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Pierre Clastres: a paixão do Múltiplo

Não é sem razão que se diz que o Conceito, desde sua gênese grega,
encontra seus motivos de origem no plano sócio-histórico em que se inscreve,
e que sua problemática inicial era uma problemática produzida no plano
político. E se é verdade, por um lado, que a vida política não deixa de se insinuar
sempre na constituição do Conceito, este, por outro lado, não enviaria – mesmo
quando o ignorasse ou quando passa a se encarar como Ideia ou Sistema, ou
ainda quando ultrapassa os limites do plano sócio-histórico – todo tipo de eco
secreto ao universo político1? A ontologia é sempre política, mas na exata
medida em que a própria política é ontológica: “há tão somente o social e o
metafísico”, diziam Deleuze & Guattari2. Ainda que a elaboração sucessiva das
categorias centrais construídas pelo pensamento grego ao longo do processo
histórico da filosofia possa chegar a obscurecer ou amortecer seus efeitos
políticos, ao fim das contas a Filosofia pode não ser mais do que a política
continuada por outros meios.

Não é outro o caso com as noções gêmeas e opostas do Uno e do


Múltiplo. Com a fragmentação da antiga sociedade pré-helênica centrada na
figura do ánax e o desaparecimento da potência de unificação total que seu
caráter semidivino impunha ao corpo social, abre-se um novo campo de batalha
semântico e social na Grécia clássica em torno da organização da vida coletiva:

1
Cf., em especial, VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, notadamente p. 141-142: “Advento
da Polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para
que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da
cidade grega. (...) Quando Aristóteles define o homem como animal político, sublinha o que separa a Razão
grega da de hoje. Se o homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a própria Razão, em sua essência, é
política. (...) Quando nasce em Mileto, a filosofia está enraizada nesse pensamento político cujas preocupações
fundamentais traduz e do qual tira uma parte de seu vocabulário. É verdade que bem depressa se afirma com
maior independência. Desde Parmênides, encontrou seu caminho próprio; explora um domínio novo, coloca
problemas que só a ela pertencem.”

2
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo, p. 475.
“como a ordem pode nascer do conflito entre grupos rivais (...)? Como a vida
comum pode apoiar-se em elementos discordantes? Ou – para usar a fórmula
dos Órficos – como, no plano social, o uno pode sair do múltiplo e o múltiplo
do uno”3? Trata-se de problematizar as relações ocasionadas pela coexistência
e distinção, relação e separação, entre o domínio da “ordem” ou do poder
político no sentido estreito de administração da vida da Cidade, de um governo
em geral – que deve ser “uno e homogêneo” como tal – e o domínio do
“conflito entre grupos rivais” nas bases do campo social – “múltiplo e
heterogêneo” em sua composição – isto é, trata-se de interrogar o domínio das
relações entre o político e o social, o comando e a comunidade. E trata-se de
fazê-lo em relação a um coletivo em que o político se retrai para além do social,
como poder político “em separado”, como diria Engels, em que o comando é
pressuposto como elemento exterior à comunidade. Se há oposição entre
ambos os regimes, veremos, é porque se supõe uma forma de organização
comunitária que está incapacita para a coesão do comando ou do governo em
seu próprio ser, que deve, portanto, encontrar o poder de governo e de
organização além de si mesma. Ora, são estes mesmos embates serão postos
como problema conceitual de maneira rigorosa pelo pensamento filosófico na
constituição da oposição entre Uno e Múltiplo.

Platão exprime muito bem o espírito da partilha: o que de pior pode


acontecer à Cidade, nos diz, é sua fragmentação centrífuga e tudo o que “no
lugar de uma só, produziria muitas”, enquanto o que de melhor lhe pode
acontecer é o que “a unirá e a fará uma”4. Mas o que a une, mais do que tudo,
é a semelhança subjetiva de seus membros-cidadãos, o que a fragmenta é a
pluralidade e a dessemelhança dos sujeitos. O sucesso do Estado (grego) é sua
constituição em Estado-Todo, capaz de unificar e identificar a diversidade do

3
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, p. 48.

