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Apontamentos sobre o lugar da história em O Capital de Marx

2011-10-17 20:10:55 Emmanuel Nakamura

Apontamentos sobre o lugar da história em O Capital de Marx

§ 1- Minha comunicação tem como objetivo apontar para o lugar da história no Livro I d’O Capital.
Seguindo Ingo Elbe, em Marx im Westen: die neue Marx-Lektüre in der Bundesrepublik seit 1965 (2008),
tentarei contextualizar as quatro maneiras em que a história é considerada, a saber: a) o duplo modo em
que a história é considerada dentro do modo de apresentação lógico-sistemático: 1) o conteúdo
especificamente histórico das categorias; 2) as condições estruturais da dinâmica histórica que se
desdobram dentro da formação capitalista, mas cujos resultados não são dedutíveis; b) o duplo modo
como a história é considerada como limitação da forma de análise lógico-sistemática: 3) a contingência
histórica de um acontecimento singular que não provém necessariamente das estruturas fundamentais
do sistema; e 4) o devir histórico externo ao sistema, mas incorporado ao conceito de capital como a
pressuposição para a auto-reprodução do sistema. Minha hipótese é que essa contextualização me
permitirá apontar para a tentativa marxiana de demonstrar o sistema capitalista como um sistema finito e
para a dimensão do político implícita nessa tentativa.

1) O conteúdo especificamente histórico das categorias

§ 2- Marx considerava as categorias da Economia Política como formas de manifestação das relações
sociais capitalistas. Para ele, a relação entre capital e trabalho é a relação específica, historicamente
determinada, do modo de produção capitalista, isto é, a relação que “capta a differentia specifica do
capital na diferença de todas as outras formas de riqueza” (Grundrisse, p. 409). Faltava à Economia
Política apreender o caráter historicamente determinado de suas categorias.

§ 3- A categoria trabalho parece ser uma categoria simples e não uma categoria histórica da sociedade
moderna. No entanto, o “trabalho pura e simplesmente”, considerado como atividade criadora de riqueza,
afastada de toda determinidade, “pressupõe a existência efetiva de uma totalidade muito desenvolvida de
espécies de trabalho”, em uma “forma de sociedade onde os indivíduos possam passar formalmente de
um trabalho para o outro, tornando-se-lhes fortuita e, portanto, indiferente, a espécie determinada de
trabalho”. Somente sob essas condições históricas, o trabalho pode se tornar uma categoria da
Economia Política, isto é, quando sua abstração se tornou “efetividade, como meio de criação da riqueza
em geral e deixou de ser uma determinação vinculada ao que os indivíduos têm de peculiar”
(Grundrisse, p. 25).

§ 4- A Economia Política definiu a categoria capital como “trabalho acumulado”, “meio de produção”,
“soma de valores” ou “o que produz lucro”. Para Marx, essas definições são “a-históricas” ou
pressupõem o que deveriam explicar. Assim, como o trabalho considerado como atividade geral criadora
de riqueza, o capital tem de ser considerado em sua forma geral. Como “capital em geral”, ele tem de ter
também uma existência real, ao lado dos outros capitais particulares: “enquanto o universal é, de um
lado, só differentia specifica pensada, ele é ao mesmo tempo uma forma real particular ao lado da forma
do particular e do singular” (Grundrisse, p. 353). O que é comum a todos os capitais é a propriedade de
expandir o seu valor. O capital industrial se apresenta como universalidade pensada na sua diferença
específica e, ao mesmo tempo, como forma real particular ao lado das outras, pois é ele que apresenta a
relação fundamental do modo de produção capitalista, a relação de trabalho assalariado, e onde se cria e
se apropria diretamente da mais-valia.

2) As condições estruturais da dinâmica que se desdobram dentro da formação capitalista, mas


cujos resultados não são dedutíveis

§ 5- Os assim chamados capítulos históricos d’O Capital – “A jornada de trabalho”, “Cooperação”,


“Divisão do trabalho e manufatura” e “Maquinaria e grande indústria” – têm um lugar preciso na obra.

§ 6- O capítulo 8, “A jornada de trabalho”, pressupõe a apresentação prévia do conceito de capital. Após


a apresentação do processo de produção capitalista, o capital torna-se um processo em que ele mesmo
açambarca o trabalho vivo, ao se rebaixar de sua pureza como processo para se tornar material, ou seja,
capital constante, opondo-se ao trabalho sem-objetividade, ao mesmo tempo em que é imediatamente a
própria vivacidade efetiva do trabalho, ou seja, capital variável. Assim, o capital deixa o trabalho
desempenhar a sua natureza no processo de produção, incorporando-o como momento seu,
suspendendo a separação entre o seu ser-aí mesmo como capital e o trabalho, fazendo de ambos, o
trabalho vivo e os meios de produção, o “corpo de sua alma” (Grundrisse, pp. 269-70).

