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Arlequim (Harlequin) - Morris West-Www - Livrosgratis
Arlequim (Harlequin) - Morris West-Www - Livrosgratis
Arlequim
CÍRCULO DO LIVRO
CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil
Edição integral
Titulo do original: "Harlequin"
Copyright © 1974 by Compania Financiera Perlina S.A.
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
Layout da capa: Yae Takeda e Cristiano Quirino
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Distribuidora Record
de Serviços de Imprensa S.A.
Venda permitida apenas aos sócios do Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias
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Para Sheila
Basil Yanko chegou vinte e cinco minutos depois das três horas, tarde
demais para justificar uma desculpa e apenas o suficiente para sugerir uma
descortesia deliberada. Ele pediu desculpas, é claro, mas de forma tão
negligente que serviu apenas para acentuar o insulto. Esperava que
pudéssemos concluir a reunião com alguma rapidez, pois tinha um encontro
em Pleasantville às seis horas da tarde e queria evitar o tráfego da hora do rush.
Seu carro estava estacionado na garagem subterrânea e queria que seu
motorista fosse avisado pouco antes de terminar a reunião. Era tudo calculado
para nos deixar irritados e fazer com que a reunião começasse nervosamente.
Fiquei furioso, mas Arlequim permaneceu tranqüilo.
Só depois que nos ajeitamos em torno da mesa é que Yanko fez uma
referência à minha aparência.
— O que aconteceu com seu rosto, Sr. Desmond?
— Um acidente. Tenho também uma costela quebrada. Mas o médico
disse que sobreviverei.
— Espero que esteja segurado.
— Estou, sim.
— Pois vamos logo tratar dos negócios. Acredito que já tenha pensado
sobre minha oferta, Sr. Arlequim.
— Já, Sr. Yanko.
— Então concorda que é uma oferta generosa?
— Concordo.
— Isso quer dizer que vai aceitá-la?
— Não, Sr. Yanko. Eu a recuso.
— Está esperando que eu aumente a oferta?
— Pelo contrário, espero que a retire.
Por um instante uma sombra de surpresa surgiu em seu rosto, mas logo
os lábios se contorceram num sorriso.
— E por que eu deveria fazê-lo, Sr. Arlequim?
— Talvez venha a descobrir que essa é a atitude mais prudente.
— Isso não é uma ameaça, não é mesmo, Sr. Arlequim?
— É um conselho, Sr. Yanko. E, a esta altura, ainda amigável.
Basil Yanko recostou-se na cadeira, juntou as mãos, dedo contra dedo,
erguendo-as depois à altura dos lábios descorados, os olhos velados. Tornou
então a sorrir e disse suavemente:
— Sei o que está pensando, Sr. Arlequim: que sou um homem
ganancioso, vulgar e grosseiro, um colega nada adequado para um cavalheiro
europeu como o senhor. Pensa em levantar dinheiro suficiente para confirmar
suas opções e comprar todas as ações minoritárias, mesmo que isso signifique
um prejuízo irreparável. Se assim agir, tenho duas alternativas. Posso elevar a
oferta de forma a que lhe seja impossível cobri-la. Ou posso também mover-
lhe uma série de processos, civis e criminais, em todas as jurisdições onde
opera. Processos por perdas e danos, por fraudes, por estelionato, enfim, por
todos os crimes previstos na lei. E nem preciso ganhar os processos, Sr.
Arlequim. No momento em que as queixas forem apresentadas diante de um
tribunal, o senhor estará arruinado. O banco enfrentará uma crise de
confiança. E, ao final, de qualquer maneira, eu terminarei me apoderando
dele...Não acha que é melhor sermos razoáveis, Sr. Arlequim?
Era a mais arrogante exibição de poder, nua e crua, a que eu já assistira.
Senti-me envergonhado, humilhado e furioso o bastante para cometer um
assassinato.
George Arlequim, no entanto, pareceu não se abalar. Não havia o
menor vestígio de tremor na mão ou na voz, o menor indício de paixão em
sua resposta:
— Estou surpreso, Sr. Yanko. Parece que eu o respeito mais do que o
senhor a si mesmo. É um homem de inteligência excepcional. Por isso, não
posso compreender como pode empenhar-se numa tática tão grosseira. A
menos, é claro, que seja uma tática de desespero...
Basil Yanko riu. Não era um som agradável de se ouvir, mas um ruído
dissonante e áspero, cruel, de zombaria.
— Desespero nenhum! Arlequim, você está meio século superado. Isto
é negócio! Ao estilo americano, da década de 70! Não sou um gnomo suíço a
perder tempo com frivolidades no Clube dos Banqueiros! Você não
encontrará, em qualquer mercado do mundo, um negócio melhor do que o
que estou lhe oferecendo. Se quer discuti-lo, muito bem!
Estou aqui para ouvi-lo. Mas, se recusar a minha oferta, então terá que
agüentar as conseqüências!
— Dê-me licença por um momento. Arlequim levantou-se e foi até a
porta.
— Preciso tomar um copo de água. Yanko virou-se para mim.
— Pelo amor de Deus, Sr. Desmond! Ele é seu amigo e o senhor
conhece as regras do jogo. Veja se consegue fazer com que entre um pouco de
juízo naquela cabeça!
— De que maneira, Sr. Yanko? Possuo apenas uma participação
nominal. Quando deixar de ser diretor, terei que devolvê-la, pois está em
usufruto. A idéia foi sua, Sr. Yanko. Divirta-se agora.
Arlequim voltou logo depois, enxugando os lábios com um lenço.
