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Para que serve um professor nos dias de hoje? Qual seu papel? Ele deve ser
um expositor de conteúdos? (Mas há videoaulas no Youtube que podem ser mais didáticas do
que o melhor de nós.) Ele deve ser uma fonte de referências bibliográficas? (Uma pesquisa
simples no Google é capaz de retornar mais indicações do que as que sairiam da boca de um
erudito medieval.) Ele deve fomentar o espírito crítico em seus alunos? (O que é o espírito
crítico dos alunos? O que é o espírito prosélito do professor?) Qual deve ser sua postura
diante da turma: um amigo (mas a amizade se instrumentaliza em posturas estratégicas de
lado a lado); um déspota esclarecido (mas nenhum despotismo pode esclarecer); um veículo
neutro de informação (mas neutralidade não existe; nem em si nem na informação)?
No acesso à sua farta biblioteca; na leitura (de verdade!) dos textos produzidos
por seus orientandos; nos comentários em suas disciplinas; na disponibilidade de receber
alunos; no resgate dos clássicos, Paulo Galvão sempre soube ser professor acessível e
1
Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ. Professor da Universidade
Veiga de Almeida. Doutor e mestre em Direito Público (UERJ). Master of Laws pela Universidade de Harvard
(EUA). Procurador do estado e advogado no Rio de Janeiro (jose.vicente@terra.com.br).
instigante. Soube, afinal, encontrar o propósito da docência numa era de transformações: ser
professor é focar o equilíbrio. Ser uma liga, um ponto de apoio.
II - Introdução.
Como se vê, muita coisa mudou, desde então, na biografia dos envolvidos. É
natural que mudanças também hajam ocorrido em relação à vedação do retrocesso. Em
primeiro lugar, o tema, que, em 2002, era relativamente desconhecido, quatorze anos depois
se tornou célebre. Mas, junto com a fama veio o excesso: hoje, - e essa é uma das hipóteses
do texto -, utiliza-se o princípio de maneira contrária a certa inteligibilidade racional. Tal
como uma estrela, que, ao explodir, lança milhões de micro-partículas no universo, e as mais
distantes acabam mantendo apenas leve semelhança com a matéria original, a vedação do
retrocesso é, hoje, noção fuzzy.
Diante disso, justifica-se a pergunta do título: era melhor quando, por medo ou
ignorância, evitávamos (ou desconhecíamos) o argumento? A resposta decerto é negativa,
mas a indagação sublinha a importância de se articular usos metodologicamente controlados
do princípio, sob pena de, ao crê-lo bálsamo da sociedade, fazê-lo veículo da trivialidade.
2
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. In:
BINENBOJM, Gustavo. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro.
Vol. XII (Direitos Fundamentais). Rio de Janeiro: 2003. pp. 205-236.
O item V, central ao texto, propõe um uso controlado do princípio. O item VI encerra o artigo
com algumas rápidas palavras.
3
No artigo de 2002 (o artigo é de 2002, mas a coletânea em que foi impresso saiu em 2003), mencionei as
seguintes denominações: vedação do retrocesso, vedação do retrocesso social, proibição do retrocesso, eficácia
impeditiva do retrocesso, não evolução reacionária, proibição da contrarrevolução social. Algumas dessas
denominações parecem fazer referência a outros conteúdos que não ao de princípio constitucional relacionado à
eficácia de normas jurídicas. Assim, a expressão proibição de contrarrevolução social conota, antes de tudo,
conteúdo político. Todas as vezes que a expressão se faz acompanhar da palavra "social", há uma limitação do
espectro de abrangência: o princípio só dirá respeito àquele campo. Outros autores preferem falar de uma "teoria
da irreversibilidade". Parece-me que a maior parte das incidências da noção se faz sob o rótulo de "proibição do
retrocesso". Há cerca de dez anos, outra denominação passou ao registro público brasileiro, com inspiração
francesa: efeito cliquet, que seria o clique da trava do mosquetão. Em outros países, o assunto é tratado sob os
mesmos rótulos (Verbot des sozialen Rückschritts; standstill; effet anti-retour).
4
Há, hoje, extensa bibliografia nacional sobre o tema. V., dentre tantos, por ex., TAVEIRA, Christiano de
Oliveira; MARÇAL, Thaís Boia. Proibição do retrocesso social e orçamento: em busca de uma relação
harmônica. Revista de Direito Administrativo. v. 264. dez 2013. DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de
retrocesso social na constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renova, 2007. MARTINS, Patrícia do Couto Villela
Abbud. A proibição do retrocesso social como fenômeno jurídico. In: GARCIA, Emerson (Coord.). A
efetividade dos direitos sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. pp. 379-424. SARLET, Ingo. Notas sobre a
assim designada vedação do retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. In: Revista TST. Vol. 75.
