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Scientiarum Historia – UFRJ / HCTE

Criminalística: origem, desenvolvimento e decadência.


Rodrigo Grazinoli Garrido*1(PQ), Alexandre Giovanelli2 (PQ)
1. Rua Marques de Pombal, 150, Cidade Nova, Rio de Janeiro-RJ. Instituto de Pesquisa e Perícia em Genética Forense
IPPGF-PCERJ. E-mail: grazinoli.garrido@gmail.com 2. Serviço de Perícia de Três Rios, Instituto de Criminalística
Carlos Éboli ICCE-PCERJ .
Palavras Chave: Ciência Forense, Medicina Legal.
Introdução São Paulo no ano de 1947, a Criminalística seria a
“disciplina que tem como objetivo o reconhecimento
Apesar dos avanços tecnológicos que acompanham e a interpretação dos indícios materiais extrínsecas,
a Criminalística ou Ciência Forense atualmente, a relativos ao crime ou à identidade do criminoso”.
utilização de técnicas voltadas para a elucidação de Podia-se ainda definir a Criminalística não como
crimes remonta a épocas pré-científicas1e2. uma ciência, mas como a aplicação do
Entretanto, foi a partir do século XVI que se conhecimento de diversas Ciências e Artes11. De
promoveu uma sistematização de dados de maneira forma geral, esta utiliza métodos desenvolvidos e
a formar um corpo de conhecimento estruturado3e4. inerentes às diversas áreas para auxiliar e informar
Para alguns, a Criminalística seria filha da as atividades policiais e judiciárias de investigação
Medicina Legal3. No entanto, para outros as origens criminal5.
dessas ciências se confundem4. Na realidade, as Em uma análise atual, a Criminalística é
diferentes disciplinas que atualmente compõem a uma ciência aplicada que utiliza conceitos de outras
Ciência Forense tiveram origem, na maioria das ciências firmadas nos princípios da física, da
vezes, independente e, em alguns casos, até química e da biologia, no bojo de métodos e leis
incidental. A Criminalística como a conhecemos próprias embasadas nas normas específicas
teria seu início quando Hans Gross, no final do constantes na legislação, principalmente a
século XIX, propôs que os métodos da Ciência processual penal12e13. Não devemos confundir o
moderna fossem utilizados para solucionar casos campo da Criminalística com o da Medicina Legal.
criminais5. Embora ambas se responsabilizem pelos exames
Em 1908, foi criado o “Instituto de Polícia de corpo de delito e, assim, apresentem interseção
Científica” na Universidade de Lausanne na em vários momentos, a Medicina Legal tem como
França6. Todavia, fora da Europa, as instituições objetivo os exames de vestígios intrínsecos (na
voltadas às atividades criminalísticas foram tardias7. pessoa), relativos ao crime11.
Apesar de originada na Academia6, a Criminalística Durante sua evolução, várias foram as
foi aos poucos sendo tutelada pelo estado e denominações doutrinariamente impróprias dadas à
incorporada às forças policiais. A criação de Criminalística14e15. Essa Ciência foi chamada de
laboratórios policiais nos EUA, ocorreu entre 1920 e Criminologia Científica; Ciência Policial;
1930 e na década de 1950, a solicitação do trabalho Investigação Criminal Científica; Policiologia, os
pericial científico já se tornara rotina aceita pelas quais se aplicam também à administração policial e
autoridades judiciais e policiais8. aos métodos de elucidação geral. O termo
Semelhante ao restante do mundo, no Criminalística é, na verdade, oriundo da escola
Brasil, a origem da Criminalística confunde-se com alemã, sendo utilizado por toda Europa, já naquela
a da Medicina Legal, deixando, ainda no início, a época os termos “Kriminalistik e Criminalistique”. O
Universidade9e10. Os primeiros estudos de vestígios próprio termo Ciência Forense não é sinônimo de
de disparos em armas de fogo e a produção de Criminalística em toda parte do mundo. Para
reagentes para a identificação de manchas de Gialamas7, Ciência Forense deve ser definida como
sangue foram feitos por peritos legistas10. a aplicação das ciências à matéria ou problemas
Nesse trabalho, a partir do levantamento de legais cíveis, penais ou mesmo administrativos.
manuais técnicos, realizou-se uma caminhada pela Dessa forma, a Criminalística seria apenas uma das
história da Criminalística, procurando demonstrar matérias da Ciência Forense.