Sentou-se, esticou as pernas por baixo da mesa e retomou a conversa:
— Onde estávamos? Ah, sim! No ponto em que eu teria de agüentar as
conseqüências caso recuse sua oferta. Mas antes que tome qualquer iniciativa
precipitada, Sr. Yanko, permita-me que lhe enumere alguns fatos. Primeiro:
tenho em meu poder um dossiê completo sobre sua vida e suas atividades
profissionais. Levaram dois anos compilando todos os fatos e devo dizer que
nem tudo lhe faz crédito. Alguns detalhes apontam-no até como um colega
altamente indesejável. Segundo: sou, como bem sabe, um acionista substancial
da Creative Systems Incorporated e de suas subsidiárias. Tenho direito a voto nas
assembléias e certos direitos para proceder a investigações legais nos negócios
de suas companhias. Terceiro: a Creative Systems depende da confiança pública
tanto quanto a Arlequim et Cie. E depende muito mais da confiança política,
para manter e executar vultosos contratos governamentais. Quarto: a
confiança política ficaria profundamente abalada se eu provasse que os altos
escalões da Creative Systems ou até mesmo seu presidente estão ligados ou
empenhados em atividades criminosas. Quinto: acredito que, se tais provas
existem, é meu dever, como acionista e como honrado homem de negócios,
solicitar uma investigação por parte dos órgãos governamentais. Sexto: e tais
provas existem, Sr. Yanko, e estão à minha disposição.
Basil Yanko sacudiu os ombros e ergueu as mãos, num gesto de
desprezo.
— Então cumpra seu dever, Sr. Arlequim. Use-as!
— Infelizmente não está acreditando em minhas palavras, Sr. Yanko.
— Para dizer a verdade, não.
— Então vou referir-me apenas a um pequeno assunto. O seu
motorista está esperando lá embaixo. Minha secretária acaba de telefonar-lhe,
como havia pedido. O nome dele é Frank Lemmitz. Agindo por ordens suas,
ele contratou um criminoso conhecido, chamado Bernie Koonig, para vigiar o
apartamento do Sr. Desmond. Ele assim o admitiu a investigadores
particulares que trabalham para mim. Foi esse mesmo Bernie Koonig o
responsável pelo bárbaro espancamento de que o Sr. Desmond foi vítima na
noite passada. Temos depoimentos assinados sobre a ocorrência, prontos para
serem entregues à polícia...Mas isto é apenas a ponta do iceberg, Sr. Yanko.
Há muito mais por baixo da água. Compreende agora por que lhe aconselhei
prudência?
Que se dê ao diabo o crédito que merece: Yanko absorveu o golpe
muito melhor do que eu esperava. Conseguiu até ensaiar um sorriso débil e
gelado de aprovação. Suas primeiras palavras foram endereçadas a mim:
— Lamento que se tenha machucado, Sr. Desmond. Pode estar certo
de que não tive nada a ver com isso. Também tenho que pedir-lhe desculpas,
Sr. Arlequim. Parece que o subestimei.
— Isso é sempre perigoso num mercado incerto como este em que
operamos.
— Mas prometo que não tornará a acontecer. Aconselha a que retire
minha oferta, não é mesmo? Suponhamos que eu retire a ameaça e mantenha
a oferta?
— Então estaremos mantendo um relacionamento de negócios normal,
contra o qual não há objeção na lei, nem na prática usual.
— E de sua parte, Sr. Arlequim?
— Posso declarar que não é necessário que eu tome nenhuma iniciativa
oficial, tendo em vista que a Creative Systems está sob investigação pelo FBI, e
enquanto nosso relacionamento comercial permanecer normal. A informação
à minha disposição será apenas, digamos assim, uma política de segurança.
— Não gostaria de cedê-la a um bom preço?
— Não.
— Eu já sabia que ia recusar. Bom, vamos resumir a situação. Fiz-lhe
uma oferta. Recusou-a; aconselhou seus acionistas a fazerem o mesmo. É uma
pena que tenhamos chegado a este impasse, mas em sessenta dias muita coisa
pode acontecer...Boa tarde, senhores.
Não havia tempo para comentários, pois tínhamos que despachar os
telegramas para os acionistas, as cartas de confirmação tinham de ser
datilografadas e postas no correio. Os advogados chegaram, com uma
declaração tão fraca e lamuriosa que Arlequim amassou-a num gesto de
desprezo. Resolvemos ficar com nosso segundo rascunho. Julie voltou no
meio da confusão e pediu que lhe relatássemos os acontecimentos do dia.
Queria saber também por que eu me parecia com um ferido em combate, o
que trouxe à baila, de forma final e definitiva, o problema do quanto lhe
deveríamos contar.
A opinião de Arlequim era de que ela deveria saber de tudo. Aleguei
que era um privilégio meu mantê-la na ignorância de certas coisas, porque fora
minha cabeça que se colocara no cepo e Aaron Bogdanovich não iria gostar.
Julie argumentou, com bastante razão, que era muito difícil dormir com um
homem se não pudesse conversar com ele; que, se havia riscos a correr, ela
deveria compreendê-los; que, se ele podia confiar numa secretária, por que
não numa esposa? Insisti num argumento que me provocou calafrios: quanto
mais ela soubesse, mais vulnerável se tornaria; eu tinha até as cicatrizes para
provar que não estávamos brincando. Ao que Julie respondeu, com extrema
compostura, que éramos um pequeno grupo de amigos enfrentando um
mundo hostil. Se a confiança não fosse partilhada, o grupo não conseguiria
permanecer unido. Capitulei então e Arlequim contou-lhe tudo. Julie ficou
chocada ao ver quão profundamente estávamos comprometidos e o quão
perto estávamos da selva impiedosa. Ficou também envergonhada por sua
leviandade, furiosa por a termos deixado tanto tempo na ignorância. Ela se
recusava a ser novamente protegida e mimada.
