Você está na página 1de 34

03

BIBLIOTECA
MILITAR CRISTÃO

OS SOLDADOS
PODEM SER SALVOS
TAMBÉM?

Por
Martinho Lutero

2ª Edição
2008
03

BIBLIOTECA

PREZADO LEITOR
MILITAR CRISTÃO
Todo auxílio é bem vindo a este ministério, bem como o
aperfeiçoamento destes Manuais. Caso tenha alguma suges-
tão, dúvida, comentário, crítica ou contribuição a dar ao
nosso trabalho, encaminhe-os para nós através do sítio Mili-
tar Cristão, seção Contato, ou diretamente ao webmaster
pelo endereço eletrônico webmaster@militarcristao.com.br.
Sua mensagem será analisada e poderá constar de futuras
edições. Caso queira também contribuir com textos inéditos,
seja de instrução para os grupos militares evangélicos, tes-
temunho pessoal ou doutrina cristã, utilize-se dos mesmos
modos de contato já mencionados. Os critérios de publica-
ção estão na seção Estrutura. Que Deus te abençoe.

OS SOLDADOS
PODEM SER SALVOS
TAMBÉM?
Militar Cristão. Edificando na caserna.

Todos os manuais da coleção podem ser baixados, gratuitamente,


através do sítio da Internet http://tinyurl.com/bibliomc.
http://tinyurl.com/bibliomc

Por
Martinho Lutero
Editor responsável pelo sítio e por esta coleção: Cleber Olympio
© 2003-2011 Cleber Olympio. Todos os Direitos Reservados.
Permitida a reprodução total ou parcial, desde que mencionada a fonte. 2ª Edição
2008
03

MILITAR CRISTÃO
http://www.militarcristao.com.br

Especificamente, a finalidade dessa página é:


I. “Prover conteúdo relevante e adequado ao usuário final, qual seja, militar das For-
ças Armadas ou Auxiliares do Brasil, cristãos evangélicos ou não;
II. Promover integração entre os militares cristãos de todo o Brasil, com possibilida-
des de se reunir irmãos que não se veem há muito tempo;
III. Auxiliar nos cultos e reuniões evangélicas, promovidos pelas associações militares
nos quartéis, provendo material, como estudos bíblicos, além de discutir ideias para
o aperfeiçoamento desse trabalho;
IV. Fortalecimento e difusão da fé militar, respeitadas a hierarquia e a disciplina”.
(NGA 1/2006, art. 4º).
Agora, ponderando, considere os seguintes fatos:
PORTARIA Nº 16, DE 12 DE ABRIL DE 2011.  A extensão do nosso efetivo, bastante considerável;
 O fato de o militar ser, por muitas vezes, o braço do Estado onde nem o Estado vai,
sobretudo em áreas de fronteira;
Aprova a inclusão do Manual 03, 2ª Edição, 2008,  As diversas movimentações que ele sofre ao longo da carreira;
como integrante da Biblioteca Militar Cristão.  O contato diário com pessoas dos mais diversos rincões do País;
 A possibilidade de atuar junto a outras nações, com seu exemplo, nas missões de
O administrador do sítio “Militar Cristão”: paz;
Em cumprimento ao disposto no § 2º-A do art. 3º da Norma Geral Admi-  No caso específico das Forças Auxiliares, o contato mais próximo e diário com a
nistrativa nº 4, de 19 de agosto de 2007, com redação dada pela Norma população, em situações de tensão e perigo;
Complementar Administrativa nº 9, de 10 de abril de 2011, faço saber aos  As dificuldades inerentes à carreira, como exposição diária ao perigo (inclusive de
perder a vida), de se formar um patrimônio familiar, a instabilidade de relações pes-
interessados o seguinte:
soais duradouras por conta das movimentações, o prejuízo na educação dos filhos e
na área profissional do cônjuge;
Art. 1º. Aprova-se, com esta portaria, a inclusão do Manual 03, intitu-  O preparo e o emprego da força militar, em situações extremas;
lado “Os Soldados Podem Ser Salvos Também?”, 2ª Edição (2008),  O elogio que a Bíblia dá ao compromisso, benevolência e fé de militares, como o
como integrante da Biblioteca Militar Cristão, disponibilizando-se o mes- centurião Cornélio;
mo, a partir da presente data, na subseção “Download – Documentos”  As imensas e evidentes semelhanças entre a vida cristã e a militar.
para franquear seu acesso aos usuários do sítio. Diante desses fatores, nota-se o quanto o povo de Deus tem negligenciado o enorme
potencial de atuação do evangélico militar. Quando limitamos nossa área de atuação ao
Art. 2º. Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação. louvor e à EBD, não percebemos que, à nossa volta, pode estar alguém que será um homem
de Deus a frente de uma batalha, quem levará até as últimas consequências seu compromis-
so com Deus e com a nação brasileira. Um aluno de um curso de formação hoje pode ser o
Campinas, 12 de abril de 2011. Marechal, Almirante ou o Brigadeiro amanhã. E ao menos que a Bíblia esteja equivocada
CLEBER OLYMPIO (falo como homem), nação se voltará contra nação. O que será do homem da caserna?
Administrador - Sítio Militar Cristão Quem irá até aquele povo? Quem os ajudará?
A resposta pode estar dentre os civis, que até hoje não descobriram essa missão dada
(Publicado em 12/04/2011 no hipertexto <http://www.militarcristao.com.br/redir.php?id=634>). pelo Senhor, ou especialmente dentre o próprio pessoal militar, que ainda encara sua incor-
poração como uma mera profissão, sem considerar o caráter de missão que ele tem, como
integrante das Forças Armadas ou Auxiliares.
Esta é a nossa visão, que compartilhamos todos os dias com você, seja por meio de es-
tudos, artigos, informações, bizus ou, inclusive, por entretenimento nos momentos de folga.
Este é o Militar Cristão.

II BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO


03 03

E astúcias tão cruéis, ÍNDICE DOS ASSUNTOS


Que iguais não há na terra.

A nossa força nada faz, Pág.


Estamos, sim, perdidos;
APRESENTAÇÃO V
Mas nosso Deus socorro traz
E somos protegidos. NOTA DO EDITOR VI
Defende-nos Jesus, CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS 1-1
O que venceu na cruz,
Senhor dos altos céus; ARTIGO I – APRESENTAÇÃO E COMENTÁRIO 1-1
E, sendo o próprio Deus, ARTIGO II – INTRODUÇÃO AO PARECER 1-2
Triunfa na batalha.
CAPÍTULO 2 – DO OFÍCIO MILITAR. OBJEÇÕES À CARREIRA DAS
ARMAS 2-1
Se nos quisessem devorar
Demônios não contados, ARTIGO I – FINALIDADE DA GUERRA 2-1
Não nos podiam assustar, ARTIGO II – DO OFÍCIO DIVINO DA GUERRA 2-3
Nem somos derrotados.
O grande acusador CAPÍTULO 3 – DA CORRETA APLICAÇÃO DA LEI E DA JUSTIÇA. DA LEI
Dos servos do Senhor MARCIAL 3-1
Já condenado está; ARTIGO ÚNICO – CONTRA QUEM É A GUERRA? 3-1
Vencido cairá
CAPÍTULO 4 – DA GUERRA DE INFERIORES CONTRA SUPERIORES 4-1
Por uma só palavra.
ARTIGO I – DA REBELIÃO CONTRA OS GOVERNANTES 4-1
Sim, que a palavra ficará, ARTIGO II – DO EXERCÍCIO DA TIRANIA 4-5
Sabemos com certeza,
E nada nos assustará ARTIGO III – CONTRA O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA PRÓPRIA 4-10
Com Cristo por defesa. CAPÍTULO 5 – DA GUERRA ENTRE IGUAIS 5-1
Se temos de perder
Os filhos, bens, mulher, ARTIGO I – RAZÕES PARA CONFLITOS ENTRE IGUAIS 5-1
Embora a vida vá, ARTIGO II – LIMITES PARA CONFLITOS ENTRE IGUAIS 5-4
Por nós Jesus está,
CAPÍTULO 6 – DA GUERRA DE SUPERIORES CONTRA INFERIORES 6-1
E dar-nos-á seu reino.
ARTIGO ÚNICO – DO EXERCÍCIO DA AUTORIDADE PUNITIVA 6-1
Fonte: <http://www.cyberhymnal.org/non/pt/castfort.htm> Acesso em 06/01/2008.
CAPÍTULO 7 – RESPOSTAS A DIVERSAS PERGUNTAS 7-1
ARTIGO I – QUESTÕES ÉTICAS DE GUERRA 7-1
ARTIGO II – QUESTÕES ESPIRITUAIS DE GUERRA 7-10
ARTIGO III – ENCERRAMENTO DO PARECER 7-11
SOBRE O AUTOR 1

6 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO III


03 03

nações, destrói famílias. É o pior dos males.


 A humildade dos hipócritas é o maior e o mais altaneiro dos orgulhos.
 A paz, se possível, mas a verdade, a qualquer preço.
 Da mesma forma como vamos até o berço tão-somente para
encontrar um bebê, também recorremos às Escrituras apenas para
encontrar Cristo.
 Do mesmo modo, devemos nos submeter à autoridade do
príncipe. Se ele abusa ou faz mal uso dela, não devemos odiá-lo,
buscar vingança ou punição. A obediência é devida em nome de
Deus, pois a autoridade é o representante de Deus. Por mais que
eles tributem e exijam, devemos obedecer e suportar com
paciência.
 O coração do homem é como um moinho que trabalha sem parar.
Se não há nada para moer, corre o risco de se triturar a si mesmo.
 Para cada florim investido na guerra, cem deveriam ser investidos
na educação.
 Se você está à procura de uma grande oportunidade, descubra um
grande problema.

É de sua autoria o hino “Castelo Forte”, considerada a Canção do


Combatente Cristão, o Hino de Batalha da Reforma Protestante. Composto
em 1529, ele é baseado no Salmo 46. Segue-se a letra.

Figura 1. Vitral com a chamada “Rosa de Lutero”, seu selo pesso- CASTELO FORTE
al, com os dizeres em latim: “Só a Fé, Só a Bíblia, Só a Graça”. (Ein’ Feste Burg Ist Unser Gott)

Letra: Martinho Lutero, 1529;


tradução do inglês para o português por J. Eduardo von Hafe.
Música: Martinho Lutero, 1529

Castelo forte é nosso Deus.


Espada e bom escudo,
Com seu poder defende os seus
Em todo transe agudo.
Com fúria pertinaz
Persegue Satanás,
Com artimanhas tais

IV BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 5


03 03

buiu para que o Evangelho fosse conhecido mais amplamente. Seus de-
mais escritos, com maior tiragem que os livros convencionais, tinham boa
vendagem, e ajudavam no trabalho de difusão da doutrina cristã. Durante
a ausência de Lutero, o movimento se espalhava, com a renúncia de votos
e de costumes por parte de diversos sacerdotes católicos.
Nem tudo, entretanto, foi em paz: grupos de
insurgentes estavam se formando e apregoando
revoltas, tanto contra o clero, como contra o go-
verno. Lutero teve de regressar a Wittenberg, a
fim de proferir conselhos sobre a Reforma. Agita-
dores, entretanto, não acatam suas ideias, e de-
flagram a Guerra dos Camponeses (1524-1525),
contra a qual Lutero se opõe veementemente, APRESENTAÇÃO
embora ele simpatizasse com os camponeses,
desde que estes obedecessem às autoridades.
Em 1525, ele se casa com a ex-freira Catarina von O folheto sobre a questão “Os Soldados Podem Ser Salvos Também?”
Bora, com quem teria seis filhos. foi sugerido a Martinho Lutero por Asa von Kram, conselheiro de Ernst I,
Mais tarde, Lutero concluiu seu Catecismo Duque de Brunswick-Lüneburg. A sugestão foi feita quando eles se encon-
Maior e Catecismo Menor, destinados à instru- traram em Wittenberg imediatamente após a Guerra dos Camponeses. Foi
ção popular e, em 1534, publica, com o auxílio revisado em janeiro de 1526, quando os dois se encontraram novamente
de colaboradores, a nova tradução da Bíblia, em Torgau. Em outubro de 1526, o trabalho foi concluído. Foi publicado
desta vez completa. Ao trabalho de revisão de Figura 10. Frontispício da antes de 1º de janeiro de 1527.
suas traduções, ele se dedicou até o fim da vida. Bíblia Sagrada, traduzida por
Lutero ao vernáculo alemão,
Este folheto está intimamente relacionado com os escritos de Lutero
Morreu em sua cidade natal, em 1546, aos 62 sobre a Guerra dos Camponeses e sobre aqueles que estão no governo.
obra pioneira em 1534.
anos de idade. Esse grupo de textos deve ser lido em conjunto, caso haja o desejo de
Alguns de seus trabalhos: Prelúdio no Cativeiro Babilônico da Igreja / A que as opiniões de Lutero sobre os assuntos aqui discutidos sejam com-
Liberdade do Cristão / Da Autorida- pletamente compreendidas.
de Secular / Exortação à Paz: Lutero era da opinião de que a guerra é um mal necessário. Ela tem
Resposta aos Doze Artigos do um lugar próprio no mundo, mas apenas como um meio para a repressão
Campesinato da Suábia / Os do que é errado: quando utilizada para se obter esse efeito, é justificável.
Soldados Podem Ser Salvos Ele tenta guardar esta doutrina contra o abuso da distinção entre três tipos
Também? / Da Vontade Cativa. de guerra: de inferiores contra superiores, o que nunca é justificável; de
Alguns de seus pensamentos: igual contra igual, a qual poderia se justificar, mas que nunca deveria ser
guerra de agressão; e a de superiores contra inferiores hierárquicos, o que
 A guerra é a maior praga é simplesmente uma aplicação do Poder de Polícia que pertence ao Esta-
que assola a humanidade; Figura 11. Martinho Lutero em família. do. A classificação em superiores, iguais e inferiores, é feudal e baseia-se
destrói a religião, destrói as nas distinções que o sistema feudal fazia entre suseranos e vassalos.
Foi com base nessas observações que Lutero resistiu à tentativa de
criar uma liga de príncipes protestantes para defender a Reforma. Antes
o homem comum, que não falava latim na Europa renascentista. Nela se encontra uma
série de imperfeições e de acréscimos feitas pelo seu tradutor (sobretudo no livro de Es- da Dieta de Augsburgo, ele sustentou que qualquer esforço por parte do
ter), fora a adoção de livros apócrifos, como Tobias e Judite, o que lhe retira credibilida- imperador para reprimir o luteranismo deveria ser satisfeita apenas com
de e confiabilidade. Sua revisão se deu apenas no século XX.

4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO V


03 03

resistência passiva, mas que qualquer tentativa de repressão por parte dos dadeiros, quanto ao Evangelho. O reformador Philip Melanchton afirma
príncipes católicos poderia ser antagonizada de modo ativo. que Lutero afixou tais teses às portas da igreja em Wittenberg, no dia 31
O texto deste folheto encontra-se nas Edições Weimar, 19:623 e se- de outubro de 1517. Era o estopim do movimento conhecido como a Re-
guintes, Edições Erlangen, 22:246 e seguintes; Edições St. Louis, 10:488 e forma Protestante.
seguintes; Edições Berlim, 7:383 e seguintes; e Clemen 3:317 e seguintes. Roma respondeu rapidamente, ridicularizando Lutero e taxando de he-
Como referência bibliográfica, confira o prefácio de Karl Holl em Lutero resia suas teses. Este, por sua vez, rechaçou as conclusões da igreja cató-
(1923), Edições Berlim e Weimar, págs. 267 e seguintes. lica, e a partir de então aplicou-se em
novos estudos sobre a Bíblia. Seus
CHARLES M. JACOBS tratados escritos em 1520 negavam a
Mount Airy, Philadelphia, PA (Estados Unidos). existência dos sacramentos, sendo
admissíveis apenas o batismo e a ceia,
e apregoava a liberdade do cristão,
com base na fé e no amor. A autorida-
NOTA DO EDITOR
de do papa passou a ser abertamente
contestada.
O papa Leão X, então, ameaçou
Fizemos uma divisão em capítulos e artigos, considerando estritamen-
Figura8. Lutero queima a bula papal. Lutero de excomunhão, com a bula
te os tópicos desenvolvidos pelo Autor, com o único objetivo de tornar a
leitura mais fácil e organizada. Em nada houve alteração de conteúdo, Exsurge Domine, que não seria levada adiante se ele se retratasse de pon-
conforme a tradução do idioma inglês, aqui disposta – e sua confrontação tos de sua doutrina. Como Lutero não o fez, foi excomungado a 03 de
direta com o original em alemão. Os subtítulos, ainda, foram inseridos janeiro de 1521, fato que se sucedeu após este ter queimado a bula papal.
conforme esse original. Lutero é, então, convocado a comparecer diante do Tribunal de Justi-
Todos os textos bíblicos citados são extraídos preponderantemente da ça (Dieta) em Worms, no qual seria forçado a negar publicamente seus
tradução de João Ferreira de Almeida, Edição Revista e Atualizada. Quan- escritos. Ao invés disso, ele declara que não o faria, por não ser nem se-
do omissas tanto no original, como na versão inglesa, as referências cons- guro, nem honrado, agir contra sua
tarão de notas de rodapé. Eventuais observações de nossa tradução são própria consciência. Pelo Edito (sen-
acompanhadas pela abreviatura “N. do T.” (nota do tradutor). tença) de Worms, Lutero foi declarado
um fora-da-lei, que devia ser preso e
O Editor condenado por heresia – qualquer que
o matasse não responderia por crime
algum.
Com sua cabeça a prêmio, Lutero
é propositalmente sequestrado por
Frederico III, eleitor da Saxônia, que
Figura 9. Lutero na Dieta de Worms. passou a ser seu protetor. O pregador
do Evangelho, então, refugia-se secretamente no castelo de Wartburg,
adotando o pseudônimo de “Jorge, o Cavaleiro”, e deixando sua barba
crescer. Nesse ínterim, traduz o Novo Testamento em Grego para a língua
alemã, fato inovador para uma igreja que rejeitava qualquer escrito sagra-
do que não fosse composto em latim39. A versão na língua do povo contri-