suas origens e seu desvio dos Centros de Pesquisa
e Universidades em direção das instituições As Origens da Criminalística
policiais. Pretendeu-se também, oferecer pistas que Apesar dos avanços tecnológicos que
demonstrassem que esse redirecionamento, em acompanham a Ciência Forense na atualidade, a
grande parte, foi responsável pelas perdas na utilização de técnicas específicas voltadas para a
evolução do conhecimento criminalístico, elucidação de crimes e indiciamento de criminosos
principalmente em regiões periféricas. remonta a épocas pré-científicas. Um exemplo do
uso da habilidade e imaginação individual
Desenvolvimento relacionado à resolução de crimes pode ser
O que é Criminalística? vislumbrado no texto bíblico de em Daniel1: no
O termo Criminalística foi lançado por Hans século VI a.C., Daniel com grande perícia foi capaz
Gross para designar o “Sistema de métodos de provar ao rei da Babilônia, Ciro, o Persa, que as
científicos utilizados pela polícia e pelas oferendas prestadas ao ídolo Bel eram, na verdade,
investigações policiais”3. Em uma definição do 1° consumidas pelos sacerdotes e seus familiares.
Congresso Nacional de Polícia Técnica, ocorrido em Para tanto, Daniel fez que espalhassem cinzas por
1º Congresso de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – UFRJ / HCTE – 22 e 23 de setembro de 2008
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todo o piso do templo, onde eram colocadas conhecimentos no campo da identificação humana
diariamente oferendas. No dia posterior, verificou surgiu com Bertillon e seu método antropométrico
que, apesar da porta continuar lacrada, pegadas que dominou o século XIX 3.
compatíveis com a dos sacerdotes eram Deve ficar claro que no início da Revolução
observadas no chão e que as oferendas haviam Científica, cabia à Medicina Legal toda pesquisa,
sido consumidas. busca e interpretação de elementos relacionados à
Já no século III a.C. há a clássica história do materialidade do fato penal e não só o exame do
“Princípio de Arquimedes”. Conta Vitrúvio, que o rei corpo humano17. Posteriormente, com o advento
Hierão de Siracusa mandou fazer uma coroa de dos inúmeros ramos da ciência, a Criminalística foi
ouro. Entretanto quando a coroa foi entregue, o rei ganhando terreno, criando seus próprios métodos e
suspeitou que o ouro fora trocado por prata. Para maneiras de correlacionar esses conhecimentos em
solucionar tal dúvida, o rei pediu que Arquimedes prol da investigação criminal18.
investigasse o fato. Arquimedes pegou uma vasilha De acordo com Codeço3, a Criminalística é
com água e mergulhando pedaços de ouro e prata, filha da Medicina Legal. No entanto, para Dorea4,
do mesmo peso da coroa, verificou que o ouro não não seria possível distinguir a precedência da
fazia a água subir tanto quanto a prata. Por fim, Medicina Legal, uma vez que as origens se
inseriu a coroa que por sua vez elevou o nível da confundem. Isto se deveria à indeterminação
água até altura intermediária, constatando então temporal do desejo humano de conhecer a verdade
que a coroa havia sido feito com uma mistura de dos fatos quando seu semelhante é vítima de uma
ouro e prata. Assim desvendou-se a fraude e morte violenta, por exemplo. Apesar de alguns
2
desmascarou-se o artesão . insistirem que a Criminalística faz parte da Medicina
A fase pré-científica da Criminalística Legal, segundo Porto15 a própria Medicina Legal faz
também pode ser observada em informes da antiga parte da Criminalística que seria um sistema onde
Roma descritos por Tácito: Plantius Silvanus, sob se reúnem diversos conhecimentos oriundos de
suspeita de ter jogado sua mulher, Aprônia, de uma várias ciências e algumas artes.