Arlequim ficou mais feliz. Podia agora raciocinar abertamente na
assembléia familiar. Podia admitir suas necessidades, ao invés de escondê-las
por trás de uma máscara de sorrisos e polidez. Até mesmo sua aparência ficou
diferente. A fala tornou-se mais vigorosa, os gestos, menos contidos. De certa
forma, mais simples e também mais singular, ele era como um monge que
descobrira subitamente a chave para seu próprio coração.
Jantamos espaguete e vinho no Bertolo's. O espaguete foi idéia de Julie.
Ela calculou que eu teria mais facilidade
em mastigar espaguete do que um bife. Pedimos ao acordeonista que
tocasse canções antigas e sentimentais. Demo-nos as mãos e cantamos.
Brindamos à morte e à perdição dos ímpios, enquanto Arlequim entoava
maldições em tantas línguas quantas se podia lembrar, a fim de que Basil
Yanko não pudesse escapar ileso. Éramos como pessoas em tempo de peste,
reunidas em torno da fogueira e da garrafa, cantando para expulsar o
Demônio da nossa porta. Mas o Demônio estava presente e nós o sabíamos
perfeitamente: era a infecção de violência e terror que se alastrava. No
momento em que deixássemos o círculo mágico, seríamos novamente presas
dele.
Ao voltarmos para o Salvador, de braços dados, as tensões do dia
subitamente me dominaram e senti-me fraco e nauseado. Descansei por um
momento na suíte de Arlequim, mas não melhorei. Suzanne declarou que iria
levar-me de táxi para casa e passaria a noite em meu apartamento. Protestei,
mas fui firmemente vencido. Meia hora depois, estava acomodado em minha
cama e dopado por sedativos, enquanto Suzanne e Takeshi preparavam chá na
cozinha. Não podia acontecer e sabia que jamais aconteceria, mas não pude
deixar de pensar, sonolento, como seria ter uma mulher em minha casa todos
os dias.
Saul Wells falava cem palavras por minuto, andando de um lado para
outro, soltando baforadas e espalhando cinzas e frases esparsas de conselho.
— Ambos são estrangeiros. Estão me pagando para descobrir as coisas.
Assim, quando o barulho começar, deixem que eu fale tudo...Tudo o que
precisam dizer é que o caderninho caiu na caixa de correspondência como
dinheiro chovendo do céu. É claro que sabem o conteúdo dele. Eu também
sei. Tenho cópias fotostáticas de todas as páginas. Isso é normal. Sou um
agente de segurança, registrado e licenciado. Mas sou também um homem de
negócios, à procura de novos clientes. Entro em contato com as outras
empresas relacionadas no caderninho, contatos de alto nível, na base do mais
estrito sigilo, e com sua permissão, Sr. Arlequim. O senhor levou um golpe, o
mesmo pode acontecer com as outras empresas. Os diretores ficam
agradecidos...e também assustados. Assim que eu saio, eles telefonam para
Basil Yanko. Ele fica preocupado...e é exatamente isso o que estamos
querendo. Enquanto isso, a polícia se apodera do caderninho e o FBI também
toma conhecimento dele. A polícia está preocupada com um assassinato. O
FBI está preocupado com a segurança nacional, fraude internacional e uma
porção de grandes companhias a pressioná-lo. Terá que responder a duas
perguntas embaraçosas, Sr. Desmond: quem poderia ter-lhe enviado o
caderninho e por quê? Eles tentarão descobrir as respostas por vinte
caminhos diferentes, mas sempre voltarão a procurá-lo. A resposta será
sempre a mesma: o senhor não tem a menor idéia.
— Terei então que mentir.
— Viu o envelope sendo entregue?
— Não.
— Pode ler mentes?
— Não.
— Como poderá então estar mentindo? Não se sinta culpado, amigo,
pois isso é fatal. Não matou ninguém, não roubou nada. É um banqueiro
estrangeiro, que contratou ajuda local e quer agir rigorosamente de
conformidade com
a lei...Agora a sua parte, Sr. Arlequim. Disse a Yanko que estava de
posse de um dossiê sobre ele. Mande copiá-lo agora mesmo. Se o FBI lhe
pedir o original, terá que entregá-lo... isso pressupondo que Yanko lhes fale a
respeito.
— Ele seria tolo o bastante para isso?
— Não seria uma tolice, Sr. Arlequim. Pelo contrário, seria uma
manobra bastante esperta. Yanko opera alguns contratos consideravelmente
delicados e já foi investigado uma centena de vezes. Quando se trabalha para
o governo, não é necessário ter uma ficha limpa, contanto que se façam
confissões honestas nos interrogatórios. Está chocado? Meu caro Sr.
Arlequim, quando se contrata um homem para projetar um sistema de mísseis,
compra-se o seu talento e esquecem-se seus pecados. Enquanto tais pecados
estiverem arquivados, o esquema é seguro para os dois lados. Terá que
responder também algumas perguntas embaraçosas, Sr. Arlequim. Por
exemplo: suspeita de que Yanko tenha cumplicidade nas fraudes? Vê alguma
relação entre as fraudes e a morte da Srta. Hallstrom?