39
A versão oficial da bíblia católica, até o Concílio Vaticano II, era a Vulgata, tradução de
Jerônimo elaborada no século IV d.C. para o latim vulgar, mas que era ininteligível para

VI BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 3


03 03

Como frade, Lutero dedicava-se a horas excessivas de oração e jejum,


e era conhecido por sua implacável autodisciplina. Seu superior, Johann
von Staupitz, decide, todavia, que ele deveria deixar a vida monástica e
seguir carreira acadêmica. A partir de então, Lutero torna-se bacharel em
Estudos Bíblicos e, em seguida, doutor em Teologia (1512), pela Universi-
dade de Wittenberg.
Com seus estudos no livro de Salmos e nas cartas de Paulo aos Ro-
manos, aos Gálatas e aos Hebreus,
Lutero começou a perceber que a visão OS SOLDADOS PODEM SER SALVOS TAMBÉM?
católica romana de doutrinas centrais (Ob Kriegsleute in seligem Stande sein können, 1526)
da fé cristã havia perdido o foco, mor-
mente a doutrina da justificação, se-
gundo a qual Deus nos torna justos
pela sua graça, pelos méritos de Cristo CAPÍTULO 1
que justifica o ímpio, e não por meio de
obras, ou pagando promessas. Ele CONSIDERAÇÕES INICIAIS
passou a ensinar a “Teologia da Graça”
em aulas e através de seus escritos. Figura 6. Martinho Lutero fixa suas 95 teses
Entre 1516 e 1517, o frade domi- à porta da igreja em Wittenberg (Alemanha). ARTIGO I
nicano Johann Tetzel é enviado à Alemanha, a fim de promover a venda de
indulgências, cartas de absolvição total ou APRESENTAÇÃO E COMENTÁRIO
parcial, assinadas pelo papa. Elas assegura-
vam o perdão dos pecados do adquirente, Prezado e honorável Asa von Kram, cavaleiro etc.
ou de algum parente que jazia no purgatório, Meu amável senhor e amigo – Martinho Lutero:
lugar de purificação para as almas dos mor-
tos, segundo a doutrina católico-romana38. A Graça e paz em Jesus Cristo, louvável, honrado, prezado senhor, e
finalidade da venda de tais indulgências era a amigo!
reforma da Basílica de São Pedro, no atual Quando você esteve recentemente em Wittenberg, no tempo das elei-
Vaticano. ções, falávamos das condições dos soldados, e no decurso da conversa
A base teológica das indulgências con- muitos pontos foram levantados, tocando em questões de consciência.
trastava frontalmente com os ensinos de Então, você e outros me pediram para publicar um parecer escrito sobre
Lutero, à luz da Bíblia. Ele, então, resolve este assunto, porque há muitos que sofrem ofensas por serem dessa pro-
escrever ao seu arcebispo um documento, fissão. Alguns deles têm dúvidas, outros ficam tão completamente perdi-
as 95 Teses, no qual, sem se insurgir contra dos a ponto de nem mais perguntar sobre a opinião de Deus, e deixam
o papado, procurava propor um debate Figura 7. Bula papal de 1520, suas almas e consciências ao vento. Eu próprio tenho ouvido alguns des-
acerca do equívoco da venda de indulgên- elaborada por Leão X, na qual se tes irmãos dizerem que, se eles se lembrassem destas coisas, jamais po-
cias, que poderiam corromper a fé do povo, condenavam os escritos de Lutero. deriam ir para a guerra – como se a guerra fosse algo tão grandioso que
fazendo-o confiar numa carta, e não num arrependimento e confissão ver- não estaríamos a pensar em Deus e na alma quando ela está em curso, e
ainda que estivéssemos em perigo de morte, este seria o grande momento
38
A base escriturística do Purgatório, segundo a doutrina católico-romana, está no livro
em que temos de ser mais conscientes de Deus e da alma.
apócrifo (deuterocanônico) de II Macabeus 12:42-46. A formulação do Purgatório foi i- Daí então, com o propósito de que os nossos melhores conselhos
dealizada pelo papa Gregório I, no ano de 593. possam ser dados a estas consciências fracas, tímidas e cheias de dúvida,
2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 1-1
03 03

e que os desatentos podem receber melhor instrução, que aceitei o seu


pedido e prometi este livro, pois quando um homem vai para a batalha
com uma consciência boa e bem instruída, ele vai lutar bem, uma vez que
uma consciência tranquila nunca deixa de provocar uma grande coragem
e um coração cheio de ousadia; mas quando o coração está cheio de
ousadia e o espírito confiante, a força está toda no pulso, cavalo e homem
se aceleram; tudo sai melhor, e todas as chances sustentam melhor a
vitória que Deus dá em seguida. Por outro lado, se a consciência é tímida
e incerta, o coração, então, não vai estar corretamente cheio de ousadia. SOBRE O AUTOR
É impossível para uma má consciência não fazer homens covardes e
medrosos, como Moisés disse ao seu povo judeu: “[se fores desobedien-
te,] O SENHOR fará que sejas ferido diante dos teus inimigos; por um ca-
minho sairás contra eles, e por sete caminhos fugirás deles; e serás espe-
táculo horrendo a todos os reinos da terra1”. Dessa maneira, cavalos e
homens tornam-se preguiçosos e despreparados, falta vigor para o ataque
e, finalmente, eles caem derrotados. Quanto às consciências ignorantes e
desatentas na sociedade – aqueles chamados irresponsáveis, companhei-
ros imprudentes – tudo com eles se passa de modo indiferente, quer ga-
nhem ou percam. Da mesma forma que ocorre mudança de opinião para
aqueles que têm boa ou má consciência, assim acontece para com estas
bestas embrutecidas, uma vez engajadas no exército. A vitória não lhes é
dada em conta, porque eles são apenas as carapaças, não o verdadeiro
coração do exército.
Dito isso, eu, agora, envio a você este meu parecer, dado de acordo Martinho Lutero
com o poder que Deus me concedeu, a fim de que você e outros, que (1483-1546)
gostariam de ir para a guerra de forma tal que não percam a graça de Precursor da Reforma Protestante
Deus, nem a vida eterna, saibam como se municiar e como guiarem a si
mesmos.
Que a graça de Deus esteja contigo. Amém. Natural de Eisleben (Alemanha), Martinho Lutero veio de uma família de
camponeses. Era desejo do seu pai, Hans, que ele se tornasse advogado, e
ARTIGO II para isso Lutero foi enviado a várias escolas, onde aprendeu gramática,
retórica e lógica. Aos 21 anos, forma-se bacharel em Direito pela Universi-
INTRODUÇÃO AO PARECER dade de Erfurt. Lá sua formação humanista o impelia a provar todo o co-
nhecimento pela experiência, isto é, não sedimentar uma base dogmática. A
razão, entretanto, não podia questionar a Deus, segundo acreditava, e o
1-1. DISTINÇÃO ENTRE A OCUPAÇÃO E A PESSOA meio para se conhecer a Deus era apenas por sua revelação, através da
Bíblia.
Em primeiro lugar, uma distinção deve ser feita entre uma ocupação e o Católico romano até então, Lutero decidiu entrar para um monastério a
homem que nela se encontra, entre o trabalho e os executores do mesmo. partir de um curioso episódio: em 1505, após uma forte tempestade, ele
Uma ocupação ou um trabalho pode ser bom e correto em si mesmo, e pede intercessão a Santa Ana para não morrer e, em troca, se tornaria
monge. Na mesma Erfurt ele se tornaria membro da Ordem Agostiniana.
1
Deuteronômio 28:25.

1-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 1


03 03

ainda assim ser mau e errado se o homem dessa ocupação, ou os executo-


res da obra, não forem muito bons e retos, ou se não cumprem direito com
seu dever. O ofício de um juiz é um ofício precioso e piedoso, seja ele do
juiz de pronúncia da sentença ou o de execução, a quem nós chamamos de
carrasco; mas quando o ofício é assumido por alguém para o qual não te-
nha sido nomeado ou por alguém que, embora tenha sido nomeado, de-
sempenha as suas funções com vista a assegurar riquezas ou favores, en-
tão este já não é mais correto ou bom. O casamento, também, é precioso e
piedoso, mas há muitos sujeitos vis e inescrupulosos nesse meio. Trata-se
da mesma maneira com a ocupação ou trabalho do soldado: em si mesmo
ele é justo e piedoso, mas temos de fazer com que as pessoas que estão
nessa profissão, e que se encarregam de tal trabalho, sejam o tipo de pes-
soas corretas, santas e honradas. Isso é o que devemos ouvir.

1-2. UM SOLDADO PODE SER CRISTÃO?

Em segundo lugar, gostaria de me fazer compreendido no sentido de


que não estou falando, desta vez, sobre a justiça, que faz os homens bons
aos olhos de Deus – pois a única coisa que pode realizar tal atitude é a fé
em Jesus Cristo, que nos foi dada somente pela graça de Deus, sem nos-
sos próprios méritos ou obras, como eu tenho escrito e ensinado tantas
vezes e em tantos outros lugares – mas estou falando aqui sobre a justiça
externa, que deve ser procurada nesses trabalhos ou ofícios.
Em outras palavras, para clarificar as coisas, estou aqui para lidar com
questões como estas: se a fé cristã, segundo a qual somos justificados di-
ante de Deus, pode tolerar, ao mesmo tempo, que eu seja um soldado, que
eu vá para a guerra, e mate, e roube, e queime, como um soldado faz com
seus inimigos, conforme prescreve a lei militar em tempo de guerra; se tra-
balhar nisso é pecado ou errado, sobre o qual se deve ter escrúpulos diante
de Deus; ou se um cristão deve apenas fazer o bem e amar, e não matar
ninguém, nem causar qualquer dano a alguém. Eu diria que essa ocupação
ou trabalho, embora seja piedosa e correta, pode, contudo, tornar-se ruim e
errada, se a pessoa estiver envolvida no que é errado e ruim.

1-3. A GUERRA É UMA PUNIÇÃO USADA POR DEUS

Em terceiro lugar, não é minha intenção aqui explicar em pormenores


a maneira pela qual a ocupação e o trabalho de um soldado seja, em si
mesma, reta e piedosa, pois já escrevi sobre isso de modo suficiente no
livro “Sobre a Autoridade Secular”; eu poderia me gabar aqui, consideran-
do que nunca, desde o tempo dos apóstolos, a espada e o governo tem-
porais foram tão claramente descritos ou elogiados como por mim (Ro-
7-12 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 1-3
03 03

manos 13:4; I Pedro 2:14). Isso até mesmo meus inimigos hão de admitir, 7-9. SOLDADOS REALMENTE CRISTÃOS SERÃO INVENCÍVEIS
mas a recompensa e as honoráveis graças que eu ganho com isso são
em ver minha doutrina ser chamada de rebelde, e condenada como resis- Se houvesse muitos destes soldados em um exército, quem, pense
tência aos governantes. Deus seja louvado por isso! você, faria qualquer coisa contra eles? Eles devorariam o mundo sem se-
quer desembainhar a espada.
Porém, se houvesse nove ou dez deles numa Companhia, ou apenas
três ou quatro, que pudessem dizer essas coisas com um coração verda-
deiro, eu os preferiria a todas as armas, lanças, cavalos e armaduras, e
gostaria de deixar que os turcos viessem em seguida, com todo o seu
poder. A fé cristã não é uma piada, nem é pouca coisa, mas como diz
Cristo no Evangelho: “tudo é possível ao que crê” (Marcos 9:23) Mas, meu
caro senhor, onde estão aqueles que acreditam assim, e podem fazer
essas coisas? No entanto, embora o povo não seja assim, é preciso ensi-
nar e saber dessas coisas em favor daqueles que irão guerrear, ainda que
possam parecer poucos; pois a Palavra de Deus não voltará para Ele vazi-
a, diz Isaías (55:11): em verdade, ela leva algo a Deus. As outras pessoas
que desprezam este salutar ensino, dado para a sua salvação, têm o seu
Juiz a quem haverão de dar conta. Estamos dispensados, e temos feito a
nossa parte.

ARTIGO III

ENCERRAMENTO DO PARECER

7-10. CONCLUSÃO

Aqui deixo de tratar desse assunto, por ora. Queria dizer algo sobre a
guerra contra os turcos, porque ela tem chegado tão perto de nós, e al-
guns me censuraram como se eu tivesse advertido contra a guerra com o
Império Turco. Tenho sabido de longa data que, ao final, eu teria de me
tornar um turco, e isso não me ajudaria a escrever de forma clara sobre
isso e já o tenho feito, em especial no livro “Sobre a Autoridade Secular”,
que iguais podem muito bem ir à guerra contra iguais. Mas uma vez que o
Império Turco está de volta novamente, e nossos alemães já não mais
Figura 2. Capa de panfleto alusivo à questionam sobre isso, ainda não é tempo para escrever sobre esse as-
Guerra dos Camponeses (1525). sunto.
Esta instrução, meu caro Asa, eu deveria ter concluído há muito tem-
po, mas isso atrasou tanto tempo que, apesar de tudo, pela graça de
Deus, você e eu nos tornamos compadres. E, no entanto, espero que o
atraso não tenha sido infrutífero e que a causa tenha sido promovida por
ele. Recomendo-te a Deus.

1-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-11


03 03

ARTIGO II

QUESTÕES ESPIRITUAIS DE GUERRA

7-7. DA FALSA FÉ ENTRE OS SOLDADOS

Por derradeiro: os soldados têm muitas superstições em batalha. Um


se consagra a São Jorge, outro a São Cristóvão; um a este santo, outro a
santo diverso.
Alguns podem fazer invocações sobre ferro e projéteis; alguns podem
benzer cavalo e cavaleiro; alguns carregam o Evangelho segundo São
João, ou algum outro objeto em que eles confiam. Todos estes estão em
estado perigoso, por não acreditarem em Deus, e se conduzirem através CAPÍTULO 2
do pecado, descrença e falsa crença em Deus; se eles estiverem para
morrer, estarão perdidos. DO OFÍCIO MILITAR. OBJEÇÕES À CARREIRA DAS ARMAS
7-8. NO ARDOR DO COMBATE, ELES DEVEM CONFIAR NA GRAÇA DIVINA
ARTIGO I
Isto é o que deveriam fazer: quando a batalha começa e a exortação, de
que falei acima, for dada, eles devem confiar simplesmente na graça de FINALIDADE DA GUERRA
Deus, e adotar uma atitude cristã. A exortação acima é apenas uma forma
de realizar o trabalho de guerra externa, com uma consciência tranquila; 2-1. A GUERRA É UM ATO DE AMOR, POR MANTER A PAZ
mas uma vez que nenhum bom trabalho poupa homens, todos deveriam
proferir esta exortação, também, em seu coração ou com a sua boca: “Pai Pelo simples fato de ter sido instituída a espada de Deus para punir o mal,
Celestial, aqui estou de acordo com a Tua divina vontade, no trabalho exter- proteger os bons e preservar a paz (Romanos 13:1, I Pedro 3:1) é que se
no e serviço de meu senhor, que eu devo primeiro a Ti e, em seguida, ao prova, de modo vigoroso e suficiente, que lutar, matar e praticar outros atos,
meu senhor pelo Teu amor. Agradeço a Tua graça e misericórdia que tens
que o tempo de guerra e a lei marcial trazem consigo, foram instituídos por
por mim, em um trabalho do qual tenho a certeza que não há pecado, mas é
Deus. Que mais é a guerra do que o castigo daquilo que é mal e errado? Por
reto e cuja obediência é agradável à Tua vontade. Mas porque sei e aprendi
que ninguém vai à guerra, senão por desejar a paz e a obediência?
a partir da Tua graciosa Palavra que nenhuma das nossas boas obras pode
Embora matar e roubar não pareçam ser um ato de amor e, por con-
nos ajudar e ninguém é salvo como soldado, mas apenas como um cristão,
seguinte, um homem simples pense que isso não seja atitude que um
por isso, não vou contar a todos sobre esta obediência como um trabalho
cristão possa tomar, na verdade este ato é, ainda assim, um ato de amor.
meu, mas vou me colocar livremente a serviço da Tua vontade e crer de todo
A título de ilustração: um bom médico, quando a doença é tão má e tão
coração que só o sangue inocente de Teu Filho querido, o meu Senhor Je-
grande que ele tem de amputar uma mão, um pé, uma orelha, um olho, ou
sus Cristo, me redime e me salva, e que Ele derramou por mim em obediên-
deixá-lo vazar, ele o faz a fim de salvar o corpo. Se examinado do ponto
cia à Tua santa vontade. Nisso me fundamento; sobre isso vou viver e mor-
de vista do membro que corta, ele parece ser um homem cruel e impiedo-
rer; por isso luto, e tudo faço. Querido Senhor Deus e Pai, preserva e fortale-
so; mas, se olharmos do ponto de vista do corpo, o qual ele tem intenção
ça essa confiança em mim pelo Teu Espírito. Amém”.
de poupar, verifica-se que ele é um homem bom e íntegro, e faz um traba-
Se você quiser proferir, em seguida, o Credo e o Pai-Nosso, você po-
lho que certamente é bom e cristão. Da mesma forma, quando penso no
derá fazê-lo, e isso é o suficiente. Isso coloca corpo e alma em Suas
ofício do soldado, na forma como ele castiga os ímpios, pune o injusto, e
mãos, e conduz a espada, e degola em nome de Deus.
cria tanta miséria, isso se assemelha a um trabalho não-cristão e totalmen-

