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"A coletividade cria seu próprio inimigo interno,

partindo do que ela mesma oprime e que, ao mesmo


tempo, lhe é essencial, quer dizer, do feminino."
Hegel

Estamos diante de um conjunto d_e textos que abrange desde


escritos clássi~os sobre. a instituição da família até seu novo perfil
determinado pelo impacto . das transformações sócio-econômicas aus~
piciadas pelo capital monopolista. Os primeiros ensaios contam uma
história: a da constituição da família monogâmica . e patriarcal e _da
consolidação da propriedade privada. As raízes psicanalíticas da do-
minação patriarcal são iluminadas pelo traba/,ho de Freud, a partir
da hipótese da "rebelião _antropológica" primordial do assassinato do 1~---
Pai autoritáro e despótico da "horda primitiva" que tomava para si
todas as mulheres do grupo. O crime cometido teria deixado marcas
indeléveis na memória coletiva dos filhos, vinculando a sexualidade
ao sentimento de culpa e à dor provocada pela ausência paterna, si-
multaneamente fonte de proteção e de castração psíquica.
O contraponto à organização patriarcal da sexualidade está em
Malinowsky, nas análises do comportamento sexual ·das. crianças e
adolescentes nas tribos Trobriand da Malanésia, em grupos onde
vigora o matriarcado, a "democracia do trabalho" e a regulamentação
não repressiva dos jogos amorosos. Tais reflexões a respeito do ma-
triarcado influenciariam toda uma corrente de pensamento e em par-
ticular a obra de Reich. Em A Revolução Sexual, Reich 'fat coincidir .
a irrupção da moral sexual, do sentimento de culpa e _de pecado com ~
0
advento da sociedade patriarcal e de classe. Com isto prepara as
análises que desenvolveria em sua Psicologia de Massas do ~ascismo,
➔ onde apresenta a família como um modelo reduzido do Est d
O
ritário. A família patriarcal .teria assim o papel fundamen~l auto..
primir a sexualidade infantl e do adolescente, forjando egos
temerosos e culpados, obedientes, disciplinados, ávidos de aut r~gezs,
/e r~..

.
e incapazes I er,dade. A fami;1•ia seria
de 1·b . . a inst
· ância º"
· por excelên d.ade
produzir a ' 'servi·d-
ao voluntária · a necessi·dade de um .eia a
· " e a criar
tituto ao "pai· autorit· ário
· " - o dºt l ador .fascista.
· Desse modo R.suba ,. ..
·
estabelece um elo ime. d,ato
• entre o fortalecimento
. da famui·, eich
a eo
Estado fascista. No entanto, é interessante lembrar Grego, Zi
.. . Ih
que mostra o Ienomeno inverso: as mu eres na Alemanha na'7·
. emer
-) . , . . ~ista
eram conclamadas a maternidade para consolidar o "Reich dos mil
anos','; daí a exaltação da maternidade fora dos quadros de legitimi-
dade tradicional. Em outros palavras o autor mostra de que maneira
as condições de existência no Estado nazista, de preparação da guerra,
determinaram a debilitação da instituição familiar. E bem verdade,
porém, que Reich apresenta modelos exemplares de análise de ideo- ·
logia no que diz respeito aos sentimentos nacionalistas e patrióticos,
mostrando de que maneira a angústia sexual, o medo de contami-
nação venérea e a ·angústia da separação da figura materna foram ,
mobilizados, a nível simbólico, para servir de base caracterial ao
misticismo nacional. Reich mostra, no presente texto, 'como a massa
-,__,,... é tratada µelo ditador como "essencialme!",te feminina", necessitando
de _um guia para conduzir a bom termo o "desejo de um censor" por
parte da pequena burguesia temerosa e autoritária. Este trabalho
chama .a atenção para a forma pela qual a política fascista do grande
capital monopolista atravessa a relação familiar, mediada pela situa-
ção de subserviência e desprovimento de direitos econômicos e sexuais
das mulheres e crianças na família patriarcal.
No trabalho de Marcuse, temos a concepção hegelianl:J da famí-
lia burguesa, as relações de propriedade . que a sociedade civil esta-
belece e que o Estado sanciona. A família seria. deste pont~ de
vista, o conteúdQ ético da sociedade civil cuja instdncia :.~niversali-
zadora · seria o Estado. -
Em seguida a coletdnea reúne textos voltados para à situação da ·
família na ·modernidade, de Adorno e Horkheimer, passando pela
a1J,tipsiquiatria até a feminista J. MitcheÍl. Y emos então configurare~-
se as novas circunstdncias ·hsi6rico-sociais da famtlia e da condiçáO
feminina, o metabolismo entre a sociedade globai e O núcleo privado,
a esquizofrenia masculino-feminina, o papel patogênico das relações
familiares que se transmite pela biografia dos progenitores, suas an-
siedades e frustrações ancestrais que abrem caminho à psicose no
âmbito familiar. O q_ue torna· instigante esta "segunda parte" é justa-
mente o confronto de pelo menos dois pólos analíticos que se excluem,
ambos tratando da condição feminina e do sentido que a família
adquire diante das novas questões colocadas pela sociedade industrial-
produtivista. Por um lado a abordagem de J. Mitchell, que em nome _
de um certo marxismo procura aliar a libertação da mulher do estreito
espaço da vida doméstica para o amplo espaço do trabalho produ-
tivo à sociedade industrial avançada, que, ao determinar o registro
de "todas as forças produtivas", cria a necessidade de creches e da
escolarização precoce das crianças (o que libera, segundo a autora, a
mulher da maternidade prolongada, etc.), pré-requisitos da emanci-
pação feminina. E este horizonte que possibilita criticar a família
burguesa fundada na desigualdade entre os sexos, na desigualdade
produtiva do homem e da mulher, na qualificação profissional inferior
da mulher em relação ao homem, na necessidade da exigência de
anticoncepcionais para uma sexualidade não voltada à reprodução e
de defesa do homossexualismo como dimensão sexual autônoma.
· Por outro lado, o pólo dissonante a uma tal concepção se ela-
bora no trabalho do psicanalista Mitscherlich, de Frankfurt, que ana-
lisa em particular o fenômeno do esmaecimento da figura paterna
em uma sociedade que. enfraqu_ece sua base de dominação econômica
e rompe com os padrões tradicionais de autoridade e proteção de
que era portadora. Nesse sentido é que se torna provocante a con-
cepção de Adorno e Horkheimer: · "a família em crise, diz Horkhei-
mer, produz as atitudes que predispõem os homens a uma submissão
cega". Até certo ponte>, Horkheimer e Adorno acatam a visão hege-
liana da família como salvaguarda de resistência ética contra a desu-
manização social, o que está ilustrado · no episódio da Antígona a
~6focles, na oposição entre família e sociedade. Ao violar a lei da
· polis e ao se obstinar : em enterrar o irmão Polinice, Antígona faz
valer a força religiosa que não poderia encontrar sentido nos editos
da autorit!,ade da polis: "não há neles, diz Antígona, nenhum poder
de separar-me dos meus". Os laços de sangue ·são razão mais forte
d o q ue as razões do Estado: "Pois jamais, nem se eu foss ~
.. e mae d
. cr..;anças, nem se meu marido morto apodrecesse, contra a força d0e
·ci·dadãos eu assumiria essa _tarefa. Em nome de que lei d º . s
. . . igo isso?
Morto meu marido eu ter,a outro, e um filho de outro hom ·
. em se o
perdesse, mas, já ~ncobertos pelo Hades meu pai e _minha mãe, não
tenho irmão que ainda florescesse. Por semelhante lei é que te r .
.
as honras fúnebres .
,, O . f ·t l
sentimento ami ia se exerce em I6rmul
P este,