— Estou preocupado apenas com a coincidência de sua oferta para
comprar meu banco.
— Ótimo. Essa é precisamente a linha que deverá seguir. O fato de ter
chamado a polícia suíça ajudará bastante.
— Há outro problema, Sr. Wells. Disse a Yanko que minhas
investigações haviam constatado uma ligação entre Bernie Koonig e Frank
Lemmitz. Os ferimentos do Sr. Desmond ainda são bastante evidentes.
Provavelmente o problema será levantado.
— Esse ponto está coberto, Sr. Arlequim. Tem um contrato escrito
com a Lichtman Wells. Pode apresentar algum contrato com outro
investigador?
— Não.
— Então relaxe.
— A impressão que tenho, Sr. Wells, é de que estou vivendo em outro
planeta.
— Está enganado, Sr. Arlequim — disse Saul Wells alegremente. — Ê
a mesma velha Terra de sempre. O único problema é que o senhor não tem
circulado o bastante. Agora respire fundo, pois vou chamar a polícia. Depois
contaremos até dez e telefonará para o Sr. Yanko. Só quero ver a cara dele
quando chegar aqui!
Esse prazer, no entanto, lhe foi negado. O Sr. Basil Yanko seguira para
a Europa na noite anterior. Sua secretaria não sabia informar quando voltaria.
A polícia mostrou-se grata, mas bastante vaga. Ouviram em silêncio as
explicações eloqüentes de Wells. Pediram-me que as confirmasse. Tomaram
anotações. Examinaram o envelope, ficaram com o caderninho, assinaram um
recibo por ele, agradeceram-nos pela ajuda prestada e partiram.
Saul Wells ficou desconcertado e infeliz.
— Nós lhes entregamos dinamite e eles a trataram como se fosse fogo
de artifício! Yanko está mergulhado até o pescoço no fracasso e parte
inesperadamente para a Europa! Não estou gostando. Algo está me cheirando
mal.
Arlequim recusou-se a ficar perturbado.
— Isso é teatro, Sr. Wells. O silêncio é mais assustador que a fala. Não
podemos ficar hesitantes e temerosos. Até agora, nossos depoimentos estão
sendo integralmente confirmados. Por favor, mantenhamos a calma.
Foi então que o telefone tocou. Atendi.
Karl Kruger estava na linha, falando de Hamburgo.
— Olá, meu jovem Paul! Como vão as coisas?
— Estamos lutando, Karl. E até agora estamos conseguindo resistir.
— Aí, talvez. Aqui acho que estão se precipitando rapidamente. Foi por
isso que resolvi telefonar. Pediram-me que reunisse um grupo de subscritores
para a emissão de um bônus municipal da Bundesrepublik. Não é nada grande,
mas é uma operação importante. Incluí o nome de Arlequim na relação, mas
eles o cortaram.
— Por que motivos?
— E quem dá as razões? Você sabe perfeitamente como é o mercado,
Paul. E como o menino está se comportando?
— Maravilhosamente.
— Ouvi dizer que ele pretende exercer as opções, a cem dólares por
ação. Isso o transforma num idiota. Onde ele está?
— Aqui ao meu lado. Gostaria de falar com ele?
— Quero, sim. Há uma reunião em Frankfurt amanhã. Foi Yanko que
a convocou. Alguns dos acionistas de vocês estarão presentes.
— São todos minoritários. E não podemos esquecer também que
Arlequim tem opção para comprar suas participações. A segunda opção é sua.
O que eles podem fazer?
— Podem gritar que o peixe está podre e provocar uma reviravolta no
mercado, só isso. Arlequim deve ser informado. Acho até que ele deveria vir
participar da reunião. Diga-lhe isso.
— Diga-o você mesmo. Vou chamá-lo...George, é Karl Kruger quem
está ao telefone.
Arlequim pegou o telefone e iniciou uma conversa longa e animada, em
alemão. Saul Wells levou-me para a ante-sala e fez-me uma preleção queixosa.
— Ouça-me com atenção, Sr. Desmond! Conheço esta cidade.
Conheço a polícia e o FBI, sei como eles trabalham. Nos jornais, tivemos
apenas uma notícia de meia coluna, depois mais nada. E da polícia, o que foi
que tivemos? Muito obrigado pela informação, perguntas de rotina, tudo
suave como o diabo! Daqui por diante, verifique seus telefones e não fale
coisa alguma diante dos empregados. Vou mandar um homem verificar
diariamente este apartamento e o seu, à procura de microfones ocultos. Se
quiser falar algo em particular, vá para um parque ou até uma biblioteca.
— Está certo, Saul. Seguiremos seu conselho. Mas que diabo, nós não
somos criminosos!
— Eu sei que não. Mas estão agora de posse de informações da maior
importância. Não conhecem todas as companhias relacionadas naquele
caderninho, mas eu conheço. Pelo menos cinco delas são organizações de alta
segurança, trabalhando em projetos de defesa nacional. Portanto, mesmo
sendo irmãos de sangue do presidente, os telefones de vocês poderão ser
controlados. Ambos são estrangeiros, e nós temos medo dos estrangeiros, Sr.