7-10 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 2-1


03 03

te contrário ao amor cristão; mas se eu pensar em como ele protege os te diante de si, ele se toca e se incentiva com amor nada espiritual, pois
bons, mantém e preserva o lar e a habitação, a esposa e o filho, a proprie- aqueles que são mortos, ou morrem assim, certamente enviam suas almas
dade, a honra e a paz, evidencia-se então quão precioso e piedoso este direto ao inferno, sem demora. “Pelo contrário”, eles dizem, “se eu estives-
trabalho é: eu noto que isso é cortar uma perna ou uma mão, a fim de que se pensando em inferno, eu nunca poderia ir para a guerra, em absoluto”.
o corpo todo não pereça. De maneira que, se a espada não estivesse em É ainda pior colocar Deus e a Sua sentença voluntariamente fora da
guarda para preservar a paz, tudo no mundo iria à ruína, em virtude da mente, e não conhecer, nem pensar, nem ouvir nada sobre isto. Portanto,
falta de paz; portanto, uma guerra é só uma breve e momentânea falta de uma grande parte dos soldados pertence ao diabo, e alguns deles são tão
paz que impede uma eterna e incomensurável falta de paz, uma pequena cheios do diabo que não conhecem melhor maneira de provar sua alegria
desgraça que impede uma grande infelicidade. senão por conseguir falar de Deus e de Seu julgamento, como se fossem
os verdadeiros comedores-de-ferro37, quando se atrevem a jurar vergo-
2-2. A GUERRA É UMA PRAGA PASSAGEIRA, QUE DEVE EVITAR CONS- nhosamente pela Paixão de Cristo, amaldiçoando e desafiando a Deus no
TANTES CONTENDAS céu. Trata-se de uma multidão perdida; é joio e, tal como em outras clas-
ses, há muito joio e pouco trigo.
Quando homens escrevem sobre a guerra e afirmam que ela é um
grande flagelo, eles o fazem com razão; entretanto, eles devem ver tam- 7-6. OS ERRANTES PODEM SER MELHORES SE TRABALHAREM
bém como é grande a praga que ela evita. Se as pessoas fossem boas, e
se elas quisessem manter a paz, a guerra seria a maior praga sobre a ter- Daqui resulta que os errantes, que andam vagando sobre a terra pro-
ra, mas o que fazer com o fato de as pessoas não manterem a paz, mas curando guerra, embora possam trabalhar e conduzir permanentemente
furtarem, roubarem, matarem, violentarem mulheres e crianças, e usurpa- um comércio até serem convocados para tanto, e que, portanto, perdem
rem a propriedade e a honra? A pequena falta de paz, chamada guerra, ou seu tempo com preguiça ou escárnio e rudeza de espírito, não podem
a espada, ambos devem definir uma postura acerca dessa falta de paz em estar em bom conceito para com Deus. Eles não podem mostrar a Deus
escala mundial e universal, antes que ninguém mais possa suportá-la. nenhuma razão ou consciência tranquila a respeito de seu vaguear, mas
Por isso mesmo Deus honra a espada de modo tão elevado que Ele a eles têm apenas um desejo absurdo, ânsia de guerra ou para conduzir
chama de Seu próprio decreto2, e não haverá homem que diga ou imagine uma vida livre e selvagem.
que eles tenham inventado ou instituído esse decreto. Certamente a mão Na natureza deles, uma parte destes sujeitos deve se tornar mendigos
que detém esta espada, e com ela mata, não é mais a mão do homem, e ladrões, no final das contas. Se eles, entretanto, se dispuserem ao traba-
mas de Deus, e não é o homem, mas Deus, que enforca, tortura, degola, lho, ou a um comércio, e estiverem dispostos a ganhar o seu pão, como
mata e combate. Tudo isso é obra e julgamento de Deus. Deus tem ordenado todos os homens a fazer, até o seu príncipe os con-
vocar em seu favor, ou lhes autorizando e pedindo para irem a outro prín-
2-3. EMBORA HAJA ABUSO DA GUERRA, ELA É UM OFÍCIO DIVINO cipe, então eles poderiam se defender com uma consciência tranquila, a
pertencente aos homens que sabem estar a serviço de seu soberano com
Em poucas palavras, ao pensar no ofício do soldado, não se deve le- prazer; esta mesma consciência não poderia ter outra forma. Ela, por sua
var em conta o assassinato, a queima, a violência física, o saque etc.: é vez, deveria ser conforto e alegria para todo mundo, sim, uma grande
isso que o olhar simples e limitado das crianças enxerga quando vê no razão para amar e honrar os governantes, que o Deus Todo-Poderoso nos
médico apenas um homem que amputa mãos ou pés, mas não vê que ele mostra essa grande graça e nos nomeia governantes como um sinal exte-
faz isso para salvar todo o corpo. Desse modo, é preciso também olhar rior de Sua vontade, a fim de que estejamos confortados em Sua divina
para o ofício do soldado, ou para a espada, com olhos maduros, e ver o vontade e façamos o que é correto, quando fazemos a vontade e o prazer
porquê dela agir e matar com tanta crueldade. Assim esse ofício vai provar do governante. Pois Ele tem assegurado e cumprido Sua vontade para
por si que ele, em si mesmo, é piedoso, tão necessário e útil para o mun- com eles, quando diz: “Dai a César o que é de César” (Mateus 22:21), e
do quanto comer, beber ou qualquer outro trabalho. em Romanos 13:1, “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores”.

2 37
Referência em Romanos 13:1. Ver nota de número 27, retro.

2-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-9


03 03

Deus. Vamos todos, então, ser bravos e corajosos, e não deixemos que Há quem abuse desse ofício, e mata e degola desnecessariamente, por
ninguém pense de outra forma que não o fato de seu punho ser o punho nenhuma outra razão que não a sua própria vontade; mas a culpa é das pes-
de Deus, de sua lança ser a lança de Deus, e bradarmos com o coração e soas, e não do trabalho, pois onde existe um trabalho, ou obra, ou qualquer
com a voz: ‘Por Deus e pelo Imperador!’ Se Deus nos der a vitória, a honra outra coisa tão boa que pessoas pecadoras e egoístas não abusem dele?
e o louvor serão Dele, não nossos, porque Ele age através de nós, pobres Eles são como médicos loucos, que cortam uma mão sadia, sem necessida-
pecadores. Mas nós teremos o despojo e a paga como presentes e como de e só porque desejam; sim, eles fazem parte da mesma falta de paz univer-
dons de Deus e de Sua graça para conosco, nós que somos indignos, e sal, que deve ser impedida pela guerra e espada justas, e impelidos à paz.
gratos a Deus por isso, em nossos corações. Agora, que Deus nos conce- Isso sempre acontece, e sempre ocorre que aqueles que começam desne-
da a vitória! Avançar, com alegria!” cessariamente uma guerra são abatidos, por não poderem escapar, em últi-
Sem dúvida, quando se procura a honra de Deus e Ele permite que ma instância, do julgamento de Deus, qual seja, a Sua espada; ela os encon-
assim o seja – como algo justo e correto, como isso deve ser! – então tra e por fim os ataca, tal como aconteceu com os camponeses na revolta.
maior honra virá do que qualquer outra poderia encontrar, visto que Deus
prometeu em I Samuel 2:30: “honrarei aos que me honram, mas os que me
ARTIGO II
desprezam serão desprezados”36.
Visto que Ele não pode falhar em manter Sua promessa, ele deve hon-
DO OFÍCIO DIVINO DA GUERRA
rar aqueles que O honram, e um dos maiores pecados é a busca da pró-
pria honra, pois trata-se nada mais do que o crime de laesæ divinæ majes-
tatis – “usurpação da majestade divina”. Deixe os outros, portanto, procu- 2-4. A ESPADA ESTÁ PRESENTE NO NOVO TESTAMENTO, CORROBO-
rarem honra e orgulho; você será obediente e silencioso, daí encontrará a RANDO O ANTIGO
sua honra. Muitas batalhas perdidas poderiam ter sido vencidas se a hon-
ra em si mesma tivesse lhes favorecido. Para confirmação disso que afirmei, temos o maior pregador e profes-
Quanto a estes guerreiros gananciosos por honra, não acreditamos que sor, ao lado de Cristo, a saber, João Batista (Lucas 3:14): quando solda-
Deus estará na guerra e lhes dará a vitória: eles não temem a Deus e não dos aproximaram-se dele, e lhe perguntaram o que eles deviam fazer,
estão jubilosos, mas são imprudentes e loucos; ao final, serão abatidos. João não condenou a sua ocupação e não os fez dela desistir, mas sim,
ele a confirmou, e disse: “A ninguém queirais extorquir coisa alguma; nem
7-5. É REPROVÁVEL CONDUZIR-SE COM FRAQUEZA SENTIMENTAL deis denúncia falsa; e contentai-vos com o vosso soldo”. Assim, ele elogi-
ou a profissão das armas e, ao mesmo tempo, proibiu a utilização abusiva
Penso, entretanto, que os melhores “camaradas” são aqueles que in- da mesma, eis que o abuso não afetaria o trabalho. Da mesma forma Cris-
centivam a si mesmos e aos demais, antes da batalha com a lembrança to, quando Ele esteve perante Pilatos, admitiu que a guerra não seria erra-
das mulheres a quem amam, pelo que dizem: “Ah! agora, vamos todos da, ao dizer, “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste
pensar naquela que é o nosso grande amor”! Digo isto: se eu não tivesse mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos
ouvido falar que tal atitude foi tomada por dois homens confiáveis, com judeus; entretanto o meu reino não é daqui3”. Incluem-se também, nessa
experiência nesse assunto, eu nunca iria acreditar que, em um negócio situação, todas as histórias de guerra no Antigo Testamento, as histórias
desse tipo, em que o perigo da morte os encara, o coração humano pu- de Abraão, de Moisés, de Josué, dos juízes, de Samuel, de Davi, e de
desse esquecer-se de si mesmo e ser tão leve. Ninguém faz isso, para ter todos os reis do povo de Israel. Se a guerra e a ocupação de armas fos-
certeza, quando ele luta sozinho com a morte, mas, na multidão, aquele sem em si erradas e réprobas perante Deus, teríamos que condenar Abra-
que instiga ao outro, ninguém tem ideia do que lhe afetará, porque isso ão, Moisés, Josué, Davi, e todo o restante dos santos antepassados, reis e
envolve a muitos. Mas, para um coração cristão, é terrível pensar e ouvir príncipes, que serviram Deus nesta santa ocupação e de alto renome nas
que na hora em que alguém terá o julgamento de Deus e o perigo da mor- Escrituras, por causa deste trabalho. Tudo isso é bem conhecido de todos

36
Referência conforme original em alemão. O texto em inglês traz a referência em I Reis 2:4,
3
o que a nosso ver foi publicado incorretamente (N. do T.). João 18:36.

7-8 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 2-3


03 03

os que leram até mesmo um pouco da Sagrada Escritura, e não há neces- pelo tempo que me for concedido, pois assim diz São Paulo em I Coríntios
sidade de oferecer aqui mais provas a respeito. 9:7: “Quem jamais vai à guerra à sua própria custa”?
Alguém, talvez, diria a essa altura que a situação era diferente com os Assim, Ele aprova esse direito. Uma vez, então, que um príncipe preci-
santos antepassados: porque Deus lhes tinha separado das outras nações se e requeira outro súdito que não o seu para o combate, o súdito, medi-
e por ter-lhes escolhido como o Seu povo, que lhes tinha ordenado lutar e ante anuência e ciência do seu próprio príncipe, pode servir e obter sua
que, por essa razão, o seu exemplo seria insuficiente para um cristão sob paga. “Mas suponha que um dos príncipes ou senhores estivesse a fazer
o Novo Testamento – uma vez eles tendo a ordem de Deus e lutarem em guerra contra outro, e eu fosse sujeito a ambos, mas preferisse servir àque-
obediência a Deus, enquanto não temos um comando para lutar, mas sim le que estava errado, porque ele me mostrou mais graça ou benevolência
para sofrer e tolerar. Essa objeção é clara e suficientemente respondida do que aquele que estava em seu direito, e de quem eu recebi menos: e
tanto por São Pedro quanto por São Paulo, os quais exortam a obediência então”? Aqui a resposta é curta e rápida: o direito, ou seja, aquilo que
às autoridades mundanas e aos mandamentos de governantes munda- apraz a Deus, deve estar acima de riqueza, do corpo, da honra e dos ami-
nos, mesmo sob o Novo Testamento. Ouvimos dizer anteriormente que gos, da graça e do gozo e, neste caso, não existe qualquer respeito às
São João Batista ensinou soldados como um mestre cristão, e ainda lhes pessoas, mas somente a Deus. Neste caso, também, um homem deve se
permitiu continuar a serem soldados, só pedindo que eles não abusassem posicionar, caso seja considerado ingrato ou for desprezado, por aqui há
da sua profissão, nem fizessem violência ou injustiça a ninguém, e que uma justificativa honesta, a saber, Deus e o direito, que não lhe permitirá
estivessem contentes com seus soldos. Assim, mesmo sob o Novo Tes- servir aquele que lhe melhor apraz e deixar o outro. Embora o velho Adão
tamento, a espada é estabelecida pela palavra e pelo mandamento de não escute isso com disposição, no entanto, isso deve acontecer se há o
Deus, e aqueles que a usarem de boa maneira e lutarem com diligência, desejo de que o direito seja mantido, pois não há luta contra Deus, e a-
de tal modo servirão a Deus e serão obedientes à Sua Palavra. quele que luta contra o direito luta contra Deus, que dá, manda, e sustenta
Pense por você mesmo: se fôssemos nos posicionar e, a esta altura, tudo em conformidade.
admitíssemos que a guerra fosse errada em si mesma, teríamos então que
nos posicionar assim em todas as outras situações e admitir que o uso da 7-4. É REPROVÁVEL A BUSCA DE HONRA PRÓPRIA NA GUERRA
espada seria totalmente errado. Uma vez a espada sendo algo errado
quando utilizada para lutar, seria também errado seu uso para punir os A quarta pergunta: “O que dizer do homem que vai a guerra, não só
iníquos e para a manutenção da paz; em síntese, tudo o que ela faz teria por uma questão de riqueza, mas também por uma questão de honra pas-
de ser considerado errado. Pois o que é a guerra justa, senão o castigo sageira, a fim de que ele possa se tornar um grande homem e ser tratado
dos iníquos e a manutenção da paz? Se alguém castiga um ladrão, ou um com respeito?” Resposta: tanto a ganância de dinheiro como a ganância
assassino, ou uma adúltera, isso é castigo infligido a um único dos iní- de honra são ganância, uma tão errada quanto a outra, e aquele que luta
quos, mas numa guerra justa alguém castiga, ao mesmo tempo, toda uma por esse mau desejo atrai o inferno a si próprio. Estamos deixando a hon-
grande multidão dos iníquos, que estão a causar danos em proporção ao ra, dando a honra exclusivamente a Deus, e estamos satisfeitos com o
tamanho da multidão. Se, portanto, um trabalho de espada é bom e direi- soldo e com as rações (confira Lucas 3:14). É, portanto, um costume ím-
to, todos os demais também o são, pois a espada é uma espada e não um pio, não um cristão, exortar soldados antes da batalha, tal como se segue:
canivete, e é chamada, em Romanos 13:4, de “a ira de Deus”. “Queridos camaradas, caros soldados, sejam corajosos e confiantes: se
Deus quiser, hoje conquistaremos a honra e nos tornaremos ricos”! Pelo
2-5. OS DECRETOS DE DEUS ESTABELECERAM O GOVERNO SECU- contrário, eles deveriam ser exortados com algo assim: “Queridos cama-
LAR, À PARTE DO ESPIRITUAL radas, estamos reunidos aqui em serviço, dever e obediência ao nosso
príncipe e, de acordo com a vontade e os decretos de Deus, somos obri-
Em resposta, entretanto, às objeções deles, de que aos cristãos não é gados a permanecer em pé por ele com nossos corpos e bens. Embora,
ordenado o combate, e que esses exemplos não são suficientes – porque diante de Deus, sejamos pobres pecadores, tanto quanto nossos inimigos,
eles têm um entendimento, segundo Cristo, de que não devem resistir ao não obstante sabermos que o nosso príncipe está em seu direito neste
mal, mas sim sofrer todas as coisas –, em resposta a isso eu dei esclare- caso, ou, pelo menos, não o sabemos de outra forma, estejamos, pois,
cimentos suficientes, no meu livro “Sobre a Autoridade Secular”. certos e seguros de que, ao servi-lo e obedecê-lo, estaremos servindo a
2-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-7
03 03
34
7-3. PODE UM SOLDADO LUTAR EM FAVOR DE MAIS DE UM SENHOR? Os cristãos, nesse sentido, não lutariam e não teriam governantes
mundanos entre si. Seu governo é um governo espiritual e, de acordo com
A terceira pergunta: “Pode um soldado obrigar-se a servir mais de um o Espírito, eles não estão debaixo de ninguém a não ser Cristo; no entan-
senhor e ter salários como autônomo ou como trabalhador assalariado, de to, na medida do que for relevante, o corpo e a propriedade estão sujeitos
cada um”? Resposta: “Eu disse anteriormente que a ganância é errada, a governantes mundanos e a eles devemos obediência. Se governantes
seja por parte de um bom ou de mau profissional. A agricultura é sem dú- mundanos os convocam a lutar, então eles devem e têm de lutar, e serem
vida uma das melhores ocupações, e ainda assim um agricultor ganancio- obedientes, não como cristãos, mas como membros do Estado e indiví-
so está errado e é condenado diante de Deus. Portanto, neste caso, obter duos obedientes, no que se refere ao corpo e ao domínio temporal. Por
salário é justo e certo, e servir para obter salário também está certo, apesar isso, quando eles lutam, eles o fazem não por si mesmos ou por sua pró-
de os salários serem de praticamente um gulden por ano35”. pria conta, mas como um serviço e ato de obediência aos governantes a
Digo novamente: obter salários e servir é, em si mesmo, algo justo, quem eles estão submetidos, como São Paulo escreve a Tito: “que sejam
não importa se os ganhos vêm de um, dois, três ou de tantos outros se- obedientes [às autoridades]4”.
nhores, desde que o seu senhor hereditário ou príncipe não esteja privado Essa é a essência e a substância do mandamento. A espada é, em si
de seus deveres, e o serviço seja prestado aos outros com a sua vontade mesma, uma ordenança divina e útil, a qual Deus não desprezará, mas
e consentimento. Tal como um bom artesão pode vender sua habilidade fará temida, honrada, e respeitada, sob pena de vingança, como diz Paulo
para quem vai obtê-la, e assim ele serve a quem vende tal habilidade; tão em Romanos 13:4. Para tanto, Ele criou dois tipos de governo entre os
certo como tal atitude não se insurge contra o seu governante e sua co- homens: um é espiritual; ele não tem espada, mas tem a Palavra, por meio
munidade: assim um soldado tem sua habilidade em combater por Deus, da qual os homens estão a se tornarem bons e justos, a fim de que, com
e pode servir com ela a quem desejar o seu serviço, exatamente como se esta virtude, possam atingir a vida eterna. Esta retidão Ele administra atra-
fosse um trabalho artístico ou de comércio, e que alguém pode ter de vés da Palavra, que Ele tem confiado aos pregadores. O outro é o governo
pagar por ela como por um trabalho. Isso, também, é uma convocação mundano, através da espada, que visa manter a paz entre os homens, e
que nasce a partir da lei do amor: se alguém precisa e me solicita, estou isto Ele premia com bênçãos temporais, uma vez que Ele dá aos gover-
ao seu serviço, e assim permaneço pelo tempo que for necessário, ou nantes tanta propriedade, honra e poder, a serem por eles possuídos mais
do que para outros, a fim de que eles possam Lhe servir e administrar com
base nesta retidão. Assim, o próprio Deus é o fundador, o senhor, mestre,
34
Antes da leitura da questão, e para evitarmos divergências acerca da opinião de Lutero sobre protetor, e galardoador dos dois tipos de retidão. Não existe nenhum de-
o compromisso do militar para com sua Nação, devemos lembrar ao leitor que a Alemanha creto ou autoridade humanos em quaisquer dos dois casos, mas cada um
não era, até então, um único país e, portanto, não possuía um exército unificado. Ela fazia
parte do Sacro Império Romano-Germânico (Heiliges Römisches Reich Deutscher Nation),
deles é assunto divino, em sua totalidade.
criado pelo Imperador Carlos Magno em 843 e que subsistiu até 1806. Internamente, a A-
lemanha era subdividida em reinos, principados e cidades que guardavam autonomia en-
tre si, tal qual uma confederação (o mesmo modelo atualmente adotado pelos Estados U-
nidos), cujos imperadores eram escolhidos por um grupo de príncipes denominados “elei-
tores” (um dos quais era Ernst I, Duque de Brunswick-Lüneburg, citado na Apresentação a
esta obra). Por essa razão, nada impedia que soldados pudessem ser cooptados por dife-
rentes frações da divisão administrativa da Alemanha, tendo por isso a possibilidade de
guerrear em prol de diversos senhores (N. do T.).
35
Gulden era a unidade monetária vigente preponderantemente em estados do sul da Ale-
manha, como nos atuais Baden-Württemberg e na Bavária (Bayern), em épocas diferen-
tes da história alemã. Para se ter ideia de seu valor, segundo o sítio Trinity Lutherans, as
indulgências, cartas de perdão integral dos pecados, conferidas pelo papa Leão X a
quem as pudesse adquirir em prol da construção da Basílica de São Pedro, no Vaticano,
eram cobradas conforme as posses do indivíduo: reis e rainhas: 25 gulden; altas autori-
dades e prelados: 10 gulden; autoridades inferiores e prelados: 6 gulden; mercadores e
cidadãos urbanos: 3 gulden; artesãos: 1 gulden; outros: .5 gulden; aos indigentes resta-
4
va fazer oração e jejum. (N do T.). Tito 3:1.