Brasília, 2009.
5
Não se está pretendendo simplificar as complexas relações entre direito e política. De fato, nem o direito
(entenda-se: a doutrina) é neutro, nem a política se faz sem apelo a argumentos jurídicos. O crescente fenômeno
mundial da judicialização da política mostra como tais relações não podem se resumir a pretensões de purismo
(do direito em relação à política). O ponto do texto é outro: é que certos usos da vedação do retrocesso partem
A segunda acepção de vedação do retrocesso significa que, uma vez tornada
aplicável, pela edição de lei, norma constitucional até então não auto-aplicável, esta lei não
pode ser revogada por inteiro, ainda que possa ser alterada por outra lei ou revogada em
parte. Observe-se que, nesta acepção, o legislador pode, inclusive, reduzir direitos. O que ele
não pode é revogar a lei por inteiro, sem colocar nada no lugar. Esta modalidade de vedação
do retrocesso, embora direcionada ao legislador, pode ser estendida ao administrador, quando
este atua como regulamentador constitucional.6 Em 2002, chamei esta acepção de vedação
genérica do retrocesso, porque ela dizia respeito a todas as normas da constituição, e não
apenas a normas constitucionais com certo conteúdo específico.
da premissa de que se trataria de argumento jurídico, ainda que com vistas a propósitos políticos. Contudo, são
usos que não respeitam a diferenciação mínima entre as searas.
6
Por exemplo: o art. 237 da constituição fala que a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior,
essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda. Digamos,
então, que se edita regulamento que estabelece a forma e os critérios desta fiscalização do Ministério da
Fazenda. Este regulamento não poderia ser revogado pura e simplesmente.
7
BARROSO, Luís Roberto. BARROSO, Luís Roberto (2006) [1984]. O Direito Constitucional e a Efetividade
de suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 [1984].
do Estado, então não se deve permitir que ela possua menos eficácia jurídica por obra do
legislador infraconstitucional.8
Por fim, há terceira acepção para a vedação do retrocesso. Por ela, grosso
modo, não pode haver redução na qualidade dos direitos fundamentais sociais já efetivados. 10
Na monografia, chamei-a de vedação específica do retrocesso, pois se tem que só diga
respeito aos direitos sociais. Mas, por idênticas razões às da outra modalidade, creio que o
nome não é adequado. Proponho vedação do retrocesso da eficácia social das normas
constitucionais, ou, apenas, vedação do retrocesso da efetividade constitucional.
8
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1991.
9
É por isso que existe mandado de injunção: para buscar concretizar esse direito a um regime de aplicabilidade
jurídica.
10
Por redução na qualidade dos direitos sociais já efetivados, entenda-se que incluam (i) alterações legislativas e
regulamentares; (ii) redução de prestações materiais; (iii) alterações organizacionais.
11
Jorge Reis Novais faz observação interessante: por que ninguém sustentaria, em paralelo, a existência de um
princípio constitucional da proibição do retrocesso liberal? NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria
jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pp. 83-85.
12
PEREIRA DA SILVA, Jorge. Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas.
Lisboa: Universidade Católica, 2003. p. 281.
mesmo, redução da proteção trazida pela legislação social, desde que cumpridos dois
requisitos: (a) que a alteração/supressão respeitasse o mínimo existencial; (b) que, junto com
a alteração/supressão, fosse fornecida uma alternativa proporcional.13
É claro que estes requisitos não resolvem o problema. O que seria "fornecer
uma alternativa"? Bastaria justificar a alteração? Quem apreciaria se a alternativa oferecida é
válida? Como garantir qualidade dos direitos sem inibir o experimentalismo democrático?
Tais dúvidas, importantes para um argumento que, no limite, poderia pretender justificar até a
inconstitucionalidade de emenda à constituição que reduzisse direitos, restaram intocadas no
texto de então. Seja como for, representam insights úteis; pontos a partir de onde se pode,
quatorze anos depois, retomar o assunto.
13
Christian Courtis faz distinção entre regressividade de resultados - resultados piores das políticas públicas - e
regressividade normativa - redução da amplitude dos direitos. Um texto jurídico só pode tratar da regressividade
normativa. V. COURTIS, Christian. La prohibición de regresividad en materia de derechos sociales: apuntes
introdutorios. In: COURTIS, Christian. (Org.) Ni un paso atrás: la proibición de regresividad en materia de
derechos sociales. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. pp. 3-52.
