, ela
trata do particular e do específico, de preferência ao coletivo e ao estatístico. A

1 Sou muito grato à minha mulher e meus colegas, os professores Robert Darnton. Nalalie Davis. Felix Gilbert.
Charles Gillispie. Theodore Rabb, Carl Schorske e muitos outros, pelas valiosas críticas a um esboço inicial desde
artigo. Aceitei a maioria das sugestões, mas a responsabilidade pelo produto final cabe apenas a mim.

2Utiliza-se nesta tradução o pouco consagrado "estória", para manter a distinção com a “história", conforme o uso de
"story" e "history" no original.

3 Não se deve confundir esses "novos historiadores" recentes com os "novos historiadores" americanos de uma
geração anterior, como Charles Deard e James Harvey Robinson.

4Sobre a história da narrativa, ver L Gossman, Augustin Thierry and Liberal Historiography" History and Theory.
Beiheft XV. 1979. H. White; Methahistory: The Historical Imagtnation in the Nineteenlh Century. Baltimore, 1973.
Agradeço ao professor Randolph Starn por chamar minha atenção para este último.
narrativa é uma modalidade de escrita histórica, modalidade esta, porém, que
também afeta e é afetada pelo conteúdo e pelo método.
O tipo de narrativa em que estou pensando não é o do simples cronista ou
analista de coisas passadas. É a narrativa orientada por algum "princípio
fecundo", e que possui um tema e um argumento. O tema de Tucídides eram as
guerras do Peloponeso e seus efeitos catastróficos sobre a sociedade e a política
gregas; o de Gibbon era o declínio e queda do Império Romano; o de Macaulay, o
surgimento de uma disposição participativa liberal nas correntes da política
revolucionária. Os biógrafos contam a estória de uma vida, desde o nascimento
até a morte. Nenhum historiador narrativo, no sentido em que aqui os defini,
deixa a análise totalmente de lado, mas ela não constitui o arcabouço de
sustentação em torno do qual constroem sua obra. E, por fim, eles estão
profundamente preocupados com os aspectos retóricos de sua apresentação.
Quer suas tentativas dêem certo ou não, eles certamente pretendem alcançar
concisão, espírito e elegância estilística. Não se contentam em lançar palavras
numa página e ali deixá-las, pensando que, na medida em que a história é uma
ciência, dispensa o auxílio de qualquer arte.
Não se deve considerar que as correntes aqui identificadas se apliquem a
grande massa dos historiadores. O que se tenta é apenas assinalar uma mudança
perceptível de conteúdo, método e estilo entre uma parcela muito reduzida, mas
desproporcionalmente destacada, da profissão histórica como um todo. A
história sempre teve muitas sedes, e assim deve continuar para prosperar no
futuro. O triunfo de um gênero ou escola sempre acaba levando a um sectarismo
estreito, ao narcisismo e autobajulação, ao desprezo ou tirania em relação aos de
fora, e outras características desagradáveis e contraproducentes. Todos nós
conhecemos exemplos disso. Em alguns países e instituições, foi pernicioso que,
nos últimos trinta anos, os "novos historiadores" tenham conseguido se impor de
tal maneira, e será igualmente pernicioso se a nova corrente, se é que é uma
corrente, alcançar, aqui e ali, um mesmo tipo de dominação.
É também fundamental estabelecer de uma vez por todas que este ensaio
tenta mapear transformações observadas no estilo histórico, sem fazer juízos de
valor sobre as modalidades boas e as não tão boas de escrita histórica. Em
qualquer estudo historiográfico, é difícil evitar juízos de valor, mas este ensaio
não pretende erguer qualquer bandeira nem conflagrar uma revolução. Ninguém
está sendo instado a jogar fora sua calculadora e contar uma estória.

II

Antes de observar as correntes recentes, primeiramente é preciso explicar


o abandono, por parte de muitos historiadores, há cerca de cinquenta anos atrás,
de uma tradição que, durante dois séculos, encarou a narrativa como modalidade
ideal. Em primeiro lugar, apesar de acaloradas afirmativas em contrário,
reconheceu-se amplamente, com certa razão, que as respostas de tipo
cronológico a perguntas sobre o quê e como, mesmo que orientadas por um
argumento central, de fato não avançam muito para responder a perguntas sobre
o porquê. Além disso, naquela época, os historiadores se encontravam sob a forte
influência tanto da ideologia marxista, quanto da metodologia das ciências
sociais. Por decorrência, estavam interessados em sociedades, e não em
indivíduos, e confiavam que se poderia chegar a uma "a história científica" que,
com o tempo, criaria leis generalizadas para explicar a transformação histórica.
Neste ponto, devemos parar mais uma vez, para definir o que se entende
por "a história científica". A primeira "a história científica" foi formulada por
Ranke no século XIX, e se baseava no estudo de novas fontes. Acreditava-se que a
detalhada crítica textual de registros até então intocados, enterrados em
arquivos oficiais, estabeleceria definitivamente os fatos da história política. Nos
últimos trinta anos, apareceram três tipos muito diferentes de "história
científica", correntes na profissão, todos baseados não em novos dados, mas em
novos modelos ou novos métodos: o modelo econômico marxista, o modelo
ecológico-demográfico francês e a metodologia "cliométrica" americana.
Segundo o velho modelo marxista, a história avança num processo dialético de
tese e antítese, através de um conflito de classes, elas mesmas criadas por uma
transformação no controle sobre os meios de produção. Nos anos 1930. essa idéia
resultou num determinismo econômico-social bastante simplista, que afetou
muitos jovens estudiosos da época. É uma noção de "história científica" que foi
firmemente defendida por marxistas até o final dos anos 1950. Deve-se notar,
porém, que a atual geração de "neo-marxistas" parece ter abandonado a maioria
dos princípios básicos dos historiadores marxistas tradicionais da década de 1930.
Agora estão tão interessados pelo estado, a política, a religião e a ideologia
quanto seus colegas não-marxistas, e nesse meio-tempo parecem ter renunciado
à pretensão de estarem buscando uma "história cientifica".
O segundo sentido da "história científica" é o empregado pela escola
Annales de historiadores franceses, desde 1945, entre os quais Emmannuel Le Roy
Ladurie pode figurar como porta-voz, embora um tanto extremado. Segundo ele,
a variável fundamental na história são as mudanças no equilíbrio ecológico entre
a oferta alimentar e a população, equilíbrio este a ser necessariamente
determinado por estudos quantitativos da produtividade agrícola, das
transformações demográficas e preços dos alimentos na longa duração. Esse tipo
de "a história científica" surgiu a partir de uma combinação entre um prolongado
interesse francês pela geografia e demografia históricas e, de outro lado, a
metodologia quantitativa. Le Roy Ladurie nos disse claramente que "a história
que não é quantificável não pode pretender ser científica" 5.