Desmond. Preferimos proteger uma meretriz nascida aqui como Yanko a um
par de virgens estrangeiras...Não faz a menor idéia de como é fácil incriminar
uma pessoa. Já fizeram negócios com a Cortina de Ferro? Já estiveram na
China? Alguma vez já tiveram qualquer ligação com agentes de alguma
potência estrangeira? E como podem explicar as informações de Yanko sobre
o banco? Não é necessário que sejam verdadeiras. Pode ser uma simples
opinião, mas, uma vez impressa nos cartões de um computador, passa a ser
encarada como um evangelho sagrado. Espero que me perdoe o comentário,
mas a verdade é que basta uma simples palavra para transformar a Virgem
Maria em Maria Madalena. O Sr. Arlequim talvez não compreenda tal situação
e...
— Eu compreendo perfeitamente, Sr. Wells. Arlequim estava parado na
porta, vermelho e indignado.
— Procurarão intimidar-nos até a rendição final.
— Não quis ofendê-lo, Sr. Arlequim. Está me pagando para prestar-lhe
um serviço completo, e é precisamente isto o que estou tentando fazer.
— Eu sei, Sr. Wells, e aprecio devidamente seus esforços. Não estou
zangado com o senhor. Estou é afrontado por todo esse caso sórdido,
incluindo essa reunião em Frankfurt e o suborno de colegas meus. Prefiro
padecer no inferno a ceder às pressões de Basil Yanko. Quantas cópias fotos-
táticas nós temos do caderninho de anotações de Valerie Hallstrom?
— O senhor tem uma e eu tenho três.
— Dê-me mais uma.
— O que pretende fazer?
— Sr. Wells, sou um suíço extremamente bem considerado. Vou fazer
uma visita a meu embaixador em Washington. Acho que devemos ir todos
nós, Paul. A mudança de ares nos fará bem. Tenho seu telefone, Sr. Wells.
Pode deixar que o informarei onde poderá encontrar-me.
— Quero avisar-lhe, Sr. Arlequim, que Basil Yanko tem muitos amigos
em Washington.
— Eu sei. Mas nós temos também uma relação de seus inimigos.
— Experimente-os antes de lhes dizer qualquer coisa. Washington tem
um clima engraçado, a que algumas pessoas não se acostumam muito bem.
Desejo-lhe boa sorte.
Dez minutos depois que ele se foi, o chefe da portaria ligou para a suíte.
Um cavalheiro desejava falar com o Sr. Arlequim. Suzanne desceu para
encontrá-lo e descobrir o que ele desejava. Poucos minutos depois ela
apresentou-o pessoalmente: o Sr. Philip Lyndon, do FBI. Ele era jovem,
bronzeado, bem-vestido. A princípio, suas maneiras foram impecáveis. Ficou
satisfeito ao encontrar-me também, dizendo que isso lhe pouparia tempo e
repetição. Em primeiro lugar, queria deixar bem claro que aquela era uma
reunião confidencial, de parte a parte. Estava relacionada com a Creative
Systems Incorporated, com a qual Arlequim et Cie. mantinha ligações como
subscritora, acionista, banqueiro e cliente. Informara-se que a Creative Systems
apresentara uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. O Sr.
Arlequim era o presidente e o maior acionista, não é? E o Sr. Desmond,
também presente...
— Não é suíço, não é, Sr. Desmond?
— Não. Sou australiano. Tenho um visto de negócios.
Portanto, devem ter detalhes pessoais a meu respeito nos arquivos.
— Temos, sim. Qual é sua posição em Arlequim et Cie.?
— Sou diretor executivo.
— Ele é o meu colega de diretoria mais importante e um amigo de
longa data.
— Obrigado, Sr. Arlequim. Agora vamos poupar tempo. Estamos
cientes de suas dificuldades, Sr. Arlequim. Lemos o relatório de suas
operações de computador. Sabemos que contratou a Lichtman Wells para
investigá-las. Tais operações podem vir a ser investigadas também por outros
aspectos.
— Talvez ainda não saiba, Sr. Lyndon, que a polícia suíça já foi
informada de todo o ocorrido e está trabalhando no caso. A operadora de
Nova York implicada no caso, Srta. Ella Deane, está morta. Nossos
advogados informaram-nos que não temos mais nenhum recurso legal nesta
jurisdição, a menos e até que recebamos mais informações de nossos
investigadores.
— Compreendo. Tendo em vista que contratou investigadores
particulares, posso supor que não está satisfeito com o relatório da Creative
Systems?
— Eu não disse isso, Sr. Lyndon. O relatório estava de acordo com o
contrato, que estipula a verificação da segurança do sistema e a indicação de
quaisquer anomalias no funcionamento do programa.
— Certo. Mas foram cometidas fraudes em todas as suas filiais, e até
agora o senhor identificou apenas uma única operadora.
— Os investigadores ainda estão trabalhando nas outras filiais.
— Está convencido de que a Creative Systems não está envolvida na
fraude?
— É difícil responder a essa pergunta sem criar uma falsa impressão.
Há dois pontos a destacar. Primeiro: o relatório exime de culpa todos os
funcionários da Creative Systems, mas não apresenta nenhuma prova a
corroborar tal afirmativa. Segundo: existe a curiosa coincidência de se haver
apresentado uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. logo
depois da entrega do relatório.
— Isso pode ser, é claro, apenas um ato de oportunismo empresarial,
não* muito ético, é verdade, mas também não criminoso.
— É possível.
— Suponho, Sr. Desmond, que tenha agido em todo este caso como
procurador do Sr. Arlequim, não?
— Exatamente.
— Inclusive quando discutiu o relatório com a Srta. Valerie Hallstrom?
— Inclusive.
— E inclusive quando se encontrou com ela em duas outras ocasiões?
— Aí, não. O primeiro encontro foi puramente acidental, o segundo foi
um encontro social.
