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Vedação do Retrocesso: melhor quando tínhamos medo?

Uma proposta para um uso


controlado do argumento.

José Vicente Santos de Mendonça1

SUMÁRIO. I - Homenagem ao professor Paulo Galvão. II - Introdução. III -


Vedação do retrocesso: o que é. IV - Como perdemos o medo: usos e desusos
da vedação do retrocesso na jurisprudência. V - Por um uso controlado do
argumento. VI - Encerramento.

I - Homenagem ao professor Paulo Galvão.

Para que serve um professor nos dias de hoje? Qual seu papel? Ele deve ser
um expositor de conteúdos? (Mas há videoaulas no Youtube que podem ser mais didáticas do
que o melhor de nós.) Ele deve ser uma fonte de referências bibliográficas? (Uma pesquisa
simples no Google é capaz de retornar mais indicações do que as que sairiam da boca de um
erudito medieval.) Ele deve fomentar o espírito crítico em seus alunos? (O que é o espírito
crítico dos alunos? O que é o espírito prosélito do professor?) Qual deve ser sua postura
diante da turma: um amigo (mas a amizade se instrumentaliza em posturas estratégicas de
lado a lado); um déspota esclarecido (mas nenhum despotismo pode esclarecer); um veículo
neutro de informação (mas neutralidade não existe; nem em si nem na informação)?

Paulo Galvão é o elemento secreto do direito público da Faculdade de Direito


da UERJ. Ele é a liga, o ponto de apoio. Na fundação e no cotidiano da linha de direito
público do PPGD-UERJ, junto aos professores Luís Roberto Barroso e Ricardo Lobo Torres,
desempenhou papel importantíssimo. Quem quer que tenha realizado prova para ingresso no
mestrado em direito público na UERJ, nos últimos dez anos, leu Canaris e Karl Larenz por
causa dele. (E, esteja certo, foi cobrado nos mínimos detalhes depois disso.) Se é verdade o
clichê de que um professor vive no sucesso de seus alunos, Paulo Galvão, ao formar gerações
de graduandos, mestres e doutores, terá vida ainda mais longa e ainda mais próspera do que já
teve até aqui.

No acesso à sua farta biblioteca; na leitura (de verdade!) dos textos produzidos
por seus orientandos; nos comentários em suas disciplinas; na disponibilidade de receber
alunos; no resgate dos clássicos, Paulo Galvão sempre soube ser professor acessível e

1
Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ. Professor da Universidade
Veiga de Almeida. Doutor e mestre em Direito Público (UERJ). Master of Laws pela Universidade de Harvard
(EUA). Procurador do estado e advogado no Rio de Janeiro (jose.vicente@terra.com.br).
instigante. Soube, afinal, encontrar o propósito da docência numa era de transformações: ser
professor é focar o equilíbrio. Ser uma liga, um ponto de apoio.

II - Introdução.

Este artigo revisita posições que anteriormente defendi a respeito do princípio


da vedação do retrocesso. Em 2002, redigi, sobre o tema, minha monografia de conclusão de
graduação em direito na UERJ, e tive a honra de vê-la publicada numa coletânea sobre
direitos fundamentais coordenada pelo meu então professor de direito administrativo, o
jovem mestrando Gustavo Binenbojm.2

Como se vê, muita coisa mudou, desde então, na biografia dos envolvidos. É
natural que mudanças também hajam ocorrido em relação à vedação do retrocesso. Em
primeiro lugar, o tema, que, em 2002, era relativamente desconhecido, quatorze anos depois
se tornou célebre. Mas, junto com a fama veio o excesso: hoje, - e essa é uma das hipóteses
do texto -, utiliza-se o princípio de maneira contrária a certa inteligibilidade racional. Tal
como uma estrela, que, ao explodir, lança milhões de micro-partículas no universo, e as mais
distantes acabam mantendo apenas leve semelhança com a matéria original, a vedação do
retrocesso é, hoje, noção fuzzy.

Algumas incidências da vedação do retrocesso são usos inconsistentes, quando


não antidemocráticos. A vedação do retrocesso, em alguns casos, serve, até, como estratégia
retórica de trancamento da deliberação democrática.

Diante disso, justifica-se a pergunta do título: era melhor quando, por medo ou
ignorância, evitávamos (ou desconhecíamos) o argumento? A resposta decerto é negativa,
mas a indagação sublinha a importância de se articular usos metodologicamente controlados
do princípio, sob pena de, ao crê-lo bálsamo da sociedade, fazê-lo veículo da trivialidade.

Afora os parágrafos de homenagem ao professor Paulo Galvão e a presente


introdução, este artigo se divide em quatro itens. No próximo item (item III), pretende-se
destacar qual o conteúdo então proposto para o princípio da vedação do retrocesso. No item a
seguir (item IV), vai-se trazer alguns usos do princípio, por meio de referências a ocasiões em
que juízes e tribunais brasileiros fizeram menção, em seus julgados, à vedação do retrocesso.

2
MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. In:
BINENBOJM, Gustavo. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro.
Vol. XII (Direitos Fundamentais). Rio de Janeiro: 2003. pp. 205-236.
O item V, central ao texto, propõe um uso controlado do princípio. O item VI encerra o artigo
com algumas rápidas palavras.

III - Vedação do retrocesso: o que é.

A vedação do retrocesso3-4, na forma como geralmente enunciada pela


doutrina brasileira e portuguesa, por inspiração germânica, significa uma de três coisas. A
primeira acepção - o uso político da vedação do retrocesso -, implica chamar tudo contra o
que não se concorde de retrocesso, e, então, vedá-lo. Leis, atos administrativos, e negócios
bilaterais com os quais não se concorda são representados como retrocedendo, quase sempre
tendo como referência o estado atual de proteção dos direitos sociais e/ou fundamentais, e,
em seguida, são tidos por inconstitucionais.

O uso político da vedação do retrocesso, ao contrário dos outros, possui


característica singular: é dissimulado. A despeito de comum na prática, nenhum autor,
advogado ou juiz quer parecer que está juridicizando, deste modo imediato, preferências
políticas. Este uso não é, por certo, jurídico: ele se apropria discursivamente de categorias
jurídicas - a noção de princípios e de princípios constitucionais; a ideia de direitos
fundamentais -, mas não é, em si mesmo, argumento com embocadura jurídica.5 É estratégia
política que, ao partir da linguagem jurídica, busca criar empatia social.