janela foi levado à presença de César. Este, por sua Um dos primeiros registros da origem de um
vez, foi examinar o quarto do suposto local do ramo da Medicina Legal preocupado com o exame
evento e encontrou sinais certos de violência11. O dos Locais de Crimes, por exemplo, data de 1248,
relato deixa claro que, desde a antigüidade foram quando surgiu na China o livro intitulado Hsi Yuan
desenvolvidas técnicas e exames com o intuito de Lu - “Registro Oficial da Causa de Morte”4. Segundo
solucionar crimes. Fávero19 o começo da era científica da Medicina
Na verdade, a necessidade de utilizar Legal teve início em 1575, na França, com
conhecimentos técnicos na elucidação de crimes já Ambrósio Paré. Embora, Paré tenha reunido vários
era observada desde o séc. XVIII a.C., em artigos trechos desta disciplina, segundo Lima não
do Código de Hammurabi16. No entanto, a polícia de representava um corpo doutrinário, metódico e
investigação se originou em Roma com a lei Valéria sistemático desta ciência. Em 1601 apareceram as
(82 a.C.) que instituía dois questores (quoestores “Questões Médico-Legais” de Paulo Zacchia, a
parricidii) para presidirem os trabalhos criminais3. quem esse mesmo autor considera o fundador
Porém, nada técnico-científico sistematizado, os desta ciência. No século XVIII a Medicina Legal se
orientava15, persistindo assim por quase mil e constituiu como disciplina científica, definitivamente.
quinhentos anos. Em resumo, foi a partir 1844 quando uma
Foi somente no século XVI que se observou bula do Papa Inocêncio VIII recomendou a
uma sistematização de dados de maneira a formar intervenção médica nas pesquisas criminais, que os
um corpo de conhecimento estruturado. Isso trabalhos nesta área tomaram verdadeiro fôlego. A
ocorreu inicialmente com os trabalhos de Ambroise origem do uso das impressões papilares para a
Paré sobre ferimento por arma de fogo em 1560, os identificação de criminosos, no entanto, surgiu em
quais foram seguidos por estudos de Paolo Zachias 1877, quando William Herschel, funcionário
em 1651, este último sendo considerado o Pai da administrativo britânico na Índia, sugeriu um método
Medicina Legal3e11. Na realidade a diferentes de identificação de pessoas para o Inspetor Geral
disciplinas que atualmente compõem a Ciência da Prisão de Bengala. Seus estudos de mais de 20
Forense tiveram origem, na maioria das vezes, anos não foram levados em consideração na época
independente e, em alguns casos, até incidental pois seriam resultado de delírio de Herschel, o qual
17
como podemos vislumbrar nos exemplos da apresentava saúde debilitado .
Papiloscopia e da Balística forense que seguem: De forma Paralela e independente, o
Em 1563, João de Barros, publicava em médico escocês Henry Faulds, trabalhando em
Portugal suas observações sobre a obtenção de Tóquio, observou marcas de dedos em cerâmica
impressões palmares e plantares nos contratos na japonesa pré-histórica, o que o levou a propor um
China. Entretanto, as primeiras referências sobre as possível sistema de classificação baseado nas
papilas epidérmicas foram descritas no século XVII impressões digitais. Este trabalho foi enviado a
por Malpighi, na Itália, e por Nehemidr Crew, na Charles Darwin para apreciação. No entanto, devido
Inglaterra. As impressões papilares e datilares ao estado precário de saúde, o pai da teoria da
também foram alvo do estudo de Purkinje, na evolução passou o material para seu primo Francis
Alemanha3e11. A real sistematização de Galton, um antropologista britânico. Alguns anos
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depois, Francis Galton após examinar e sistematizar ficção dos romances policiais4. Antes do juiz Hans
os trabalhos de Fauld e de Herschel, publicava o Gross publicar seu trabalho, Edgar Alan Poe
livro "Fingerprints", estabelecendo os princípios de publicara “Os crimes da Rua Morgue”, “A Carta
individualidade e permanência das impressões Roubada” e O Mistério de Marie Roget”, onde
digitais. Os resultados permitiram o apresentava, pela primeira vez, a figura do detetive
desenvolvimento de um sistema de classificação Técnico-Científico. No entanto, foi após Conan
que deu origem ao Sistema Galton-Henry. Este Doyle publicar em 1887 “Um estudo em vermelho”
sistema foi introduzido na Índia em 1897, e na com Sherlock Holmes que a história policial ganha
Inglaterra e Estados Unidos em 190117. caráter sistemático e científico. No livro de 1883 do
Na Argentina, Juan Vucetich elaborou seu autor Mark Twain21 “Life on the Mississipi” um
próprio sistema de classificação de desenhos assassinato era identificado pelo uso das
papilares, com base no trabalho dos ingleses, sendo impressões digitais.