— Depois do qual ela foi assassinada. Sobre isso, é claro, estamos a par
das investigações da polícia. Sr. Desmond, pediu por acaso à Srta. Hallstrom
que explicasse ou comentasse o relatório?
— Pedi.
— E ela o fez?
— Ela explicou-me o significado. Convidei-a a enunciar suas
conclusões, mas ela recusou, alegando que não tinha ordens para fazê-lo.
— E pressionou-a?
— Não.
— Pediu ou induziu-a a fornecer quaisquer informações sobre a Creative
Systems?
— Não.
— Ela sugeriu que estava disposta a fazê-lo, sob determinadas
condições?
— Não.
— Por que procurou ter um encontro social com ela?
— Sou um homem solteiro. E ela é...era uma mulher atraente.
Arlequim interveio suavemente:
— Acho que poderíamos poupar um tempo precioso ao Sr. Lyndon, se
o informássemos do que aconteceu esta manhã.
— Agradeceria a informação, Sr. Arlequim.
— Esta manhã o Sr. Desmond encontrou em sua caixa de
correspondência um envelope pardo comum, sem carimbo postal nem
endereço do remetente. O envelope continha um caderninho preto e um
bilhete com as palavras "Cumprimentos de Valerie Hallstrom". O caderninho
continha os nomes de diversas empresas, entre as quais a nossa, com os
respectivos códigos de computador. O Sr. Desmond telefonou-me
imediatamente. Encontramo-nos aqui com o Sr. Wells e logo depois
entregamos o caderninho à polícia. Imaginamos que ele seria posteriormente
encaminhado ao FBI. Mas suas perguntas ao Sr. Desmond parecem indicar
que ainda não o receberam.
— Ainda não, Sr. Arlequim.
O Sr. Philip Lyndon estava visivelmente abalado.
— Isso...isso é algo inteiramente novo para mim. Tem certeza quanto
ao conteúdo do caderninho?
— Tenho. Se me der licença por um minuto, irei buscar o recibo da
polícia e uma cópia fotostática dos registros. Sugeri ao Sr. Wells que se
comunicasse com as companhias relacionadas, no caso de elas terem sofrido
também uma quebra da segurança...
— Infelizmente tal atitude é bastante irregular.
— Irregular!
Arlequim, que já ia saindo da sala, estacou bruscamente.
— Irregular como, Sr. Lyndon?
— Os códigos de computador são informação confidencial.
— Eu também pensava que fossem, Sr. Lyndon. E tal erro custou ao
meu banco quinze milhões de dólares...Pronto, aqui estão o recibo e a cópia
fotostática.
— Terei que ficar com eles.
— Não, Sr. Lyndon. Por lei, esses documentos me pertencem. Mas
pode perguntar, delicadamente, se permito que os leve.
— Peço desculpas. Poderia levá-los?
— Pode, Sr. Lyndon. Mas, naturalmente, terá que assinar um recibo.
Ele fechou as páginas, franzindo o cenho e deixando escapar pequenos
murmúrios de aflição. Depois, virou-se para mim.
— Sr. Desmond, poderia informar-me, com detalhes, como esse
caderninho chegou às suas mãos?
Ele queria detalhes e conseguiu-os. Falei sobre meus hábitos matutinos,
a rotina de Takeshi, a coleção de selos de seu sobrinho e, para rematar, a
presença de Suzanne. Ele então formulou a pergunta que realmente
importava:
— Quem lhe enviou o caderninho, Sr. Desmond?
— Não sei.
— Mas deve ter pensado a esse respeito.
— Que horas são, Sr. Lyndon?
— Meio-dia em ponto. Por quê?
— Recebi o caderninho durante o café da manhã, há quatro horas.
Desde então tenho estado numa roda-viva, com o Sr. Arlequim, com Saul
Wells, com a polícia e agora com o senhor. Não tive muito tempo para pensar.
E, por favor, gostaria que considerasse todos os fatos. O que eu iria fazer com
esse caderninho? Vendê-lo? Comê-lo? Trata-se de uma prova material num
caso de homicídio. Quis livrar-me dele o mais depressa possível.
— Não o comprou, por acaso?
— De quem, Sr. Lyndon?
— Talvez da própria Srta. Hallstrom.
— E ela estava vendendo segredos?
— A possibilidade está sendo analisada.
— Mas por que haveria de querer comprá-los?
— Talvez para desacreditar a Creative Systems. Li a declaração que
distribuíram à imprensa esta manhã. Suponho que não estão dispostos a
vender. Mas hão de convir que o preço é bastante atraente para alguns
acionistas.
— Está fazendo uma pergunta ou uma afirmação, Sr. Lyndon?
— É apenas uma hipótese, Sr. Desmond, para estimular a discussão.
— Não haverá mais discussão alguma.
As palavras de George Arlequim eram categóricas. Ele levantou-se e foi
ao telefone, ligando para a telefonista do hotel e pedindo uma ligação para o
embaixador suíço em Washington.
O Sr. Philip Lyndon era um bom interrogador, mas perdeu a calma no
último instante.
— Por favor, Sr. Arlequim, espere um instante. Eu exagerei. Peço
desculpas.
Mas Arlequim estava inflexível.
— Sinto muito, Sr. Lyndon. A reunião está encerrada. Nós lhe
dissemos a verdade. Se não aceita tal fato, em nada mais podemos ajudá-lo.