5 E. Le Roy Ladurie. The Territory of the Historian, trad. B. and S. Reynolds (Hassocks, 1979), p. 15, e pt. i, passim.
O terceiro sentido da "história científica" é basicamente americano, e se
baseia na pretensão, expressa em alto e bom tom pelos "cliometristas", de que
apenas sua própria metodologia quantitativa muito especial pode ter qualquer
ambição de ser científica6. Segundo eles, a comunidade histórica pode ser
dividida em dois. Há "os tradicionalistas", entre os quais incluem-se os
historiadores narrativos do velho estilo, tratando principalmente da política do
estado e da história constitucional, e os "novos" historiadores econômicos e
demográficos das escolas Annales e Past and Present - embora estes últimos
utilizem a quantificação e os dois grupos tenham sido inimigos ferrenhos por
várias décadas, principalmente na França. Totalmente à parte estão os "histo-
riadores científicos", os cliometristas, que se definem mais por uma metodologia
do que por algum assunto ou interpretação específica sobre a natureza da
transformação histórica. São historiadores que constroem modelos
paradigmáticos, às vezes contrafatuais sobre mundos que nunca existiram na
vida real, e testam a validade dos modelos com as mais sofisticadas fórmulas
matemáticas e algébricas, aplicadas a grandes quantidades de dados eletro-
nicamente processados. Seu campo específico é a história econômica, que
praticamente conquistaram nos Estados Unidos, e têm feito grandes incursões
na história da política democrática recente, aplicando seus métodos ao com-
portamento nas votações, tanto por parte dos eleitores quanto dos eleitos. Essas
grandes empreitas são, necessariamente, resultado de um trabalho de equipe,
bastante parecido com a construção das pirâmides: equipes de auxiliares
diligentes reúnem dados, codificam-nos, programam-nos e passam-nos pela
trituração do computador, todos sob a direção autocrática de um chefe de
equipe. Os resultados não podem ser verificados por nenhum dos métodos
tradicionais, visto que as provas documentais estão fechadas em gravações
computadorizadas particulares, não sendo expostas em notas de rodapé nas
publicações. De qualquer maneira, os dados são muitas vezes expressos de uma
forma tão matematicamente obscura que são ininteligíveis para a maioria dos
historiadores profissionais. O único consolo para os leigos perplexos é que os
membros dessa ordem sacerdotal discordam ferozmente em público sobre a
validade das descobertas de cada um deles.
Esses três tipos de "história científica" em certa medida se sobrepõem, mas
apresentam diferenças suficientes, e com certeza aos olhos de seus próprios
praticantes, para justificar a elaboração dessa tríplice tipologia.
Outras explicações "científicas" da transformação histórica granjearam
prestígio durante algum tempo, e depois saíram de moda. O estruturalismo
francês produziu algumas teorizações brilhantes, mas não criou uma única obra

6Um artigo inédito de R. W. Fogel. "Scientific History and Tradicional History". 1979: apresenta os argumentos mais
persuasivos que se podem invocar para considerá-la como a única e verdadeira história "cientifica". Mas continuo sem
me convencer.
histórica importante - a menos que se considerem os textos de Michel Foucault
como obras primariamente históricas, e não de filosofia moral com exemplos
extraídos da história. O funcionalismo parsoniano, precedido pela Teoria
Científica da Cultura de Malinowski7, teve uma longa vida, apesar de não
conseguir apresentar uma explicação sobre a transformação ao longo do tempo,
e a despeito do fato óbvio de que o encaixe entre as necessidades materiais e
biológicas de uma sociedade e as instituições e valores com que ela vive nunca
foi perfeito e, na verdade, é freqüentemente muito precário. Tanto o
estruturalismo como o funcionalismo deram idéias valiosas, mas nenhum deles
chegou sequer perto de oferecer aos historiadores uma explicação científica
abrangente da transformação histórica.
Esses três grupos principais de "historiadores científicos", que floresceram
respectivamente dos anos 1930 aos anos 1950, dos anos 1950 aos meados dos
anos 1970, e dos anos 1960 ao começo dos anos 1970, tinham uma extrema
confiança de que os grandes problemas da explicação histórica eram solúveis, e
que eles os resolveriam com o tempo. Supunham que finalmente se
apresentariam soluções inflexíveis para questões até o momento tão
desconcertantes, como as causas das "grandes revoluções" ou da passagem do
feudalismo para o capitalismo, e das sociedades tradicionais para as modernas.
Esse otimismo impetuoso, tão patente dos anos 1930 aos anos 1960, escorava-se,
nos dois primeiros grupos de "historiadores científicos", na crença de que
condições materiais como as transformações na relação entre a população e a
oferta alimentar, as transformações nos meios de produção e conflitos de
classes, eram as forças motoras da história. Muitos, mas nem todos,
consideravam os desenvolvimentos intelectuais, culturais, religiosos,
psicológicos, jurídicos e mesmo políticos, como meros epifenômenos. Como o
determinismo econômico e/ou demográfico ditava em larga medida o conteúdo
do novo gênero de pesquisa histórica, a modalidade mais adequada para
organizar e apresentar os dados era a analítica, mais do que a narrativa, e os
próprios dados deviam ter uma natureza quantitativa ao máximo possível.
Os historiadores franceses, que na década de 1950 e 1960 encontravam- se
à frente deste ousado empreendimento, desenvolveram uma disposição
hierárquica padronizada: em primeiro lugar, tanto em ordem de sequência como
em ordem de importância, vinham os fatos econômicos e demográficos; a seguir,
a estrutura social, e, em último lugar, os desenvolvimentos intelectuais,
religiosos, culturais e políticos. Esses três terços eram vistos como se fossem os
andares de uma casa: cada um se apóia sobre as fundações do nível inferior, mas
os que estão por cima exercem pouco ou nenhum efeito sobre os de baixo. Em
algumas mãos, a nova metodologia e as novas questões geraram resultados
quase espetaculares. Os primeiros livros de Fernand Braudel, Pierre Goubert e

7 Bronislaw Malinowski. A Scientific Theory of Culture, and Other Essays. Chapei Hill. N. C 1944.
Emmanuel Le Roy Ladurie figuram entre os maiores textos históricos de todos os
tempos e lugares8. Por si sós, justificam plenamente a adoção da abordagem
analítica e estrutural por toda uma geração.
O resultado, porém, foi um violento revisionismo histórico. Como apenas o
primeiro terço é que importava realmente, e como o tema eram as condições
materiais das massas, e não a cultura da elite, tornou-se possível falar na história
da Europa Continental do século XIV ao século XVIII como "l'historié immobile".
Le Roy Ladurie argumentou que nada, absolutamente nada, mudou ao longo
desses cinco séculos, visto que a sociedade se manteve obstinadamente presa
em sua "eco-demografia" tradicional inalterada 9. Neste novo modelo da história,
movimentos como o Renascimento, a Reforma, o Iluminismo e o surgimento do
estado moderno simplesmente desapareceram. Foram ignoradas as
transformações maciças da cultura, arte, arquitetura, literatura, religião,
educação, ciência, direito, constituição, construção civil, burocracia, organização
militar, sistemas tributários e assim por diante, as quais ocorreram nos escalões
superiores da sociedade durante esses cinco séculos.
Essa curiosa cegueira foi decorrência de uma sólida crença de que tais
questões pertenciam à terceira parte, uma mera superestrutura superficial.
Quando alguns estudiosos desta escola começaram, recentemente, a utilizar
seus métodos estatísticos comprovados em problemas como a alfabetização, o
conteúdo das bibliotecas, a ascensão e queda da devoção cristã, eles definiram
suas atividades como uma aplicação da quantificação a "le troisiéme niveau".

III

A primeira causa do atual ressurgimento da narrativa é uma desilusão


generalizada com o modelo determinista econômico de explicação histórica e
essa tríplice disposição hierárquica dele originada. A cisão entre a história social e
a história intelectual teve as mais infelizes consequências. Ambas se tornaram
isoladas, estreitas, voltadas para si mesmas. Nos Estados Unidos, a história
intelectual, que antes havia sido o estandarte da profissão, enfrentou tempos
difíceis e, por um certo período, perdeu a confiança em si10: a história social
prosperou como nunca, mas seu orgulho por suas realizações isoladas não
passava do prenúncio de uma subseqüente perda da vitalidade, quando começou
a declinar a fé em explicações puramente econômicas e sociais. Os registros

8F. Braudel. La Méditerranée et le Monde Méditerranéen à l'époque de Philippe II. Paris. 1949: P. Goubert. Beauvais
et le Beauvaisis de 1600 à 1730. Paris. 1960: E. Le Roy Ladurie. Les paysans du Languedoc. Paris. 1966.

9 E. Le Roy Ladurie, "L'historié Immobile", em seu Le Territoire de l'Historien. 2 vol. Paris. 1973-8. ii, o artigo
foi escrito em 1973.