3
No artigo de 2002 (o artigo é de 2002, mas a coletânea em que foi impresso saiu em 2003), mencionei as
seguintes denominações: vedação do retrocesso, vedação do retrocesso social, proibição do retrocesso, eficácia
impeditiva do retrocesso, não evolução reacionária, proibição da contrarrevolução social. Algumas dessas
denominações parecem fazer referência a outros conteúdos que não ao de princípio constitucional relacionado à
eficácia de normas jurídicas. Assim, a expressão proibição de contrarrevolução social conota, antes de tudo,
conteúdo político. Todas as vezes que a expressão se faz acompanhar da palavra "social", há uma limitação do
espectro de abrangência: o princípio só dirá respeito àquele campo. Outros autores preferem falar de uma "teoria
da irreversibilidade". Parece-me que a maior parte das incidências da noção se faz sob o rótulo de "proibição do
retrocesso". Há cerca de dez anos, outra denominação passou ao registro público brasileiro, com inspiração
francesa: efeito cliquet, que seria o clique da trava do mosquetão. Em outros países, o assunto é tratado sob os
mesmos rótulos (Verbot des sozialen Rückschritts; standstill; effet anti-retour).
4
Há, hoje, extensa bibliografia nacional sobre o tema. V., dentre tantos, por ex., TAVEIRA, Christiano de
Oliveira; MARÇAL, Thaís Boia. Proibição do retrocesso social e orçamento: em busca de uma relação
harmônica. Revista de Direito Administrativo. v. 264. dez 2013. DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de
retrocesso social na constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renova, 2007. MARTINS, Patrícia do Couto Villela
Abbud. A proibição do retrocesso social como fenômeno jurídico. In: GARCIA, Emerson (Coord.). A
efetividade dos direitos sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. pp. 379-424. SARLET, Ingo. Notas sobre a
assim designada vedação do retrocesso social no constitucionalismo latino-americano. In: Revista TST. Vol. 75.
Brasília, 2009.
5
Não se está pretendendo simplificar as complexas relações entre direito e política. De fato, nem o direito
(entenda-se: a doutrina) é neutro, nem a política se faz sem apelo a argumentos jurídicos. O crescente fenômeno
mundial da judicialização da política mostra como tais relações não podem se resumir a pretensões de purismo
(do direito em relação à política). O ponto do texto é outro: é que certos usos da vedação do retrocesso partem
A segunda acepção de vedação do retrocesso significa que, uma vez tornada
aplicável, pela edição de lei, norma constitucional até então não auto-aplicável, esta lei não
pode ser revogada por inteiro, ainda que possa ser alterada por outra lei ou revogada em
parte. Observe-se que, nesta acepção, o legislador pode, inclusive, reduzir direitos. O que ele
não pode é revogar a lei por inteiro, sem colocar nada no lugar. Esta modalidade de vedação
do retrocesso, embora direcionada ao legislador, pode ser estendida ao administrador, quando
este atua como regulamentador constitucional.6 Em 2002, chamei esta acepção de vedação
genérica do retrocesso, porque ela dizia respeito a todas as normas da constituição, e não
apenas a normas constitucionais com certo conteúdo específico.

Parece-me que falar em vedação genérica (e, depois, em vedação específica,


como se verá) não torna imediata a compreensão de seu conteúdo, além de destacar algo que
é acidental ao fenômeno (a abrangência de seu conteúdo, e não seu conteúdo mesmo). Por
isso, proponho agora, ao invés de vedação genérica, a denominação vedação do retrocesso da
eficácia jurídica das normas constitucionais.

Seu fundamento seria o princípio da efetividade das normas constitucionais e a


noção de força normativa da constituição. Pelo princípio da efetividade, tal como formulado
na doutrina brasileira, deve-se preferir técnicas e argumentos que permitam, ao máximo, que
o dever ser normativo conforme o ser da realidade social.7 Ora, a vedação da revogação pura
e simples de normas infraconstitucionais é argumento que iria de encontro a tal propósito,
pois ele tornaria ainda mais difícil a efetividade (pois sequer haveria eficácia jurídica).

A força normativa da constituição é a proposta, de largo curso na teoria e na


prática brasileira, formulada por Konrad Hesse, em que ele, reagindo ao constitucionalismo
alemão de seu tempo - um constitucionalismo historicista, que sugeria ao intérprete levar
sempre em conta os "fatores reais do poder" -, propôs a "ficção necessária de que o direito
dominava a vida do Estado". A relação entre a vedação do retrocesso da eficácia jurídica e a
força normativa da constituição é direta: se se deve cogitar que a constituição domina a vida

da premissa de que se trataria de argumento jurídico, ainda que com vistas a propósitos políticos. Contudo, são
usos que não respeitam a diferenciação mínima entre as searas.
6
Por exemplo: o art. 237 da constituição fala que a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior,
essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda. Digamos,
então, que se edita regulamento que estabelece a forma e os critérios desta fiscalização do Ministério da
Fazenda. Este regulamento não poderia ser revogado pura e simplesmente.
7
BARROSO, Luís Roberto. BARROSO, Luís Roberto (2006) [1984]. O Direito Constitucional e a Efetividade
de suas Normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 [1984].
do Estado, então não se deve permitir que ela possua menos eficácia jurídica por obra do
legislador infraconstitucional.8

A principal crítica contra a vedação do retrocesso da eficácia jurídica das


normas constitucionais é a de que se estaria constitucionalizando o direito infraconstitucional.
Esta crítica é de fácil enfrentamento. Na verdade, antes de constitucionalizar o direito
infraconstitucional, está-se salvaguardando a supremacia da constituição. É que o argumento
proíbe que o legislador infraconstitucional revogue, por via indireta, a própria constituição.
Por isso, pode-se afirmar que, ainda que não exista direito adquirido a regime jurídico, existe
direito adquirido a regime de aplicabilidade jurídica da constituição.9

Por fim, há terceira acepção para a vedação do retrocesso. Por ela, grosso
modo, não pode haver redução na qualidade dos direitos fundamentais sociais já efetivados. 10
Na monografia, chamei-a de vedação específica do retrocesso, pois se tem que só diga
respeito aos direitos sociais. Mas, por idênticas razões às da outra modalidade, creio que o
nome não é adequado. Proponho vedação do retrocesso da eficácia social das normas
constitucionais, ou, apenas, vedação do retrocesso da efetividade constitucional.

Os fundamentos desta modalidade poderiam ser, dentre outros, o estado social,


a proteção da confiança, a eficácia de defesa dos direitos prestacionais, o dever de proteção
dos direitos fundamentais. É modalidade que desperta dúvidas: a uma sobre sua existência; a
duas sobre seus limites. Será que existe um curso para a história? Será que realmente não se
pode reduzir direitos sociais? O que, aliás, viria a ser reduzir direitos sociais? O princípio não
denotaria indisfarçável imprinting ideológico?11 O princípio poderia até cercear a atividade
do legislador, que deixaria de legislar porque, futuramente, poderia não ter como honrar o
compromisso com a não regressão.12 No texto anterior, cogitei da existência desta
modalidade de vedação do retrocesso, só que a reputei relativa. Poderia haver alteração, e,

8
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1991.
9
É por isso que existe mandado de injunção: para buscar concretizar esse direito a um regime de aplicabilidade
jurídica.
10
Por redução na qualidade dos direitos sociais já efetivados, entenda-se que incluam (i) alterações legislativas e
regulamentares; (ii) redução de prestações materiais; (iii) alterações organizacionais.
11
Jorge Reis Novais faz observação interessante: por que ninguém sustentaria, em paralelo, a existência de um
princípio constitucional da proibição do retrocesso liberal? NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria
jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pp. 83-85.
12
PEREIRA DA SILVA, Jorge. Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas.
Lisboa: Universidade Católica, 2003. p. 281.
mesmo, redução da proteção trazida pela legislação social, desde que cumpridos dois
requisitos: (a) que a alteração/supressão respeitasse o mínimo existencial; (b) que, junto com
a alteração/supressão, fosse fornecida uma alternativa proporcional.13

É claro que estes requisitos não resolvem o problema. O que seria "fornecer
uma alternativa"? Bastaria justificar a alteração? Quem apreciaria se a alternativa oferecida é
válida? Como garantir qualidade dos direitos sem inibir o experimentalismo democrático?
Tais dúvidas, importantes para um argumento que, no limite, poderia pretender justificar até a
inconstitucionalidade de emenda à constituição que reduzisse direitos, restaram intocadas no
texto de então. Seja como for, representam insights úteis; pontos a partir de onde se pode,
quatorze anos depois, retomar o assunto.