14
Não se vai chamar o exercício deste item de pesquisa empírica ou, sequer, de pesquisa, porque não se trata
disso. É, apenas, um levantamento de decisões judiciais.
15
Agradeço ao doutor João Augusto Michelazzo Bueno pelo levantamento jurisprudencial.
Optei por analisar apenas as decisões da justiça estadual porque acredito que é
nela que a grande maioria das causas envolvendo questões da vida se desenrola. A justiça
federal, por suas características de justiça privativa da União, acaba concentrando demandas
de servidores públicos, causas previdenciárias e tributárias, e ações envolvendo bancos
públicos (leia-se: Caixa Econômica Federal). Levantou-se dados apenas de decisões de
segunda instância - ou seja, dos tribunais, e não dos juízes singulares - porque é por lá que a
maioria das causas são julgadas de fato e de modo definitivo, eis que recursos especiais e
extraordinários raramente são admitidos, quiçá providos.
19
O acórdão, no entanto, está superado na jurisprudência portuguesa. Hoje, ao que notam professores
portugueses, ele só é referido de modo descafeinado, para se dizer que não é mais aplicável. V. BOTELHO,
Catarina Santos. Os direitos sociais em tempos de crise, ou: revisitar as normas programáticas. Coimbra:
Almedina, 2015. pp. 443 et seq.
20
O mesmo trecho é utilizado, por Celso de Mello, em diversos casos. Ele é o ministro que mais identifica
hipóteses de incidência da vedação do retrocesso. De modo geral, ele parece associar uma situação de omissão,
tida por inconstitucional, a um retrocesso constitucionalmente vedado. Exemplificativamente, ele mencionou,
direta ou indiretamente, a incidência do princípio em casos de ausência de implantação de defensoria pública; no
dever de custeio público do atendimento de pacientes do SUS, atendidos por instituições privadas, quando da
ausência de leitos públicos (ARE 727864); em caso em que se discutia omissão inconstitucional de município
ao não instituir rede de proteção e assistência à saúde da criança e do adolescente (ARE 745745).
entendesse pela revogação da figura regimental dos embargos infringentes no rito do
Supremo, haveria retrocesso na implementação do direito à ampla defesa dos réus da ação
penal. O ponto foi rejeitado pelo STF. O ministro Fux observou que, se não há exatamente
progresso na existência de embargos infringentes, não haverá retrocesso em sua inexistência.
Em outra ADI (ADI 4543), contra lei que obrigava a impressão do voto, há
utilização curiosa do argumento. A ministra Carmen Lúcia, relatora, observa que, para ela, há
vulneração ao que chama de "princípio do retrocesso político", aplicável tanto na seara dos
direitos sociais quanto no dos eleitorais.22 Na opinião da ministra, as urnas eletrônicas seriam
conquista histórica, que acrescentaria aos direitos de cidadania do Brasil. O voto impresso
implicaria retrocesso inconstitucional.
21
No seguinte trecho: "4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação
de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso
básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito
eleitoral."
22
Em suas palavras: "Tenho por aplicável esse princípio também aos direitos políticos e ao caso presente,
porque o cidadão tem o direito a não aceitar o retrocesso constitucional de conquistas históricas que lhe
acrescentam o cabedal de direitos da cidadania."
"(...) E, à falta de norma constitucional derivada, revogadora do art. 7o, XVIII, a pura e
simples aplicação do art. 14 da EC 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará um
retrocesso histórico, em matéria social-previdenciária, que não se pode presumir desejado."
(O destaque foi acrescentado.) A decisão, então, emprestou interpretação conforme ao artigo
da emenda, para que a licença-gestante fosse excluída do teto de R$ 1.200,00.
De todos esses casos, escolheu-se duas decisões para análise mais detida. No
RESP 1472945/RJ, relator Ricardo Villas Bôas Cueva, em que se discutia questões de direito
das sucessões, a ementa observa o seguinte: "2. O intuito de plena comunhão de vida entre os
cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente
no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código
Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social." Não
se trata, aqui, de fundamento da decisão, mas de apreciação - política - da alteração
legislativa, que serve de razão de apoio à decisão.