4
PLATÃO, La République, 462b.
corpo social de modo a fazer “das dores e prazeres de um, as dores e prazeres
de muitos”, ou fazer a Mesma as dores e os prazeres de vários, fazendo da
diversidade uma unidade. Desta perspectiva, toda associação ou comunidade só
é possível através do Idêntico ou do Uno como aquilo que estabelece a
semelhança ou identifica seus elementos e estabelece a norma do que associa
ou do comum, como ordenação unificada do Múltiplo, enquanto o Múltiplo,
por sua vez, se não unificado ou civilizado, é pura fragmentação como negação
da sociabilidade.

Não é por outro motivo que a Cidade-Estado platônica é o lugar da auto-


identidade de seus membros, em que “não existe homem que seja duplo, nem
que seja um múltiplo de si mesmo, pois cada um só faz uma coisa”5 – do mesmo
modo que no processo da divisão do trabalho o governo cabe a um único
homem (ou a um grupo de homens idênticos, pouco importa, desde que dada
a Unidade no comando), já que a “execução de uma tarefa será mais bela”
quando ela é “uma só” e executada por “um só homem”6: os que comandam
apenas comandam, os artesão são apenas artesãos, os guardiões apenas guardiões,
e o são por serem portadores de uma identidade única, de modo que os artesãos
estão excluídos tanto do comando quanto das funções militares, os que
comandam estão excluídos do trabalho manual, etc. A primeira forma social do
Uno corresponde, aqui, à identificação de cada elemento da sociedade consigo
mesmo, em uma pequena identidade que reflete a norma do Uno, excluindo
toda diversidade de atividades ou de maneiras de existir. Se a Justiça é harmonia
e medida na Cidade tal como na alma, é apenas porque é antes a permanência

5
PLATÃO, La République, 397e. É preciso notar que as mesmas passagens d’A República envolvem a recusa da
imitação associada ao simulacro, ou à “má cópia”, na forma da poesia e do teatro, para os que detém o
governo da Cidade. O imitador, o homem que faz muitas coisas, só pode fazê-las mal, ou ao menos muito
pior do que o faria o homem de uma só atividade. Se os homens do governo devem imitar, é apenas a suas
virtudes próprias, isto é, no limite, a si mesmos, uma vez que a imitação constitui hábito e natureza naquele
que imita. Cf. La République, 394e-398a.

6
PLATÃO, La République, 370b e 397e.
de cada um dos segmentos (ou classes) de cidadãos em sua função, garantindo
a cada um a posse de seu modo de existência e lhe impedindo a posse de outro:
a condição e exercício da Justiça é a estratificação estática da estrutura social7, a
identificação de cada elemento da multidão da Cidade de acordo com a regra
do Um em seu Estado – e é sempre preciso lembrar que as sociedades “com
Estado, são sociedades do uno. O Estado é o triunfo do uno”8 – e sua
permanência na função que lhe é designada na estrutura social.

Eis, portanto, a segunda forma social do Uno, como Justiça ou Ordem.


Os elementos do campo social são identificados apenas para que se possa
ordená-los segundo uma unidade sistemática que distribui a cada um seu lugar,
um lugar determinado na composição orgânica do campo social: sou um
artesão, e nada mais do que um artesão, executo apenas esta tarefa, e ocupo tal
ou tal lugar na organização social, e não outro, i.e. respondo perante a Cidade
como componente de um determinado segmento social, em tal posição na
distribuição política. E mesmo que as posições sociais possam variar, é sempre
segundo um mínimo de variação permitido, de tal maneira que as posições
sociais não se confundam ou se sobreponham. Tudo se passa como se na ordem
justa da Cidade, o Múltiplo, a diversidade, só pudesse ser aceito na medida em
que se determina e ordena duplamente segundo o modelo do Uno: tanto para
os elementos, tomados como unidades idênticas a si e em si mesmas, quanto
para o conjunto que em que os elementos são arranjados segundo uma unidade
harmônica superior, tal como o modelo da Forma implica a partilha das
imagens entre as boas cópias e os simulacros9. Unidade das partes e unidade do
todo, simplicidade e harmonia, são o Múltiplo sob a sombra de um Uno que se
exteriorizou, mas são também a projeção de um Uno que passa a deter o