prontamente utilizado pela Polícia Argentina, a partir No que diz respeito às instituições
de 1891, com o nome “icnofalangometria”17. O criminalísticas, em 1908, foi criado o “Instituto de
trabalho de Vucetich possibilitou à justiça de Polícia Científica” na Universidade de Lausanne na
Necochea, província de La Plata, condenar Teresa França. Esta instituição teve origem na anexação do
Rojas pelo homicídio brutal de seus dois filhos ao laboratório do Dr. Archibald Rudolf Reiss, um dos
identificar as impressões de seus dedos repletos de mais eminentes Peritos Criminais da história, pela
sangue na arma5. Universidade. O Dr. Reiss publicou várias obras
Já a Balística Forense, de acordo com criminológicas dentre elas destaca-se “O Manual de
Dorea, Stumvoll e Quintela11, teve como iniciativa Polícia Científica” o que muito contribuindo à
estudos de Boucher do ano de 1753, na França. Em ascensão da Criminalística6.
1835, na Inglaterra, Henry Goddard notou um Fora da Europa, em especial da França, as
defeito num projétil retirado do cadáver de uma instituições voltadas às atividades criminalísticas
vítima. Na casa de um dos suspeitos ele encontrou são tardias. Apesar da constatação de que à luz da
um molde para projéteis que produzia defeito ciência moderna, a prova material adquire
semelhante padrões nele moldados. Fazendo com significado novo, a criação de laboratórios policiais
que o assassino fosse condenado, Goddard tornou- nos EUA, só ocorreu entre 1920 e 19307e8. Essa
se o precursor da Balística Forense. ciência alcançou a academia no fim da década de
Apenas na década de 1910, que Calvin 1930 e o primeiro curso de Criminologia surgiu
Goddard publicou seu trabalho sobre comparação apenas no final da década de 1940 na Universidade
de armas de fogo7. No entanto, foi Alexandre da Califórnia em Berkeley7.
Lacassangne (1844-1921) que primeiramente Assim, já na década de 1950, a solicitação
percebeu a importância do estriamento deixado nos do trabalho pericial científico se tornara rotina aceita
projetis após disparos. Este perito vinculou os pelas autoridades judiciais e policiais. Até mesmo o
estriamentos com o cano raiado de uma arma de local de crime, havia deixado de ser lugar para
fogo20. Apesar das iniciativas, para Carvalho20, inquirir testemunhas, para se tornar um laboratório
somente após a criação do microscópio de externo na busca de provas8. A íntima associação
comparação, na década de 20 do século XX, que a entre o Perito de laboratório e o homem de serviço
Balística Forense ganhou notoriedade e passou a externo, mostrou-se de inestimável importância
ser aceita irrestritamente nos tribunais. durante as operações militares da II Guerra
Ainda segundo Carvalho20, a Criminalística, Mundial20.
como a conhecemos, teria seu começo no final do No entanto, segundo Wallander20, apesar de
séc. XIX, quando Hans Gross, Professor e desde o início do séc. XX vários órgãos policiais
Magistrado, ao perceber que os métodos utilizados terem crescido significativamente, o laboratório
pela polícia, baseados na tortura e castigos policial foi o último desses setores a despontar.
corporais, não mais se mostravam eficazes. Assim, Assim, por sua criação recente e rápido
propôs que os métodos da Ciência moderna fossem desenvolvimento, até os anos de 1950, o laboratório
utilizados para solucionar crimes. A partir do estudo policial ainda não havia assumido forma bem
de diversas ciências produziu a obra “Handbuch für definida, apresentando capacidade científica
Untersuchungsrichter als System der Kriminalistik”, bastante heterogenia entre cidades e estados.
ou simplesmente “System der Kriminalistik”, que De acordo com O'Hara14, com exceção de
pode ser traduzido como “Manual para Juízes de poucas cidades grandes e capitais de estados, a
Instrução”. A literatura deixa dúvidas quanto a data investigação criminal nos EUA, nos anos de 1950,
da primeira edição deste trabalho: 1870, 1883 ou não se mostrava adequada às mais simples
5,7e20
após 1890 . necessidades. Isto se deveria principalmente a
Em continuação, Edmond Locard, médico e incapacidade dos serviços policiais em atrair
advogado, aluno de Lacassagne e de Bertllon, pessoas competentes e à carência de literatura
passou a estudar os indícios deixados pelos sistematizada, a qual era fortemente influenciada
criminosos nos locais de crime. Em 1910, Locard pela literatura médico-legal relacionada com crimes
criava o Laboratório de Polícia Técnica de Lion20. contra a vida. Assim, as técnicas utilizadas nos
Apesar de contraditório, a origem da exames da prova material não mostravam
Criminalística pode ser vislumbrada até mesmo na
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novidades e o número de laboratórios policial não Médico Legal oficial de São Paulo, o qual havia sido
apresentavam um crescimento significativo. oficializado em 188619.