IV - Como perdemos o medo: usos e desusos da vedação do retrocesso na


jurisprudência.

Para o levantamento jurisprudencial deste item, utilizou-se a expressão


"proibição do retrocesso" nos mecanismos de busca dos sites dos tribunais de justiça dos
estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.14 O levantamento
ocorreu no final de abril de 2016. Além destes tribunais, realizou-se pesquisa, na mesma data
e com os mesmos parâmetros, nos sites do STJ e do STF.15

A inclusão do STF e do STJ dispensa maiores explicações. O Supremo, além


de um dos mais importantes tribunais constitucionais do Ocidente, é o responsável pela
defesa da constituição e, portanto, pela produção de jurisprudência constitucional. O STJ é o
responsável pela higidez da interpretação da legislação federal. Já os estados de São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais são, em termos econômicos e políticos, os mais importantes da
federação. A inclusão do estado do Rio Grande do Sul surgiu de um palpite. Neste estado, há
tradicional produção acadêmica sobre direitos fundamentais. O palpite se revelou acertado: o
TJ-RS é de longe, como se verá, o tribunal que mais faz referências à expressão.

13
Christian Courtis faz distinção entre regressividade de resultados - resultados piores das políticas públicas - e
regressividade normativa - redução da amplitude dos direitos. Um texto jurídico só pode tratar da regressividade
normativa. V. COURTIS, Christian. La prohibición de regresividad en materia de derechos sociales: apuntes
introdutorios. In: COURTIS, Christian. (Org.) Ni un paso atrás: la proibición de regresividad en materia de
derechos sociales. Buenos Aires: Del Puerto, 2006. pp. 3-52.
14
Não se vai chamar o exercício deste item de pesquisa empírica ou, sequer, de pesquisa, porque não se trata
disso. É, apenas, um levantamento de decisões judiciais.
15
Agradeço ao doutor João Augusto Michelazzo Bueno pelo levantamento jurisprudencial.
Optei por analisar apenas as decisões da justiça estadual porque acredito que é
nela que a grande maioria das causas envolvendo questões da vida se desenrola. A justiça
federal, por suas características de justiça privativa da União, acaba concentrando demandas
de servidores públicos, causas previdenciárias e tributárias, e ações envolvendo bancos
públicos (leia-se: Caixa Econômica Federal). Levantou-se dados apenas de decisões de
segunda instância - ou seja, dos tribunais, e não dos juízes singulares - porque é por lá que a
maioria das causas são julgadas de fato e de modo definitivo, eis que recursos especiais e
extraordinários raramente são admitidos, quiçá providos.

Portanto, o levantamento jurisprudencial se limitou ao STF e ao STJ, e às


causas envolvendo questões da vida julgadas de fato e de modo definitivo pelos tribunais
mais importantes do país.

Comecemos pelo STF. No Supremo, há vinte e quatro acórdãos. Comentemos


alguns casos.16 Um dos mais célebres e recentes trata do estado de coisas inconstitucional,
que o Supremo reconheceu junto à situação carcerária brasileira (MC na ADPF 47). No voto
do ministro Celso de Mello, há referências breves ao princípio, como, por exemplo, na página
19, em que ele afirma que a interpretação do argumento da "reserva do possível" deve ser
restritiva, sob pena de se ferir, dentre outros, a proibição do retrocesso social. E, logo depois,
na página 22, quando cita Daniel Sarmento, o qual observa que algumas categorias vêm
orientando o debate sobre a judicialização dos direitos sociais, como a da proibição do
retrocesso.

No RE 658312, discutiu-se a recepção do intervalo, na jornada de trabalho das


mulheres, de quinze minutos, antes que comecem a jornada extraordinária (art. 384 da
CLT17). O Supremo entendeu-a constitucional. No voto do ministro Fux, que entendia o
intervalo válido apenas quando a atividade exigisse esforço físico do empregado, há,
novamente, menção à vedação do retrocesso.18

Celso de Mello, no mesmo julgamento, redige digressão a respeito do


princípio, mencionando parte da doutrina brasileira, e, ainda, Canotilho, e um acórdão do
16
Para a seleção dos casos, o critério foi inteiramente pessoal. Tentei selecionar decisões mais célebres e/ou em
que o uso haja sido referenciado de modo mais extenso.
17
Art. 384 - Em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15 (quinze) minutos
no mínimo, antes do início do período extraordinário do trabalho.
18
De modo literal: "E eu até avanço um pouco mais e relembro, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal
sempre também se preocupou, na análise do controle da constitucionalidade, com a proibição do retrocesso, com
a proibição dos excessos e também com a proteção deficiente."
Tribunal Constitucional português que serve como referência no assunto (o acórdão 39/84). 19
O raciocínio de Celso de Mello é o de que, se o Supremo entendesse que o artigo 384 da CLT
não havia sido recepcionado pela ordem constitucional em vigor, haveria um retrocesso da
efetividade de um direito social. Ele chega a afirmar que a vedação do retrocesso traduz a
eficácia negativa dos direitos sociais de natureza prestacional; quer dizer, adota, literalmente,
uma das teses que buscam identificar o fundamento do não retrocesso.20

O recurso extraordinário com agravo n. 709212 é interessante pela discussão


que suscitou. Tratou-se, nele, da alteração do prazo prescricional para cobrança dos valores
não depositados no FGTS, de trinta para cinco anos. O prazo prescricional acabou reduzido.
A ministra Rosa Weber entendia que a redução implicava retrocesso inconstitucional. Não foi
esse o entendimento de Luís Fux, que, no ponto, entendeu que cumpria verificar para que
servia o FGTS; ele servia, continuava, como uma compensação à antiga estabilidade celetista.
Ora, em regra, o demitido levanta o valor depositado no FGTS e vai procurar outro emprego.
Só caberia falar de retrocesso caso o demitido fosse viver trinta anos do valor do FGTS, coisa
que, na prática, jamais ocorreria. Fux afirma: só caberia falar em vedação ao retrocesso
quando inexistissem mecanismos de compensação, os quais, atualmente, existiriam (ex.
seguro desemprego). Não haveria qualquer retrocesso.

No julgamento das ADIs 4627 e 4350, a vedação do retrocesso também


ganhou destaque. As ações tratavam da redução do valor pago, a título de indenização, pelo
consórcio administrador do seguro DPVAT. Um dos pontos levantados era saber se teria
havido, a partir da legislação, retrocesso inconstitucional. A conclusão foi negativa, pois teria
havido preservação do núcleo essencial do direito, e, ainda, haveriam sido criados
mecanismos de compensação. Os critérios clássicos - ainda uma vez.