7-6 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 2-5


03 03

posições e em todas as profissões e ofícios. Deixe a ganância e outros


maus pensamentos: lutar na guerra não é pecado; tome o seu soldo para
si, o qual lhe é dado. Por isso eu disse anteriormente que essa ocupação
é em si mesma, algo justo e piedoso, mas torna-se má se a pessoa for a
errada ou utilizá-la indevidamente.

7-2. QUE ACONTECE SE UM SENHOR ESTIVER ERRADO?

A segunda pergunta: “Suponha que meu senhor esteja errado em ir à


guerra”. Respondo: “Se você sabe com certeza que ele está errado, então
você deve temer a Deus, ao invés dos homens (Atos 5:2933), e não combater
ou servir, senão você não poderá ter uma consciência tranquila diante de
Deus”. “Sem dúvida”, você diz, “mas meu senhor me obriga, toma o meu
lote de terra, não me dá o dinheiro, pagamento, e salários e, além disso,
estou sendo desprezado e posto à execração como um covarde, sim, como
um mau testemunho aos olhos do mundo, como alguém que tem desampa-
rado seu rei em sua necessidade”. Eu respondo: “você deve assumir esse
risco e, com a ajuda de Deus, deixá-lo agir dessa maneira. Ele pode restituir
a você cem vezes mais, como Ele nos promete no Evangelho: ‘ninguém há,
que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou
campos, por amor de mim e do evangelho’” (veja Mateus 10:29 e seguintes).
Em todas as outras obras, também temos de esperar o perigo de que os
governantes nos obriguem a agir errado, mas uma vez que teríamos ainda
que deixar pai e mãe em prol da vontade de Deus, certamente deveríamos
deixar os senhores em prol da vontade de Deus.
Caso você não saiba, entretanto, ou não possa saber se o seu senhor
está errado, você não deveria tornar fraca uma obediência vacilante com
uma incerteza do que é justo, mas deveria pensar o melhor de seu senhor,
o que é o caminho do amor, pois o amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espe-
Figura 3. Lutero pregando na cidade de Seeburg
ra, tudo suporta” (I Coríntios 13:7).
contra a Guerra dos Camponeses (1525).
Assim você estará seguro, e andará bem diante de Deus. Se você for
posto à vergonha, ou chamado ao testemunho, é melhor que Deus te re-
conheça como fiel e te honre, do que o mundo te chamar de fiel e honra-
do. Que regozijo haveria para você, se o mundo te tratasse como um Sa-
lomão ou um Moisés, e diante de Deus você fosse contado tão mau quan-
to Saul ou Acabe?

33
Referência conforme original em alemão. O texto em inglês traz a referência em Atos 4:1, o
que a nosso ver foi publicado incorretamente (N. do T.).

2-6 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-5


03 03

Deus e que ela faz parte de seu dever para com seu príncipe e para com
seu Deus. Portanto, uma vez que é uma ocupação justa, ordenada por
Deus, é adequado que eles devam perceber salários e retribuições por isto,
como diz Cristo, em Mateus 10:10: “Digno é o trabalhador do seu salário”.
Evidentemente, é verdade que, se um homem serve como um solda-
do, com um coração que não procura nem pensa qualquer outra coisa
além de adquirir riqueza, e se a riqueza passageira é a sua única razão
para seu ofício, ele não estará feliz quando há paz, e estará triste quando
não houver guerra. Tal homem sai pela tangente e é o próprio diabo, em-
bora lute sem obedecer ao seu rei e considerando sua convocação, pois
faz um trabalho ruim, dentro de algo que, em si, é bom; ademais ele não
presta muita atenção ao fato de que ele deveria servir para o dever e para
obedecer, ao invés de só procurar o seu próprio lucro. Portanto, ele não
tem uma consciência tranquila, que possa afirmar: "Bem, de minha parte, CAPÍTULO 3
gostaria de ficar em casa, mas porque meu senhor me chama e me pede,
eu venho em nome de Deus e sei que estou servindo a Deus, ao cumprir DA CORRETA APLICAÇÃO DA LEI E DA JUSTIÇA.
com tal obrigação, e eu vou ganhar ou tomar a paga que me é dada por
isto”. Por essa razão, um soldado deveria ter o conhecimento e a confian- DA LEI MARCIAL
ça de que ele está cumprindo o seu dever, e deve assim fazê-lo e, dessa
maneira, ter certeza de que ele está servindo Deus, e poder alegar: “Não
sou eu quem degola, tortura ou mata, mas é Deus e meu príncipe, de quem ARTIGO ÚNICO
minhas mãos e meu corpo são agentes, agora”. Por esse motivo é que se
tem o significado dos brados de campanha: “Aqui estamos31, imperador!”; CONTRA QUEM É A GUERRA?
“Aqui estamos, França!”; “Aqui estamos, Lüneburg!”; “Aqui estamos,
Brunswick!”. Destarte, os judeus clamaram contra os midianitas: “A espa- 3-1. UMA VEZ CLARA A FINALIDADE DA GUERRA, É NECESSÁRIO ES-
da do Senhor e de Gideão!” (Juízes 7:20). CLARECER CONTRA QUEM ELA PODE SER FEITA
Um sujeito ganancioso estraga todas as demais boas obras, também:
por exemplo, um homem que prega em favor das riquezas passageiras Uma vez que, então, não restam dúvidas de que a ocupação das Armas
está perdido, apesar de Cristo ter dito que ele deve viver da pregação do é, em si mesma, algo justo e piedoso, vamos agora discutir as pessoas que
Evangelho (confira em Mateus 10:10). Fazer coisas em prol de riquezas estão nela e os que fazem uso da sua posição, pois é mais importante saber
passageiras não é ruim, pois a renda, os salários e as remunerações são quem pode usar deste serviço e como utilizá-lo. E aqui entra o fato de que,
riquezas passageiras. Se fosse esse o caso, ninguém poderia trabalhar ou quando tentamos criar regras fixas e leis para este assunto, surgem tantos
fazer qualquer coisa em prol do seu sustento, pois tudo é feito para a ob- casos e exceções que fica muito difícil, ou mesmo impossível, decidir tudo
tenção de riquezas passageiras. Ser, entretanto, ganancioso de riquezas com precisão e com equidade. É o que acontece com todas as leis: elas
passageiras e de fazer disso um Mamom32 é sempre um erro, sob todas as nunca podem ser estabelecidas de forma tão justa e correta, de modo que
não surjam casos nos quais mereçam ser feitas exceções. Se as exceções
não forem feitas, bem como se a lei for rigorosamente seguida, isso seria
31
Paráfrase nossa à expressão “Ad sumus!”, de mesmo significado ora inserido em portu- muito mais errado. Como o gentio Terêncio5 diz: “justiça extrema é extrema
guês, usada pelo Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha de Guerra do Brasil. (N. do T.) injustiça”; e Salomão também ensina, em seu Eclesiastes, que não deve-
32
Referência a Mateus 6:24 e Lucas 6:13. A palavra Mamom vem do siríaco ou do aramaico,
que significa “riqueza” ou “riquezas”, e foi personificada por Jesus como o deus das ri-
5
quezas (N. do T., com informações de Easton’s Bible Dictionary, acesso em 02/02/2008 Públio Terêncio, o Africano (Publius Terentius Afer), foi poeta e dramaturgo na Roma
pelo hipertexto <http://www.sacred-texts.com/bib/ebd/ebd239.htm>). republicana (c. 185 a.C. – c. 159 a.C.), autor de várias sátiras e comédias (N. do T.).

7-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 3-1


03 03

mos ser demasiadamente justos, mas que, por vezes, temos de ser impru- a divisão natural. A agricultura é para alimentação, e a guerra para a defe-
dentes6. sa. Aqueles que estão no trabalho de defesa desejam obter os seus ren-
A título de ilustração: na recente rebelião dos camponeses, houve al- dimentos e os seus alimentos por parte dos que estão no trabalho de ali-
gumas pessoas que foram retiradas da mesma contra sua vontade. Estes mentação, a fim de que eles possam se defender; já aqueles que estão no
eram principalmente pessoas que tiveram bom êxito, uma vez que a revolta trabalho de alimentação desejam obter proteção por parte daqueles que
atingiu os ricos, assim como os governantes, e que pode ser presumir, ra- estão no trabalho de defesa, a fim de que possam prover alimentação. O
zoavelmente, que nenhum homem rico favoreceu a rebelião. Em todo o imperador ou o príncipe da terra deve olhar para ambos os ofícios e fazer
caso, havia alguns que tinham que partir sem seu próprio consentimento. com que aqueles que estejam no trabalho de defesa sejam armados e
Alguns, ainda, abandonaram esse serviço compulsório, pensando que po- montados, e os do trabalho de alimentação trabalho estejam tentando
deriam ter dissuadido a louca mobilização e, com bons conselhos, dificultar aumentar a produção, de maneira honesta. É inútil, entretanto, que as
um pouco a sua finalidade ignóbil e mantê-los longe de fazer mais mal, a- pessoas que nem providenciam alimento tampouco a defesa, mas apenas
gindo assim em prol de si próprios e de seus governantes. Outros, ademais, consomem o pão e vivem em ociosidade, estes não devem ser tolerados,
ingressaram sob permissão de seus senhores, a quem consultaram com e sim conduzidos para fora da terra, como as abelhas o fazem com os
antecedência; e pode ter havido outros casos semelhantes, uma vez que zangões até a morte, porque eles não trabalham, apenas comem o mel
ninguém pode imaginar todas as hipóteses, ou abarcá-las todas na lei. das outras abelhas.
Aqui, então, está a lei, que diz: “Todos os rebeldes são réus de morte, e Assim Salomão, em seu Eclesiastes, chama os reis de construtores, os
estes três tipos de homens foram encontrados entre a multidão rebelde, no que constroem a terra (Eclesiastes 5:930), pois essa é a sua função. Mas que
mesmo ato de rebeldia”. O que vamos fazer com eles? Se não permitirmos
Deus nos preserve, alemães! Não nos tornamos sábios e fazemos isso da
exceções e deixarmos que a lei tome seu curso estrito, eles devem morrer
maneira certa, mas continuamos a ser, por algum tempo, os consumidores,
como os outros, que guardavam culpa no coração e dolo no seu ato de
e deixamos aqueles outros serem provedores de alimento e de defesa, os
rebeldia, embora aqueles de quem estamos falando tinham coração inocen-
que têm a vontade de fazê-lo ou que são compelidos a isto.
te e boa vontade.
Que esta primeira classe tem direito ao seu soldo e aos seus lotes de
Alguns dos nossos colaboradores agiam assim, em especial aos ho-
terra, e a agir direito quando eles ajudam seu soberano a guerrear e a lhe
mens ricos, quando estes vislumbravam a possibilidade de lhes roubar, e
acabavam lhes dizendo: “você também estava na multidão; você tem de servir, ao fazê-lo, como é seu dever, isso São João Batista confirmou, em
sair”. Dessa maneira eles têm cometido grandes erros para muita gente e Lucas 2:1. Quando os soldados lhe perguntaram o que deviam fazer, ele
derramado sangue inocente, feito viúvas e órfãos, e usurpado os seus bens; respondeu: “Contentai-vos com o vosso soldo”. Se ele estivesse errado
e eles são da nobreza. Sim, da nobreza! O excremento da águia pode se sobre eles no tocante a soldos, ou se a ocupação deles fosse contra Deus,
gabar de que é parte do organismo da águia, embora seja fedorento e inútil; ele não poderia ter deixado essa situação continuar, que ela fosse permitida
da mesma maneira esses homens também podem ser da nobreza. Nós ou confirmada, mas, como um mestre cristão, justo, ele teria que ter-lhes
alemães somos alemães, e permanecemos alemães – em outras palavras, reprovado e que se apartassem dessa profissão. Esta é a resposta para
isso é nojento, uma besteira sem sentido. aqueles que, devido à sensibilidade de consciência – coisa agora rara entre
essas pessoas – professam que é perigoso assumir esta profissão por uma
3-2. AO INVÉS DA LEI, EM ESSÊNCIA, OPERA-SE O MEDO (“DISCRIÇÃO”, questão de bens passageiros, uma vez que ela nada mais seria do que der-
COMO SE DIZ ATUALMENTE) ramamento de sangue, homicídios, torturas e infligir sofrimento sobre o
próximo, como mostram os tempos de guerra. Estes devem informar as
E por isso eu digo que, em casos como os dos três tipos mencionados, suas próprias consciências de que tais homens não o fazem conforme sua
o direito à redenção e à justiça deveria ocupar o seu lugar. A lei diz, seca- escolha, desejo, ou vontade inclinada ao mal, mas que a palavra provém de
mente: “A rebelião é punível com a morte, como crime laesæ majestatis, um
pecado contra os governantes”. A justiça diz, entretanto: “Sim, estimada lei, 30
é como você diz; mas pode ocorrer que dois homens podem cometer atos No original, Lutero faz referência a Eclesiastes 5:8, versículo esse que não traduz em mo-
mento algum a ideia do texto ora inserido. Por essa razão, indicamos Eclesiastes 5:9,
cujo texto é “O proveito da terra é para todos; até o rei se serve do campo”, com um sen-
6
Referência a Eclesiastes 7:16. tido mais apropriado ao contexto. (N. do T.).