10R. Darnton. "Inlelleclual and Cullural Hislory", in M. Kämmen (org.). History in Our Time, Ithaca. Nova York.
1980.
históricos agora obrigaram muitos de nós a reconhecer que existe um fluxo
bidirecional extraordinariamente complexo de interações entre fatos relativos,
de um lado, à população, oferta alimentar, clima, oferta monetária, preços, e, de
outro lado, os valores, idéias e costumes. Formam, com as relações sociais de
posição ou classe, uma única rede de significados.
Muitos historiadores agora acreditam que a cultura do grupo, e mesmo a
vontade do indivíduo, são, pelo menos potencialmente, agentes causais de
transformação tão importantes quanto as forças impessoais da produção ma-
terial e do crescimento demográfico. Não existe nenhuma razão teórica pela qual
estas últimas devam sempre determinar as primeiras, e não vice-versa, e, na
verdade, acumulam-se as indicações de exemplos em contrário11. A contracepção,
por exemplo, é nitidamente tanto um produto de um estado mental quanto de
circunstâncias econômicas. Pode-se encontrar a prova disso na ampla difusão da
prática anticoncepcional por toda a França, muito antes da industrialização, sem
grandes pressões populacionais a não ser em pequenas propriedades rurais, e
quase um século antes do que qualquer outro país ocidental. Hoje em dia,
também sabemos que a família nuclear é anterior à sociedade industrial, e que os
conceitos de privacidade, amor e individualismo surgiram, analogamente, entre
alguns dos setores mais tradicionais de uma sociedade tradicional, a Inglaterra no
final do século XVII e começo do século XVIII, e não em decorrência de processos
econômicos e sociais modernizadores de data posterior. A ética protestante foi
um produto colateral de um movimento religioso espiritual, que se enraizou nas
sociedades anglo-saxãs da Inglaterra e Nova Inglaterra, séculos antes que fossem
necessários ritmos constantes de trabalho ou que fosse construída a primeira
fábrica. Por outro lado, existe uma correlação inversa, pelo menos na França
oitocentista, entre a alfabetização, a urbanização e a industrialização. Os níveis
de alfabetização se revelam como guias precários para atitudes mentais
"modernas'' ou profissões "modernas"12. Assim, os elos entre a cultura e a
sociedade são de fato muito complexos, e parecem variar no tempo e no espaço.
E difícil não suspeitar que o declínio do engajamento ideológico entre os
intelectuais ocidentais também desempenhou seu papel. Se observamos três das
batalhas históricas mais renhidas e apaixonadas dos anos 1950 e 1960 - a
ascensão ou declínio da nobreza na Inglaterra seiscentista, a ascensão ou queda
do rendimento real do operariado nas primeiras fases da industrialização, e as
causas, natureza e consequências da escravidão americana todas constituíam, na
base, discussões ateadas por preocupações ideológicas do momento. Na época,
parecia desesperadamente importante saber se a interpretação marxista estava

11M. Zuckerman, "Dreams that Men Dare to Dream: The Role of Ideas in Western Modernization", Social Science
Hist.,ii (1978).

F. Furet e J. Ozouf. Lire et Écrire, Paris. 1977. Ver também K. Lockridge. Literacy in Colonial New
12

England. Nova York. 1974.


certa ou não, e por isso essas questões históricas eram relevantes e instigantes.
O emudecimento da controvérsia ideológica, provocado pelo declínio intelectual
do marxismo e pela adoção de economias mistas no Ocidente, coincidiu com um
declínio no ímpeto da pesquisa histórica em levantar as grandes questões sobre
os porquês, e é plausível sugerir que existe alguma relação entre as duas
tendências.
O determinismo econômico e demográfico sofreu um enfraquecimento
devido ao reconhecimento das idéias, da cultura e mesmo da vontade individual
como variáveis independentes. Mas não só. Foi minado também pelo
reconhecimento, recuperado uma vez mais, de que o poder político e militar, o
uso da força bruta, têm determinado com freqüência a estrutura da sociedade, a
distribuição da riqueza, o sistema agrário e mesmo a cultura da elite. Exemplos
clássicos são a conquista normanda da Inglaterra em 1066, e provavelmente as
vias econômicas e sociais divergentes tomadas pela Europa Oriental, pela Europa
Norte-Ocidental e pela Inglaterra nos séculos XVI e XVII13. Os historiadores
futuros com certeza irão criticar severamente os "novos historiadores" dos anos
1950 e 1960 por não terem dedicado atenção suficiente ao poder: à organização e
ao processo decisório políticos, aos caprichos da batalha e do cerco militar, da
destruição e da conquista. As civilizações surgiram e desapareceram devido a
flutuações na autoridade política e mudanças nos destinos da guerra, e é
extraordinário que tais assuntos tenham sido descurados por tanto tempo por
aqueles que se consideravam à frente da profissão histórica. Na prática, a grande
massa dos historiadores continuou a se dedicar à história política, como sempre
haviam feito, mas não é aí que, de modo geral, pensava-se residir a ponta-de-
lança da profissão. Um reconhecimento tardio da importância do poder, das
decisões políticas pessoais dos indivíduos, dos acasos das batalhas, obrigou os
historiadores a voltarem à modalidade narrativa, apreciem-na ou não. Para usar
os termos de Maquiavel, só se pode tratar da virtù ou da fortuna através de uma
narrativa, ou mesmo de uma anedota, na medida em que a primeira é um
atributo individual e a segunda consiste num acidente feliz ou infeliz.
O terceiro desenvolvimento que infligiu um sério golpe à história estrutural
e analítica é o registro misto usado até o momento em sua metodologia mais
característica, a saber, a quantificação. A quantificação certamente amadureceu,
e agora se firmou como uma metodologia essencial em muitas áreas da pesquisa
histórica, principalmente a história demográfica, a história da estrutura e
modalidade social, a história econômica e a história dos padrões e
comportamentos eleitorais em sistemas políticos democráticos. Seu emprego
levou a uma grande melhoria na qualidade geral do discurso histórico, ao exigir a
citação de números precisos, ao invés do uso indefinido anterior das palavras. Os