Cogitou-se de vedação do retrocesso até no mensalão. Um dos pontos do


vigésimo quinto agravo regimental na Ação Penal originária 470 alega que, caso se

19
O acórdão, no entanto, está superado na jurisprudência portuguesa. Hoje, ao que notam professores
portugueses, ele só é referido de modo descafeinado, para se dizer que não é mais aplicável. V. BOTELHO,
Catarina Santos. Os direitos sociais em tempos de crise, ou: revisitar as normas programáticas. Coimbra:
Almedina, 2015. pp. 443 et seq.
20
O mesmo trecho é utilizado, por Celso de Mello, em diversos casos. Ele é o ministro que mais identifica
hipóteses de incidência da vedação do retrocesso. De modo geral, ele parece associar uma situação de omissão,
tida por inconstitucional, a um retrocesso constitucionalmente vedado. Exemplificativamente, ele mencionou,
direta ou indiretamente, a incidência do princípio em casos de ausência de implantação de defensoria pública; no
dever de custeio público do atendimento de pacientes do SUS, atendidos por instituições privadas, quando da
ausência de leitos públicos (ARE 727864); em caso em que se discutia omissão inconstitucional de município
ao não instituir rede de proteção e assistência à saúde da criança e do adolescente (ARE 745745).
entendesse pela revogação da figura regimental dos embargos infringentes no rito do
Supremo, haveria retrocesso na implementação do direito à ampla defesa dos réus da ação
penal. O ponto foi rejeitado pelo STF. O ministro Fux observou que, se não há exatamente
progresso na existência de embargos infringentes, não haverá retrocesso em sua inexistência.

Em outro julgamento famoso, a ADC e a ADI em que se discutia a


constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade trazidas pela lei complementar 135/2010
- a lei da ficha limpa -, igualmente a proibição do retrocesso se fez presente, novamente por
invocação do ministro relator, Fux (ADC 29). Ele cogitou que se poderia levantar a alegação
de retrocesso ilícito em relação ao direito a ser votado. Mas rejeitou a alegação, pois, para
que houvesse retrocesso, teria que haver, preliminarmente, "consenso básico profundo",
"radicado na consciência jurídica geral", a respeito do elemento que se retrocedia, o que
inexistiria in casu (o elemento sobre o qual não haveria o consenso seriam as hipóteses de
inelegibilidade). O enfrentamento da alegação do retrocesso consta, inclusive, da ementa da
decisão.21

Em outra ADI (ADI 4543), contra lei que obrigava a impressão do voto, há
utilização curiosa do argumento. A ministra Carmen Lúcia, relatora, observa que, para ela, há
vulneração ao que chama de "princípio do retrocesso político", aplicável tanto na seara dos
direitos sociais quanto no dos eleitorais.22 Na opinião da ministra, as urnas eletrônicas seriam
conquista histórica, que acrescentaria aos direitos de cidadania do Brasil. O voto impresso
implicaria retrocesso inconstitucional.

Duas últimas referências ao tema na jurisprudência do STF. Na ADI 1.946,


relator Sydney Sanches, discutia-se a constitucionalidade do art. 14 da emenda à constituição
20/98. Temia-se que o artigo houvesse revogado, de modo implícito, o art. 7o, XVIII, da
CRFB-88 ("licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento
e vinte dias"). É que o art. 14 da EC 20/98 estabelecia um teto de R$ 1.200,00 ao valor dos
benefícios do regime geral de previdência social. Embora os ministros não tenham se referido
ao princípio da vedação do retrocesso de modo explícito, a ementa da decisão menciona que

21
No seguinte trecho: "4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação
de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso
básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito
eleitoral."
22
Em suas palavras: "Tenho por aplicável esse princípio também aos direitos políticos e ao caso presente,
porque o cidadão tem o direito a não aceitar o retrocesso constitucional de conquistas históricas que lhe
acrescentam o cabedal de direitos da cidadania."
"(...) E, à falta de norma constitucional derivada, revogadora do art. 7o, XVIII, a pura e
simples aplicação do art. 14 da EC 20/98, de modo a torná-la insubsistente, implicará um
retrocesso histórico, em matéria social-previdenciária, que não se pode presumir desejado."
(O destaque foi acrescentado.) A decisão, então, emprestou interpretação conforme ao artigo
da emenda, para que a licença-gestante fosse excluída do teto de R$ 1.200,00.

Lembre-se, por fim, o voto vencido do ministro Sepúlveda Pertence na ADI


2.065. O art. 17 da MP 1.911/99 revogava alguns artigos da lei n. 8.212/91 e 8.213/91, o que
implicaria, concretamente, a revogação do Conselho Nacional de Seguridade Social e dos
Conselhos Estaduais e Municipais de Previdência Social. A ação não foi conhecida
(considerou-se caso de ofensa reflexa), mas, dos quatro ministros que a admitiam, Sepúlveda
Pertence fazia-o pois "a norma impugnada é objeto idôneo para o controle abstrato de
constitucionalidade pelo STF, porquanto, uma vez existente a regulamentação de um
dispositivo da CF, não pode haver retroação ao vazio legislativo anterior." Ou seja: o
ministro Sepúlveda Pertence acenava, àquela época, na decisão que foi, salvo melhor juízo, a
primeira menção ao tema no Supremo, com a vedação do retrocesso de eficácia jurídica das
normas constitucionais.

O que se pode compendiar deste ligeiro escorço jurisprudencial do STF?


Algumas impressões a serem compartilhadas. (i) O princípio está consolidado na pauta do
Supremo. Se, em 2002, escrevi que "em termos gerais, a jurisprudência brasileira desconhece
o assunto"23, quatorze anos depois a situação é diferente, a começar por seu órgão de cúpula.
(ii) Nota-se, no STF e nos demandantes que a ele recorrem, certa expansão da circunscrição
material do princípio: pretende-se que incida sobre direitos políticos, processo penal etc. (iii)
As invocações do ministro Celso de Mello ao princípio tendem a certa generalidade. Já o
ministro Fux faz uso mais controlado da norma, e sua argumentação segue, na essência, a
ideia de preservação do núcleo essencial mais compensação.

O princípio também está consolidado no STJ. Para "proibição do retrocesso",


há 14 aparições em acórdãos, 298 referências em decisões monocráticas, e uma menção no
informativo de sua jurisprudência. Nas decisões monocráticas, impressiona a abrangência
temática: a maioria das decisões é sobre valor da indenização do seguro DPVAT, em que as
partes alegam que a redução do valor da indenização, por MP, seria ilegal (tema que, como se
viu, restou decidido nas ADIs 4627 e 4350), mas há menções à proibição do retrocesso em
23
P. 235.
decisões sobre leitos em hospitais, matrículas em escolas especiais, surdez unilateral como
deficiência para concurso público, falha no atendimento em hospital privado, vaga em creche,
aluguel social, suspensão de energia elétrica por falta de pagamento, penhora online, auxílio
moradia de subprocurador da república, benefício da Lei Orgânica da Assistência Social,
assentamento em terreno público urbano, revisão de aposentadoria, desconto de mensalidade
em escola privada por matrícula de segundo filho.