7
PLATÃO, La République, 428e-434d.

8
CLASTRES, Pierre, Entrevista com Pierre Clastres in A sociedade contra o Estado, p. 239.

9
Cf. DELEUZE, Gilles, Différence et Répétition, p. 82-83, 165-169.
comando, em uma transcendência normativa do alto ao baixo. Ainda que o
comando ou o governo sejam sempre a unidade, ou a coesão da multidão social,
o comando só é Uno quando se exterioriza, quando se torna poder normativo
superior e separado de um Múltiplo sobre o qual mantém a arché. A linha
dividida com seus segmentos desiguais é, logo se vê, uma pirâmide que tem em
seu topo o Bem ou o Uno e em seu extremo oposto uma infinidade múltipla de
fantasmas e miragens; então, talvez seja apenas adotando o modelo do Uno que
o Múltiplo possa ter seu direito reconhecido na Cidade, sem o que é relegado
ao nível de uma ilusão inconsistente, uma “infrasocialidade”. A diversidade e a
variação só são admitidas como um grau mínimo de diversidade ou variação,
um grau civilizado e passivo o suficiente para se deixar representar nos quadros
do Uno.

Em todo caso,

“Sabe-se que, desde a aurora grega, o pensamento político


do Ocidente soube ver no político a essência do social humano (o
homem é um animal político), ao mesmo tempo em que apreendia
a essência do político na divisão social entre dominantes e
dominados, entre os que sabem, e, portanto, mandam, e os que não
sabem, e, portanto, obedecem. O social é político, o político é o
exercício do poder (legítimo ou não, pouco importa aqui) por um
ou alguns sobre o resto da sociedade (...)”10

Hierarquia do Uno ao Múltiplo, portanto: determinação de cada


elemento do Múltiplo como reflexo potencial do Uno, isto é, como uma
unidade identificável, e por isso mesmo ordenável segundo a regra do Uno, a
harmonia justa, como diagrama que o Ocidente não cessa de atualizar, ou antes,

10
CLASTRES, Pierre. A questão do poder nas sociedades primitivas in Arqueologia da violência, p. 138.
como idealidade a ser expressa e problematizada a partir das práticas de poder
ocidentais. Mas o que nos deixaria entrever a problematização das práticas de
poder fora dos muros do Ocidente e de seu pressuposto sobre a disjunção entre
político e social? Qual seria a possível (de)composição Uno/Múltiplo efetuada
ao não se aceitar a oposição e a exterioridade entre governo e campo social, ou
seja, quais são as relações pensáveis entre o político e o social para além das
fronteiras de “nosso” pensamento político, para além de nossa divisão?

A indivisão entre o social e o político, a imanência do poder à sociedade,


a ausência de uma formação-Estado que é o Uno de qualquer tipo: eis a própria
definição de uma sociedade primitiva, nos lembra Clastres. A sociedade
primitiva é a sociedade da imanência entre político e social, em que qualquer
um dos campos não pode assumir uma existência em separado, sociedade sem
a transcendência do político. O que agrupa todas as sociedades com Estado de
um lado e as sociedades primitivas de outro é o fato de que

“as primeiras apresentam, todas, aquela dimensão de divisão


desconhecida entre as outras todas as sociedades com Estado são
divididas, em seu ser, entre dominantes e dominados, enquanto as
sociedades sem Estado ignoram essa divisão: determinar as
sociedades primitivas como sociedades sem Estado é enunciar que
elas são, em seu ser, homogêneas porque indivisas.”11