§ 7- O conceito derivado de capital é uma espécie de “critério de seleção” (Marx im Westen, p. 591) para
a análise histórica. O capítulo sobre a jornada de trabalho pressupõe a apresentação desse conceito. A
mais-valia só pode ser produzida, neste momento, através do prolongamento da jornada de trabalho,
pois o capital não se apoderou diretamente do processo de trabalho, ou seja, pressupõe-se um modo de
trabalho aí-presente (vorhanden), correspondente a um dado um dado desenvolvimento histórico das
forças produtivas.

§ 8- Se, nesse primeiro momento, o capital ordena o trabalho nas condições que ele encontra
historicamente, formando a “base universal” do sistema capitalista, através da divisão da jornada de
trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho, esse é o ponto de partida para revolucionar as
condições técnicas e sociais do processo de trabalho. O capital assimila o seu pressuposto histórico,
tornando-o sua potencia, que só nele se conserva, se desenvolve e se objetiva, pois essas condições
técnicas pressupostas desenvolvem-se historicamente apenas como o modo de produção
especificamente capitalista. Por isso, Marx considera o capital como um “sistema orgânico”, que

tem sua pressuposições, e seu desenvolvimento para a totalidade consiste justamente


em subordinar para si e todos os elementos da sociedade ou em criar a partir de si os
órgãos que lhe faltam. Assim, ele se torna historicamente totalidade. O vir-a-ser para
essa totalidade forma um momento de seu processo, de seu desenvolvimento
(Grundrisse, p. 189).

§ 9- A apresentação dos métodos particulares de produção da mais-valia relativa – cooperação,


manufatura e grande indústria – é a reconstituição regressiva da lógica histórica do vir-a-ser do capital
como totalidade efetiva. Ela fornece a legitimação ou a demonstração da derivação do capital. Ao
assimilar a sua pressuposição histórica, o capital cria as condições técnicas e sociais do processo de
produção especificamente capitalista, as quais deixam de ser, portanto, condições pressupostas que ele
apenas encontrava historicamente. Segundo, J. Grespan:

Trata-se, antes, da demonstração de como as condições efetivas da ‘subordinação


formal’ do trabalho ao capital têm em si mesmas a capacidade de se desenvolver em
condições efetivas da ‘subsunção real’, porque levam ao domínio do próprio processo
de trabalho pelo capital e à sua fetichização enquanto fator de produção. Esta
passagem, portanto, está inserida na lógica de conversão da história em totalidade,
em que o capital ‘subordina a si todos os elementos da sociedade’ (O negativo do
capital, p. 255).

3) A contingência histórica do acontecimento singular que não provém necessariamente das


estruturas fundamentais do sistema

§ 10- A passagem da circulação simples de mercadorias ao processo de produção capitalista não é uma
passagem propriamente histórica, mas sim lógico-categorial. Para Marx:

(…) nós não temos de fazer aqui a passagem histórica da circulação ao capital. A
circulação simples é antes uma esfera abstrata do processo total burguês, que
através de sua própria determinação se indica como momento, como mera forma de
manifestação de um processo mais profundo situado atrás dela, que resulta dela
como se ela produzisse: o capital industrial (Urtext, pp. 68-9).

§ 11- Essa passagem é a transformação do dinheiro em capital. Para isso, Marx tem de apresentar de
onde surge a mais-valia e o problema é posto nos seguintes termos: a mais-valia não pode surgir da
circulação de mercadorias, pois na lei do intercâmbio de mercadorias vigora a troca de equivalentes,
portanto, a troca de mercadorias não é um meio para enriquecer em valor. No entanto, a circulação de
mercadorias tem de servir como ponto de partida para a transformação do dinheiro em capital, com base
nas leis imanentes ao intercâmbio de mercadorias. O impasse é assim formulado:

Nosso possuidor de dinheiro, por enquanto ainda presente apenas como capitalista
larvar, tem de comprar as mercadorias por seu valor, vendê-las por seu valor e,
mesmo assim, extrair ao final do processo mais valor do que nele lançou. Sua
metamorfose em borboleta tem de ocorrer na esfera da circulação e não tem de
ocorrer na esfera da circulação (Das Kapital, I, pp. 180-1).