13 Refiro-me ao debate iniciado por Robert Brenner. "Agrarian Class Structure and Economy Development in Pre-
industrial Europe". Past and Present, no 70. tev. 1976.pp. 30 75
historiadores já não podem mais se desobrigar dizendo "mais", "menos"
"crescente", "em baixa" - termos que logicamente implicam comparações
numéricas sem nunca exporem explicitamente a base estatística para suas
afirmações. A quantificação também fez com que o argumento baseado
exclusivamente no exemplo pareça um tanto desacreditado. Os críticos agora
exigem provas estatísticas de apoio, que mostrem que os exemplos são típicos, e
não exceções à regra. Tais procedimentos melhoraram inquestionavelmente a
força lógica e a capacidade de persuasão do argumento histórico. E não há
qualquer discordância que, sempre que for adequado, fecundo e possível a partir
dos registros disponíveis, o historiador deve levá-los em conta.
Existe, porém, uma diferença de gênero entre a quantificação artesanal
feita por um único pesquisador, amontoando números numa calculadora de mão
e montando tabelas e porcentagens simples, e o trabalho dos cliometristas.
Estes se especializam na reunião de enormes quantidades de dados por meio de
equipes de auxiliares, do uso do computador eletrônico para processá-los e da
aplicação de procedimentos matemáticos extremamente sofisticados aos
resultados obtidos. Têm-se levantado dúvidas sobre todos os estágios desse
processo. Muitos questionam se os dados históricos são suficientemente
confiáveis para garantir tais procedimentos; se se pode confiar que as equipes
de auxiliares aplicam procedimentos uniformes de codificação a grandes
quantidades de documentos freqüentemente muito heterogêneos e mesmo
ambíguos; se é de algum modo possível confiar que todos os erros de co-
dificação e programação foram eliminados; e se o refinamento das fórmulas
matemáticas e algébricas não acaba sendo contraproducente, na medida em
que confundem a maioria dos historiadores. Finalmente, muitos se sentem
perturbados pelo fato de ser praticamente impossível verificar a confiabilidade
dos resultados finais, visto que têm de depender não de notas publicadas, mas
de gravações computadorizadas de propriedade particular, abstraídas, por uma
vez dos dados brutos.
Essas questões são reais e não desaparecerão. Todos nós sabemos de
teses de doutorado, de monografias ou comunicações publicadas que empre-
gavam as técnicas mais sofisticadas para provar o óbvio ou pretender provar o
implausível, utilizando fórmulas e linguagens que tornam a metodologia
inverificável para o historiador comum. Os resultados às vezes combinam os
defeitos da ilegibilidade e da trivialidade. Todos nós sabemos de teses de dou-
torado que definham inacabadas, pois o pesquisador não conseguiu manter sob
seu controle intelectual o mero volume de coisas apresentadas pelo computa-
dor, ou que gastou tanto esforço para preparar os dados para a máquina que
seu tempo, paciência e dinheiro acabaram terminando. Uma conclusão clara é
seguramente que sempre que possível, a amostragem manual é preferível e mais
rápida do que passar o universo inteiro por uma máquina, além de ser
igualmente confiável. Todos nós sabemos de projetos em que uma falha lógica
no argumento ou a incapacidade de usar o simples bom senso viciou ou tornou
duvidosas muitas das conclusões. Todos nós sabemos de outros projetos em que
a falta de registro de parte de uma informação no estágio de codificação levou à
perda de um resultado importante. Todos nós sabemos de outros em que as
próprias fontes de informação são tão inconfiáveis que podemos ter certeza de
que pouco confiáveis serão as conclusões baseadas em sua manipulação
quantitativa. Os registros paroquiais são um exemplo clássico, aos quais vem se
dedicando um volume de trabalho gigantesco em muitos países, e apenas parte
dele é capaz de vir a produzir resultados que valham a pena.
Apesar de suas realizações inquestionáveis, não se pode negar que a
quantificação não respondeu às grandes esperanças de vinte anos atrás. A
maioria dos grandes problemas da história continuam tão insolúveis como
sempre, se não mais. O consenso sobre as causas das revoluções inglesa,
francesa ou americana continua tão distante como sempre, apesar do enorme
esforço dedicado a elucidação de suas origens sociais e econômicas. Trinta anos
de pesquisa intensiva na história demográfica mais aumentaram do que
diminuíram nossa perplexidade. Não sabemos por que a população deixou de
crescer em inúmeras áreas da Europa entre 1640 e 1740: não sabemos por que
ela voltou a crescer em 1740, e nem mesmo se a causa foi o aumento da
fecundidade ou o declínio da mortalidade. A quantificação nos informou muito
sobre as questões sobre o quê da demografia histórica, mas, até agora, rela-
tivamente pouco sobre os porquês. As grandes questões sobre a escravidão
americana continuam tão esquivas como sempre, apesar de ter-lhes sido de-
dicado um dos estudos mais volumosos e sofisticados jamais elaborados. A
publicação de suas descobertas, longe de solucionar muitos problemas, apenas
aumentou a temperatura do debate14. Ela teve o efeito benéfico de concentrar a
atenção sobre problemas importantes, tais como a dieta, a higiene, a saúde e a
estrutura familiar dos negros americanos sob a escravidão, mas também desviou
a atenção dos efeitos psicológicos tão ou mais importantes da escravidão sobre
os senhores e os escravos, simplesmente porque tais questões não podiam ser
medidas por um computador. As histórias urbanas estão cheias de estatísticas,
mas as tendências de mobilidade continuam obscuras. Hoje em dia, ninguém
tem plena certeza se a sociedade inglesa era mais aberta ou mais móvel do que a
sociedade francesa nos séculos XVII e XVIII, ou nem mesmo se a nobreza ou a
aristocracia estava ascendendo ou decaindo na Inglaterra antes da Guerra Civil.
Atualmente, a esse respeito, nossa posição não é melhor do que a de James
Harrington no século XVII ou a de Tocqueville no século XIX.

R. W. Fogel e S. Engerman. Time on the Croat. Boston. Mass. 1974: P.A.. David et al. Reckoning with
14

Slavery. Nova York. 1976; H. Gutman. Slavery and the Numbers Game. Urbana. 1975. 111.
Foram justamente aqueles projetos com as dotações de verbas mais
pródigas, os mais ambiciosos na coleta de grandes quantidades de dados por
legiões de pesquisadores remunerados, os mais cientificamente processados
pela última palavra na tecnologia eletrônica, os mais matematicamente sofisti-
cados na apresentação, que até agora se revelaram como os mais decepcionan-
tes. Hoje, depois de vinte anos e milhões de dólares, libras e francos, o que há
para mostrar, pelo gasto de tanto tempo, trabalho e dinheiro, são apenas resul-
tados bastante modestos. Há pilhas enormes dé folhas impressas esverdeadas
juntando pó nos gabinetes dos estudiosos; há muitos volumes gordos e deses-
peradoramente maçantes, cheios de tabelas de números, equações algébricas
abstrusas e porcentagens levadas até duas casas decimais. Também existem
muitas novas descobertas valiosas e algumas grandes contribuições para o
conjunto relativamente pequeno de obras históricas de valor permanente. Mas,
de modo geral, a sofisticação dos métodos tem mostrado a tendência a superar a
confiabilidade dos dados, ao passo que a utilidade dos resultados parece - até
certo ponto - estar numa proporção inversa à complexidade matemática da
metodologia e à escala grandiosa da coleta de dados.
Em qualquer análise em termos dos custos e benefícios, o retorno da
história computadorizada em grande escala tem, até agora, justificado apenas
ocasionalmente o investimento de tempo e dinheiro, e isso tem levado os
historiadores a buscarem outros métodos de investigar o passado, que lancem
mais luz com menos problemas. Em 1968, Le Roy Ladurie profetizou que, nos
anos 1980, "o historiador será um programador ou não será nada” 15. A profecia
não se cumpriu, e muito menos pelo próprio profeta.
Os historiadores, portanto, foram obrigados a voltar ao princípio da
indeterminação, ao reconhecimento de que as variáveis são tão numerosas que,
na melhor das hipóteses, apenas generalizações de médio alcance são possíveis
na história, como sugeriu Robert Merton há muito tempo atrás. O modelo macro-
econômico é um castelo no ar, e a "a história científica" é um mito. Explicações
monocausais simplesmente não funcionam. O emprego de modelos de
explicação em feed-back, construídos em torno de "afinidades eletivas"
weberianas, parece oferecer instrumentos de melhor qualidade para revelar algo
da verdade fugidia sobre a causação histórica, especialmente se abandonamos
qualquer pretensão de que essa metodologia seja, em qualquer sentido,
científica.
A desilusão com o determinismo monocausal econômico ou demográfico e
com a quantificação levou os historiadores a começarem a colocar um leque de
questões totalmente novas, muitas delas antes impedidas de se mostrarem
devido à preocupação com uma metodologia estrutural, coletiva e estatística

15 E. Le Roy Laurie. Le Territoire de l'historien.i. p. 14 (trad. minha).


específica. Um número cada vez maior dos "novos historiadores" vem tentando
agora descobrir o que se passava na cabeça das pessoas no passado, e como era
viver naqueles tempos, questões estas que reconduzem inevitavelmente ao uso
da narrativa.
Um sub-grupo significativo da grande escola francesa de historiadores,
liderado por Lucien Febvre, sempre considerou as transformações intelectuais,
psicológicas e culturais como variáveis independentes de importância central.
Mas, por muito tempo, eles constituíram uma minoria, que ficou para trás, num
distante refluxo, enquanto a maré da "a história científica", de conteúdo
econômico social, de organização estrutural e metodologia quantitativa,
avançava impetuosamente à frente deles. Agora, porém, os tópicos pelos quais
se interessavam de repente entraram na moda. No entanto, as perguntas
levantadas não são inteiramente as mesmas, visto que agora derivam
freqüentemente da antropologia. Na prática, se não também na teoria, a
antropologia tende a ser uma das disciplinas mais a-históricas, com sua falta de
interesse pela transformação ao longo do tempo. Não obstante, ela nos ensinou
como é possível elucidar de maneira brilhante um sistema social e um conjunto
de valores em sua totalidade, com o uso de um método intensivo de registrar em
detalhes minuciosos um único acontecimento, desde que seja situado com todo
o cuidado em seu contexto global, e com todo o cuidado analisado pelo seu
significado cultural. O modelo arquetípico dessa "descrição densa" é a exposição
clássica de Clifford Geertz sobre uma briga de galos balinesa16. Infelizmente, nós
historiadores não podemos estar efetivamente presentes, com cadernos de
anotações, gravadores e câmeras, aos acontecimentos que descrevemos, mas
podemos constantemente encontrar uma multidão de testemunhas que nos
digam como seriam eles. Assim, a primeira causa para o ressurgimento da
narrativa entre alguns dos "novos historiadores" foi a substituição da sociologia e
da economia pela antropologia, como a ciência social de maior influência.
Uma das mudanças recentes mais impressionantes no conteúdo da história
foi um aumento bastante súbito do interesse pelos sentimentos, emoções,
padrões de comportamento, valores e estados de espírito. A este respeito, a in-
fluência de antropólogos como Evans-Pritchard, Clifford Geertz, Mary Douglas e
Victor Turner foi realmente muito grande. Embora a psico-história seja, até o
momento, uma área em larga medida catastrófica - um deserto juncado com os
destroços de refinados veículos de aço cromado que quebraram logo depois de
dar a partida -, a própria psicologia também influiu sobre uma geração que agora
está voltando suas atenções para o desejo sexual, as relações familiares e os elos
emocionais, conforme afetam os indivíduos, e para as idéias, crenças e costumes,
conforme afetam o grupo.