3-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-3


03 03

sempre armadas e prontas, aquele que tem tantos cavalos e tantos ho- com diferentes sentimentos e intenções”. Judas, por exemplo, beijou Cristo
mens, outro com mais um tanto além, de acordo com a dimensão do lote no jardim7: este foi um bom trabalho exterior, mas o seu coração era mau,
de terra. Tais quinhões eram os salários com os quais eles foram contra- traindo seu Senhor e a boa obra que Cristo e seus discípulos fizeram uns
tados. No entanto, estes são chamados de lotes e ainda geram encargos aos outros em outras vezes, com um bom coração. Mais uma vez, Pedro
sobre eles. O imperador permite que esses pedaços de terra sejam her- assentou-se junto ao fogo, com os servos de Anás e aqueceu-se com a
dados, e isso é bom e correto ao Império Romano; mas o Império Turco, impiedade, o que não era bom8.
como se diz, não permite que nenhum deles seja herdado e não tolera Agora, se a lei viesse a ser aplicada rigorosamente, Judas teria que ser
nenhuma autoridade hereditária, quinhão, ou encargo de cavalaria29, ou considerado um homem bom e Pedro uma escória, mas o coração de Ju-
lote, mas lhes concede aos súditos, e lhes fornece como, quando e para das era mau e o de Pedro era bom; a justiça deve, portanto, neste caso, ser
quem o império quiser. Assim o imperador tem essa riqueza incomensurá- a amante da lei.
vel e é senhor na terra, ou melhor, um tirano. Portanto, aqueles que estiveram entre os rebeldes, mas com boas in-
Os nobres, portanto, não podem pensar que eles têm a sua proprie- tenções, a justiça não apenas conservará, mas lhes reservará graça em
dade por nada, como se as tivessem descoberto, ou ganho no jogo. A dobro. Eles são como o piedoso Husai, o arquita, rebelde, que se uniu a
hipoteca sobre ele e os direitos feudais mostram quando e por que eles Jônatas e atuou diligentemente, sob as ordens de Davi, com a intenção de
têm, nominalmente, algo como um empréstimo do imperador ou do prín- ajudá-lo e vigiar Absalão, tal como se registra no segundo livro de Samuel,
cipe, de modo que eles não deveriam usá-la para exibição e conduta voci- capítulos 15:32 até 16:16. Husai foi, também, considerado rebelde em outra
ferante, mas estarem armados e preparados para a guerra, a fim de prote- ocasião, ao lado de Absalão contra Davi, mas ele obteve grande louvor e
honra permanentemente, diante de Deus e de todo o mundo. Se Davi tives-
ger a terra e a manutenção da paz. Agora, se eles se queixam de que de-
se permitido que esse Husai fosse condenado como um rebelde, não teria
vem manter cavalos e servirem os príncipes e senhores, quando estiverem
sido tão louvável uma ação como a que nossos príncipes e colaboradores
mais calmos e em paz, eu lhes respondo: “Prezado senhor, deixe-me di-
estão fazendo agora a pessoas igualmente inocentes, sim, para pessoas
zer-lhe uma coisa: você tem a sua remuneração e seu lote de terra, sendo
que, por bem, têm merecido.
nomeado para este cargo e bem pago para isso. Mas outros não têm, tam-
Essa virtude, ou sabedoria, que pode e deve orientar e moderar a gravi-
bém, trabalhado o suficiente em suas pequenas propriedades? Ou são
dade dos casos, segundo a lei, e que os mesmos juízes julgam ser bom ou
vocês os únicos que têm trabalho para fazer? E seu trabalho é raramente mau, de acordo com a diferença de sentimento ou intenção - esta força é
solicitado, mas outros têm de fazer o seu dever quotidiano. Se você não chamada em grego epieikeia, em latim æquitas; eu a denomino equidade.
estiver disposto a fazê-lo, ou acha que ele é pesado ou injusto, então deixe Pelo fato de a lei ter de ser moldada de modo simples, em palavras secas e
seu lote de terra de lado: outras serão encontrados, os quais terão prazer curtas, ele não pode abranger todos os casos e os obstáculos. Portanto, os
em aceitá-lo e fazer o que ele exige em troca”. juízes e os senhores devem ser sábios e piedosos neste assunto e distribuir
Portanto, o douto incluiu todo o trabalho dos homens em duas divi- justiça razoável, e deixar a lei tomar o seu curso, ou definir sua aplicabilida-
sões, agriculturam e militiam, isto é, a da agricultura e a da guerra, e esta é de de acordo. O chefe de família faz uma lei para seus empregados, dizen-
do-lhes o que eles devem fazer neste ou naquele dia: existe a lei, e o em-
29
Encargo de cavalaria (knight’s fee), segundo o direito medieval, era a imposição de uma pregado que não guardá-la deve ter o seu castigo. Agora, um deles pode
restrição ao uso da propriedade rural, correspondente à reserva de um quinhão sobre o estar doente, ou ser de outra forma impedido de manter a lei, não por sua
qual havia a obrigação de o proprietário autorizar a realização de exercícios de combate própria culpa; então, a lei é suspensa, e ele seria um chefe louco de uma
de cavalaria (de um só cavaleiro ou mesmo de uma unidade de cavalaria - servitium uni- casa se punisse um empregado por esse tipo de negligência do dever. De
us militis - em favor do exército real durante o período de 40 dias por ano, como era cos-
maneira semelhante, todas as leis que regulamentam as ações humanas
tume na Inglaterra do século XIII), cujo tamanho variava de um hide ou menos, podendo
chegar a seis ou mais hides. Um hide equivale, dependendo do local, a unidade de me- devem ser submetidas à justiça – a sua amante – por causa dos muitos,
dida entre 60 a 120 acres, ou entre 24 a 49 hectares de terra (N. do T., com informações inúmeros, vários acidentes que podem acontecer e que ninguém pode pre-
de Dictionary.com - Unabridged (v 1.1), Random House, Inc., acesso em 29/01/2008 pe- ver ou fixar.
lo hipertexto <http://dictionary.reference.com/browse/hide> e Webster's Revised Una-
bridged Dictionary. MICRA Inc., acesso em 29/01/2008 pelos hipertextos 7
<http://dictionary.reference.com/browse/knight%20service> e Referência a Mateus 26:49.
8
<http://dictionary.reference.com/browse/knight's%20fee>). Referência a Lucas 22:55.

7-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 3-3


03 03

CAPÍTULO 7

RESPOSTAS A DIVERSAS PERGUNTAS

ARTIGO I

QUESTÕES ÉTICAS DE GUERRA

7-1. PODE ALGUÉM LUTAR EM GUERRA COMO UM MERCENÁRIO POR


CONTA PRÓPRIA, NÃO APENAS POR DEVER AO SEU SENHOR?

Nenhum rei pode ir sozinho à guerra: ele precisa de pessoas e de tro-


Figura 4. Cena de massacre, durante a Guerra dos Camponeses. pas, tanto quanto ele não consideraria a si próprio como um Tribunal por
imposição da lei, assim é necessário que ele tenha conselheiros, juízes,
advogados, agentes penitenciários, carrascos, e todos os mais integrantes
da Justiça.
A questão, portanto, de saber se um homem deveria receber salários –
como autônomo ou como trabalhador assalariado, como eles assim o
chamam – e se dispõe a ser contratado pelos seus serviços, comprome-
tendo-se a servir ao príncipe conforme a demanda exigir, de acordo com a
condição presente. Em resposta a esta pergunta, nós faremos uma distin-
ção entre tais soldados.
Em primeiro lugar, existem os súditos que, mesmo sem um acordo,
são obrigados a ajudar suas excelências com seus corpos e bens, e cum-
prirem com sua convocação. Por causa dos bens que os conselheiros,
senhores e nobres guarneciam, as terras foram divididas em tempos anti-
gos entre os romanos e os seus imperadores, e eram distribuídos em lo-
tes, sob condição de que as pessoas que lhes possuíssem deviam estar

3-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 7-1


03 03

a espada consigo, lhes encerrou numa prisão; e se fizerem nela uma per-
turbação, e reunirem outros consigo, se escaparem e tomarem a espada,
então, diante de Deus, eles são dignos de julgamento e de morte.

6-2. A VIOLÊNCIA TIRA A AUTORIDADE DADA POR DEUS

Os superiores, por outro lado, são designados para serem pessoas


comuns, e não para existirem para si sós. Eles têm de ter a adesão de
seus súditos e ficarem a cargo da espada. Para fins de comparação, um
imperador, ao se dirigir a seu superior máximo, ele não é mais um prínci-
pe, e sim um indivíduo em obediência ao imperador, como todos os ou-
tros são, cada qual isoladamente; mas, em comparação com seus súditos, CAPÍTULO 4
ele representa tantos indivíduos quantos ele tiver sob sua autoridade, uni-
dos a si. Assim, o Imperador também, quando comparado com Deus, não DA GUERRA DE INFERIORES CONTRA SUPERIORES
é um imperador, mas um indivíduo como todos os demais, mas em com-
paração com seus súditos, ele é tantas vezes imperador quanto o número ARTIGO I
de pessoas que ele tenha sob seu comando.
A mesma coisa tem de ser dita de todos os outros governantes. DA REBELIÃO CONTRA OS GOVERNANTES
Quando comparado aos seus superiores, eles não são governantes de
tudo, e são eliminados de sua autoridade. Quando comparado com algum
outro, todos eles são adornados com autoridade. Assim, no final das con- 4-1. NÃO IMPORTA DE QUE TIPO, A REBELIÃO CONTRA O GOVERNAN-
tas, toda autoridade vem de Deus, que a exerce sozinho: Ele é imperador, TE É SEMPRE REPUGNANTE
príncipe, conselheiro, nobre, juiz, e tudo o mais; Ele compartilha tais fun-
ções com seus súditos como Lhe apraz, e as leva de volta para si. Agora Desse modo, temos a dizer o que se segue, para as pessoas que são
nenhum indivíduo deveria se posicionar contra a comunidade, ou unir a atingidas pela lei de guerra, ou as que estão ocupadas com a guerra. Pri-
comunidade em torno de seu propósito, pois em fazê-lo ele estará pondo meiro: a guerra pode ser feita por três tipos de pessoas: alguém pode
sua cabeça a prêmio, e as escamas certamente cairão de seus olhos. fazer guerra contra o seu igual, ou seja, nenhum dos dois é subjugado ou
A partir disso, você verá como eles resistem à ordem de Deus, o qual vassalo do outro, embora um possa ter menor ou maior glória ou poder do
resiste aos seus governantes, como São Paulo ensina em Romanos 13:2. que o outro; ou um superior pode lutar contra o seu inferior; ou um inferior
Assim, diz ele também, em I Coríntios 15:24, que Deus vai abolir toda au- pode lutar contra o seu superior. Tomemos o terceiro caso. Aqui se sus-
toridade, quando Ele próprio deverá reinar e conduzir a si todas as coisas. tenta a lei, que diz: “Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo,
Já é o bastante sobre estes três pontos: agora vêm as perguntas. tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra,
honra9” (Romanos 13:7).
Se algo se quebra sobre a cabeça de alguém, os estilhaços vão cair
sobre seus olhos, tal como Salomão diz: “e a pedra voltará sobre aquele
que a revolve10”. Essa é a lei, superficialmente falando. O próprio Deus insti-
tuiu, e os homens lhe aceitaram, uma vez que não se enquadra em conjunto
que os homens possam obedecer e resistir à lei, serem sujeitos e não se

9
Referência conforme original em alemão. Na tradução em inglês consta Romanos 13:10, o
que, a nosso ver, foi inserido incorretamente. (N. do T.).
10
Provérbios 26:27b.

6-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-1


03 03

colocarem abaixo de seus senhores; mas já dissemos que a justiça deve ser
amante do direito, e, se as circunstâncias o exigirem, orientar a lei, ou mes-
mo comandar e permitir que homens ajam contra ela. Por conseguinte, a
questão aqui é saber se ela pode ser justa, isto é, se um processo pode
resultar em que se pode agir contra esta lei, ser insubmisso quanto aos
governantes e lutar contra eles, depô-los ou colocá-los em prisão.
Há entre nós homens um vício que se chama fraus, isto é, engano ou
subterfúgio. Se este nosso vício descobre que a justiça é superior ao direi-
to – como já foi dito – ele, então, se torna totalmente contra a lei. Busca-se,
caça-se dia e noite alguma forma de trazê-lo para ser comercializado sob
o nome e a aparência de justiça e, assim, vendê-lo dessa maneira, de
modo que a lei se converte em nada e a fraude se torna a doce atitude
que realiza tudo o que ela deve fazer. Por isso, há um brocardo que diz:
inventa lege, inventa est fraus legis, “Quando surge uma lei, a senhora
CAPÍTULO 6
Fraude é mais rápida à mão”.
DA GUERRA DE SUPERIORES CONTRA INFERIORES
4-2. AS TURBAS DO PASSADO NÃO PROVAM NADA
ARTIGO ÚNICO
Os gentios, por nada saberem de Deus, desconheciam que o governo
temporal é mandado divino, pois ele o tem sustentado como dever e bom DO EXERCÍCIO DA AUTORIDADE PUNITIVA
êxito dos homens; mesmo assim, eles passaram por cima disso e pensa-
ram que não era apenas um direito, mas também algo louvável depor,
matar e expulsar governantes inúteis e maus. Por essa razão, os gregos, 6-1. O GOVERNANTE DEVE PUNIR SEUS SÚDITOS
em leis públicas, prometiam joias e presentes aos tiranicidas, ou seja, para
aqueles que ou ferissem ou mesmo destruíssem um tirano. Os romanos, A terceira questão é para saber se os superiores têm o direito de ir à
nos dias de seu império, seguiram à risca este exemplo e por si próprios guerra contra os inferiores. Vimos anteriormente que os súditos devem ser
mataram a maioria dos seus imperadores, de modo que, nesse grande obedientes, mesmo que estejam sofrendo injustiça por parte de seus tira-
império, quase nenhum imperador foi assassinado por seus inimigos, e nos, a fim de que, se tudo correr bem, os governantes nada tenham com
ainda poucos deles morreram em seus leitos naturais de morte. O povo de seus súditos, a não ser cultivar o direito, a justiça e o juízo; mas se eles se
Israel e de Judá também matou e destruiu alguns dos seus reis. levantam e tornam-se rebeldes, como os camponeses ultimamente o têm
Esses exemplos, entretanto, não são suficientes para nós: não esta- feito, então é justo e reto lutar contra elas. Isso, também, é o que um prín-
mos aqui cobrando o que os crentes ou os judeus deviam fazer, mas o cipe deve fazer com seus nobres, um imperador aos seus príncipes, se
que é reto e justo a se fazer, não só diante de Deus em espírito, mas tam- estes forem rebeldes e iniciarem uma guerra. Isto só deve ser feito no te-
bém quanto à divina ordem exterior do governo temporal. Visto que hoje mor de Deus, e muita confiança não deve ser colocada no direito de uma
ou amanhã um povo se insurge e depõe ou mata o seu senhor – bem, isso das partes, a fim de que Deus não determine que os senhores sejam pu-
irá acontecer, e os senhores devem aguardar por isso, se estiver estabele- nidos pelos seus súditos, ainda que estes estejam errados. Isso tem acon-
cido no decreto de Deus – isso não significa que tal ato seja reto e justo. tecido com frequência, como ouvimos acima.
Nunca soube de caso desse tipo que tenha sido justo, e sequer posso Ser justo e agir corretamente nem sempre caminham juntos: sim, eles
imaginar algum. Os camponeses, na sua revolta, alegaram que os senho- nunca se conduzem juntos, exceto pelo dom de Deus. Portanto, embora
res não permitiriam que o Evangelho fosse pregado, que privaram a popu- seja certo que os súditos devam se aquietar e a tudo suportar, e não se
lação pobre, e que por isso, tinham de ser derrubados; tenho, entretanto, revoltar, no entanto, não é para homens decidir o que fazer: Deus tem
respondido a esses argumentos, dizendo que embora os senhores ajam nomeado subordinados para tratarem de cuidar de si mesmos e tomarem