Vamos, agora, aos tribunais locais. Comecemos por São Paulo, em que se
encontra vinte e duas aparições, nas ementas, de "proibição do retrocesso". Pode-se catalogar
as decisões do TJ-SP em duas tendências: (i) uma incidência da vedação do retrocesso
ambiental; e (ii) uma sinonímia entre vedação do retrocesso e teoria do fato consumado (isto
é: o retrocesso vedado decorreria da consolidação de um estado de coisas).
24
A referência da decisão é: Relator: Moreira Viegas; Comarca: Vinhedo; Órgão julgador: 1ª Câmara Reservada
ao Meio Ambiente; Data do julgamento: 27/06/2014; Data de registro: 30/06/2014.
25
A referência da ADI estadual é: Relator: Paulo Dimas Mascaretti; Comarca: São Paulo; Órgão julgador:
Órgão Especial; Data do julgamento: 04/06/2014; Data de registro: 10/07/2014; Outros números:
199748622013826000050000.
26
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROGRESSÃO ESCOLAR. CONCESSÃO DE LIMINAR EM
MANDADO DE SEGURANÇA. INFORMAÇÕES PRESTADAS QUE NOTICIAM QUE OS MENORES
FORAM DEVIDAMENTE MATRICULADOS NA SÉRIE PRETENDIDA, COM DESEMPENHO
PLENAMENTE SATISFATÓRIO E REGULAR CONCLUSÃO, BEM COMO INCLUSÃO NA SÉRIE
SUBSEQUENTE NO ANO LETIVO VIGENTE. APLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO
CONSUMADO. PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO
DESPROVIDO. (Relator: Claudia Lucia Fonseca Fanucchi; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: Câmara
Especial; Data do julgamento: 11/03/2013; Data de registro: 12/03/2013). (O destaque foi acrescentado.)
APELAÇÃO. PENSÃO POR MORTE. REDUTOR. NÃO CABIMENTO. EC N. 47/2005, ART. 3º,
PARÁGRAFO ÚNICO. INCIDÊNCIA. Servidor Público estadual aposentado desde 1983, integrante do
Ministério Público Estadual. Situação já consolidada, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da
proibição do retrocesso, a pensão deve ser paga integralmente, nas mesmas bases em que o servidor falecido
recebia seus proventos, nos termos da EC n. 47 de 2005 (art. 3º, § único). Requisitos da CF presentes: servidor
que ingressou no serviço público antes de 16 de dezembro de 1998, e na data da publicação da EC n. 41/03 já
estava aposentado, com proventos integrais, porque contava com mais de 20 anos de serviço público efetivo, 10
anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo. Não incidência no caso da Lei Complementar
Estadual n. 1012/2007. Sentença de improcedência. Reforma. APELO PROVIDO. (Relator: Amorim
Cantuária; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento:
15/05/2012; Data de registro: 18/05/2012) (Aqui, também, o destaque foi acrescido.)
Em outro caso, em que a administração da cidade de São Paulo mudou
entendimento a respeito da situação de fato que justificaria a concessão de isenção tarifária no
transporte público a usuário (por problema de saúde), o TJ-SP a manteve, forte em que, a
prevalecer o entendimento da administração pública, "estaria o cidadão alçado à condição de
insegurança jurídica e sob o efeito do retrocesso na efetivação das políticas públicas e dos
direitos sociais do cidadão, o que não convém".27 (Destaques acrescentados.)
27
A referência é: Relator: Aliende Ribeiro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito
Público; Data do julgamento: 05/12/2011; Data de registro: 09/12/2011.
28
Trata-se da apelação cível n. 0021498-36.2014.8.19.0042, relatora a desembargadora Maria Luiza Carvalho,
julgada, em 21 de janeiro de 2016, pela 27a Câmara Cível do TJ-RJ.
29
Deixemos que o próprio professor titular de processo civil da UERJ explique o sentido da expressão: "Põe-se
ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito
destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de
interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele
capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica.” (“O Poder Judiciário e a
efetividade da nova Constituição”, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152).
Em outra questão de direito do consumidor, julgada pela mesma 27a Câmara
Cível, aposentado da Companhia Siderúrgica Nacional informava que, à época da
privatização, incluiu-se, no edital, cláusula garantista dos direitos sociais àquela época
existentes. Ele possuía plano de saúde da CSN, extensível a seus dependentes. A disputa se
dava porque o plano de saúde se recusava a incluir a esposa do autor nas regras do plano
original. Na decisão, falou-se que se haveria de respeitar a proibição do retrocesso social em
face ao "direito adquirido de promessa de benefício futuro de assistência médica pelas
mesmas regras do plano corporativo original". 30
30
Trata-se da apelação cível n. 0030717-69.2012.8.19.0066, sendo relator o desembargador Antonio Carlos
Bitencourt. O caso foi julgado, pela 27a Câmara Cível, em 3 de setembro de 2014.