16 C. Geertz. "Deep Play: Notes on the Balinese Cock-Fight", em seu The Interpretation of Cultures. Nova York. 1973.
Essa alteração na natureza das questões colocadas provavelmente tam-
bém está relacionada com o cenário contemporâneo dos anos 1970. Foi uma
década em que os ideais e interesses mais personalizados ganharam prioridade
sobre os assuntos públicos, em virtude da desilusão generalizada com as
perspectivas de mudança por meio da ação política. Portanto, é plausível
estabelecer uma conexão entre o súbito aumento do interesse por esses temas
no passado e preocupações semelhantes no presente.
Esse novo interesse pelas estruturas mentais foi estimulado pelo colapso
da história intelectual tradicional, tratada como uma espécie de caça livresca de
idéias remontando nas eras (que geralmente termina em Aristóteles ou Platão).
Os "grandes livros" eram estudados num vazio histórico, com pouco ou nenhum
esforço de situar os próprios autores ou seu vocabulário lingüístico em seus
verdadeiros quadros históricos. A história do pensamento político no ocidente
está agora sendo reescrita, basicamente por J.G.A.Pocock, Quentin Skinner e
Bernard Bailyn, com uma reconstrução laboriosa do contexto e significado
preciso das palavras e idéias no passado, e mostrando como mudaram de formas
e cores no decorrer do tempo, como camaleões, para se adaptarem a novas
circunstâncias e novas necessidades.
Simultaneamente, a tradicional história das idéias está se dirigindo para um
estudo sobre as transformações nos meios de comunicação e no público
receptor. Surgiu uma nova e próspera disciplina da história da imprensa, do livro
e da alfabetização, e de seus efeitos sobre a difusão de idéias e a transformação
de valores.
Uma outra razão adicional para que vários "novos historiadores" estejam
voltando à narrativa parece consistir na vontade de tornarem suas descobertas
novamente acessíveis a um público leitor inteligente, mas não especialista, muito
disposto a aprender o que revelam essas questões, métodos e dados inovadores,
mas sem estômago para tabelas estatísticas indigestas, argumentos analíticos
áridos e uma prosa cheia de jargões. Os historiadores estruturais, analíticos e
quantitativos estão cada vez mais falando apenas entre eles, e com mais
ninguém. Suas descobertas aparecem em revistas profissionais ou em
monografias tão caras, e com edições tão reduzidas (menos de mil exemplares),
que na prática são quase que inteiramente compradas apenas por bibliotecas. E,
no entanto o sucesso de periódicos históricos populares, como History Today e
L'hisloire, demonstra que existe um grande público disposto a ouvir, e os "novos
historiadores" agora estão ansiosos em falar para essa audiência, em vez de
deixar que ela se alimente de manuais e biografias populares. As questões que
estão sendo colocadas pelos "novos historiadores" são, afinal, as que nos
preocupam a todos atualmente: a natureza do poder, da autoridade e da
liderança carismática: a relação entre as instituições políticas e os padrões sociais
e sistemas de valores subjacentes: as atitudes frente à juventude, à velhice, à
doença e à morte: o sexo, o casamento e o concubinato, o nascimento, a
contracepção e o aborto; o trabalho, o lazer e o consumo conspícuo; a relação
entre a religião, a ciência e a magia como modelos explicativos da realidade; a
força e a direção das emoções do amor, medo, luxúria e ódio; o impacto de
alfabetização e da educação sobre a vida das pessoas e o modo de encarar o
mundo; a importância relativa atribuídas a diferentes grupos sociais, como a
família, o parentesco, a comunidade, a nação, a classe e a raça; a força e o
significado do ritual, do símbolo e do costume como formas de dar coesão a uma
comunidade: as abordagens morais e filosóficas do crime e do castigo; padrões
de submissão e surtos de igualitarismo; os conflitos estruturais entre classes ou
grupos sociais; os meios, possibilidades e limitações da mobilidade social; a
natureza e o significado do protesto popular e das esperanças milenaristas; as
alterações no equilíbrio ecológico entre o homem e a natureza; as causas e
efeitos da doença. São todas questões candentes na atualidade, e dizem respeito
às massas, mais do que às elites. Têm maior "relação" com nossas próprias vidas
do que os efeitos de reis, presidentes e generais mortos.

IV

Como resultado da convergência dessas correntes, um número signifi-


cativo dos mais conhecidos expoentes da “nova história” está agora voltando à
modalidade narrativa, antes desprezada. E, no entanto os historiadores - e
mesmo os editores - ainda parecem um pouco constrangidos com isso. Em 1979,
o Publishers Weekly - um órgão da categoria - elogiou os méritos de um novo
livro, uma estória sobre o julgamento de Luís XVI, com essas curiosas palavras: "A
opção de Jordan pelo tratamento narrativo, ao invés do tratamento erudito (grifo
meu)... é um modelo de clareza e síntese17. O crítico apreciou manifestamente o
livro, mas achando que a narrativa é, por definição, não-erudita. Quando um
membro ilustre da escola da "nova história" escreve uma narrativa, seus amigos
tendem a justificá-lo, dizendo: "É claro, ele fez só pelo dinheiro". Apesar dessas
desculpas um tanto envergonhadas, as tendências na historiografia, em
conteúdo, método e modalidade, são evidentes onde quer que se olhe.
Depois de definhar sem leitores durante quarenta anos, o livro pioneiro de
Norbert Elias sobre os costumes, The Civilizing Process, foi de súbito traduzido
para o inglês e o francês18. Theodore Zeldin escreveu uma história brilhante da
França moderna, em dois volumes, dentro de uma série de manuais, que ignora
quase todos os aspectos da história tradicional, e concentra-se basicamente em

17D. P. Jordan, The King's Trial: Louis XVI v. the French Revolution (Berkeley,1979); reviewed in Publishers' Weekly,
13 de Agosto de 1979.