De todos esses casos, escolheu-se duas decisões para análise mais detida. No
RESP 1472945/RJ, relator Ricardo Villas Bôas Cueva, em que se discutia questões de direito
das sucessões, a ementa observa o seguinte: "2. O intuito de plena comunhão de vida entre os
cônjuges (art. 1.511 do Código Civil) conduziu o legislador a incluir o cônjuge sobrevivente
no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845), o que reflete irrefutável avanço do Código
Civil de 2002 no campo sucessório, à luz do princípio da vedação ao retrocesso social." Não
se trata, aqui, de fundamento da decisão, mas de apreciação - política - da alteração
legislativa, que serve de razão de apoio à decisão.

No RESP 302.906/SP, sendo relator o ministro Herman Benjamin, discutia-se


a legalidade de pactos privados, mais restritivos do que a lei, que limitavam as construções
possíveis, em certo loteamento, a residências unifamiliares. No caso dos autos, construiu-se,
no loteamento, prédio de nove andares. A construção do prédio obtivera alvará do município
de São Paulo. Pois foi justamente este ponto - o alvará municipal concedido - que motivou a
menção à vedação do retrocesso, aqui, na seara urbanístico-ambiental. O relator refutou o
argumento de que a concessão do alvará decorreria de exercício legítimo de ius variandi da
administração pública, ou seja, do dever de ajustar a norma às especificidades do caso. Na
ementa, anotou-se, com sublinhado acrescido (o itálico é do original), o trecho a seguir:

Vale dizer, o legislador pode, sim, abrandar as exigências urbanístico-ambientais


convencionais. No entanto, ao contrário do amplo poder de intervenção que lhe confere a
ordem constitucional e legal vigente para aumentar seu rigor, ao reduzi-lo só poderá fazê-lo
em circunstâncias excepcionais e de maneira cabalmente motivada. Essa regra geral, aplicável
ao Direito Urbanístico (em sintonia com igual fenômeno no Direito Ambiental), é decorrência
da crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades e
submete-se ao princípio da não-regressão (ou, por outra terminologia, princípio da proibição
de retrocesso ), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado
não serão destruídos ou negados pela geração atual.

Assim, de acordo com Herman Benjamin, o ordenamento jurídico brasileiro


proíbe que se abrande o rigor de restrições ambientais, salvo em casos excepcionais. As
restrições ambientais só poderiam aumentar, em razão da escassez de espaços verdes e da
redução da qualidade de vida nas cidades. Esta conclusão derivaria, também, da vedação do
retrocesso ambiental, norma pela qual os "avanços urbanístico-ambientais" do passado não
podem ser "destruídos" pelo legislador.

Quais os dados a se extrair da jurisprudência do STJ? (i) O primeiro é que,


mais do que no Supremo, há enorme expansão na abrangência material do argumento. (ii) O
segundo é o de que há um uso particular da vedação do retrocesso - na área ambiental - que
parece merecer especial atenção dos julgadores.

Vamos, agora, aos tribunais locais. Comecemos por São Paulo, em que se
encontra vinte e duas aparições, nas ementas, de "proibição do retrocesso". Pode-se catalogar
as decisões do TJ-SP em duas tendências: (i) uma incidência da vedação do retrocesso
ambiental; e (ii) uma sinonímia entre vedação do retrocesso e teoria do fato consumado (isto
é: o retrocesso vedado decorreria da consolidação de um estado de coisas).

Em decisão de agravo de instrumento tirado de tutela antecipada havida em


ação civil pública ambiental, a desembargadora Vera Angrisani, da Segunda Câmara
Reservada ao Meio Ambiente do TJ-SP, entendeu que a vedação do retrocesso ambiental não
autorizaria anistia de multas, supostamente conferida pelo Código Florestal de 2012. Eis a
ementa (destaque acrescentado):

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação civil publica ambiental. Decisão que deferiu


parcialmente a liminar pleiteada, entendendo, em suma, que a ação está lastreada em autos de
infração ambiental e que, como parte das autuações ocorreu antes de 22/07/2008, haveria
anistia conferida pelo Código Florestal de 2012. Impossibilidade. O princípio da proibição do
retrocesso ecológico, em defesa do meio ambiente equilibrado autoriza o entendimento de que
o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, direitos
ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as
necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou
espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e
intransponível da 'incumbência' do Estado de garantir a preservação e restauração dos
processos ecológicos essenciais. Inconstitucionalidade do art. 61-A do Código Florestal não
configurada. Decisão reformada em parte. Recurso conhecido e parcialmente provido.

(Relatora Vera Angrisani; Comarca de Eldorado; 2ª Câmara Reservada ao Meio


Ambiente; Data: 26/11/2015).

40. Em outra câmara do TJ-SP dedicada ao meio ambiente - a primeira -, também


em decisão de agravo de instrumento interposto contra tutela antecipada deferida, em parte,
para suspender o Plano Diretor e a Lei de Ocupação do Solo de município de São Paulo,
entendeu-se que "as referidas leis violam (...) a proibição do retrocesso, ao admitirem a
construção de uso residencial e uso comercial de grande porte, em áreas de proteção
ambiental (...)".24 O agravo não foi provido, e a tutela antecipada, mantida.

Já numa ação direta de inconstitucionalidade tirada contra lei estadual (a lei n.


14.982/2013), que alterava os limites da Estação Ecológica da Jureia-Itatins e instituía o
Mosaico de Utilidades de Conservação da Jureia-Itatins, o TJ-SP entendeu que não houve
ofensa ao princípio, porque a área de proteção ambiental acabou tendo incremento em face da
lei.25

Já, como exemplo de decisões do TJ-SP que equivalem vedação do retrocesso


à noção de fato consumado, pode-se citar o agravo de instrumento tirado contra liminar em
mandado de segurança, e que restou desprovido, pois os menores já haviam sido matriculados
na série pretendida, e, inclusive, passado de ano, com matrícula na série subsequente; ou o
servidor público, aposentado desde 1983, que teve seus proventos mantidos diante de
pretendida redução pois a "situação já [estava] consolidada, [e reduzir os proventos
implicaria] ofensa ao princípio constitucional da proibição do retrocesso."26

24
A referência da decisão é: Relator: Moreira Viegas; Comarca: Vinhedo; Órgão julgador: 1ª Câmara Reservada
ao Meio Ambiente; Data do julgamento: 27/06/2014; Data de registro: 30/06/2014.
25
A referência da ADI estadual é: Relator: Paulo Dimas Mascaretti; Comarca: São Paulo; Órgão julgador:
Órgão Especial; Data do julgamento: 04/06/2014; Data de registro: 10/07/2014; Outros números:
199748622013826000050000.

26
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROGRESSÃO ESCOLAR. CONCESSÃO DE LIMINAR EM
MANDADO DE SEGURANÇA. INFORMAÇÕES PRESTADAS QUE NOTICIAM QUE OS MENORES
FORAM DEVIDAMENTE MATRICULADOS NA SÉRIE PRETENDIDA, COM DESEMPENHO
PLENAMENTE SATISFATÓRIO E REGULAR CONCLUSÃO, BEM COMO INCLUSÃO NA SÉRIE
SUBSEQUENTE NO ANO LETIVO VIGENTE. APLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO
CONSUMADO. PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO
DESPROVIDO. (Relator: Claudia Lucia Fonseca Fanucchi; Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: Câmara
Especial; Data do julgamento: 11/03/2013; Data de registro: 12/03/2013). (O destaque foi acrescentado.)