J. Grespan comenta assim o que está em jogo aqui:

A própria apresentação categorial chegou a seu impasse, que pode ser resolvido
somente com a incorporação de um pressuposto não desenvolvido por ela, mas
tomado da consideração de circunstâncias sociais historicamente determinadas,
dentro das quais o capital se forma na realidade (O negativo do capital, p. 100).

§ 12- As condições da circulação de mercadorias são realizadas quando o possuidor de dinheiro


encontra no mercado uma mercadoria específica, de cujo consumo seja possível extrair valor, ou seja,
uma mercadoria cujo consumo é em si objetivação de trabalho, por conseguinte, criação de valor. Essa
mercadoria é a força de trabalho. Para que o possuidor de dinheiro a encontre no mercado é necessário
que duas condições históricas estejam postas: 1) a força de trabalho tem de ser vendida como
mercadoria pelo seu possuidor, que tem de ser livre proprietário de sua capacidade de trabalho, o que
exclui outras relações de dependência; 2) o proprietário da mercadoria força de trabalho tem de ser livre
de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho, ou seja, não pode possuir outras
mercadorias para vender, nem outros valores-de-uso para sua própria subsistência, nem meios para
produzi-los.

§ 13- Essas condições históricas se apresentam como uma limitação do modo de apresentação lógico-
sistemático, pois se apresentam o resultado de eventos singulares contingentes que não procedem
necessariamente da estrutura fundamental do sistema. A dialética marxiana põe da seguinte forma a sua
pressuposição histórica:

O processo histórico passado determinado, no qual essa pressuposição é dada, será


formulado mais determinadamente pela ulterior consideração da relação. Mas essa
etapa do desenvolvimento histórico da produção econômica – na qual o produto
mesmo já [é] o trabalho livre – é pressuposição para o devir (Werden) e ainda mais
[para] o ser-aí do capital enquanto tal. Sua existência é o resultado de um longo
processo histórico na configuração econômica da sociedade. Neste ponto
determinado, mostra-se como a forma dialética da apresentação só é correta quando
ela conhece os seus limites (Grenzen). Da consideração da circulação simples resulta
para nós o conceito geral (allgemeine) de capital, porque, dentro do modo de produção
burguês, a circulação simples só existe como pressuposição do capital e o
pressupondo. O resultado da mesma não faz do capital a encarnação de uma ideia
eterna, mas sim mostra como só dentro da efetividade, só como forma necessária, no
trabalho que põe valor-de-troca, ele tem de desembocar na produção que repousa sob
o valor-de-troca (Urtext, p. 91).

4) O devir histórico externo ao sistema, mas incorporado ao conceito de capital como a


pressuposição para a sua auto-reprodução

§ 14- O “trabalho livre” é o “resultado de um longo processo histórico na configuração econômica da


sociedade”. Ele é posto no capítulo 4 d’O Capital, “A transformação do dinheiro em capital”, como uma
pressuposição histórica. A citação acima afirma também que a etapa do desenvolvimento histórico da
produção econômica na qual o trabalho é livre é uma “pressuposição para o devir do capital enquanto
tal”. Ela afirma também que é “neste ponto determinado” onde se mostra “como a forma dialética da
apresentação só é correta quando ela considera os seus limites”. É “neste ponto determinado” onde a
dialética choca-se com seus limites e onde o capital se mostra não como a “encarnação de uma ideia
eterna”, ou seja, onde o sistema capitalista se apresenta como dependente de condições que ele mesmo
não produziu.

§ 15- Essas condições são, de um lado, a existência do trabalho assalariado e, de outro lado, a
existência de uma acumulação prévia de dinheiro e meios de produção que possam ser transformados
em capital. A existência dessas duas condições é o resultado de um devir histórico, cuja unidade é a
acumulação originária, que é a descrição de cada fase do desenvolvimento das relações burguesas
apoiada no caso histórico inglês. A aparição de uma massa de produtores separados de seus meios de
produção e transformados em trabalhadores assalariados e a acumulação desses meios nas mãos de
uma massa de possuidores foi o resultado de um processo histórico violento, que colocou o capitalista,
de um lado, e o trabalhador, de outro.
§ 16- A reprodução das relações entre trabalho assalariado e capital dentro do sistema capitalista é uma
“continuidade estrutural” de uma relação fundada através da violência imediata. Por um lado, com a plena
organização do processo capitalista de produção, essa violência imediata da acumulação originária dá
lugar à coação muda das relações econômicas, pois o trabalhador é abandonado às leis naturais de
produção, de modo que a sua dependência do capital surge das próprias condições de produção,
reproduzidas em escala ampliada pelo processo de acumulação.