18N. Elias, Uber den Prozess der Zivilisation (Basel, 1939), trans. Edrnund Jephcott as The Civilizing Process, 2 vols.
(Oxford and New York, 1978).
emoções e estados de espírito19, Philippe Ariés estudou reações ao trauma
universal da morte ao longo de um imenso período de tempo 20. A história da
feitiçaria subitamente converteu-se num setor em valorização em todos os
países, o que ocorreu igualmente com a história da família, incluindo a história da
infância, da juventude, da velhice, das mulheres e da sexualidade (estes dois
últimos constituindo tópicos em sério perigo de padecer por um excesso de
esforço intelectual). Um ótimo exemplo da trajetória que os estudos históricos
vêm tendendo a descrever nesses últimos vinte anos é o caso dos interesses de
pesquisa de Jean Delumeau. Iniciou em 1957 com um estudo de uma sociedade
(Roma); prosseguiu, em 1962, com um estudo de um produto econômico (o
alúmen); em 1971 sobre uma religião (o catolicismo); em 1976, sobre um
comportamento coletivo (Les Pays de Cocagne); finalmente, em 1979, sobre uma
emoção (o medo) 21.
A língua francesa tem uma palavra para descrever o novo tópico – mentalité
– mas infelizmente não é muito definida, nem de fácil tradução para o inglês. Em
todo caso, o contar estórias, a narração circunstanciada em grande detalhe de um
ou mais "acontecimentos" baseados no depoimento de participantes e
testemunhas oculares, constitui nitidamente uma maneira de recapturar algo das
manifestações exteriores da mentalité do passado. A análise certamente continua
a ser a parte principal do empreendimento, baseado numa interpretação
antropológica da cultura que pretende ser sistemática e científica. Mas isso não
pode ocultar o papel do estudo da mentalité no ressurgimento de modalidades
não-analíticas na escrita histórica, sendo uma delas o contar estórias.
Evidentemente, a narrativa não é a única maneira de escrever a história da
mentalité que veio a se tornar possível com a desilusão frente à análise estrutural.
Tome-se, por exemplo, a brilhantíssima reconstrução de um quadro mental
desaparecido: a evocação do mundo da Antigüidade tardia, por Peter Brown22.
Ela deixa de lado as claras categorias analíticas costumeiras: a população, a
economia, a estrutura social, o sistema político, a cultura, e assim por diante. Ao
invés disso, Brown constrói um retrato de uma época mais à maneira de um
artista pós-impressionista, lançando aqui e ali rudes manchas de cor que, se nos
afastamos o suficiente, criam uma assombrosa visão da realidade, mas,

19T. Zeldin. France, 1848-1945. 2 vol. série Oxlord History of Modern Europe. Oxlord. 1973-77: uad. Histoire des
Passions Françaises. Paris. 1978. Ver também R. Mandrou. Introduction à ta France Moderne, 1550-1640, Paris. 1961

20 P. Ariés. L'homme Devant la Mort. Paris. 1977.

21J. Delumeau. Vie Économique et Sociale de Rome dans la Seconde Moitié' du XV] siècle. 2 vol. Paris. 1957-9: Ldlun
de Rome, XV - XIX siècle. 2 vol. Paris. 1902: Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris. 1971; La Mort des Pays
de Cocagne: CompurtamenU Collectifs de la Renaissance à l'âge classique. Paris. 1970: L'Histoire de la Peur. Paris.
1979.

22 P. Brown. The World of Late Antiquity: From Marcus Aurelius to Muhammad. Londres. 1971.
examinadas de perto, dissolvem-se num borrão sem sentido. A deliberada
imprecisão, a abordagem pictórica, a íntima justaposição da história, literatura,
religião e arte, a preocupação pelo que se passava na cabeça das pessoas, são
todas características de uma nova forma de encarar a história. O método não é
narrativo, mas antes uma maneira pontilhista de escrever a história. Mas esta
também recebeu um estímulo a partir do novo interesse pela mentalité, e se
tornou possível com o declínio da abordagem analítica e estrutural, que foi tão
dominante nos últimos trinta anos.
Houve até mesmo um ressurgimento da narração de um único acon-
tecimento. Georges Duby ousou fazer o que, há poucos anos atrás, seria
inconcebível. Ele dedicou um livro ao relato de uma única batalha Bouvines e por
meio dela esclareceu as principais características da sociedade feudal francesa na
primeira metade do século XIII23. Carlo Ginzburg nos deu um minucioso relato da
cosmologia de um obscuro e humilde moleiro do norte da Itália, do início do
século XVI, e através dela procurou mostrar a perturbação intelectual e psicologia
a nível popular, provocada pela filtragem das idéias da Reforma24. Emmanuel Le
Roy Ladurie pintou um quadro único e inesquecível da vida e morte, trabalho e
sexo, religião e costumes, numa aldeia dos Pireneus, no início do século XIV 25,
Montaillou é significativo sob dois aspectos: em primeiro lugar, porque se tornou
um dos maiores best-sellers de história do século XX na França; em segundo
lugar, porque não conta uma estória direta - não há estória -, mas vagueia pela
cabeça das pessoas. Não é por acaso que é esta, justamente, uma das maneiras
pelas quais o romance moderno se distingue dos romances de épocas anteriores.
Mais recentemente, Le Roy Ladurie contou a estória de um único episódio
cruento, em 1580, numa pequena vila no sul da França, utilizando-o para revelar
as contracorrentes de ódio que vinham dilacerando o tecido social da vila26. Carlo
M. Cipolla, que até então fora um dos mais férreos entre os obstinados
estruturalistas econômicos e demográficos, acabou de publicar um livro mais
interessado numa reconstrução evocativa das reações pessoais à terrível crise de
uma epidemia, do que no estabelecimento de estatísticas sobre a incidência do
mal e a mortalidade. Pela primeira vez, ele conta uma estória 27. Eric Hobsbawm
descreveu a vida curta, desagradável e brutal dos rebeldes e bandidos pelo

23 G. Duby. Le dimanche de Bouvines 27 juillet 1214. Paris. 1973

24 C. Ginzburg. Il Formaggio e i Vermi. Turim. 1976.

25E. Le Roy Ladurie. Montaillou, Village Occitan de 1294 à 1324, Paris. 1976: trad. B. Bray. Montaillou: Cathars and
Catholics in a French Village 1294-1324. Londres. 1978.

26 E. Le Roy Ladurie. Le Carnaval de romans: de la chandeleur au mercredi des cendres, 1579-1580. Paris. 1979.

27 C. M Cipolla. Faith, reason, and the plague in seventeenth-century Tuscany, Ithaca. N.Y., 1979.
mundo, de modo a definir a natureza e os objetivos de seus "rebeldes primitivos"
e "bandidos sociais” 28. Edward Thompson contou a estória da luta na Inglaterra,
no começo do século XVIII, entre os caçadores clandestinos e as autoridades na
floresta de Windsor, a fim de respaldar seu argumento sobre o conflito entre
plebeus e nobres naquela época29. O último livro de Robert Darnton conta como
a grande Encyclopédie francesa veio a ser publicada, e com isso lançou inúmeras
luzes novas sobre o processo de difusão do pensamento iluminista durante
século XVIII, inclusive os aspectos práticos da produção do livro e os problemas
de agradar a um mercado nacional - e internacional - de idéias30. Natalie Davis
apresentou uma narrativa sobre quatro charivaris, isto é, práticas ritualizadas de
escarmento público, em Lyon e Genebra durante o século XVII, a fim de mostrar o
empenho da comunidade em impor padrões públicos de honra e decoro 31.
O novo interesse pela mentalité foi, em si mesmo, um estímulo à volta a
velhas maneiras de escrever história. O relato de Keith Thomas sobre o conflito
entre a magia e a religião está montado em torno de um "princípio fecundo", ao
longo do qual se alinham inúmeros exemplos e estórias.32 Meu recente livro sobre
as transformações na vida emocional da família inglesa é muito semelhante, se
não em sua realização, pelo menos em seus propósitos e método 33.
Todos os historiadores até aqui mencionados são estudiosos maduros, que
por muito tempo estiveram associados a "nova história", levantando novas
questões, experimentando novos métodos e buscando novas fontes. Agora,
estão voltando a contar estórias. Há, porém, cinco diferenças entre suas estórias
e as estórias dos historiadores narrativos tradicionais. Em primeiro lugar, estão
todos, quase sem exceção, interessados nas vidas, sentimentos e
comportamentos dos pobres e obscuros, ao invés dos grandes e poderosos. Em
segundo lugar, a análise continua a ser tão essencial em seus métodos quanto a
descrição, de modo que seus livros tendem a passar, um pouco canhestramente,
de uma modalidade para a outra. Em terceiro, estão abrindo novas fontes, muitas
vezes registros de tribunais penais que utilizavam procedimentos do direito
romano, visto que estes trazem transcrições por escrito de depoimento completo

28E. J. Hobsbawn. Primitive Rebels. Manchester. 1959; E. J. Hobsbawm. Bandits. Londres. 1909: E. J.
Hobsbawm e G. Rudé. Captain Swing. Londres. 1969.