APELAÇÃO. PENSÃO POR MORTE. REDUTOR. NÃO CABIMENTO. EC N. 47/2005, ART. 3º,
PARÁGRAFO ÚNICO. INCIDÊNCIA. Servidor Público estadual aposentado desde 1983, integrante do
Ministério Público Estadual. Situação já consolidada, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da
proibição do retrocesso, a pensão deve ser paga integralmente, nas mesmas bases em que o servidor falecido
recebia seus proventos, nos termos da EC n. 47 de 2005 (art. 3º, § único). Requisitos da CF presentes: servidor
que ingressou no serviço público antes de 16 de dezembro de 1998, e na data da publicação da EC n. 41/03 já
estava aposentado, com proventos integrais, porque contava com mais de 20 anos de serviço público efetivo, 10
anos de carreira e cinco anos de efetivo exercício no cargo. Não incidência no caso da Lei Complementar
Estadual n. 1012/2007. Sentença de improcedência. Reforma. APELO PROVIDO. (Relator: Amorim
Cantuária; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento:
15/05/2012; Data de registro: 18/05/2012) (Aqui, também, o destaque foi acrescido.)
Em outro caso, em que a administração da cidade de São Paulo mudou
entendimento a respeito da situação de fato que justificaria a concessão de isenção tarifária no
transporte público a usuário (por problema de saúde), o TJ-SP a manteve, forte em que, a
prevalecer o entendimento da administração pública, "estaria o cidadão alçado à condição de
insegurança jurídica e sob o efeito do retrocesso na efetivação das políticas públicas e dos
direitos sociais do cidadão, o que não convém".27 (Destaques acrescentados.)

Agora, o Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. No TJ-RJ, há vinte e


sete referências à expressão. Estudemos algumas. Em decisão de janeiro deste ano (2016),
discutia-se a obstrução ao direito ao arrependimento do consumidor em compra de passagem
aérea realizada pela internet.28 No acórdão que deu provimento à apelação do consumidor, há
trecho interessante, em que se unem vedação do retrocesso, Código de Defesa do
Consumidor, e, até, "interpretação retroativa", expressão de José Carlos Barbosa Moreira que
significa ler uma legislação nova com os olhos na antiga.29 É ver o trecho (destacou-se):

O CDC consubstancia-se em densificação legislativa do direito fundamental à defesa da


pessoa humana na sua dimensão consumidora, previsto art. 5º, XXXII, da Constituição. Nesse
sentido, em face dos princípios da interpretação conforme a constituição, da máxima
efetividade e da vedação ao retrocesso social (que engloba a proibição da "interpretação
retrospectiva" a que alude Barbosa Moreira), as normas de natureza ampliativa, que
conferem superioridade de posições ao consumidor, somente podem ter sua aplicabilidade
afastada por razões últimas estribadas nos princípios constitucionais que lhe dão esteio,
como em casos de abuso de direito, o que não se verificou em momento algum nesses autos.

Na decisão, a vedação do retrocesso significa, ao menos em parte, proibição


(relativa) de afastamento de normas que confiram superioridade ao consumidor. Além disso,
a decisão sugere que, no conteúdo da vedação do retrocesso, inclui-se a proibição de se
interpretar legislação nova com base em categorias da legislação anterior.

27
A referência é: Relator: Aliende Ribeiro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 11ª Câmara de Direito
Público; Data do julgamento: 05/12/2011; Data de registro: 09/12/2011.
28
Trata-se da apelação cível n. 0021498-36.2014.8.19.0042, relatora a desembargadora Maria Luiza Carvalho,
julgada, em 21 de janeiro de 2016, pela 27a Câmara Cível do TJ-RJ.
29
Deixemos que o próprio professor titular de processo civil da UERJ explique o sentido da expressão: "Põe-se
ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito
destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de
interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele
capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica.” (“O Poder Judiciário e a
efetividade da nova Constituição”, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152).
Em outra questão de direito do consumidor, julgada pela mesma 27a Câmara
Cível, aposentado da Companhia Siderúrgica Nacional informava que, à época da
privatização, incluiu-se, no edital, cláusula garantista dos direitos sociais àquela época
existentes. Ele possuía plano de saúde da CSN, extensível a seus dependentes. A disputa se
dava porque o plano de saúde se recusava a incluir a esposa do autor nas regras do plano
original. Na decisão, falou-se que se haveria de respeitar a proibição do retrocesso social em
face ao "direito adquirido de promessa de benefício futuro de assistência médica pelas
mesmas regras do plano corporativo original". 30

A desembargadora Regina Lucia Passados, da 24a Câmara Cível, também


parece ter simpatia pelo argumento. Ele aparece, como razão para a decisão, em duas
apelações de que foi relatora, ambas tratando de plano de saúde. Na apelação cível 0187510-
08.2010.8.19.0001, segurada de um plano coletivo foi internada para parto prematuro. Nesse
ínterim, a associação de funcionários, que era a contratante do plano, rescindiu o contrato
com a operadora e celebrou contrato com nova. Ambas as operadoras - a antiga e a nova -
recusaram-se a cobrir o parto. A segurada venceu a demanda. A desembargadora observou
que permitir à operadora, a qualquer tempo, rescindir o contrato, colocaria o consumidor em
desvantagem em relação à empresa e "constituiria verdadeiro retrocesso social".

O segundo caso (apelação 0029885-16.2012.8.19.0008) segue as linhas do


primeiro: há contrato coletivo de plano de saúde e negativa de cobertura. A magistrada, ao
apreciar a restrição, trazida pelo art. 13, I, e par. único, II, da lei n. 9.656/98, de modo
diferente do Decreto-lei n. 73/66 - isto é: na nova legislação, só nos planos coletivos é vedada
a suspensão ou rescisão unilateral do contrato, salvo nos casos de fraude ou não pagamento;
na legislação antiga, a suspensão/rescisão unilateral era vedada também nos planos
individuais - entende que houve violação ao princípio da vedação do retrocesso.

Em acórdão da lavra do desembargador Jessé Torres, estava em questão o mau


funcionamento de posto de saúde no município de Magé, no estado do Rio. A demanda em si
é causa típica em que o Judiciário atua pontualmente para salvaguardar direito fundamental.

30
Trata-se da apelação cível n. 0030717-69.2012.8.19.0066, sendo relator o desembargador Antonio Carlos
Bitencourt. O caso foi julgado, pela 27a Câmara Cível, em 3 de setembro de 2014.
Ao final do acórdão, Jessé Torres menciona o argumento da vedação do retrocesso, ao sugerir
que o município não poderia encerrar o funcionamento do posto de saúde.31

Pelo que se vê, o TJ-RJ tende a (i) associar vedação do retrocesso ao direito do
consumidor, e, em especial, a planos de saúde; e, (ii) em pelo menos em um caso (o relatado
por Jessé Torres), entendeu que o retrocesso ilícito era o de uma prestação material (o posto
de saúde não poderia ter sido encerrado), e não aquele representado pela edição de uma lei ou
um regulamento.