4-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 6-1


03 03

nho faz o ataque e começa a guerra, e não iria ajudar se alguém se ofere- errado no presente, não seria, portanto, reto e justo agir errado em troca,
cesse para resolver o caso via procedimento legal, ou com uma discus- ou seja, ser insubmisso e destruir os mandamentos de Deus, o que não
são, ou com um acordo; ou quando alguém ultrapassa e se impõe com nos é afeito. Por outro lado, devemos padecer e, se príncipe ou soberano
toda a espécie de maldições e ardis, mas não há de se contentar com não tolerarem o Evangelho, então temos que ir para outro principado onde
nada, exceto com seu próprio caminho. Por causa disto, assumo que es- o Evangelho é pregado, como Cristo diz em Mateus 10:23: “Quando pois
tou pregando para aqueles que querem agir corretamente diante de Deus; vos perseguirem nesta cidade, fugi para outra”.
para com aqueles que nem almejam e nem consentem em fazer o que é
certo, eu não me preocupo. 4-3. O TUMULTO COMO JUSTIFICATIVA TRAZ CONSEQUÊNCIAS TERRÍVEIS
Temer a Deus é não confiar na justiça da nossa causa, mas ser cuida-
doso, diligente e prudente, mesmo nos mínimos detalhes, em uma coisa Apenas para deixar claro: é justo que, se um príncipe, rei, ou senhor
tão pequena como um apito. Com tudo isso, porém, as mãos de Deus não torna-se louco, ele deve ser deposto e colocado sob contenção, pois que
guardam vínculo, de modo que ele não pode nos impelir à guerra contra ele não deve ser considerado um homem, uma vez que está desaparecida
aqueles que não nos deram motivo algum. Assim Ele conduziu aos filhos a sua razão. Sim, você diz que um tirano delirante é louco, também, ou ele
de Israel a irem à guerra contra os cananeus (veja Números 33:50 e se- deva ser considerado ainda pior do que um louco, por ser muito mais
guintes). Em tal caso, há necessidade suficiente, qual seja, a ordem de prejudicial. Tal resposta coloca-me em dificuldades, pois tal declaração
Deus; embora tal guerra não deva ser combatida sem temor e cuidados, tem ótima aparência e parece estar de acordo com a justiça. No entanto, é
como Deus mostra em Josué 728, quando os filhos de Israel marcharam a minha opinião que os casos de loucos e tiranos não têm identidade, pois
confiadamente contra os homens de Ai, e foram derrotados. Necessidade um louco não pode nem fazer nem tolerar qualquer coisa razoável, nem
de igual natureza surge se indivíduos lutam no comando de seus gover- há qualquer esperança para ele, porque a luz da razão lhe fugiu; porém
nantes: Deus ordena que os homens obedeçam ao seu governante (veja um tirano, a despeito da maioria de suas atitudes, ele sabe que age erra-
Romanos 13:1), e sua ordem é uma necessidade, e isso também deve ser do. Ele tem a sua consciência e seu conhecimento, e não há esperança de
feito com temor e humildade. Disso falaremos mais adiante. que ele possa fazer melhor, permitir-se à instrução, aprender, seguir con-
selhos, nenhuma das atitudes que possam ser esperadas de um homem
louco, que é como barro ou pedra.
Além disso, esse comportamento tem um mau resultado, ou estabele-
ce um mau exemplo. Se ele é chamado “direito de assassinar” ou de ex-
pulsar tiranos, a coisa cresce e se torna um sinal comum de vontade sub-
jetiva chamar injustamente homens de tiranos, até mesmo para matá-los
se a multidão estiver com essa intenção. A História nos mostra os roma-
nos. Eles mataram muitos bons imperadores só porque não gostavam
dele, ou por não fazer aquilo que eles queriam, e não os deixar serem
senhores, e os subjugou aos seus servos e macacos, como aconteceu
com Galba, Pertinax, Górdio, Alexandre e outros. Não podemos represar
uma multidão. Ela se enlouquece muito rapidamente, e é melhor ficar lon-
ge dessa loucura um metro do que lhe dar vazão por alguns centímetros –
ou nem mesmo isso –, e é melhor que os tiranos façam o mal uma cente-
na de vezes, do que eles façam mal uma única vez aos tiranos. Se for para
sofrer o mal, então é melhor que este sobrevenha por parte dos governan-
tes, do que os governantes o sofram por parte de seus súditos, pois a
multidão não tem moderação, nada sabe e, em cada indivíduo, há mais do
28
Referência conforme original em alemão. O texto em inglês traz a referência em Josué 3:1, que cinco tiranos. Agora é melhor que se padeça por causa de um tirano,
o que a nosso ver foi publicado incorretamente (N. do T.). qual seja, o ditador, do que por causa de inúmeros tiranos de tal multidão.
5-8 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-3
03 03

Conta-se que a Suíça, em seus primórdios, matou seus soberanos e tinham de aprender e livremente admitir que nada em guerra é mais perigo-
libertou a si mesma, e que os dinamarqueses recentemente depuseram so do que estar seguro e confiante e, assim, eles chegaram à conclusão de
seu rei, e que em ambos os casos, a causa foi a intolerável tirania, sofrida que nunca se deve desprezar o inimigo, não importa quão pequeno ele
por seus súditos; eu disse anteriormente, contudo, que não estou discu- possa ser; também que não se deve entregar nenhuma vantagem, não im-
tindo aqui o que os ímpios fazem ou fizeram, ou qualquer coisa que lem- porta quão pequena ela seja; também que não se deve negligenciar ne-
bra a sua história e seus exemplos, mas o que se deve e se pode fazer nhuma precaução, vigilância, ou atenção, não importa quão pequena ela
com a consciência tranquila, de modo que é certo e seguro que seu ato seja; tudo deve ser medido a peso de ouro. Pessoas tolas, confiantes, ne-
não é em si mesmo errado diante de Deus. Pelo que conheço bem o sufi- gligentes não têm serventia alguma na guerra, exceto para fazer mal.
ciente e tenho lido em algumas histórias, quantas vezes indivíduos têm A expressão non putassem, “eu não pensei nisso”, deve ser considera-
morto ou deposto os seus governantes como o fizeram os judeus, os gre- da a expressão mais vergonhosa que um soldado pode proferir, pois é um
sinal de um homem seguro, confiante, descuidado que, por um momento,
gos e os romanos, e Deus permitiu que isso acontecesse, e lhes permitiu
por uma etapa, com uma palavra, pode fazer mais dano do que dez dos
crescer e a se expandir, apesar de tal fato. No final das contas, porém, tal
que ele possa reparar e, em seguida dizer: “Na verdade, eu não pensei nis-
atitude tem tido sempre um fim terrível, pois os judeus foram finalmente
so”. Quão terrivelmente o príncipe Aníbal derrotou os romanos enquanto
reprimidos e dispersos pelos assírios, os gregos pelo rei Filipe, os roma- estavam confiantes e seguros contra ele; casos desse tipo são inúmeros na
nos pelos góticos e lombardos, a Suíça pagou e ainda paga caro por isso, história, e estão diariamente perante os nossos olhos.
com muito sangue, e é fácil prever qual resultado vai ocorrer. Os dinamar- Os ímpios aprenderam por esta experiência e ensinaram-na, mas não
queses, também, ainda não souberam lidar com o assunto, mas não vejo sabiam como dar qualquer razão ou motivo para isso, exceto atribuir a culpa
um governo duradouro exceto nos locais onde os governantes são deti- à deusa Fortuna, de quem eles tinham que ter medo. Entretanto, a razão e a
dos com honra. Uma ilustração é referente aos persas, aos tártaros e à causa são, como já disse, que Deus iria testemunhar, em todas essas histó-
maioria desses povos, que não só resistiram aos romanos com toda a sua rias, de que Ele há de ser temido, e até mesmo em tais circunstâncias não
força, bem como os destruíram a eles e a muitas outras terras. iriam perdurar nem a confiança, ou o desgosto, ou a temeridade, ou a segu-
A minha razão é somente esta: quando Deus diz, “Minha é a vingança, rança, até que aprendêssemos a obter de Suas mãos tudo o que temos,
eu a retribuirei11”, e em outro lugar, “não julgueis12”. Além disso, é estrita- como um dom de pura graça e misericórdia. Portanto, é estranho que um
mente proibida e muitas vezes no Antigo Testamento a maldição de go- soldado que tenha uma boa causa estar ao mesmo tempo confiante e de-
vernantes ou falar mal deles, como em Êxodo 22:2813: “Aos juízes não sencorajado. Como ele pode lutar se está desencorajado?
maldirás, nem amaldiçoarás ao governador do teu povo”. Se, todavia, ele lutar sem coragem, há o perigo maior. Isso, então, é o
Paulo, em I Timóteo 2:1, ensina os cristãos a orar pelos governantes. que ele deve fazer: diante de Deus, ele deve ser desencorajado, cheio de
Salomão ensina, em toda parte, nos seus Provérbios e Eclesiastes, a obe- temor, e humilde, e a Ele submeter sua causa, que Ele poderá dispor das
decer ao rei e a estar sujeito a ele (confira em Provérbios 34:21 e Eclesias- coisas, não de acordo com a nossa lei, mas, de acordo com Sua bondade
tes 10:20). Agora, ninguém pode negar que, se as pessoas se insurgirem e graça. Assim ele ganha Deus a seu lado com um coração humilde e
contra os seus governantes, elas se vingam e se tornam juízes, o que não cheio de temor. Por dentre os homens, ele deve ser ousado, livre, confian-
é apenas contra o decreto e o comando de Deus – a quem pertence a te, porque eles estão no erro, e degolá-los com um espírito confiante e
sentença e a vingança – mas também contra toda lei e justiça naturais. Por despreocupado. Por que não fazemos para nosso Deus o que os romanos
– os maiores lutadores do mundo – fizeram para a sua falsa deusa, a For-
isso se diz: “Ninguém deve ser seu próprio juiz”, e, em outro lugar: “Aquele
tuna, a quem temiam? Se eles não fizessem isso, ou eles lutariam uma
que contra-ataca está errado”.
perigosa batalha, ou seriam duramente derrotados.

5-4. GUERRA CONTRA IGUAIS É JUSTA SÓ EM CASO DE EMERGÊNCIA


11
Hebreus 10:30, Romanos 12:19. Portanto, a nossa conclusão sobre este ponto é que a guerra contra
12
Mateus 7:1. iguais deve ser tida como algo necessário e que deve ser combatida no
13
Referência conforme original em alemão. O texto em inglês traz a referência em Êxodo temor de Deus. É tida como algo necessário quando um inimigo ou vizi-
23:1, o que a nosso ver foi publicado incorretamente (N. do T.).

4-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 5-7


03 03

tém a outra na bainha; mas um príncipe consciente não considera a si ARTIGO II


mesmo: ele está satisfeito se seus súditos são obedientes. Apesar de seus
inimigos e vizinhos se orgulharem, praguejarem e deixarem ao vento diver- DO EXERCÍCIO DA TIRANIA
sas maldições, ele pensa: “os tolos sempre falam mais rápido do que os
sábios: muitas palavras vão para o saco, e o silêncio é a resposta para tan-
4-4. A TIRANIA É IMPOSTA POR DEUS E CONFIÁVEL PARA A ALMA (NEM
to”. Por isso ele não se preocupa muito quanto a estes, até ver que seus
SEMPRE...), POR ISSO NÃO HÁ RAZÃO PARA O TUMULTO!
súditos são atacados, ou verificar que a espada realmente foi desembai-
nhada. Então, ele se defende como pode, deveria, e deve; caso contrário,
Talvez aqui você diga: “Certo, se tudo culmina para perdurar a figura
aquele que é um covarde tal que pega cada palavra, e lhes procura o signi-
do tirano, você o estimula demais e sua maldade só se torna mais forte e
ficado, está tentando apanhar o vento invisível. Quanta paz ou lucro ele ob-
maior a partir desse ensinamento. Será que, então, deve prevalecer o fato
terá com essa conduta: deixe-o confessar, então você vai descobrir.
de que cada homem, mulher e filho, corpo e bens, estejam em perigo?
Quem pode começar qualquer coisa boa, se for por esse caminho que
5-3. ATÉ MESMO UMA GUERRA DE DEFESA NÃO DEVE SE SOBRESSA-
devemos viver”? Eu respondo: “Meu ensino não é para você, se vai fazer o
IR, MAS SIM ESTAR SUBMETIDA AO TEMOR DO SENHOR
que você acha bom, e o que lhe apetecer. Siga a sua própria noção, mate
todos os seus senhores, e veja que bem isso lhe trará. Meu ensino é ape-
Essa é a primeira coisa sobre este ponto, e é igualmente necessário
notar a segunda. Mesmo que você esteja certo e determinado de que não nas para aqueles que gostariam de fazer as coisas direito”. Para estes eu
está a começar, mas é forçado à guerra, ainda assim você deve temer a digo que os governantes não devem ser combatidos com a violência e a
Deus e tê-Lo diante de seus olhos, e não marchar, dizendo: “Sim, sou rebeldia, tal como os romanos, os gregos, os suíços e os dinamarqueses
forçado a isso e tenho bom motivo para a guerra”. Se você põe fé nisso, fizeram; há, entretanto, outras maneiras de lidar com eles.
colocar-se em fuga também não é coisa a fazer. É verdade que você tem Em primeiro lugar, se entenderem que os governantes pensam tão
boas razões para lutar e defender-se, mas isso não lhe dá a garantia de pouco sobre a salvação da sua alma, que eles se enraivecem e agem er-
Deus de que você vai ganhar. Com efeito, esta grande confiança pode rado, que importância há em devastarem a sua propriedade, seu corpo,
muito bem ser uma razão pela qual você deve perder, mesmo quando sua esposa e seu filho? Eles não podem ferir a tua alma, e eles se tornam
você tenha uma justa causa para a guerra, uma vez que Deus não pode mais prejudiciais do que você, porque eles prejudicam suas próprias al-
sustentar confiança e orgulho, exceto aquele que nos humilha diante Dele mas, e a ruína dos seus corpos e das suas propriedades deve se suceder.
e nos faz temê-Lo. Você não acha que já foi vingado o suficiente, em relação a eles?
Ele Se agrada quando alguém não teme nem o homem nem o diabo, e
é ousado e confiante, corajoso e firme contra ambos, se eles começaram a 4-5. O MAU GOVERNO É TÃO ACEITÁVEL QUANTO A GUERRA
guerra e estão no erro; mas que este deva ganhar a vitória, como se fossem
nossas ações ou poder que realizassem isso… não é bem assim! Ele vai ser Em segundo lugar, o que você faria se estes teus governantes estives-
temido e nos ouvir cantar, de nossos corações, uma canção como esta: sem em guerra, e não apenas os teus bens, mulheres e crianças, mas você
“Querido Senhor, vês que tenho de ir para a guerra, embora eu ficasse satis- mesmo estivesse arrasado, encarcerado, queimado e morto por causa do
feito em não ir; eu não edificarei, no entanto, sobre a justiça da minha causa, seu senhor? Você mataria o teu senhor, por essas razões? Quantas pessoas
mas sobre a Tua graça e misericórdia, pois sei que, se eu viesse a contar boas o imperador Maximiliano perdeu em guerra durante sua vida, mas
com a minha justa causa e estivesse confiante por causa dela, Tu deverias ninguém lhe fez algo contra por causa disso e, ainda que ele os tivesse
justamente me deixar cair tal como aquele cuja queda fora justa, porque eu
destruído pela tirania, nada mais cruel jamais se ouviu de sua parte. No
invoquei o meu direito e não estive baseado na Tua excelsa graça e favor”.
entanto, ele foi o motivo pelo qual pereceram, visto que foram mortos por
Ouça o que os gentios dizem sobre isto, os gregos e romanos, que na-
sua causa. Como, então, um grande tirano seria diferente de uma guerra
da sabiam de Deus e do Seu temor. Eles sustentavam que eram eles pró-
prios que faziam a guerra e conquistavam vitórias, mas, por uma larga expe- perigosa, que atinge muitas pessoas boas, honestas e inocentes? Não, um
riência, em que um grande número de pessoas bem armadas era frequen- tirano ímpio é mais tolerável do que uma guerra má, como você deve admi-
temente derrotado por um número pequeno de pessoas mal-armadas: eles tir se consultar a sua própria razão e experiência. Creio, aliás, que você gos-