Mais do que a ignorar, diz Clastres, as sociedades primitivas se opõem à


divisão: não apenas sociedades sem Estado, mas sociedades contra o Estado por
recusarem a divisão entre poder e sociedade que leva ao surgimento de um
coletivo dividido entre dirigentes e dirigidos e, afinal, de uma sociedade de

11
CLASTRES, Pierre. A questão do poder nas sociedades primitivas in Arqueologia da violência, p. 138.
classes. O Uno, lei da identidade harmônica e comando em separado, e o
Múltiplo, diversidade secundária seja como “infrasocialidade” de fantasmas seja
como reprodução inferior do Uno – isto é, seja como Múltiplo fora da lei e
simples negação do vínculo social, seja como Múltiplo legal, como dispersão
absoluta ou como disposição ordenada – são, ambos, fruto da divisão que
exterioriza o primeiro e segmenta o segundo, da divisão que retira (ou tende a
retirar) o poder político da sociedade e incapacita a sociedade para o poder
político. Não há, portanto, nada menos Uno do que uma sociedade
“homogênea” e “indivisa”, que recusa os próprios termos em que o problema
do Uno e do Múltiplo será colocado. O que é, no entanto, o paradoxo de uma
“homogeneidade” e uma “indivisão” que recusam o Uno? Mais ainda: se uma
sociedade primitiva é aquela que recusa o surgimento do Uno/Estado e que
tendo chefes os impede de qualquer exercício de poder, o que pode significar
seu desejo de se mostrar como “totalidade e unidade”12?

A análise da máquina guerreira das sociedades primitivas parece indicar,


inicialmente, que são máquinas de produção do Múltiplo, e que a sociedade
primitiva é a sociedade do Múltiplo13. A fragmentação dispersiva da sociedade
primitiva como resultado e efetuação da guerra parece fazer dela exatamente o
negativo platônico da Cidade, a dinâmica que faria, do Um, Muitos. Por outro
lado, a comunidade primitiva é dita ser uma totalidade una na mesma medida
em que impede a divisão que daria origem ao Um. Os motivos da totalidade
como autonomia integral, política e econômica e da unidade social como
homogeneidade indivisa na comunidade primitiva são, ainda, “o que determina

12
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência in Arqueologia da violência, p. 236.

13
E de fato, é assim que Clastres se expressa de maneira aparentemente inadequada em uma entrevista: “Sob
esse ponto de vista, poderíamos opor termo a termo as sociedades primitivas sem Estado e as sociedades
com Estado: as sociedades primitivas estão do lado do pequeno, do limitado, do reduzido, da cisão
permanente, do lado do múltiplo, ao passo que as sociedades com Estado estão exatamente do lado contrário,
do crescimento, da integração, da unificação, do lado do uno. As sociedades primitivas são sociedades do
múltiplo (...).” CLASTRES, Pierre. Entrevista com Pierre Clastres in A sociedade contra o Estado, p. 239.
a razão de ser e o princípio de inteligibilidade da guerra” primitiva14. O
etnocentrismo primitivo, sua inimizade constitutiva em relação a um Outro
latente, acabaria por ser o reflexo da afirmação da unidade identitária da
comunidade, e se a comunidade se afirma como diferença, é sempre como
diferença específica contra qualquer diferenciação ou inovação, que introduziria
nela a divisão entre dominantes e dominados que ela recusa. “Eis portanto
como aparece concretamente a sociedade primitiva: uma multiplicidade de
comunidades separadas, cada uma zelando pela integridade de seu território,
uma série de neomônadas”15. Mesmo a troca intercomunitária e a aliança
parecem ser apenas incômodos com os quais se lida a contragosto, já que
ameaçam a autonomia absoluta da comunidade, em nome da manutenção da
guerra como máquina de produção do Múltiplo. A guerra parece atuar como
instrumento do conservadorismo primitivo na afirmação de sua repetição
idêntica, da repetição do grande Si de cada comunidade, o instrumento pelo
qual a sociedade primitiva persiste em seu ser indiviso.

