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Estado de Santa Catarina

Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável


Junta Comercial do Estado de Santa Catarina
Procuradoria Geral

Parecer n.º 111/10

Processo nº 10/161197-8.

Alteração contratual. Transmissão de


cotas. Arquivamento condicionado ao
esclarecimento, no ato, sobre o “caráter
oneroso ou gratuito” da transmissão. Exigência
baseada na Lei Estadual nº 14.967, que deu
nova redação ao art. 6º da Lei Estadual 13.136.
Descabimento da exigência. Incidência dos
princípios da liberdade de contratar e da
legalidade estrita. Procedência do pedido de
reconsideração.

Trata-se de pedido de reconsideração de exigência oposta


ao pretendido arquivamento da 1ª alteração contratual da empresa FMF
ADMINISTRADORA DE BENS LTDA. Segundo a exigência impugnada,
“deve constar no ato a declaração de venda”.
Conforme exigência anterior, havia a necessidade de
apontar a “forma de cessão ou transferência de quotas, onerosa (venda) ou
doação”, tendo em vista a imposição legal de condicionar o arquivamento do
ato ao recolhimento do ITCMD. Diante disso, a requerente teria apresentado
cópias do contrato de cessão de cotas (instrumento que não consta, todavia,
dos autos), comprovando ter havido a compra e venda. Ainda assim, segundo
o analista, é preciso que esta circunstância – o fato de que as cotas tenham
sido transferidas por ‘compra e venda’ e, consequentemente, a título oneroso –
seja declarada no ato sob exame.
Alega a requerente ser ilegal a exigência, que violaria o
princípio da liberdade contratual.

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A questão em análise traz à tona as discussões encetadas a


partir da Lei Estadual nº 14.967, que deu nova redação ao art. 6º da Lei
Estadual 13.136, que por seu turno dispõe sobre “o Imposto sobre
Transmissão Causa Mortis e doação de quaisquer Bens ou Direitos –
ITCMD”. Eis o teor do dispositivo, na redação atual:
“Art. 6º Respondem solidariamente pelo
pagamento do tributo e demais acréscimos:
d) o servidor da Junta Comercial do Estado
de Santa Catarina – JUCESC, ou do Cartório de Registro Civil e
das Pessoas Jurídicas que promover o registro ou o
arquivamento de ato que implique transferência não onerosa de
bens ou direitos de pessoa jurídica ou de empresário, sem a
comprovação de pagamento do imposto de transmissão”.
Diante desta inovação legal, houve manifestação do E.
Conselho de Vogais da JUCESC instruindo os servidores a exigirem, nas
hipóteses mencionadas no dispositivo, o comprovante do recolhimento do
tributo referido.
A questão que se põe, aqui, é a seguinte: nas hipóteses em
que prevista a transferência de cotas, em não sendo citada a causa jurídica
desta transferência, é possível condicionar o arquivamento do ato a este
esclarecimento? Pondo a questão sob outra forma: se o caráter ‘oneroso’ ou
‘gratuito’ da transferência de cotas não é esclarecido no ato, é lícito exigir,
como condição a seu arquivamento, que as partes o esclareçam?
A resposta é negativa. Dois princípios – onipresentes no
âmbito do registro empresarial – fundamentam-na.
Primeiramente, o princípio da liberdade contratual.
Assim como as partes podem dispor sobre tudo o que não
seja vedado pela lei, podem omitir-se sobre tudo o que a lei não impõe que
esclareçam. O contrato social, cuja alteração previu a transferência de cotas,
não necessariamente deve trazer o conteúdo do ato particular – entre
transmitente e adquirente – de transmissão das cotas. Este ‘ato’ repercute, sem
dúvida, sobre o contrato social, na medida em que influi na divisão do capital
social. Todavia, as disposições específicas ao ato de transmissão das cotas –
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causa jurídica, preço, condições de pagamento, etc – são indiferentes ao