Considero sua insinuação como extremamente ofensiva. Tenho razões para
acreditar que talvez seja inspirada. Se assim é, isso o desacredita inteiramente
como funcionário do governo...Alô? Erich? Aqui é George Arlequim. Estou
em Nova York. Preciso falar-lhe sobre um problema diplomático de alguma
importância. Mas é melhor falarmos em nossa língua.
Ele conversou durante cinco minutos em alemão-suíço, desligando em
seguida.
— Vamos para Washington, Paul. Sugiro que procure também sua
embaixada assim que chegarmos lá. E agora, Sr. Lyndon, vamos ser claros.
Estamos e estaremos sempre dispostos a fornecer-lhe quaisquer fatos à nossa
disposição sobre assuntos relacionados com sua investigação, a qual, segundo
o Sr. Yanko me informou, versa sobre problemas de segurança nacional. Por
outro lado, porém, devo declarar-lhe que não nos iremos submeter a
interrogatórios insolentes e trataremos de nos proteger, se necessário através
de intervenção diplomática.
— É um direito seu, Sr. Arlequim.
O Sr. Lyndon já recuperara suas boas maneiras e um pouco de sua
coragem.
— Extra-oficialmente, não o culpo por isso. Usou a expressão
"insinuação inspirada". Não poderia explicá-la?
— Vou defini-la, Sr. Lyndon: é uma forma de assassinato, pela qual se
sufoca um homem com insinuações malévolas. Bom dia.
Nunca vira Arlequim tão furioso. Estava totalmente branco e os olhos
pareciam duros como pedra. Ficou andando de um lado para outro da sala,
batendo com o punho fechado na palma da outra mão e despejando uma
torrente de palavras iradas, enquanto Julie e Suzanne o contemplavam,
chocadas e em silêncio, paradas na porta.
— Estou simplesmente revoltado. Karl Kruger acha que devo ir a
Frankfurt. Para quê? Para suplicar a homens a quem enriqueci...para provar-
lhes que não sou um vilão nem um idiota!...É agora somos intimidados por
burocratas e agentes, assustados como criancinhas a ouvirem sussurros na
escuridão!... Não! Não! Não! Prefiro antes morrer numa fossa!...Julie, arrume
nossas malas. Vamos partir para Washington. Suzanne, faça reservas para
todos nós. Iremos de trem. Arrume acomodações no...
— Espere um momento, George. Eu é que faço as reservas. Isso é
parte de nosso acordo com Bogdanovich.
— Faça-as então, Paul. Mas tem que ser agora mesmo. Suzy, ponha
Herbert Bachmann ao telefone. Depois...
— George, por favor!
Julie plantou-se diante dele, pondo as mãos em seus ombros,
procurando acalmá-lo.
— Agora é você quem está bancando o arrogante. Você não é assim,
querido. Pare com isso!
Passou-se um longo momento antes que Arlequim conseguisse
dominar-se. O esforço que ele fez foi visivelmente doloroso. Quando
finalmente falou, sua voz era áspera e tensa:
— Lamento muito se estou parecendo agressivo. Vocês queriam que eu
lutasse. Avisei que talvez não fossem gostar do homem que vive dentro de
mim. Agora eu tenho que conviver com ele. Vocês têm outras alternativas.
Juliette fitou-o por um instante, pálida e assustada. Depois desatou a
chorar e saiu correndo da sala. Suzanne lançou um olhar de censura para
Arlequim e seguiu atrás dela. Eu enfrentei-o, furioso também.
— Pelo amor de Deus, George! Por que tinha de dizer uma coisa tão
brutal?
— Será que foi mesmo? Ao final de toda essa história, Julie talvez
pense que foi apenas um momento de delicadeza. E o mesmo talvez lhe
aconteça também, Paul.
1
Corpo militar japonês encarregado da manutenção da ordem nos países ocupados ou anexados depois
de 1910. (N. do E.)
— Não precisava fazê-lo. Foi devidamente informado de que eu me
reservava o direito de apresentar uma queixa contra todas as pessoas
envolvidas.
— Mas não apresentou queixa alguma. Por quê?
— Prefiro não expressar minhas razões para isso.
— Sr. Desmond, por que Basil Yanko mandou vigiá-lo?
— Não sei. Recordando os acontecimentos, parece-me que ele
suspeitava de uma associação minha com Valerie Hallstrom.
— E por que ele suspeitaria disso?
— Foi o Sr. Lyndon quem me deu a idéia. Disse que Valerie Hallstrom
talvez estivesse vendendo material do banco de memória dos computadores.
Não é verdade, Sr. Lyndon?
O Sr. Lyndon ficou embaraçado, mas enfrentou a situação com a
galhardia de um escoteiro.
— Pode ter interpretado nesse sentido uma observação minha.
O Sr. Frohm sorriu debilmente, e virou-se para mim.
— E então, por extensão, Basil Yanko pensou que o senhor fosse um
possível comprador.
— Talvez.
— Mas não era, não é mesmo?
— Estou sendo interrogado oficialmente, Sr. Frohm. Nenhuma
proposta foi apresentada, nenhuma solicitação foi feita.
— O que nos leva à grande lacuna, Sr. Desmond: quem lhe mandou o
caderninho e por quê? E sua resposta terá também caráter oficial. Mas vamos
tentar uma hipótese. Valerie Hallstrom lhe diz que tem medo de Basil Yanko.
Age como se soubesse que havia alguém à espera dela no apartamento. Ela lhe
entrega o caderninho para guardar. Sabe que é um artigo quente e resolve
então encenar a pequena comédia de mandá-lo a si mesmo, a fim de poder
usar a informação legalmente...O que me diz, Sr. Desmond?