14
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência in Arqueologia da violência, p. 235.

15
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência in Arqueologia da violência, p. 236. É interessante notar que, nas
páginas seguintes, Clastres reapresenta (talvez de maneira advertida) erradamente o argumento hobbesiano da
guerra total. Se, diz Clastres, a sociedade primitiva deve recusar uma troca generalizada, como amizade
universal, que faria com que as comunidades perdessem sua autonomia, ela deve recusar igualmente a guerra
total que instauraria em seu meio a divisão, uma relação de dominação entre o Soberano e o súdito. No
entanto, o Soberano de Hobbes não se institui como resultado da guerra mas como o resultado de seu fim. É
porque a vida dos homens em estado de guerra é miserável que eles decidem, em comum, abdicar de seu
direito de guerra em nome da paz coletiva, e transferir parte de seu direito político ao Soberano. A
instabilidade da guerra generalizada jamais poderia fazer nascer, sem um salto para o exterior da sociabilidade
guerreira, a estabilidade do Leviatã. Como diz o etnólogo francês, mais sensatamente, ao fim do mesmo
ensaio “o Estado impede a guerra”. Resta saber se a vida dos homens em guerra é miserável, ou se ela o é sob
o Soberano. Lembre-se a curiosa memória de Bento Prado Jr. sobre Clastres, em que o antropólogo francês
comenta divertidamente o número relativamente baixo de óbitos nas guerras das sociedades primitivas. “O
que me lembro é que, segundo Clastres, o coeficiente de violência envolvido na guerra era quase igual a zero.
(...) Assim, a violência é controlada e reduzida, mas jamais eliminada, como seria o caso numa visão idílica e
nostálgica (“idealista”) da sociedade primitiva.” Lembranças e reflexões sobre Pierre Clastres: entrevista com Bento
Prado Júnior in Arqueologia da violência, p. 24. Deste ponto de vista, caberia ainda perguntar à antropologia:
supondo que a guerra não seja a inimiga da indivisão, não sendo, portanto, a troca um “mal necessário” para
amortecer os efeitos da generalização da guerra, não haveria uma positividade constitutiva da troca e da
guerra, sem a prioridade de qualquer uma das duas?
No entanto, é mesmo disso que se trata? Se a função da guerra é a
dispersão, a atuação de uma “lógica centrífuga” que domina a sociedade
primitiva, não se poderia sustentar a hipótese de que para que cada comunidade
mantenha a si mesma como “totalidade uma” e seja capaz de garantir sua
autonomia e indivisão, ela deveria interiorizar, em seu seio, aquilo que recusa
para a totalidade social, a operação contrária de uma lógica centrípeta ou de um
princípio de unidade interna? A comunidade primitiva como indivíduo absoluto
ou neomônada, a comunidade primitiva como átomo identitário não acabaria,
por sua vez, a reproduzir a imagem do Um? A hipótese parece risível, com
razão. Sabemos que a “unidade” da comunidade primitiva deve ser na
imanência, que ela não pode ter nada a ver com essa identidade elementar no
Múltiplo que o Uno insinua. Mas a associação da função de dispersão guerreira
no campo da totalidade social à noção da comunidade como totalidade una se
constrói como dinâmica de reprodução extensiva da unidade em microescala:
toda comunidade una é boa, desde que nos moldes do Pequeno Um. A força
centrífuga acaba por ser de direito e de fato (na gramática de Arqueologia da
violência) a força de gênese do Pequeno Um contra o Grande Um. E ainda assim
a sociedade primitiva é caracterizada como “recusa da unificação”, “recusa do
Um separado, sociedade contra o Estado”16. E enquanto o Um é, por sua vez,
o modelo para todo indivíduo, a regra de composição da auto-identidade das
coisas, não seria o caso, portanto, de se abandonar toda fraseologia sobre o Si,
e a “totalidade una” (à qual seria preferível ainda mesmo a de “autonomia
indivisa”)?