pré-juridicas e não escritas. Neste sentido, Horkheimer aponta O d as


compasso entre a família na época do liberalismo burguês e a famí;:-
contemporânea. Na primeira, a autoridade acompanhava a figura d:
provedor econômico, . bem como sua superioridade física sobre os
filhos. Era, pois, ele, o chefe "natural" e "racional" da família. Com
-\) a decadência da autoridade paterna produz-se uma transferência· da
sua "aura .m etafísica" para instituições externas à família: tais insti-
tuições desfrutam da mesma imunidade de crítica de que gozava 0
pai na família liberal. Horkheimer e Adorno não estão porém desa-
tentos ao fato de que a família burguesa é também um momento de
alienação e desumanidade, já que a sociedade civil é dominada pelo
valor de troca que invade a família e desfigura seu "lado ético". Uma
ética matriarcal de cordialidade, aceitação e amor que dominava a
relação da família se esfacelou sob o impacto da universalização do
trabalho produtivo e alienado, de tal forma que homens e mulheres
estão se convertendo em "meros agentes da -lei do valor" e à condição
de "absoluta Jolidão de um· objeto sem · f!,efesa". Esta decadência do
elemento "nega"tivo" que representa a família diante do onipresente
valor de troca é que "re-dialetiza" os "valores femininos" de recep-
tividade, não agressividade e não violência- atribuídos à mulher na
história da dominação patriarcal. Marcuse observa ao longo de suas
obras que o menos mporiante aqf:li é saber se foram os homens
a projetar esta imagem de mulher. O importante é o papel histórico-
social que cumprem tais qualidades, na medida em que são portador~
de uma promessa de felicidade. Marcuse designou uma sociedade cuJO
" principio
· , · de realidade" seria feminino e não masculino como "so·
ciedade andrógina", com o que não queria significar que O homem
se convertesse em mulher ou a mulher em homem: "Significa apenas
que O homem e a mulher realizem em todas as esferas .
da soei
·edade,
a I . . . , . que
que as qualidades que -/oram reprimidas no curso da história,
DIALtTICA DA FAMfLIA 11

ram constrangidas ao silênt1o e confinadas à esfera privad~. A


O
f
idéia de uma socie• d ad e an d rog,na
' . parte d o pressuposto
- d e que se
requer um tipo de homem e de mulher completamente distinto do~
atuais". Nas qualidades ditas femininas habita _um outro princípio
de realidade, em conflito com o princípio de rendimento capitalista e
produtivista. A história da dominação patriarcal fez com que, segundo .
Adorno, a mulher perdesse "sua essência", passando, pois, a conceber
sua liberação em termos masculinos.
S nesta conjuntura, que Marcus e verá em Eros um fator decisivo
de emancipação, pois este em tudo contradiz a sociedade global, -cons-
tituindo uma força revolucionária e subversiva. As novas relações entre
homens e mulheres não podem, portanto, ser elaboradas dentro dos
quadros de exploração e dominação crescentes, sob o signo da agres-
sividade e da crueldade do princípio de rendimento. As relações desa-
lienadas entre os sexos e a realização plena do amor só podem se dar
graças e através do Eros político que engendrará a civilização p°or su-
blimação "não repressiva" contra o caráter sadomasoquista da civi-
lização contemporânea.

Olgária C. F. Matos

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