No Rio de Janeiro, a Medicina Legal oficial
A Ciência Forense no Brasil foi transferida da autoridade judiciária para a Polícia,
No Brasil, a origem da Criminalística em 1856. Para isso, criou-se uma assessoria
também se confunde com a Medicina Legal. Essa médica junto à Secretaria de Polícia da Corte. A
última teve forte influência da escola francesa9. assessoria era composta por dois médicos efetivos,
Segundo Fávero19, no período colonial praticamente ligados à Polícia, e dois consultantes, professores
não foram produzidos trabalhos científicos de universitários de Medicina Legal, responsáveis
Medicina Legal. Este autor situa a primeira principalmente pelos exames toxicológicos25.
publicação nacional de Medicina Legal em 1814, do Segundo Aldé25, em 1900, a assessoria médica foi
autor Gonçalves Gomide, médico e senador do transformada em Gabinete Médico-Legal e dois
Império: “Impugnação analítica ao exame feito pelos anos depois, Afrânio Peixoto, renomado
clínicos Antônio Pedro de Sousa e Manuel Quintão pesquisador acadêmico da época, apresentou um
da Silva”. plano de reformulação do Gabinete Médico-Legal da
A partir de 1832 foram criadas as Polícia para implantar as mais avançadas práticas
Faculdades de Medicina que exigiram teses como de Medicina Legal utilizadas na Alemanha.
pré-requisito à obtenção do grau de doutor. Com Posteriormente, o Gabinete é transformado em
isso avultaram-se os trabalhos em medicina no Serviço Médico-Legal através de decreto de 1907.
Brasil e em 1839 aparecem as primeiras teses de Todavia, segundo Ribeiro26, as relações
Medicina Legal. Ainda segundo Fávero19, de 1839 a entre a Medicina Legal acadêmica e a oficial logo
1877 não há nenhum trabalho realmente original, a desandaram, surgindo uma grande resistência dos
exceção ficou por conta da Toxicologia, onde foram peritos oficiais em dividir o espaço do IML com as
produzidos trabalhos inovadores, principalmente por aulas públicas da Faculdade de Medicina. Alguns
Francisco Ferreira de Abreu, O Barão de diretores chegaram inclusive a proibir as aulas da
Teresópolis. faculdade no IML do Rio de Janeiro, levando à cisão
A partir de 1877 inicia-se uma nova fase da entre o conhecimento produzido nas faculdades e a
Medicina Legal brasileira, com a entrada de atuação dos profissionais oficiais. Em 1949, foi
Agostinho José de Sousa Lima para a Faculdade de inaugurado o novo “Instituto Médico-Legal Afrânio
Medicina do Rio de Janeiro. Dentre suas várias Peixoto”. Esse prédio abrigaria na década de 50 as
contribuições, está a criação do ensino prático de melhores tecnologias em Medicina Legal do mundo.
Medicina Legal, desenvolvendo a parte de E seu prestígio ainda estaria relacionado ao intenso
25
laboratório; inauguração do primeiro curso prático intercâmbio com a academia .
de tanatologia forense no necrotério da Polícia da Como exposto, no início do séc. XX, as
Capital Federal, em 1881, além de vasta produção funções do perito legista e perito criminal ainda se
em revistas científicas da época19. confundiam. Por exemplo, Gomes9, dá instruções
Posteriormente, com Raimundo Nina sobre o exame de local para legistas, inclusive de
Rodrigues, inaugura-se uma época de grande coleta de vestígios (manchas, objetos, pegadas e
evolução científica e a nacionalização da Medicina impressões digitais), além de fotografias e custódia
Legal. Nina Rodrigues considerava que os de evidências. Ferreira10 menciona como
problemas médico-legais e de criminologia brasileira pesquisadores pioneiros da datiloscopia os
diferiam dos europeus, uma vez que as condições seguintes nomes: Felix Pacheco, Afrânio Peixoto,
físicas, psíquicas e sociais de nosso país eram Elísio de Carvalho, Manoel Viotti e Leonídio Ribeiro,
totalmente diferentes. Diversos discípulos todos legistas.