Do Rio a Minas. O TJ-MG faz expressiva referência ao termo: "proibição do


retrocesso" consta em 107 acórdãos e 77 decisões monocráticas. Muitas tratam de DPVAT.
Outras, ainda, equivalem vedação do retrocesso a teoria do fato consumado (numa decisão
desse tipo, desembargadora mineira fala que não há como voltar atrás - as crianças já haviam
cursado o ano escolar - e, daí, cogita de uma "vedação do retrocesso educacional"). Não há
tendência clara, mas vários julgados mencionam a vedação do retrocesso ambiental. Numa
decisão interessante, o TJ-MG identifica que haveria retrocesso social se o estado de Minas
proibisse a matrícula de criança surda em escola especial. Em outra, o retrocesso é cortar a
água potável do residente em loteamento irregular. Ainda em outra, é suspender a creche e a
pré-escola da servidora pública, pois "um direito social, uma vez garantido, somente pode ser
revogado se substituído por outro que atenda da mesma forma o cidadão, sob pena de
inobservância ao princípio da vedação do retrocesso".

E, finalmente, o Rio Grande do Sul. Em terras gaúchas, a vedação do


retrocesso, ao que se verificou, encontrou terreno fértil: no TJ-RS há, no total, 2259
referências à "proibição do retrocesso", sendo 2047 acórdãos e 212 decisões monocráticas.
Pelo que se viu, no entanto, no TJ-RS a temática da vedação do retrocesso costuma aparecer
numa espécie de pacote argumentativo, geralmente junto às noções de isonomia, dignidade da
pessoa humana e mínimo existencial.

Há casos de judicialização do direito à saúde, da entrega de bens da vida tidos


como essenciais (entrega de fraldas geriátricas pelo estado do Rio Grande do Sul) e de
reforma de presídio estadual, em que a vedação do retrocesso aparece como razão de apoio

31
É a apelação cível n. 0006740-04.2008.8.19.0029, sendo relator o mencionado Jessé Torres. O caso foi
julgado, pela 2a Câmara Cível, em 30 de setembro de 2015.
junto à dignidade humana.32 Mas há incidências mais atípicas, ainda que respeitando o padrão
de não autonomia da vedação: quem poderia imaginar, por exemplo, que a vedação do
retrocesso fundamentaria o dever de pagar férias proporcionais, mais um terço, a prefeito que
encerrou o mandato? Pois foi essa a fundamentação da apelação cível n. 70063779219, em
que a ementa registrou:

Tese de que somente o último período aquisitivo poderia ser indenizado ao Prefeito, em razão
da impossibilidade de gozo das férias, face ao término do mandato, que não encontra suporte
legal. Vedação a este direito que viola frontalmente os princípios do núcleo essencial,
vinculação, máxima eficácia e proibição de retrocesso.

De tudo o que se viu neste levantamento - necessariamente limitado e


idiossincrático, mas contendo algum grau de informação útil - das decisões nos tribunais do
Brasil, é possível identificar, em síntese conclusiva do item, o seguinte: (i) o princípio está
consolidado na jurisprudência brasileira; (ii) seu uso jurisprudencial possui ampla
abrangência material, não se limitando a direitos sociais, e, quiçá, a direitos fundamentais;
(iii) ainda assim, nota-se certa preferência por seu uso na seara ambiental e no direito do
consumidor; (iv) fala-se que exigiria certas compensações ao se reduzir algo; (iv) por vezes, é
usado como sinônimo para teoria do fato consumado; (v) excepcionalmente, ele é utilizado
para impedir o fornecimento de prestações materiais; (vi) por vezes, sua utilização aparece
como parte dentro de um todo argumentativo.

V - O que pode ser um uso controlado do argumento.

Pois bem. Voto em urna eletrônica. Posto de saúde. DPVAT. Férias de


prefeito. Matrícula de criança em escola. Embargos infringentes no Mensalão. Corte de água
potável. Altura de prédio. Proibição de interpretação retroativa. Auxílio-moradia de
subprocurador da república. Desconto em colégio para o segundo filho. Surdez unilateral em
concurso público. Estação Ecológica da Jureira-Itatins. Fraldas descartáveis.

Como trazer algum grau de inteligibilidade racional à vedação do retrocesso?

Em primeiro lugar, indicando o que ela não é.

32
Apelação cível n. 70068952522 (fornecimento de medicamento), apelação cível n. 70066792110 (obrigação
de o Estado fornecer fraldas geriátricas) e agravo de instrumento n. 70065109381 (ação civil pública que
obrigou o Estado a reformar presídio).
Vedação do retrocesso não é teoria do fato consumado. O retrocesso de que
ela cuida ou é um retrocesso relativo ao nível de eficácia jurídica da norma constitucional, ou,
em incidência polêmica, diz da qualidade do direito. Nada disso são fatos. São direitos.

Vedação do retrocesso não é, e sequer engloba, proibição de interpretação


retrospectiva. Não se deve interpretar lei nova com os olhos na antiga porque o tempo passa,
e, a partir daí, mudam-se os métodos, o contexto, os intérpretes. (Isso não significa que se
deve ignorar a história constitucional e a história legislativa. 33) Ora, mas a sugestão de que
não se deve interpretar lei nova (ou ato administrativo ou o que seja) com olhos velhos é, no
máximo, recomendação hermenêutica. Não é princípio jurídico, e, seguramente, não é disso
que a vedação do retrocesso pretende tratar.

Vedação do retrocesso não é vedação da regressividade dos resultados de


políticas públicas. A ser isso, ela implicaria exigência supra-rogatória. Políticas públicas são
necessariamente mutáveis, e seus resultados, relativamente indeterminados.

O que, então, a vedação do retrocesso pode ser para que faça sentido? Quais as
recomendações metodológicas para um uso consequente do princípio?

Retomando a tripartição indicada no primeiro item do presente artigo, em seu


uso político ela é estratégia de utilização da linguagem jurídica com vistas à produção de um
estado de empatia na sociedade. A sugestão é a de que se assuma como tal. Ela pode ser um
clamor mais forte - Nem um passo atrás! - se abandonar o disfarce.

Quanto ao retrocesso de eficácia jurídica, o uso pode ser pleno. Não há, em
princípio, riscos democráticos que não se compensem pelos benefícios do argumento. O
legislador e o regulamentador, quando tornam aplicável, pela lei ou pelo regulamento,
dispositivo constitucional carente de norma, não podem voltar inteiramente atrás. Podem
regular de modo diferente, e, até, reduzir direitos, mas não podem revogar seus atos sem
colocar nada no lugar.

O problema está no retrocesso de efetividade. Vai-se, aqui, propor (i) uma


circunscrição material, (ii) uma abrangência formal, (iii) uma abrangência material, (iv) e
alguns requisitos para o uso. Confira-se.