É nesse sentido que nos parecem se colocar os sinais de E. Viveiros de


Castro: “a indivisão sobre a qual insiste Clastres significa a ausência de
diferenças ‘verticais’, isto é, entre dominantes e dominados. Mas tal indivisão,
longe de inibir (...) engendra ou mesmo requer a proliferação de divisões

16
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência in Arqueologia da violência, p. 249.
‘horizontais’ dentro da comunidade”17. A indivisão interna da comunidade está
envolvida com seu pluralismo e sua rivalidade interiores, seu potencial de
produção diferencial e diferenciante internos. O agôn primitivo e sua
disseminação de rivalidades e alianças, a diversidade interna do núcleo
comunitário, surgem como a condição real do bloqueio da divisão. É, afinal, a
divisão (ou diferença ‘vertical’) o motor do aniquilamento da diferenciação
interna da comunidade e sua transformação em uma série de identidades (ou,
ainda, de diferenças específicas não-comunicantes), enquanto é o próprio
procedimento de diferenciação ou variação interiores que impede a
segmentação identitária que faria surgir uma divisão. Se a atomização dispersiva
das comunidades existe, ela é o efeito da interiorização da diferenciação na
comunidade de modo que “a lógica da guerra determina univocamente a lógica
da chefia”18, e a própria força centrífuga é, em sua atividade de fragmentação,
resultado de uma dinâmica intensiva na indivisão comunitária.

Clastres, ainda que levado pela fraseologia da lógica do Múltiplo discreto


em determinados momentos, ainda assim parece sabê-lo. O que a sociedade
primitiva deseja, em última instância, não é o Múltiplo: o que “os selvagens querem [é]
a multiplicação do múltiplo”19. Ou ainda, o que querem é a razão suficiente da
produção do Múltiplo, aquilo que constrói sua gênese e que é como que o lado
avesso de sua imagem discreta, de uma série de pequenas unidades atômicas,
em suma, as sociedades primitivas querem apenas o lado selvagem do Múltiplo.

Talvez seja exatamente dessa mesma maneira que o problema retorna e


se recoloca para os metafísicos Guarani. O karaí, profeta e instrumento dos
deuses, sabe ouvir muito bem as verdades sopradas por Tupã aos Últimos

17
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O intempestivo, ainda in Arqueologia da violência, p. 350.

18
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O intempestivo, ainda in Arqueologia da violência, p. 351.

19
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência, in Arqueologia da violência, p. 248.
Homens. Ywy mba’emeguá, a Terra imperfeita, morada dos guarani é o território
da desgraça, e o é porque “as coisas em sua totalidade são uma: e para nós que
não desejamos isso, elas são más”20. Porque não se deseja o Um? A Terra má,
habitada pelos homens, é a Terra do Um, a Terra em que as coisas são Uma.
Não tanto por formarem uma unidade “superior” ou um Todo universal, mas
pelo fato de que as coisas estão “gravada[s] pelo selo maléfico do Um”21, de que
são, em relação a si mesmas, uma só e mesma coisa. Aquilo que é um em si e para
si mesmo idêntico, é também o limitado, o finito ou o corruptível, apontam os
guarani. O Um é a morte, porque o Um é o Finito, o incompleto, porque é
aquilo que só pode ser o que é e que não pode ser outra coisa – um mundo em que
homens são apenas homens e não deuses, e em que a transformação ou a
diferenciação capaz de ultrapassar o delimitado, o unificado, são exorcizadas. O
Um é a repetição nua ou repetição do mesmo, morte incessante. E se as grandes
migrações guarani em busca do tempo perdido, da Terra sem Mal, ywy marã-eÿ
se intensificaram no exato momento em que o Estado começava a surgir entre
os Tupi da costa leste da América do Sul, tudo parece se passar como se os karaí
compreendessem muito bem o que Platão havia dito: a unidade das coisas, a
identidade dos elementos constituintes da sociedade, é ditada pelo Uno – isto
é, pelo Estado ou pelo poder que se instaura como instância de comando
separada do corpo social, como poder transcendente – como condição da
imposição normativa da ordem, da distribuição harmônica dos elementos no
arranjo social em uma divisão social das atividades.