originaram-se da escola baiana de Nina Rodrigues, Em relação à perícia de armas de fogo, este
destacando-se Afrânio Peixoto, Oscar Freire, mesmo autor apregoa que o legista deveria possuir
Leonídio Ribeiro e Flamíneo Fávero23. conhecimentos indispensáveis sobre as armas de
Durante este período a Medicina Legal das fogo e sua munição, pois seria esse profissional que
academias estava estreitamente associada ao orientaria e dirigiria a perícia para fornecer à justiça
serviço médico legal do Estado realizado pelos os informes necessários. Apesar de reconhecer a
peritos oficiais. Assim, Oscar Freire consegue colaboração de um perito especialista em armas de
viabilizar um acordo entre a Faculdade de Medicina fogo10.
e o Governo do Estado da Bahia, em 1913. Em Não se pode negar que os primeiro estudos
1914, Freire funda a Polícia Científica em Salvador de vestígios de disparos de armas de fogo foram
ao trazer da Suíça para palestras na cidade o Perito feitos no Brasil por peritos legistas. Oscar Freira,
Criminal Reiss24. Em seguida, vai para São Paulo Moisés Marx e Gastão Fleury da Silveira, sob
onde inaugura a pesquisa Médico-Legal no estado, orientação de Flamínio Fávero, reviu-os em tese
contribuindo para o início do Instituto de Medicina que publicou e defendeu em 1926 na Cadeira de
Legal da Faculdade de Medicina (atual Instituto Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São
Oscar Freire) a partir de 1922. Posteriormente, este Paulo10.
instituto foi dirigido por Flaminio Fávero por 32 anos. Diversos reagentes para identificação de
Entretanto, nesta época já funcionava o serviço manchas de sangue foram desenvolvidos por
Amado Ferreira, médico formado na Faculdade de
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Medicina de São Paulo. Já o sistema Vocetich, de a existência de uma perícia autônoma não era vista
identificação papiloscópica, foi implantado no Brasil com bons olhos.
a partir de 1902. Este sistema já se encontrava em Os descaminhos históricos da Criminalística
uso no Gabinete de Identificação fundado em 1903 através da tutela pelos órgãos policiais contribuíram
no Rio de Janeiro, Capital Federal3e4. Grandes para as condições inadequadas e tecnologicamente
nomes como Félix Pacheco, Carlos Éboli, Evaristo atrasadas e para a atual desvalorização profissional
de Veiga, Hélio Gomes e Leonídio Ribeiro são encontrada na maioria dos Institutos de
destacados iniciadores da Criminalística, apesar da Criminalística brasileiros.
formação médica da maioria3.
No estado fluminense, apenas entre os Agradecimentos
anos de 1943 e 1944 foi criada a Diretoria Geral de
RGG agradece à Profa. Dra. Fabíola de S.R.G.
Investigações que englobava o Instituto de
Garrido pelas correções sugeridas.
Identificação Félix Pacheco, o Instituto Médico Legal
e o Gabinete de Pesquisas Científicas, originário do ____________________
Instituto de Criminalística27. A Criminalística e a
1DANIEL In: BAZAGLIA, P.; BORTOLINI, J. (Eds.). Bíblia de
Medicina Legal tiveram sua época de ouro no Rio Jerusalém. São Paulo: Paulus, 3 Imp., 1552-1583p., 2004.
de Janeiro durante as décadas de 40 a 60. No 2.BARBOSA, V. C.; BREITSCHAFT, A. M. S. An experimental
entanto, segundo Aldé25, a partir do golpe militar de apparatus to study the Archimedes' principle. Rev. Bras. Ens. Fis., São
64, houve uma crescente deterioração das Paulo, v. 28, n. 1, p.115-122, 2006.
3. CODEÇO, A. G. Elementos Básicos da Perícia Criminal. Rio de
condições de trabalho e de desvalorização salarial. Janeiro: Lélu, 1991.
Aliado a isto, soma-se a prioridade do Governo em 4DOREA, L. E. Local de Crime. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto. 1995.
investir mais em aparatos de repressão do que em 5.RABELLO, E. Curso de Criminalística. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto,
inteligência investigativa e científica. Isso fez com 207p.,1996.