33
A respeito do tema, seja permitida a referência a LYNCH, Christian Edward Cyril; MENDONÇA, José
Vicente Santos de. Por uma história constitucional brasileira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade.
Mimeo.
(i) Circunscrição material: O princípio da vedação do retrocesso só se aplica a
situações extremas. Os termos utilizados pelo STF permitem que se intua sua circunscrição
material, ou seja, o progresso em relação ao qual há que se vedar o retrocesso. É sobre aquilo
a respeito do que há "consenso básico profundo"; o que está "radicado na consciência jurídica
geral"; as "conquistas históricas que acrescentam o cabedal de direitos da cidadania"; "um
retrocesso histórico que não se pode presumir desejado."

Decisões políticas fundamentais, portanto, e não direções ideológicas


conjunturais, que se espera que mudem e que devam mudar ao longo do tempo.

Concretamente, o nível de exigência de sua circunscrição material é tão alto


que faz com que a vedação ao retrocesso de efetividade constitucional não possua autonomia
conceitual plena.34 Sempre que se verificar violação ao retrocesso, provavelmente antes já
houve violação a outros princípios constitucionais imediatos (o que se vê, por ex., na
jurisprudência do TJ-RS, em que a vedação do retrocesso é, praticamente, adorno retórico em
relação a outros topoi da teoria dos direitos fundamentais).

Por exemplo: seria retrocesso inconstitucional se se aprovasse, mesmo que por


emenda à constituição, o voto censitário ou exclusivamente masculino. Já o voto impresso,
depositado em urnas, por inadequado que soe em 2016, não parece que ofenda o princípio da
vedação do retrocesso. O voto eletrônico não é algo que esteja incluído num consenso básico
sobre a democracia brasileira. E note como a vedação do retrocesso possui duvidosa
autonomia conceitual: antes de violada a vedação do retrocesso, nessas hipóteses, teria havido
violação a um sem-número de outros princípios (isonomia etc.).

(ii) Abrangência formal: Em princípio, a vedação do retrocesso não se aplica


a emendas à constituição, veículo legislativo que goza de forte presunção de democraticidade.
Ele também não se aplica a leis orçamentárias, que guardam restrições particulares; e não se
aplica à estrutura da organização de serviços públicos, eis que o controle do que é retrocesso
seria inexequível, e só estimularia um ativismo judicial incontrolado.35 Assim, não há
retrocesso inconstitucional no fechamento de posto de saúde em Magé. O caminho é político-
34
Em sentido próximo: BOTELHO, Catarina Santos. Os direitos sociais em tempos de crise, ou: revisitar as
normas programáticas. Coimbra: Almedina, 2015. pp. 441 et seq.
35
Na pertinente pergunta de Thiago dos Santos Acca: "Por exemplo, o poder público distribui gratuitamente um
coquetel de remédios composto por três medicamentos distintos. Imagine que ele reduza essa distribuição a um
medicamento. Imagine ainda que outros dois, embora excessivamente caros, são os mais importantes no
combate à doença. Há supressão ou não do direito à saúde?" ACCA, Thiago dos Santos. Teoria brasileira dos
direitos sociais. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 102.
institucional - eleger prefeitos que não fechem postos de saúde - e não jurídico-constitucional.
Em relação a acordos - públicos e privados -, há que se ponderar este princípio, de
excepcional incidência, com a liberdade das partes.

De modo próprio, a vedação do retrocesso só incide, portanto, em relação a


leis e regulamentos.

(iii) Abrangência material: A vedação do retrocesso de efetividade, como trata


de questões constitucionais elementares, não se restringe aos direitos sociais. Ela pode
abranger direitos eleitorais (v. exemplo acima), de nacionalidade (ex.: lei que excluísse
estrangeiros de relações de compra e venda), ambientais etc.

(iv) Requisitos: Há três requisitos para uma incidência constitucionalmente


adequada da vedação do retrocesso de efetividade. (a) Apresentar-se justificativa plausível
para a alteração. (b) Preservar-se o núcleo do direito alterado. (c) Observar a razão pública.

(a) Apresentar-se justificativa plausível para a alteração. Há pouca


consistência na alegação de que, na vedação do retrocesso, deve-se prever medidas
compensatórias. Não há como se "compensar" decisões, contratos, leis, atos administrativos e
políticas públicas umas com as outras. Isto leva a sérios problemas de incomensurabilidade.36
Veja-se, por exemplo, o comentário do ministro Fux no caso do prazo prescricional para se
reclamar a indenização do FGTS: será que, tal como afirmado, o valor depositado na conta
vinculada do ex-empregado é compensado pela existência do seguro desemprego e dos
programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida? De que forma se dá tal compensação?
Sob quais parâmetros? Elas se compensam porque elas existem?

De resto, não há como exigir-se "compensação" em relação a retrocessos


inconstitucionais. Se são tão graves que justificam o disparo do argumento, - e o argumento é
argumento in extremis -, serão inconstitucionais tout court. O Judiciário não é gestor de um
equilíbrio social geral dos direitos e das políticas públicas brasileiras. Se se vai exigir, no
entanto, algo da linha de uma compensação, ela só poderá ser, no máximo, uma
fundamentação plausível da alternativa que se oferece em relação ao direito que se altera.
Exemplo: ao se trocar o sistema de aposentadoria, do regime de repartição para o de
capitalização, há que se justificá-lo.

36
Por todos, v. CHANG, Ruth. (Org.) Incommensurability, incomparability, and practial reason. Cambridge:
Harvard University Press, 1998.
(b) Preservar-se o núcleo do direito alterado. Pode-se até reduzir a efetividade
de um direito constitucional que está "radicado na consciência jurídica geral", mas, se ele é
assim tão importante, não poderá morrer. Então, deve ser preservado, ainda que sob outra
forma. Retomando o exemplo: na troca do regime de aposentadoria, da repartição para a
capitalização, preservou-se, afinal, o direito à aposentadoria.

(iii) Observar-se a razão pública. Pelo que se notou do levantamento


jurisprudencial, a vedação do retrocesso é, por vezes, cavalo de Tróia por onde saem, à noite,
argumentos ideológicos. Nada contra, desde que se assumam como tais, colocando-se na
seara própria. A vedação do retrocesso de efetividade constitucional, como argumento
jurídico, deve ser filtrada pelo dever de imparcialidade política do Judiciário. O risco do
mascaramento da política sob as vestes jurídicas do retrocesso é do descrédito institucional e
o do esvaziamento da experimentação democrática: se o Judiciário é o guardião de um
caminho único, este, necessariamente, não será o caminho de todos.

VI - Encerramento.

Pelos próximos anos, ao que parece, não vai haver concurso público em
muitas das unidades federativas do Brasil. É possível que haja aumento da idade mínima da
aposentadoria pública. Direitos vão ser negociados; direitos vão ser perdidos. É retrocesso?
Para muitos, sim. Para outros, será o caminho possível. Para outros, será, talvez, avanço.

O direito constitucional tem que ser responsivo e responsável diante de tais


fenômenos. Não pode se colocar acima da democracia ou para além do mundo. A garantia de
que não existam retrocessos deve ser, a só um tempo, garantia da eficácia jurídica já
conquistada pela constituição; garantia de conteúdos civilizacionais mínimos; e garantia de
que possa haver um futuro inimaginavelmente melhor. Para isso, importa que este futuro não
seja escravo de um eterno presente. A constituição deve ser uma liga. Um ponto de apoio.

***

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