29 E. P. Thompson. Whigs and Hunters. Londres. 1975.

30 R. Darnton. The Business of Enlightenment. Cambridge. Mass. 1979.

31N. Z. Davis, "Charivari, honneur et communaute a Lyon et a Geneve au XVIIe siecle", in J. Le Goff and J.-C. Schmitt
(orgs.). Le Charivari (a sair).

32K. V. Thomas. Religion and the Decline of Magic: Studies in popular beliefs in sixteenth and seventeenth century
England (London, 1971).

33 L. Stone. The Family, Sex and Marriage in England, 1500 - 1800. Londres. 1971.
das testemunhas interrogadas e examinadas. (O outro uso em voga dos registros
criminais, para mapear o aumento e o declínio quantitativos de vários tipos de
transgressão, parece-me um trabalho quase inteiramente inútil, pois o que está
sendo contado não é o número de crimes cometidos, mas o de criminosos que
foram presos e processados, o que é uma questão totalmente diferente. Não há
por que supor que um mantenha com o outro qualquer relação constante ao
longo do tempo.) Em quarto lugar, freqüentemente, contam suas estórias de
maneira diferente da de Homero, Dickens ou Balzac. Sob a influência do romance
moderno e das idéias freudianas, eles exploram escrupulosamente o
subconsciente, ao invés de se aferrarem aos fatos em si. E sob a influência dos
antropólogos, tentam utilizar o comportamento para revelar sentidos simbólicos.
Em quinto lugar, eles contam a estória de uma pessoa, um julgamento ou um
episódio dramático, não por ele mesmo, mas para lançar luz ao funcionamento
interno de uma cultura e uma sociedade do passado.

Se estou certo em meu diagnóstico, o movimento em direção à narrativa


por parte dos "novos historiadores" marca o fim de uma era: o fim da tentativa de
criar uma explicação científica coerente sobre a transformação no passado. O
determinismo econômico e demográfico faliu frente às evidências, más não surgiu
nenhum modelo determinista completo, baseado na política, na psicologia ou na
cultura, para ocupar seu lugar. O estruturalismo e o funcionalismo não se
mostraram muito melhores. A metodologia quantitativa se revelou um caniço
bastante frágil, capaz de responder apenas a um leque restrito de problemas.
Levados a escolher entre modelos estatísticos a priori do comportamento humano
e uma compreensão baseada na observação, na experiência, no julgamento e na
intuição, alguns dos "novos historiadores" agora tendem a recuar em direção à
segunda modalidade de interpretação do passado.
Embora o ressurgimento da modalidade narrativa por obra dos "novos
historiadores" seja um fenômeno muito recente, ele é apenas um pequeno filete
em comparação à vazão larga, constante e igualmente ilustre de narrativas
políticas descritivas de historiadores mais tradicionais. Um exemplo recente que
teve uma considerável aclamação entre os eruditos é o livro de Simon Schama
sobre a política holandesa no século XVIII 34. Obras como esta foram tratadas,
durante décadas, com indiferença ou desdém quase indisfarçado pelos novos
historiadores sociais. Essa atitude não era muito justificável, mas em anos recentes

34 S. Schama. Patriots and Liberation: Revolution in the Netherlands, 1180 - 1813. Londres. 1977.
levou alguns dos historiadores tradicionais a adaptarem sua modalidade descritiva
a novas questões. Alguns deles já não tão preocupados com questões do poder –
e, portanto, com reis e primeiros-ministros, guerras e diplomacia –, mas, como os
"novos historiadores", estão voltando a atenção para a vida privada de pessoas
totalmente obscuras. A causa dessa corrente, se é que é uma corrente, não é
clara, mas a inspiração parece ser a vontade de contar uma estória e, com isso,
revelar as peculiaridades da personalidade e a interioridade das coisas numa
época e numa cultura diferentes. Alguns historiadores tradicionais já fazem isso há
algum tempo. Em 1958, G. R. Elton publicou um livro composto de estórias de
tumultos e agressões físicas na Inglaterra quinhentista, extraídas dos registros da
Câmara Estrelada35. Em 1946. Hugh Trevor-Roper reconstruiu de maneira brilhante
os últimos dias de Hitler36. Recentemente, ele investigou a carreira extraordinária
de um inglês relativamente obscuro, colecionador de manuscritos, vigarista e
pornógrafo secreto, que morou na China nos primeiros anos deste século 37. O
propósito de escrever essa divertida invencionice era, pelo visto, o puro prazer em
contar estórias por elas mesmas, seguindo e capturando um espécime histórico
bizarro. A técnica é quase igual à que foi utilizada, anos atrás, por A.J.A. Symons.
em seu clássico The Quest for Corvo 38, ao passo que a motivação parece muito
semelhante à que inspira Richart Cobb, ao registrar em horríveis detalhes a vida e
morte miserável de criminosos, prostitutas e outros desajustados sociais no
submundo da França revolucionária 39.
Muito diferentes em conteúdo, método e objetivo são os textos da nova
escola britânica de jovens empiristas antiquaristas. Eles escrevem narrativas
políticas pormenorizadas, que implicitamente negam que exista qualquer sentido
profundo na história, além das excentricidades fortuitas do destino e da
personalidade. Liderados por Conrad Russell e John Kenyon, impelidos por
Geoffrey Élton, agora estão ocupados em tentar remover qualquer sentido
ideológico ou idealista das duas revoluções seiscentistas inglesas. 40 Não há dúvida
que eles, ou outros como eles, logo voltarão suas atenções para outra parte.

35 G. R. Ellon. Star Chamber Stories. Londres. 1958.

36 H. R. Trevor-Roper. The Last Day of Hitler. Londres. 1947.

37H. R. Trevor-Roper. A Hidden Life: The Enigma of Sir Edmund Back House, Londres. 1976; ed. amef. The Hermit of
Peking. Nova York. 1977.

38 A. J. A. Symons. The Quest for Corvo. Londres. 1934.

39 R. Cobb. The Police and the People. Oxford. R. Cobb. 1970; Death in Paris. Oxford. 1978.

40C. Russell, Parliaments and English Politics, 1621-29 (Oxford, 1979); J. P. Kenyon, Stuart England (London, 1978);
see also the articles by John K. Gruenfelder, Paul Christianson, Clayton Roberts, Mark Kishlansky and James E.
Farnell, in Jl.Mod. Hist., xlix no. 4 (1977).
Embora suas premissas nunca sejam apresentadas explicitamente, suas
abordagens são puramente neo-Namieristas, numa época em que o namierismo,
enquanto forma de encarar a política setecentista inglesa, está morrendo. Fica-se
a imaginar se a atitude deles em relação à história política não pode brotar
subconscientemente de um sentimento de desilusão quanto à capacidade do
sistema parlamentar contemporâneo em lutar contra o inexorável declínio
econômico político da Grã-Bretanha. Seja como for, são cronistas muito eruditos e
inteligentes dos fatos miúdos, da "histoire événementielle", e assim formam uma
das várias correntes que alimentam o ressurgimento da narrativa.
A razão fundamental para a passagem da modalidade analítica para a
modalidade descritiva, entre os "novos historiadores", é uma grande mudança na
postura quanto ao que constitui o tema central da história. E isso, por sua vez,
depende de pressupostos filosóficos anteriores sobre o papel do livre arbítrio
humano em sua interação com as forças da natureza. Os dois pólos opostos de
pensamento ficam mais claros com citações respectivas. Em 1973, Emmanuel Le
Roy Ladurie deu a uma seção de um volume de seus ensaios o título de "História
sem Gente” 41. Em contraposição, há meio século atrás, Lucien Febvre anunciava:
"minha presa é o homem", e há 25 anos atrás Hugh Trevor-Roper, em sua palestra
inaugural, insistiu junto aos historiadores sobre "o estudo não das circunstâncias,
mas do homem nas circunstâncias"42. Hoje, o ideal de história de Febvre está se
difundindo em muitos círculos, ao mesmo tempo em que continuam a sair do
prelo estudos estruturais analíticos sobre forças impessoais. Portanto, agora os
historiadores estão se dividindo em quatro grupos: os velhos historiadores
narrativos, basicamente biógrafos e historiadores políticos: os cliometristas, que
continuam a agir como dopados em estatísticas; os obstinados historiadores
sociais, ainda ocupados em analisar estruturas impessoais; e os historiadores da
mentalité, agora perseguindo ideais, valores, quadros mentais e padrões de
comportamento pessoal íntimo - quanto mais íntimo, melhor.
No entanto, a adoção da minuciosa narrativa descritiva ou da detalhada
biografia individual, por parte dos historiadores da mentalité, não deixa de ter
seus problemas. Ê a velha questão de que o argumento por exemplos
selecionados é filosoficamente inconvincente, um recurso retórico e não uma
prova científica. Recentemente, Carlo Ginzburg formulou bem a armadilha
historiográfica fundamental em que nos debatemos: "A orientação quantitativa e
anti-antropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as
ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico
frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte

41 E. le Roy Ladurie. The Territory of the Historian, p. 285.

42 H. R. Trevor-Roper. History, Professional and Lay. Univ. Oxford. Palestra Inaugural. Oxford. 1057: p. 21.
para chegar a resultados de pouca relevância” 43. A decepção com a segunda
postura está provocando um retorno à primeira. Em decorrência disso, o que
agora está ocorrendo é uma ampliação do exemplo selecionado - agora, muitas
vezes é um único exemplo pormenorizado -, convertendo-o numa das
modalidades correntes de se escrever história. Num certo sentido, é apenas um
prolongamento lógico do imenso sucesso dos estudos de história local, que
tomam como tema não uma sociedade inteira, mas apenas um segmento - uma
província, uma cidade, e mesmo uma aldeia. A história total só parece possível se
se toma um microcosmo, e os resultados têm com freqüência contribuído mais
para esclarecer e explicar o passado do que todos os estudos anteriores ou
contemporâneos, baseados nos arquivos do governo central. Num outro sentido,
porém, a nova corrente é a antítese dos estudos de história local, visto abandonar
a história total de uma sociedade, por menor que seja, como algo impossível, e
defender a estória de uma única célula.
O segundo problema que deriva do uso do exemplo pormenorizado para
ilustrar a mentalité é como distinguir entre o normal e o excêntrico. Como agora
nossa presa é o homem, a narração de uma estória muito detalhada de um único
incidente ou personalidade pode ser elucidativa e, ao mesmo tempo, constituir
uma boa leitura. Mas apenas se as estórias não se limitam a contar um caso
impressionante, porém essencialmente avulso, de algum episódio dramático de
amotinamento ou saque, ou a vida de algum plebeu, místico ou mendigo
excêntrico, e sim são escolhidas pela luz que podem lançar sobre certos aspectos
de uma cultura passada. Isso significa que devem ser típicas, mas, por outro lado,
a ampla utilização de registros judiciais dificulta muita a solução dessa questão da
tipicidade. As pessoas levadas ao tribunal são quase que por definição, atípicas,
mas o mundo exposto tão desnudadamente no depoimento das testemunhas não
o é necessariamente O seguro, portanto, é examinar os documentos, não tanto
pelas provas que oferecem sobre o comportamento excêntrico do acusado, e sim
pela luz que lançam sobre a vida e as opiniões de quem veio a se envolver no
incidente em questão.
O terceiro problema diz respeito à interpretação, e é de solução ainda
maic difícil. Desde que o historiador permaneça ciente dos riscos envolvidos,
contar estórias é talvez uma maneira tão boa quanto qualquer outra para obter
um vislumbre íntimo do homem no passado, para tentar entrar em sua cabeça. O
problema é que, se consegue entrar, o narrador vai precisar de toda a habilidade,
experiência e conhecimento adquiridos na prática da história analítica da
sociedade, economia e cultura, se quiser oferecer uma explicação plausível sobre
algumas das coisas estranhíssimas que é capaz de encontrar. Talvez também
precise de um pouco de psicologia amadorística para ajudá-lo, mas a psicologia

43C. Ginzburg. "Roots of a Scientific Paradigm". Theory and Society. vii. 1979. p. 270. Cit. cf. ed. bras.. Sinais: raízes
de um paradigma indiciário", in Mitos, Emblemas, Sinais. SP. 1989. trad. Federico Carotti. p. 178.
amadorística é um material extremamente complicado para se conseguir manejá-
la com êxito – alguns diriam que é impossível.
Um outro perigo evidente é que o ressurgimento da narrativa pode levar
a uma volta ao puro antiquarismo, ao contar estórias por elas mesmas. Outro
ainda é que ela concentrará a atenção sobre o sensacional, assim obscurecendo a
insipidez e monotonia da vida da imensa maioria das pessoas. Tanto Trevor-Roper
quanto Richard Cobb oferecem uma leitura extremamente divertida, mas estão
largamente expostos a críticas sob esses dois aspectos. Muitos praticantes da
nova modalidade, inclusive Cobb, Hobsbawm, Thompson, Le Roy Ladurie e Trevor-
Roper (e eu mesmo) sentem-se claramente fascinados por estórias de violência e
sexo, que tocam nos instintos voyeuristas de todos nós. Por outro lado, pode-se
argumentar que o sexo e a violência são partes integrantes de toda experiência
humana, e, portanto é tão sensato e defensável explorar seu impacto sobre os
indivíduos no passado, quanto querer ver tal material nos filmes e programas de
televisão contemporâneos.
A tendência para a narrativa levanta problemas irresolvidos sobre a
maneira que formaremos nossos graduandos no futuro - supondo que haja algum
para formar. Nas antigas artes da retórica? Na crítica dos textos? Em semiótica? Em
antropologia simbólica? Em Psicologia? Ou nas técnicas de análise das estruturas
sociais e econômicas que viemos praticando durante uma geração? Portanto,
continua em aberto se essa inesperada ressurreição da modalidade narrativa, por
obra de tantos praticantes de proa da "nova história", se mostrará boa ou ruim
para o futuro da profissão.
Em 1972, Le Roy Ladurie escreveu confiante: "A historiografia atual, com
sua preferência pelo quantificável, pelo estatístico e estrutural, foi obrigada a
eliminar para sobreviver. Nas últimas décadas, ela praticamente condenou à
morte a história narrativa dos acontecimentos e a biografia individual” 44. É cedo
demais para rezar uma oração fúnebre sobre o cadáver decadente da história
analítica, estrutural e quantitativa, que continua a vicejar, e mesmo a crescer, caso
a tendência nas teses de doutorado americanas seja algum guia para isso 45. Não
obstante, nesta terceira década, a história narrativa e a biografia individual estão
dando mostras visíveis de estarem voltando dentre os mortos. Nenhuma delas
parece se manter igual ao que eram antes de seu pretenso falecimento, mas é fácil
identificá-las como variantes do mesmo gênero.
É claro que uma única palavra como "narrativa", principalmente tendo
uma história tão complicada por detrás, é inadequada para descrever o que, na
verdade, constitui um amplo leque de transformações na natureza do discurso
histórico. Existem sinais de mudança quanto à questão central na história, desde
circunstâncias que cercam o homem até o homem nas circunstâncias: nos

44 E. Le Roy Ladurie. The Territory of the Historian. p. 111


45R. Darnton. "Intellectual and Cultural History". Apêndice.
problemas estudados, desde os econômicos e demográficos aos culturais e
emocionais; nas fontes básicas de influência, desde a sociologia, economia e
demografia à antropologia e psicologia: no tema, do grupo ao indivíduo; nos
modelos explicativos da transformação histórica, desde os estratificados e
monocausais aos interligados e multicausais; na metodologia, desde a quan-
tificação em série ao exemplo individual; na organização, da analítica à descritiva:
na conceitualização da função do historiador, da científica à literária. Essas
mudanças multifacetadas em conteúdo, objetivo, método e estilo de escrever
história, que estão ocorrendo todas ao mesmo tempo, têm claras afinidades
eletivas entre si: todas se encaixam perfeitamente. Nenhuma palavra é capaz,
sozinha, de resumi-las todas, e assim, por enquanto, a "narrativa" terá de servir
como uma senha taquigráfica para tudo o que está se passando.

Tradução de Denise Bottmann. Este texto foi originalmente publicado em


Past and Present, no 85. nov. 1979. pp. 3-24.

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