5-6 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-5


03 03

taria de ter a paz e dias bons, mas suponho que Deus o impeça por causa de “guerras volitivas”, e o segundo de “guerras necessárias”. O primeiro
da guerra ou dos tiranos! Agora, reflita consigo mesmo, se você prefere a tipo é do diabo: Deus não lhe dará boa sorte alguma! A segunda espécie
guerra ou aos tiranos: você tem merecido a ambos, e é culpado diante de são desgraças humanas; que Deus nelas ajude!
Deus, mas somos tão companheiros que queremos servir ao pecado e nele Estejam instruídos, portanto, caros senhores! Mantenham-se longes da
permanecer, e ainda queremos evitar punições por causa dele, mesmo que guerra, a menos que vocês tenham que se defender e proteger ao ofício que
seja para resistir à punição e defender o nosso pecado. Nós seremos tão lhes obrigue a lutar. Depois, deixem a guerra vir: creiam; sejam homens, e
bem sucedidos quanto o cão que morde os bicos dos sapatos. testem suas armaduras, pois por isso vocês não estarão lutando em suas
consciências. O caso será de tal modo grave que os dentes dos iracundos,
4-6. O MAU GOVERNO É PUNIÇÃO PELOS PECADOS DO POVO ostensivos e orgulhosos mordedores-de-ferro27 se tornariam tão brutais que
eles praticamente não seriam capazes de morder manteiga fresca.
Em terceiro lugar, se os governantes são maus, o que isso tem a ver? A razão é essa: todo rei e todo príncipe é obrigado a proteger o seu
Deus existe, e Ele tem o fogo, a água, o ferro, a pedra e inúmeras manei- povo e conseguir a paz para eles. Esse é seu ofício; é por isso que detém
ras de matar. Quão rapidamente Ele teria matado um tirano! Ele iria fazê- a espada (Romanos 13:4). Isso deve ser para ele uma questão de consci-
lo, também, mas os nossos pecados não o permitem, por isso Ele diz em ência e, por isso mesmo, ele deve depender dela para depreender que
Jó 34:30: “Ele [Deus] nos deixou cativos por causa de nossos pecados”. este trabalho é justo aos olhos de Deus, e que é por Ele ordenado. Não
É fácil o bastante ver que a servidão é a regra, mas ninguém está dis- estou agora ensinando aquilo que os cristãos devem fazer, pois seu go-
posto a ver que ela é prejudicial não por causa de sua própria subserviên- verno não diz respeito a nós cristãos, mas estamos lhe prestando um ser-
cia, mas por causa do pecado do povo. As pessoas não olham para os viço e dizendo o que ele deve fazer diante de Deus, em seu ofício de go-
seus próprios pecados, e acham que o tirano governa por causa de sua vernar. Um cristão é uma pessoa que providencia sua própria subsistên-
subserviência; tão cego, perverso e louco é o mundo! É por isso que tais cia: ele acredita se autossustentar, e a mais ninguém; mas um senhor e
coisas se passaram com os camponeses na revolta. Eles queriam punir os um príncipe não é uma pessoa que vive para si, mas para os outros: ele
pecados dos governantes, como se fossem eles próprios puros e sem tem de atendê-los, isto é, proteger e defendê-los. Para ter certeza de que
mácula; Deus, por sua vez, mostrou-lhes a trave de seus olhos, a fim de disso seria bom, se além de tudo ele fosse um cristão e acreditasse em
fazê-los esquecer outra farpa (veja Mateus 7:5). Deus, então ele seria feliz; mas não é próprio do príncipe ser um cristão e,
por isso, alguns príncipes possam ser cristãos, como se costuma dizer:
4-7. O MAU GOVERNO É SEMPRE RETALIADO PELA REVOLTA “um príncipe é uma ave rara no céu”. Agora, mesmo que não sejam cris-
tãos, não obstante devem fazer o que é correto e bom de acordo com o
Em quarto lugar, os tiranos correm o risco de que, por decreto de decreto exterior de Deus, de quem Ele obterá obediência.
Deus, sua disciplina possa ocorrer, como já foi dito, e esta os mate ou os Contudo, se um rei ou príncipe não se apercebem deste dever e man-
expulse, uma vez que estamos aqui dando instruções para aqueles que damento, e se deixam levar pelo pensamento de que ele é príncipe não
querem fazer o que é correto, e estes são muito poucos – a grande multi- para as necessidades de seus súditos, mas por causa de sua linda cabelei-
dão permanece ímpia, sem Deus, não-cristã, e estes, se Deus assim de- ra loira – como se Deus tivesse feito dele um príncipe, a fim de que ele pu-
cretar, posicionaram-se injustamente contra os governantes e criaram desse se gloriar em seu poder, riqueza e honra – tenha prazer nestas coisas
catástrofes, tal como os judeus, os gregos e os romanos por vezes fize- e acredite: se for o caso, ele pertence aos gentios; sim, ele é um tolo. Esse
ram. Portanto, você não tem nenhum direito de reclamar que, pela nossa tipo de príncipe começaria uma guerra por um motivo banal, e em nada
doutrina, os tiranos e governantes ganham segurança para fazer o mal: pensaria exceto em satisfazer sua própria vontade. Deus mantém esse tipo
não, eles certamente não estão seguros. de príncipe sob restrição pelo fato de outros também terem punhos, além
Nós ensinamos, para se ter certeza, que eles deveriam estar seguros, do que há pessoas do outro lado da montanha. Assim, uma espada man-
quer façam o bem ou o mal; mas não podemos dar-lhes essa segurança
ou alcançá-la para eles, pois não podemos obrigar a multidão a acompa- 27
Lutero usa, no original, o termo Eisenfressern, que significa sujeito indiscreto, vaidoso, ou
nhar o nosso ensino, se Deus não nos conceder a graça para tanto. Nós cheio de si. Preservou-se a literalidade da versão inglesa (iron-biters) para dar a dimen-
ensinamos o que queremos, e o mundo faz o que lhe apraz. Deus deve são mais adequada do trocadilho (N. do T.).

4-6 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 5-5


03 03

ra contra o rei de Israel, mas leia em II Reis 14:8 o que lhe aconteceu; o rei ajudar, e temos de ensinar aqueles que estão dispostos a fazer o que é
Jeosafá também começou a lutar contra os sírios em Ramote-Gileade, bom e direito, a fim de que eles possam ajudar a deter a multidão em con-
mas perdeu e foi destruído (I Reis 22:224); os homens de Efraim foram flito. Por causa do nosso ensino, os senhores estão tão seguros como eles
degolados por Jefté e perderam 42.000 homens (Juízes 12:6), e assim por o seriam sem o nosso ensino; infelizmente, a tua queixa é desnecessária,
diante. Você notará que os perdedores quase sempre foram os que co- uma vez que a maior parte da multidão não nos ouve, ela deixa com Deus
meçaram a guerra. O bondoso rei Josias precisou ser morto porque co-
e nas mãos de Deus somente para preservar os governantes, a quem Ele
meçou a lutar contra o rei do Egito (veja II Reis 23), e teve de se cumprir a
palavra: “[Deus] dissipa os povos que se deleitam na guerra” (Salmo tem ordenado. Nós experimentamos isso na rebelião dos camponeses.
68:30b). Minha gente em Harz25, por essa razão, tem um ditado: “Ouvi Não se engane, portanto, pelo fato de os governantes serem maus: o cas-
dizer com certeza que quem surpreende é surpreendido”. Por que isso? tigo e a catástrofe estão mais pertos do que você possa imaginar. O tirano
Porque Deus rege o mundo com poder, não deixa o errado impune. Quem Dionísio de Siracusa confessou que sua vida era como a de um homem
pratica o mal tem o castigo de Deus – tão certo como ele vive – a menos cuja cabeça estava dependurada sobre uma espada por um fio de seda,
que se arrependa e repare o seu próximo. Creio que Müntzer26 e seus no qual queimava uma chama incandescente.
camponeses deveriam admitir isto.
4-8. DEUS FAZ RETALIAÇÃO CONTRA O MAU GOVERNO POR MEIO DA
ARTIGO II GUERRA EXTERNA

LIMITES PARA CONFLITOS ENTRE IGUAIS Em quinto lugar, Deus tem ainda outra maneira de punir os governan-
tes, de forma que você não tenha necessidade de se vingar. Ele pode
levantar até governantes estrangeiros, como os góticos contra os roma-
5-2. A GUERRA ENTRE IGUAIS É PERMITIDA APENAS PARA DEFESA nos, os assírios contra os judeus etc., de modo que a vingança, o castigo,
e bastante perigo pairem sobre tiranos e governantes, e Deus não permita
Seja esta, então, a primeira coisa a se dizer sobre este ponto: a guerra que eles sejam perdoados, e tenham paz e alegria: Ele é justo diante de-
não é correta, mesmo entre iguais, a menos que ela seja combatida por les, os têm entre esporas e sob cabresto. Isso concorda, também, com a
uma consciência tranquila tal que possa se dizer: “Meu vizinho me obriga lei natural que Cristo ensina, em Mateus 7:12: “Portanto, tudo o que vós
e me força a lutar, embora eu preferisse evitar isso”. Nesse caso, ela pode quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles; porque
ser chamada não só de guerra, mas de proteção obrigatória e de autode- esta é a lei e os profetas”.
fesa. Uma distinção deve ser feita entre guerras: algumas são iniciadas à Nenhum pai seria expulso por sua própria família, morto, ou arruinado
parte de um desejo e de uma vontade de lutar, e antes de alguém ser ata- por causa de sua depravação (especialmente se a família fez isso longe de
cado, outros são forçados pela necessidade e pela obrigatoriedade, após desconsiderar a autoridade ou em amor à violência, a fim de se vingar e
o ataque ter sido feito pela outra parte. O primeiro tipo pode ser chamado ser juiz em causa própria), sem queixa anterior a uma autoridade superior.
Deveria ser tão errado quanto qualquer pessoa agir contra o seu tirano.
por Deus. 2 Macabeus 2:19-32 contém a explicação do autor, dizendo que tentava resu- Vou dar um ou dois exemplos disto. Eles devem ser considerados, e
mir informações de vários outros livros. Ele não alega ser inspirado por Deus”. (fonte: confiáveis para serem imitados. Lemos de uma viúva que resistiu e orou por
<http://www.estudosdabiblia.net/2002324.htm> – acesso em 19/01/2008). Lutero, en-
tão, fez citação de um texto apócrifo tal qual se cita um texto histórico, não como um
seu tirano mais fervorosamente, que Deus iria deixá-lo viver longos dias etc.
texto que julgasse inspirado e parte das Escrituras (N. do T.). O tirano ouviu isto, e se admirava, porque ele bem sabia que havia cometido
24
Referência conforme original em alemão. O texto em inglês traz a referência em II Reis grande falta contra ela, e esta oração era incomum, eis que orações por
22:2, o que a nosso ver foi publicado incorretamente (N. do T.). tiranos não são comumente desse tipo. Ele perguntou-lhe por que ela orou
25
Harz é atualmente um distrito alemão localizado no estado da Saxônia-Anhalt. (N. do T.). assim por ele. Ela respondeu: “Eu tinha dez vacas, no tempo de seu avô; ele
26
Menção a Thomas Müntzer (1490? - 1525), um dos líderes das revoltas que ficaram conhe- pegou duas delas e eu orava contra ele, para que ele pudesse morrer, e teu
cidas como as Guerras dos Camponeses, já mencionadas no decorrer deste texto. pai se tornou soberano. Passou o tempo, e teu pai levou três vacas. Eu orei
Müntzer cortou relações com Lutero em 1521, por conta de divergências doutrinárias
quanto ao batismo infantil. Diz-se dele como um dos fundadores do movimento anaba- mais uma vez para que o senhor pudesse se tornar rei, e que ele pudesse
tista (N. do T.). morrer. Agora o senhor me tomou quatro vacas, e por isso estou orando pelo
5-4 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-7
03 03

senhor, por receio de que aquele que vem depois do senhor leve a última que é Deus quem promove as consequências, e Ele obterá paz, e detesta
vaca e tudo o que tenho”. Os estudiosos, também, ter uma parábola sobre aqueles que começam a guerra e quebram a paz.
um mendigo que foi cheio de feridas tais que moscas nelas entravam, suga- Devo mencionar aqui o exemplo do duque Frederico, Eleitor da Saxô-
vam seu sangue e o envenenavam. Então veio um homem piedoso que nia, pois seria muito ruim se aquelas sábias palavras do príncipe fossem
queria ajudá-lo, e tirava todas as moscas para fora dele, mas ele exclamou fadadas a morrer juntamente com seu corpo. Ele teve de suportar muitos
maus episódios por parte dos seus vizinhos e de outros, e tinha motivos
dizendo: “O que você está fazendo? Essas moscas estavam quase cheias e
para uma guerra tal que outro príncipe insano, com desejo beligerante, já
não me preocupavam tanto; agora as moscas famintas virão em seu lugar e teria começado dez guerras; no entanto, ele manteve sua espada na bainha,
vão me atacar de maneira muito pior!”. sempre deu boas palavras aos outros, e agiu como se fosse muito temeroso
Você entendeu estas fábulas? Mudar e melhorar governantes são du- e quase pronto para fugir, e deixava os outros orgulhosos e insuflados21,
as coisas tão longes como o céu e a terra. A mudança pode ser fácil, mas embora ele mantivesse autoridade sobre seu território, diante deles. Quando
a melhoria é duvidosa e arriscada. E por quê? Porque não é segundo a lhe perguntaram por que os deixava insuflados22, ele respondeu: “não vou
nossa vontade ou o nosso poder, mas apenas segundo a vontade e a mão começar qualquer coisa; mas se eu precisar lutar, você verá que serei eu
de Deus. As multidões ensandecidas, no entanto, não se perguntam como quem dirá quando parar”. Assim, ele permaneceu imbatível, embora muitos
é que as coisas podem se tornar um tanto melhor, mas apenas se as coi- cães mostrassem seus dentes. Ele viu que eram tolos e que poderia ser
sas podem ser mudadas. Então, se as coisas estão a piorar, elas vão que- indulgente com eles. Se o rei de França não tivesse começado a guerra
rer algo ainda diferente. Assim eles tratam abelhas como moscas, e, final- contra o imperador Carlos, ele não teria sido tão vergonhosamente derrota-
do e capturado, ainda mais agora que os venezianos e italianos estão se
mente, que a pessoa se converta em ninho para abelhas; como os sapos
posicionando contra o rei, e começaram a causar problemas, Deus garante
de idade, que não podiam se colocar inertes diante de um soberano: eles, que sejam eles que devam parar primeiro e deixar que a Palavra seja verda-
ao invés disso, esperavam que uma cegonha os atacasse e os devorasse. deira: “[Deus] dissipa os povos que se deleitam na guerra” (Salmo 68:30b),
Uma multidão ensandecida é algo desesperado e maldito: ninguém pode pois embora o imperador seja meu inimigo, eu não aprecio o erro.
governá-la tão bem quanto os tiranos. Eles são como a coleira amarrada Tudo isto Deus confirma com belos exemplos nas Escrituras. Ele teve
ao pescoço do cachorro. Se houvesse uma maneira melhor de lhes regu- o Seu povo oferecendo, em princípio, paz para os reinos dos amorreus e
lar, Deus teria definido alguns outros decretos a respeito deles, ao invés dos cananeus, e o Seu povo não teria começado a lutar com eles, a fim de
de espada e dos tiranos. A espada mostra que tipo de crianças há sob si, que este Seu preceito pudesse ser confirmado. Por outro lado, quando
ou seja, pessoas que seriam servos desesperados se fossem atrevidos. estes reinos começaram a guerra e obrigaram o povo de Deus a se defen-
Portanto, aviso a todo aquele que irá lidar com esse assunto com uma der, eles foram despedaçados (veja Levítico 21:22 e seguintes).
consciência tranquila e visando fazer o que é certo, que ele esteja satisfei- A autodefesa é uma boa causadora de guerra e, por isso, todas as leis
concordam que a autodefesa deva ficar impune, e aquele que mata o ou-
to com os governantes mundanos e não lhes façam qualquer ataque, visto
tro para se autodefender é inocente, sob qualquer ponto de vista. Mais
que governantes mundanos não podem fazer dano à alma, tal como o uma vez, quando o povo de Israel quis dar cabo dos cananeus, sem ne-
clero e os falsos mestres o fazem, e deixe-os seguir o bom Davi, que so- cessidade, eles foram combatidos (Números 14:45), e quando José e Aza-
freu tanta violência do Rei Saul como você jamais poderia sofrer, e ainda rias quiseram lutar, a fim de ganhar honra, eles foram combatidos (I Ma-
assim não pesou sua mão sobre o seu rei, como ele poderia ter feito mui- cabeus 5:55 e seguintes23), e Amazias, rei de Judá, também desejou guer-
tas vezes, mas deixou a questão com Deus (veja I Samuel 24:26). Deixe as
coisas, tanto quanto Deus as queira assim, e resista até ao fim. Se guerra 21
Ver nota anterior.
ou luta surgem contra o teu soberano, abandone os combates e lute para 22
Ver nota anterior.
aqueles que assim o quiserem – pois, como já foi dito, se Deus não con- 23
Há aqui uma citação de I Macabeus, livro deuterocanônico (ou apócrifo) adicionado ofici-
trolar a multidão, não poderemos impedi-los; se for, entretanto, para você almente pela igreja católica romana ao cânon bíblico em 1546 pelo Concílio de Trento,
fazer o que é certo e ter uma consciência tranquila, deixe tua mobilização dentro do movimento da Contra-Reforma, empreendido para combater o emergente
e tuas armas descansarem, e não lute contra o rei ou o tirano; sim, sofra protestantismo, do qual Lutero foi um dos precursores. Segundo o sítio “Estudos da Bí-
tudo o que pode acontecer com você. A multidão, que faz o combate, irá blia”, “Lutero traduziu os livros que considerava apócrifos, mas separados dos livros que
julgava inspirados”. Adiante, o autor Dennis Allan afirma que “livros como os dos Maca-
encontrar o seu juiz. beus são muito interessantes, e fornecem informações valiosas em termos da História
entre o Velho e o Novo Testamentos, mas claramente não alegam ser livros inspirados