§ 17- Por outro lado, o processo de acumulação capitalista apresenta palpavelmente o caráter
antagônico da relação de propriedade capitalista ao monopolizar as vantagens do progresso em poucos
“magnatas do capital”, aumentando, correspondentemente, a massa de miséria da classe trabalhadora.
A dissolução desse antagonismo se resolve no campo da luta de classes.

§ 18- Marx pretende, com isso, legitimar a sua apresentação dialética do sistema capitalista apontando
para um diagnóstico histórico do presente. A apresentação lógico-sistemática é uma construção
conceitual que torna o presente inteligível e fornece o fio condutor para uma reconstrução regressiva do
passado. O presente se mostra, por um lado, como um limite intransponível – isto é, a dependência do
trabalhador é garantida e eternizada pelas próprias condições de produção capitalista – e, por outro lado,
como ponto de ruptura e lugar de passagem – isto é, a “tendência histórica da acumulação capitalista”
mostra que “a produção capitalista produz com a necessidade de um processo natural sua própria
negação. É a negação da negação” (Das Kapital, p. 791). Essa dupla caracterização do presente,
considerado fio condutor de reconstrução do passado e lugar de passagem, aparece da seguinte
maneira nos Grundrisse:

(…) o que é muito importante para nós, nosso método mostra os pontos onde a
consideração histórica tem de entrar, ou onde a economia burguesa, como mera
figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma para modos
de produção anteriores historicamente. Por isso não é necessário, para desenvolver
as leis da economia burguesa, escrever a história efetiva das relações de produção.
Mas a correta observação e dedução da mesma, como relações tornadas
propriamente histórica, levam sempre a primeiras equações – como os números
empíricos, p. ex., nas ciências naturais – que apontam para um passado situado
detrás deste sistema. Tais indicações, juntamente com a correta compreensão do
presente, fornecem igualmente a chave para o entendimento do passado (…). Por
outro lado, essa consideração correta também leva a pontos nos quais se indicam a
superação da presente figura das relações de produção – e, assim, o movimento que
vem-a-ser, a prefiguração do futuro. As fases pré-burguesas aparecem como apenas
históricas, i. e., como pressuposições suspensas, de maneira que as condições
atuais de produção aparecem suspendendo a si mesmas e pondo-se,
consequentemente, como pressuposições históricas para um novo estado de
sociedade (Grundrisse, pp. 364-5).

§ 19- Marx apresenta o sistema capitalista como um “sistema finito”, que, por um lado, tem
pressuposições que não são postas por ele originalmente, mas que são reproduzidas por ele mais tarde;
por outro lado, as próprias “condições atuais de produção” aparecem como “pressuposições históricas
para um novo estado de sociedade”. Isso porque a subsunção do trabalho ao capital é uma “estrutura de
dominação, que permanece dependente dos meios de poder dos dominantes, sejam eles tácitos ou
extra-econômicos, e de cuja manutenção depende, igualmente, a estrutura do sistema” (Andreas Arndt,
Karl Marx. Versuch über den Zusammenhang seiner Theorie, p. 266). A reprodução das pressuposições
históricas pelo sistema repõe o caráter antagônico da relação de propriedade capitalista, cuja dissolução
Marx aponta para a luta de classes. Para Arndt, “a teoria revolucionária da economia política, que
demonstra o modo de produção capitalista como mera forma histórica e finita de produção, não
apresenta nenhuma teoria da revolução. Ela mostra apenas em que lugar o poder, dentro do sistema
material de produção, (…) tem de se estabelecer e é atacável” (Ibidem, p. 266). A política se apresenta
então como um “campo experimental” ou um “lugar vazio”, diagnosticado em “pontos cruciais” do
sistema, sendo, portanto, uma “falta necessária” da teoria em geral (Ibidem, p. 109). Portanto, o campo
do político é meramente indicado pela apresentação marxiana. Haveria, assim, uma determinação, pela
análise lógico-sistemática, do espaço do político, que em si mesmo, entretanto, permaneceria
indeterminado. Essa leitura não só protege Marx de generalizações de um dogmatismo estritamente
econômico, como também talvez nos permita encontrar, nesse espaço, as configurações
contemporâneas da luta de classes.
Emmanuel Z. C. Nakamura

IV Colóquio Internacional Marx e os Marxismos (USP, 16.09.2011)

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