contrato plurissubjetivo sobre o qual aquela transmissão repercute. Trata-se de
atos jurídicos distintos, ainda que interligados.
Sobre o tema, consta do parecer 91/08:
“[É] preciso lembrar que este ‘contrato
social’ – que não é senão o contrato plurissubjetivo a que aludia
Ascarelli, resultante das vontades convergentes dos sócios –
traduz-se num feixe de relações jurídicas que ligam os sócios à
sociedade; e é preciso lembrar, também, que cada uma destas
relações determina situações jurídicas – na forma de direitos e
deveres – que, por si mesmas, podem ser objeto de negócio
jurídico. O próprio Ascarelli se referia aos pactos adjetos que
orbitam em torno do contrato social e que, naturalmente,
repercutem sobre este último. A realidade em que se manifesta o
contrato social é aberta, permeável, sujeita tanto à convergência
das vontades dos sócios quanto às divergentes iniciativas que
cada um deles, em particular, pode realizar”.
O ato jurídico objeto do registro empresarial é o contrato
social; o ‘ato’ que prevê a transmissão de cotas, ainda que possa vir a ser
arquivado, não é indispensável ao arquivamento daquele contrato e de suas
sucessivas alterações. Em suma: o registro de alteração contratual que preveja
modificação na divisão do capital social não é condicionado ao do ‘ato’ que
preveja a transmissão de cotas que motivou aquela modificação. Logo,
tampouco é necessário que aquela alteração retrate todo o conteúdo do ‘ato’ de
transmissão. A lei não exige, insisto, que os sócios mencionem qualquer dos
aspectos específicos deste ‘ato’ – até porque este não é um ‘ato’ dos sócios,
mas de apenas um deles, que dispõe sobre sua participação no capital social.
Donde a conclusão: se a lei não impõe que a alteração
contratual mencione a causa jurídica do ‘pacto adjeto de transmissão das
cotas’, são livres as partes para não mencioná-la no contrato social. Sem lei
que imponha aos sócios, nas alterações do contrato social que prevejam a
transmissão de cotas, esclarecer se tal transmissão deu-se a título oneroso ou
gratuito, tal esclarecimento não pode ser exigido.
E aqui, exatamente, deve ser invocado o segundo
princípio a reger a hipótese: a legalidade estrita. A Junta Comercial exerce

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função pública; só pode agir, portanto, segundo a lei. Se é imposta uma


condição ao arquivamento de um ato, é preciso que a mesma tenha previsão
legal. Logo, se não há lei que imponha a menção, na alteração contratual, ao
caráter “gratuito ou oneroso” da transmissão de cotas, tal exigência não pode
condicionar o pretendido arquivamento. E, se não há menção expressa ao
eventual caráter “não oneroso” do negócio, não se pode depreender ou
presumir a hipótese de incidência do imposto – e portanto não se pode exigir,
com base nas supracitadas disposições legais, a prova do respectivo
recolhimento. O princípio da legalidade estrita rege também o direito
tributário.
Se esta conclusão frustra interesses do Ente Fiscal, ou se
mitiga a efetividade das disposições legais – de mui questionável
constitucionalidade – antes referidas, trata-se de uma questão indiferente à
Junta Comercial. Esta é uma Entidade cujas funções são relacionadas ao
registro empresarial, não ao recolhimento de tributos. Se a lei, com vistas a
incrementar a atividade fiscal, impõe determinadas formalidades ao
arquivamento de atos empresariais, cabe à Junta Comercial observá-las –
ainda que a jurisprudência do STF, em entendimento pacificado há já muitos
anos, tenda a coibir tal expediente; do contrário, nenhuma “colaboração” pode
a Junta Comercial prestar àqueles propósitos. A atividade deste órgão de
registro empresarial pauta-se inteiramente na lei, e volta-se aos propósitos que
a própria fixa. Nada que seja alheio a isto, à lei e a seus propósitos, é
permitido.

Ante o exposto, opina-se pela procedência do pedido de


reconsideração.

Florianópolis, 29 de junho de 2010.

Victor Emendörfer Neto


Procurador da Jucesc

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