4-8 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 5-3


03 03

beligerantes venham a se opor ferozmente e, como diz o provérbio: “Não 4-9. MESMO UMA REVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL NÃO JUSTIFICA
há ninguém tão ruim, que não possa ser pior”. QUALQUER TIPO DE REVOLTA
Assim, também, Deus tem isso cantado a Seu respeito, em Salmos
68:30b, Dissipa gentes, quæ bella volunt, “[O Senhor] dissipa os povos que “Mas”, você diz, “suponha que um rei ou senhor jurou aos seus súdi-
se deleitam na guerra” 18. tos, de governar conforme os artigos da lei prescrita, e não o mantiver e,
Cuidado, portanto: Ele não mente! Esteja alerta, e se mantenha longe,
portanto, teria o dever de abandonar o governo. Por isso, é dito que o rei
longe o bastante do querer e da obrigação, do desejo e da necessidade,
do anseio de guerrear, e da vontade de lutar. da França deve governar seu reino, de acordo com o Parlamento, e o rei
Não se deixe ser tentado a pensar de si mesmo como se fosse o impe- da Dinamarca também deve jurar a determinados artigos de lei etc.”, eu
rador dos turcos. Espere até precisar, e venha sem desejo e sem vontade. respondo: “é bom e que apenas os governantes governem, de acordo com
Então você terá o suficiente para agir e desistir da guerra, de modo que as leis, e as administre, e não regule de acordo com sua própria vontade”.
possa dizer, e seu coração se gabar: “eu adoraria ter estado em paz, se No entanto, devo acrescentar a este entendimento, não só um rei promete
meus vizinhos se dispusessem a tanto”. Assim, você pode se defender com manter a lei de seu país ou os artigos da eleição, mas o próprio Deus lhe
uma consciência tranquila, pois está na Palavra de Deus: “[Ele] dissipa os ordena ser justos, e ele promete fazê-lo. Bom, então, se este rei não man-
povos que se deleitam na guerra” (Salmo 68:30b) 19. tivesse nem a lei de Deus, nem a lei de seu país, você deveria atacá-lo,
Olhe para os verdadeiros soldados, aqueles que estiveram em comba- julgá-lo, e se vingar dele?
te. Eles não usam da espada de repente, não se insuflam20, não têm von- Quem te mandou fazer isso? Outro governante teria de vir dentre vo-
tade de cortar cabeças; mas quando são obrigados, e tiverem de fazê-lo,
cês, que iria ouvir ambas as partes e condenar o culpado, caso contrário,
então cuidado com eles, pois não estão de brincadeira; sua espada é justa
na bainha, mas se tiverem de usá-la, não regressarão sem a lâmina cober- você não irá escapar do julgamento de Deus que diz: “Minha é a vingan-
ta de sangue. Por outro lado, os tolos loucos, que são os primeiros a guer- ça14”, e ainda, “não julgueis” (Mateus 7:1).
rear em seus pensamentos e começarem bem, eles devoram o mundo O caso do rei da Dinamarca está em questão aqui. Lübeck15 e os habi-
com palavras e são os primeiros a desembainhar suas espadas, mas são tantes do litoral fizeram aliança com os dinamarqueses para depor seu so-
também os primeiros a deserdar e a lhes acomodar. O poderoso império berano. Devo dar minha resposta para a questão a pedido de quem, talvez,
dos romanos conquistou a maioria das suas vitórias porque tiveram de possa ter uma má consciência quanto a esse assunto, sobre a possibilidade
lutar, isto é, todos perseveravam, e queriam ganhar seus despojos por de que alguns deles possam pensar melhor da sua conduta e se conhece-
seus próprios esforços, a fim de defenderem a si mesmos; assim eles rem melhor, também. É verdade, realmente, que o rei é injusto diante de
procediam então com vigor em boa medida. Aníbal, o príncipe fora da Deus e do mundo, bem como a lei está totalmente do lado dos dinamar-
África, os feriu de modo tal a ponto de quase os destruir – mas o que eu queses e dos habitantes de Lübeck. Isso é uma coisa, mas há outro fator, a
deveria dizer? Ele começou, ele também teve que parar.
saber: que os dinamarqueses e os habitantes de Lübeck procederam como
Coragem (de Deus!) restou aos romanos, apesar de terem perdido; e
onde a coragem permanece, consequências certamente se sucederão, eis juízes e soberanos do rei, punindo e vingado o mal e, por conseguinte, pre-
sumiram-se no direito de julgamento e de vingança. Aqui surgem questões
de consciência. Se o caso chegar diante de Deus, Ele não vai perguntar se
18
Na versão em inglês consta o Salmo 68:1, cujo texto é: “Levanta-se Deus! Sejam dispersos os o rei era injusto e você justo, pois isso se tornou claro; Ele vai perguntar:
seus inimigos; fujam de diante dele os que o odeiam!”. Entretanto, o texto original em ale- “Vós, senhores da Dinamarca e os habitantes de Lübeck, quem vos ordenou
mão traz o Salmo 68:31, cujo texto em português é: “Venham embaixadores do Egito; es- a cometer estes atos de punição e de vingança? Será que eu ordenei isso a
tenda a Etiópia ansiosamente as mãos para Deus”. Conforme nosso exame no texto da
Vulgata latina, Lutero fez referência ao texto final de Salmos 68:31, cujo texto é “Increpa fe- vós, ou foi o imperador, ou o soberano? Em caso afirmativo, provai-mo por
ram arundinis, congregationem taurorum in vitulis populorum: prosternant se cum laminis cartas patentes”. Se eles puderem fazer isso, então estarão a salvo; se não,
argenti. Dissipa gentes, quæ bella volunt”. Em português, entretanto, esse texto encon- Deus os julgará, dessa maneira: “Ó rebeldes, ladrões de Deus, que lançais
tra-se em Salmo 68:30, parte final: “Repreende as feras dos caniçais, a multidão dos tou-
ros, com os bezerros dos povos. Calca aos pés as suas peças de prata; dissipa os povos
que se deleitam na guerra”. Por esta razão, colocaremos a referência como “Salmo 14
Hebreus 10:30a.
68:30b”, a fim de preservar o que Lutero tencionou trazer, no texto original (N. do T.). 15
19
Lübeck é uma cidade-distrito do norte da Alemanha, localizada no estado de Schleswig-
Ver nota anterior. Holstein. Possui atualmente o maior porto do Mar Báltico, e um dos maiores portos da
20
Sentido, no original, próximo da expressão “pagar embuste”, na gíria militar brasileira (N. do T.). própria Alemanha (N. do T.).

5-2 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-9


03 03

mãos de meu atributo e tomai-o para executar a vingança divina, que são
culpados de læsæ divinæ majestatis, isto é, vós pecastes contra a majesta-
de divina e trouxestes condenação sobre vós mesmos”. Estar errado e punir
errado são coisas diferentes, jus et executio juris, justitia et administratio
justitiæ16. Estar certo e errado é comum a todos os homens, mas declarar o
certo e o errado é de acordo com o que é certo e errado para o Senhor, e
Ele é Deus sozinho, que delega este ofício para os governantes, em Seu
lugar. Portanto, nunca deixe ninguém assumir tal dever, a menos que ele
esteja certo de ter uma ordem da parte de Deus, ou dos servos de Deus, os
governantes (veja Romanos 13:4).

ARTIGO III

CONTRA O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA PRÓPRIA CAPÍTULO 5

4-10. O DIREITO MUNDANO À JUSTIÇA PRÓPRIA CONVERGIRIA AO CAOS DA GUERRA ENTRE IGUAIS

Se as coisas necessariamente fossem de modo tal que todos tivessem


o direito de poder punir todos os que agissem errado, em que se tornaria ARTIGO I
o mundo? O servo degolaria o seu senhor, a camareira à donzela, as cri-
anças aos pais, os alunos ao professor. Isso seria um belo fim de coisas? RAZÕES PARA CONFLITOS ENTRE IGUAIS
O que seria necessário acontecer, então, para com os juízes e governan-
tes mundanos, designados por Deus? Deixe que os dinamarqueses e os 5-1. A GUERRA CONTRA OS GOVERNANTES É SEMPRE ERRADA
habitantes de Lübeck ponderem se eles iriam pensar com a razão se os
seus servos, cidadãos e as pessoas os resistiriam sempre que fossem Vamos agora nos ocupar com o segundo ponto e discutir a questão,
injustiçados. Por que, então, eles não fazem aos outros o que precisam, e se iguais podem lutar contra iguais. Sobre isso, eu tenho entendido como
que os outros lhes deveriam fazer, e isentem aos outros de uma regra pela se segue: não é certo começar a guerra, sempre que algum senhor insano
qual eles queiram ser isentos, como Cristo ensina em Mateus 7:12, e que a conceba em sua mente. Em princípio, quero dizer, acima de tudo: aque-
igualmente ensina a lei natural? Para ter certeza, o habitante de Lübeck e le que começa a guerra está errado, e é justo que aquele que primeiro
das outras cidades poderão socorrer a si mesmos, dizendo que eles não usa-se da espada seja derrotado, ou mesmo punido, ao final. Isto é o que
eram sujeitos ao rei, mas trataram ao inimigo como inimigo, ou ao igual normalmente tem acontecido na história: aqueles que iniciaram as guerras
como igual. Os pobres dinamarqueses, no entanto, estavam submissos e perderam-nas, e raramente aqueles que agrediram foram obrigados a se
agiram contra o seu governante sem ordem de Deus, e aconselhou aos defender. Governos mundanos não foram instituídos por Deus para que-
habitantes de Lübeck, e os ajudou. brar a paz e começar a guerra, mas para a manutenção da paz e reprimir
Assim que tomou sobre si o fardo dos pecados de outros, os ajuntou, os beligerantes. Assim Paulo diz em Romanos 13:4, que o dever da espa-
enredou a eles mesmos e os vinculou a essa desobediência rebelde dian- da é proteger e punir, proteger os bons com a paz e punir os maus com a
te de Deus e dos homens, apenas para não mencionar o fato de que eles guerra17; e Deus, que não tolera o erro, expõe coisas de modo que os
desprezavam também a ordem do imperador.
17
Menciono este caso aqui a título de ilustração, uma vez que estamos a Diz o texto de Romanos 13:4: “porquanto ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se
discutir a doutrina de que uma pessoa de classe mais baixa não deva se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vinga-
dor em ira contra aquele que pratica o mal”. Referência conforme original em alemão. O
texto em inglês traz a referência em Romanos 13:1, o que a nosso ver foi publicado in-
16
Literalmente, o direito e a execução do direito, a justiça e a administração da justiça. corretamente (N. do T.).

4-10 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 5-1


03 03

opor a uma pessoa de categoria superior, uma vez que essa deposição do
rei da Dinamarca é uma história notável, e aqui serve para alertar a todos os
outros, para que tenham cuidado com este exemplo e, na esperança de que
as consciências de quem cometeu esses atos possam ser tocadas, e que
alguns deles possam se transformar e abandonar as suas iniquidades, an-
tes que Deus venha e vingue a Si mesmo dos Seus inimigos e aqueles que
o roubaram. Não que todos eles vão preocupar com isso! A grande multi-
dão, como foi dito, não se preocupa com a Palavra de Deus; trata-se de
uma multidão abandonada e está se colocando pronta para a ira e o castigo
de Deus. Mas estou convencido de que alguns irão conduzir isso para al-
gum coração, e não se envolverão nas ações dos dinamarqueses e dos
habitantes de Lübeck e, no caso de terem sido envolvidas, vão deixar esse
meio e não tomarão parte no pecado de outras pessoas. Para cada um de
nós é mais do que suficiente responder pelos seus próprios pecados.

4-11. A PROIBIÇÃO DE GUERRA CONTRA AS AUTORIDADES NÃO QUER


DIZER QUE NÃO HAVERÁ REPRIMENDA

Neste ponto vou ter que fazer uma pausa e ouvir aos que me criticam,
que clamam: “Ei, isso significa” – penso eu – “que deve-se lisonjear os prín-
cipes? Você agora está se aproximando sorrateiramente da cruz e procura
perdão? Você tem medo”? Etc. Eu deixei essas abelhas zumbirem e esta-
rem no seu caminho. Se alguém puder fazer melhor, deixem-no. Eu não vim
aqui para pregar para os príncipes e senhores. Creio, também, que este
meu lisonjeio me concederia pouco favor e que eles não terão muito prazer
por essas lisonjas, porque isso colocaria em perigo a sua classe toda, como
vocês têm ouvido. Além disso, eu tenho dito com frequência suficiente nou-
tros locais, e é tudo verdade, que a maioria dos príncipes e senhores são
tiranos ímpios e inimigos de Deus, que perseguem o Evangelho e são meus
desgraçados senhores e cavalheiros, e não estou muito preocupado com
isso. Mas eu ensino que todos devem saber como se conduzirem a si mes-
mos neste assunto, e como deveriam agir em direção a seus superiores, e
deveriam fazer o que Deus lhes tem ordenado, deixando os senhores olha-
Figura 5. Lutero pregando a soldados durante a Guerra dos Camponeses.
rem para si mesmos e se colocarem em pé por si mesmos. Deus não irá
esquecer-se dos tiranos e dos homens de classe alta: Ele é capaz de lidar
com eles, e Ele tem feito isso desde o início do mundo.

4-12. NÃO APENAS OS SÚDITOS, MAS OS CAMPONESES TAMBÉM DE-


VEM OBEDIÊNCIA

Além disso, não vou aplicar o que eu escrevo aqui apenas aos cam-
poneses, como se fossem os únicos da classe mais baixa, e os nobres
não foram esquecidos também. Não seja por isso! O que eu quero dizer

4-14 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-11


03 03

com inferiores em classe destina-se a antagonizar camponeses, burgue- bo, de modo que não temos aqui nenhum paraíso; é de se esperar que
ses, nobres, conselheiros e príncipes, pois todos eles têm superiores e todos os tipos de infortúnios para com o corpo, a mulher, a criança, a pro-
inferiores em classe, com relação a alguém. Assim como um rebelde priedade e a honra venham a todo instante, e se dez desventuras não
camponês tem sua cabeça degolada, da mesma maneira um rebelde no- vierem em uma hora, sim, se você puder viver durante uma hora, você
bre, um conselheiro, ou um príncipe deveriam ser degolados. Um deve ser deveria dizer: “Oh, como é grande a bondade que o meu Deus me mostra,
tratado como os outros, e ninguém estaria errado. que nesta hora todos os infortúnios não vieram”! “Como é que é? Não es-
O imperador Maximiliano, em minha opinião, poderia ter cantado uma tou feliz de ter uma hora sob governo do diabo?” Isso é o que ensinamos
bela cançãozinha sobre os príncipes e nobres rebeldes, que gostariam de ao nosso povo. “Evidentemente, você pode fazer outra coisa: construir
fazer uma revolta e colocar as cabeças a prêmio. E quanto aos nobres? para si mesmo um paraíso onde o diabo não possa entrar; assim você não
Quantas vezes já se queixaram, fizeram conspirações e tentaram desafiar os precisa esperar a raiva de qualquer tirano; Vamos olhar adiante! Ah, só
príncipes, e fazer uma revolta? Quão grande clamor teve a nobreza franco- estamos muito felizes! Queremos que as coisas sejam como elas são! Nós
niana sozinha ao se aperceber sobre quão pouca atenção deram ao impe- não reconhecemos a bondade de Deus, e não acreditamos nela, a bonda-
rador ou aos seus bispos. Estes colaboradores não devem ser chamados de que Ele nos mostra ao nos proteger, quando o diabo é tão mau!”. Não
de rebeldes ou de causadores de distúrbios, ainda que o fossem; o campo- queremos ser nada além de servos inúteis e ainda receber nada além da
nês deve descansar e se conservar nesse entendimento. Mas, a menos que bondade de Deus.
a minha mente esteja me traindo, Deus tem castigado os senhores e nobres Isso é o suficiente sobre o primeiro ponto, a saber: que a guerra e os
rebeldes pelos camponeses rebeldes, um serviçal por outro, uma vez que conflitos contra os soberanos não podem ser justos, e embora muitas vezes
Maximiliano teve de suportá-los e não podia os castigar, embora os tenha aconteçam – e corre-se o risco de elas acontecerem todos os dias, assim
oprimido enquanto viviam. Aposto que se os camponeses não tivessem se como tudo que é de ruim e de errado também aconteça –, se Deus os de-
rebelado, uma rebelião teria surgido entre os nobres contra os principados e cretou e não os impediu, ainda que os soberanos não se saiam bem no final
talvez contra o imperador, tão crítica era a posição da Alemanha. Mas agora e não permaneçam sem vingança, mesmo assim eles podem lograr êxito
os camponeses se envolveram com isso, e eles devem ser os únicos em por algum tempo.
trevas; os príncipes e nobres escaparam fácil disso, limparam as suas bo-
cas, são muito semelhantes entre si, e nunca fizeram nada de mal; mas
Deus não se engana, e lhes deu uma advertência, para que possam apren-
der por este exemplo: eles, também, devem obedecer aos seus governan-
tes. Seja esta a minha lisonja a príncipes e senhores!

4-13. O GOVERNANTE (E A NOBREZA, INCLUSIVE) ESTÁ SOB A AUTO-


RIDADE DIVINA

Agora você diz: “Será que devemos, então, tolerar um governador que
foi um bandido tal que deixou a terra e as pessoas à ruína”? Para falar na
linguagem da nobreza: “Diabos! Pela dança de São Vito! Ó peste! Ó Santo
Antônio! Ó São Quirino! Sou um nobre que deve permitir que a minha es-
posa e filhos, corpo e propriedade, sejam tão vergonhosamente arruina-
dos?” Respondo: “Escute, não estou lhe ensinando nada; vá cuidar da sua
vida! Você é inteligente o suficiente; não precisa disso. O único problema,
e isso me custa, é ver como você vai terminar essa sua cançãozinha senti-
mental”.
Para os outros, que gostariam de manter sua consciência tranquila,
temos isso a dizer: Deus nos tem mantido no mundo, sob o poder do dia-
4-12 BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO BIBLIOTECA MILITAR CRISTÃO 4-13

Você também pode gostar