Assim, o que buscam os Guarani ao buscarem ywy marã-eÿ, o que buscam


em sua “insurreição ativa” contra o Um? O Múltiplo? De modo algum, “pois eles
não descobrem o Bem, o Perfeito, na dissolução mecânica do Um”22. O que quer

20
CLASTRES, Pierre. Do Um sem o Múltiplo in A Sociedade contra o Estado, p. 185.

21
CLASTRES, Pierre. Do Um sem o Múltiplo in A Sociedade contra o Estado, p. 187.

22
CLASTRES, Pierre. Do Um sem o Múltiplo in A Sociedade contra o Estado, p; 187.
dizer isso? Ainda mais uma vez, tudo se passa como se lutando contra o Um, de
alguma maneira os Guarani soubessem do mesmo modo que pouco importa
combatê-lo, como Grande Um enquanto toda coisa for, em si mesma uma, e
conservar a regra do Um. O Múltiplo, como agrupamento de unidades é a
sombra e a divisão do Um, e a sociedade de indivíduos e que as coisas são todas
uma não pode deixar de ser uma sociedade com Estado na exata medida em
que o Um é a regra e a partilha dos elementos, como aliás e às avessas Hobbes
sabia muito bem. Diante desdobramento do Um em harmonia e simplicidade
pouco importa se se crê na “dissolução mecânica do Um”: trata-se também de
fugir do fantasma de um Múltiplo unificado, e o Um subsiste como Lei tanto
quanto subsistirem simplicidade idêntica e harmonia (e uma não pode existir
sem a outra). Qual é, então, a linguagem da Terra sem Mal, da Terra sem Um?
É aquela que diz que “isto é isto e ao mesmo tempo aquilo, que os Guarani são
homens e ao mesmo tempo deuses”:

“Na região do não-Um, onde a infelicidade é abolida, o


milho cresce sozinho, a flecha traz a caça àqueles que não têm mais
necessidade de caçar, o fluxo regrado dos casamentos é
desconhecido, e os homens, eternamente jovens, vivem
eternamente. Um habitante da Terra sem Mal não pode ser
qualificado univocamente: ele é um homem, sem dúvida, mas
também o outro do homem, um deus. O Mal é o Um. O Bem não
é o múltiplo, mas o dois, ao mesmo tempo o um e seu outro, o dois
que designa verdadeiramente os seres completos. Ywy marã-eÿ,
destinação dos Últimos Homens, não abriga mais homens, não
abriga mais deuses: somente iguais, deuses-homens, homens-deuses,
tais que nenhum deles se diz segundo o um.”23

23
CLASTRES, Pierre. Do Um sem o Múltiplo in A Sociedade contra o Estado, p. 188.
O dois, longe de ser um simples par de unidades, é o signo de uma
diferença interna, ou de uma transformação coexistente, inconfundível com a
simples sucessão de idênticos: pode-se ser homem e deus, pode-se passar de um
a outro sem que a passagem aniquile um dos termos.