Ao final do acórdão, Jessé Torres menciona o argumento da vedação do retrocesso, ao sugerir
que o município não poderia encerrar o funcionamento do posto de saúde.31
Pelo que se vê, o TJ-RJ tende a (i) associar vedação do retrocesso ao direito do
consumidor, e, em especial, a planos de saúde; e, (ii) em pelo menos em um caso (o relatado
por Jessé Torres), entendeu que o retrocesso ilícito era o de uma prestação material (o posto
de saúde não poderia ter sido encerrado), e não aquele representado pela edição de uma lei ou
um regulamento.
31
É a apelação cível n. 0006740-04.2008.8.19.0029, sendo relator o mencionado Jessé Torres. O caso foi
julgado, pela 2a Câmara Cível, em 30 de setembro de 2015.
junto à dignidade humana.32 Mas há incidências mais atípicas, ainda que respeitando o padrão
de não autonomia da vedação: quem poderia imaginar, por exemplo, que a vedação do
retrocesso fundamentaria o dever de pagar férias proporcionais, mais um terço, a prefeito que
encerrou o mandato? Pois foi essa a fundamentação da apelação cível n. 70063779219, em
que a ementa registrou:
Tese de que somente o último período aquisitivo poderia ser indenizado ao Prefeito, em razão
da impossibilidade de gozo das férias, face ao término do mandato, que não encontra suporte
legal. Vedação a este direito que viola frontalmente os princípios do núcleo essencial,
vinculação, máxima eficácia e proibição de retrocesso.
32
Apelação cível n. 70068952522 (fornecimento de medicamento), apelação cível n. 70066792110 (obrigação
de o Estado fornecer fraldas geriátricas) e agravo de instrumento n. 70065109381 (ação civil pública que
obrigou o Estado a reformar presídio).
Vedação do retrocesso não é teoria do fato consumado. O retrocesso de que
ela cuida ou é um retrocesso relativo ao nível de eficácia jurídica da norma constitucional, ou,
em incidência polêmica, diz da qualidade do direito. Nada disso são fatos. São direitos.
O que, então, a vedação do retrocesso pode ser para que faça sentido? Quais as
recomendações metodológicas para um uso consequente do princípio?
Quanto ao retrocesso de eficácia jurídica, o uso pode ser pleno. Não há, em
princípio, riscos democráticos que não se compensem pelos benefícios do argumento. O
legislador e o regulamentador, quando tornam aplicável, pela lei ou pelo regulamento,
dispositivo constitucional carente de norma, não podem voltar inteiramente atrás. Podem
regular de modo diferente, e, até, reduzir direitos, mas não podem revogar seus atos sem
colocar nada no lugar.
33
A respeito do tema, seja permitida a referência a LYNCH, Christian Edward Cyril; MENDONÇA, José
Vicente Santos de. Por uma história constitucional brasileira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade.
Mimeo.
(i) Circunscrição material: O princípio da vedação do retrocesso só se aplica a
situações extremas. Os termos utilizados pelo STF permitem que se intua sua circunscrição
material, ou seja, o progresso em relação ao qual há que se vedar o retrocesso. É sobre aquilo
a respeito do que há "consenso básico profundo"; o que está "radicado na consciência jurídica
geral"; as "conquistas históricas que acrescentam o cabedal de direitos da cidadania"; "um
retrocesso histórico que não se pode presumir desejado."
36
Por todos, v. CHANG, Ruth. (Org.) Incommensurability, incomparability, and practial reason. Cambridge:
Harvard University Press, 1998.
(b) Preservar-se o núcleo do direito alterado. Pode-se até reduzir a efetividade
de um direito constitucional que está "radicado na consciência jurídica geral", mas, se ele é
assim tão importante, não poderá morrer. Então, deve ser preservado, ainda que sob outra
forma. Retomando o exemplo: na troca do regime de aposentadoria, da repartição para a
capitalização, preservou-se, afinal, o direito à aposentadoria.
VI - Encerramento.
Pelos próximos anos, ao que parece, não vai haver concurso público em
muitas das unidades federativas do Brasil. É possível que haja aumento da idade mínima da
aposentadoria pública. Direitos vão ser negociados; direitos vão ser perdidos. É retrocesso?
Para muitos, sim. Para outros, será o caminho possível. Para outros, será, talvez, avanço.
***