6.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CRIMINALÍSTICA-ABC,
que a Criminalística e a Medicina Legal durante os disponível em <www.abcperitosoficiais.org.br>. Acesso em 20 out.
anos que se seguiram após 1964 fossem sempre 2006.
relegadas a segundo plano no que concerne aos 7.GIALAMAS, D. M. Criminalistics. In: SIEGEL, J.; KNUPFER, G.;
investimentos da Segurança Pública, chegando à SAUKKO, P. (eds). Encyclopedia of Forensic Sciences. p.471-477,
2000.
década de 1990 em condição de penúria. 8.MONAGHAN, G. P. Introdução. In: O’HARA, C. E.; OSTERBURG,
Atualmente, a carência de materiais e J. W. Introdução à Criminalística. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura
equipamentos; o atraso tecnológico e teórico e a S.A., 1964.
9.GOMES, H. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1
desvalorização profissional é tamanha que se ed., 1944.
poderia dizer que muitos institutos pararam no 10.FERREIRA, A. A. Da técnica Médico-legal na investigação forense.
tempo há cerca de 40 anos28. Certamente, nesse Volume I. São Paulo: Editora Rev. dos Tribunais, 1962.
11.DOREA, L. E.; STUMVOLL, V. P.; QUINTELA, V. Criminalística.
período as atividades periciais foram quase In: TOCHETTO, D. (Org.). Tratado de Perícias Criminalísticas. 3 ed.
totalmente desvinculadas da produção de saber das Campinas: Millennium, 2006.
universidades, o que contribuiu ainda mais para o 12. FRANÇA, G. V. de. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabar
atual cenário. A total desvinculação desse Koogan, 2001.
13. INMAN, K.; RUDIN, N. The origin of evidence. Forensic Sc. Int.,
conhecimento só não ocorreu pela manutenção da 126, p.11-16, 2002.
Medicina Legal como disciplina de cursos de Direito 14.O’HARA, C. E.; OSTERBURG, J. W. Introdução à Criminalística.
e Medicina nas principais instituições de ensino Rio de Janeiro: Fundo de Cultura S.A., 1964.
15.PORTO, G. Manual de Criminalística. São Paulo: Sugestões
superior brasileiras. Assim, manteve-se algum Literárias S.A., 1969.
contato com a forma de produção do saber 16.BOUZON, E. Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 2003.
acadêmico, lugar que a Criminalística vem tentando 17. CAVALCANTI, A. Criminalística Básica. Porto Alegre: Sagra
Luzzatto, 3ed., 1995.
recuperar nos dias atuais. 18. GARRIDO, R. G. Criminalística: uma grande área de atuação
biomédica. Revista do Biomédico, n 50, Nov/Dez, p.22-23, 2002.
19.FÁVERO, F. Medicina Legal. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 10
Conclusões ed., 1975.
20.CARVALHO, J. L.de. Fundamentos da Perícia Criminal. 1ed.
Não se pode datar com exatidão a origem da Campinas: Bookseler, 2006.
Criminalística, sabe-se, no entanto, que seu início 21. TWAIN, M. Life on The Mississipi. New York: Classics Mass M.
Paperback, 1983.
foi fragmentada, proveniente de disciplinas 22. WALLANDER, A. W. Prefácio. In: O’HARA, C. E.;
independente. Grande parte dos conhecimentos de OSTERBURG, J. W. Introdução à Criminalística. Rio de Janeiro: Fundo
Criminalística derivaram da Medicina Legal e, de Cultura S.A., 1964, p.10-11.
posteriormente, constituíram corpo de conhecimento 23. GOMES, H. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos,
1 ed., 1987.
próprio. 24. GALVÃO, L. C. C. Estudos Médico-Legais. Porto Alegre: Sagra-
No Brasil, a Ciência Forense surgiu de Luzzatto. 1996.
investigações individuais realizadas no seio das 25.ALDÉ, L. Ossos do ofício. Processo de trabalho e saúde sob a ótica
universidades, por Médicos Legistas, na sua dos funcionários do Instituto de Medicina Legal do Estado do Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, Rio de Janeiro:
maioria. À medida que a Criminalística se tornou Fiocruz, 2003.
atividade de polícia, distanciou-se cada vez mais da 26. RIBEIRO, L. De médico a criminalista. Rio de Janeiro: Livraria São
academia, sofrendo grande decadência. Isso se José, 1967.
acentuou sobremaneira após o golpe de 1964, onde

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27.SOUZA, E. R.de; MINAYO, M. C. de S.; ASSIS, S. G.de.


Construção Histórica de uma Categoria Social. In: MINAYO, M. C. de
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