Muito mais do que o Múltiplo, a totalidade uma e a indivisão identitária,


não seria a lógica primitiva a lógica da “multiplicação do múltiplo”, da razão de
sua produção, da totalidade dual e de uma indivisão diferenciante? Afinal, ainda
uma última vez talvez tudo se passe como se em seu ímpeto de recusa do Um, os
profetas Guarani tivessem intensificado a seu limite insuportável a abertura
intensiva que faz das sociedades primitivas sociedades “da multiplicação do
múltiplo”, ou sociedades-para-a-guerra, e não apenas sociedades do Múltiplo
ou sociedades-contra-o-Estado. Talvez fosse, no limite, o caso de recusar às
sociedades primitivas uma pura e simples repetição idêntica de seu ser social.
Seria preciso que sua totalidade não fosse fechada e ao mesmo tempo que a
indivisão não fosse a unidade. A própria afirmação da identidade (ou da
diferença específica, o que é o mesmo) deveria se tornar completamente
subordinada à afirmação do centrífugo ou da dispersão, mas do mesmo modo
seria preciso que a dispersão não fosse a atomização (a formação de unidades
idênticas e discretas), que não se opusesse à associação. Tudo parece indicar que
talvez Clastres não possuísse o aparato conceitual para lidar com a lógica de
multiplicação social primitiva. Ou, talvez, seja nosso momento que o
impossibilite: contra o Grande Um, talvez não possamos mais, ou não o
desejemos, ou ambos, afirmar o pequeno um. Talvez seja essa exigência que nos
leve a tornar ainda mais preciso o arsenal conceitual que transparecia no fundo
da antropologia política clastriana. Mas a verdade é que para além de uma
aparente inadequação conceitual, o tema da multiplicação do múltiplo faz com
que Clastres seja, ao lado de Bergson – o mesmo de quem Lévi-Strauss apontava
as afinidades profundas com o pensamento selvagem –, um dos grandes
inventores da noção de multiplicidade intensiva, i.e. de um tipo de
multiplicidade que é a razão de produção da diversidade, que não pode ser
confundida com um conjunto enumerável de elementos discretos e
autorreferenciados, cada um deles um em si mesmo, mas que é a coexistência
de diferenças internas em um mesmo campo.

Mais ainda, Clastres nos mostra o sentido profundamente político das


noções de unidade e identidade: se o Estado é o Um e o Um é o Mal é porque
o Estado – e as sociedades de classe que ele efetua, que se confundem, em certo
limiar, com a própria forma do Estado – não pode deixar de operar segundo a
regra da unidade e da identidade. Uma vez para afirmar a finitude e a
determinação de seus súditos-elementos: o governante governa, e exclui disso
o artesão, o artesão trabalha, e essa atividade é exterior ao governo, a todo
homem está vedada a possibilidade de ser uma mulher, e nenhuma mulher pode
exercer as tarefas que cabem a um homem. Duas vezes para, com a
possibilidade de identificar e fixar os elementos, distribuí-los em uma grande
unidade orgânica segundo a justiça, segundo a ordem do Estado-Um. A lógica
da identidade é inseparável da lógica da divisão social do trabalho, da
estratificação e da divisão do campo social em classes, e nenhuma lógica da
identidade é capaz de operar fora desse regime de segmentação social.

Quanto a lógica inversa, a da multiplicação do múltiplo, a operação que


ela realiza não é exatamente a inversa? Negando a finitude idêntica dos
elementos, superando as identidades discretas e fazendo de um, muitos, não é
ela o signo de uma destruição da divisão social do trabalho, do fim da divisão e
da instauração de um campo social que, indiviso, é, por isso mesmo, produtor
de todas as diversidades comunicantes? É, talvez, pressentindo o mesmo
problema que um jovem comunista escreverá em 1845, n'A Ideologia Alemã:

“Logo que o trabalho começa a ser distribuído [em uma


sociedade de classes], cada um passa a ter um campo de atividade
exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode
escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico e
assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida – ao
passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um
campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os
ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me
confere, assim, a possibilidade de fazer hoje isto, amanhã aquilo, de
caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de
gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha
vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou
crítico.”24

Bibliografia

CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify,


2003.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo:


Boitempo. 2007.

PLATÃO. La République in Oeuvres complètes. Paris : Gallimard, 1950.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel,


2008.

24
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, A Ideologia Alemã, p. 37-38.

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