— Só posso fazer um comentário, Sr. Frohm: isso é um absurdo total!
E já que está falando em lacunas, acho que está deixando de lado a maior de
todas: quem matou Valerie Hallstrom e por quê?
— Estamos investigando. A lacuna está ficando cada vez menor.
Sabemos que dois homens entraram no apartamento dela naquela noite. Um
deles era, evidentemente, o assassino. O outro era o homem que telefonou
para a polícia. Talvez tenha sido ele quem lhe enviou o caderninho...Se se
recordar de algo, informe-nos imediatamente, por favor.
— Pode deixar que o farei, Sr. Frohm. Aceita outro suco de tomate?
— Não, obrigado. Temos que ir agora. Ajudou-nos bastante, Sr.
Desmond...Essas flores são muito bonitas. Onde as arranjou?
— Isso, Sr. Frohm, é algo que nunca deveria perguntar.
— Agora é assim, hein? Normalmente é o homem quem tem de
comprar as flores. Mas, afinal, é possível que o Women's lib signifique alguma
coisa. Vamos, meu jovem Lyndon. Estamos entrando de folga. Vou lhe pagar
um drinque e um hambúrguer.
Se isso foi uma insinuação, fingi que não entendi. Acompanhei-os até a
porta, fechei-a e encostei-me nela, suando por todos os poros. Milo Frohm
não era nenhum noviço. Pelo contrário, era bastante experiente em
interrogatórios, astucioso e inteligente, a expressão sempre inabalável. Não
precisava de nenhuma bola de cristal para saber que muito em breve teria
novamente notícias dele. Isso, porém, não me preocupava. Achara-o
extremamente simpático. Usávamos o mesmo dicionário e o mesmo manual
de lógica elementar. O único problema era que a lógica não funcionava mais.
Não podia dizer como nem por quê, mas sentia que a nossa premissa maior
estava repleta de falhas e que a menor estava desaparecendo sem deixar
vestígios. O que, é claro, não era lógica absolutamente, mas puro instinto
animal.
" ...Apaixonei-me por um homem que não estava apaixonado por mim.
Quando ele me disse que nosso caso estava terminado, senti-me uma tola,
magoada, furiosa. Mas continuei no emprego porque sabia que isso o
constrangia, embora tampouco me fizesse bem algum. Um dia, um jovem
visitou o banco para verificar o funcionamento de nossos sistemas de
computação. Chamava-se Peter Firmin. Disse que ia passar um mês no
México, visitando clientes. Convidou-me para jantar. Depois disso, passamos
a nos encontrar constantemente. Abri-lhe meu coração. Tornamo-nos
amantes. Ele disse que queria casar-se comigo, mas teria primeiro que
divorciar-se de sua esposa e que isso custaria muito dinheiro. Eu nada tinha,
não podia ajudá-lo. Então ele me disse que, se eu fornecesse certas instruções
ao nosso computador, receberia uma soma elevada: dez mil dólares. Disse que
isso não seria um crime, que não estaria roubando coisa alguma. Quando a
história fosse descoberta, seria uma terrível pilhéria contra José Luis, pois ele
teria que assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Concordei, mas não fiquei
com o dinheiro. Entreguei-o a Peter, para que ele pudesse assim obter seu
divórcio. Ele foi-se embora e nunca mais tornei a vê-lo. Escrevi-lhe muitas
vezes, para sua companhia e para o endereço que ele me dera na Califórnia.
Minhas cartas foram devolvidas, com o carimbo de endereço ignorado.
Ninguém jamais pôs em dúvida as instruções que eu transmitira ao
computador. Mas, em janeiro, resolvi deixar o banco. Tudo o que me restava
de Peter Firmin eram algumas fotografias que tirara dele num domingo no
parque Chapultepec. Afirmo e declaro que este depoimento é verdadeiro e
que o fiz por minha livre e espontânea vontade, na presença de..."
Vou contar-lhes agora que fui eu quem mais chorou. Ao lado da cama,
chorei sem o menor constrangimento. Inclinei-me e beijei-lhe os lábios frios,
disse-lhe adeus e murmurei um requiescat. Arlequim ficou parado ao meu lado,
rígido, distante, sem lágrimas, esperando que eu estivesse pronto para sair. O
que se passou entre eles depois, se ele esbravejou ou chorou, eu simplesmente
não sei — e, por algum tempo, nem me importei em saber. Foi tudo muito
estranho. A morte de Julie era a grande morte. Eu sentia a pequena morte da
separação, o patético do nunca-mais, do jamais-apreciado, a esperança para
sempre irrealizada. E, contudo — como os mortos são felizes por jamais
saberem-no! —, eu me sentia aliviado. Ela não podia mais sofrer. Eu estava
libertado de uma servidão que carregava há tempo demais, uma tentação que
se tornara mais aguda com o passar dos anos. Estava finalmente livre — se
bem que num deserto frio e árido — mas livre.
Enquanto esperávamos por Arlequim, Suzy e eu sentamo-nos juntos,
mantendo a conversa vazia e rememorativa que se segue a cada morte. As
lágrimas dela há muito que se haviam esgotado e, como todas as mulheres, em
todos os funerais, precisava pensar nos cuidados da casa.
— Espero que George resolva enterrá-la aqui mesmo. Do contrário, a
situação se arrastará por um tempo excessivo. Vamos precisar de um agente
funerário, Paul. Você poderia cuidar disso? Pedi alguns sedativos ao médico.
George vai precisar deles esta noite. Você passará a noite com ele na suíte,
não é, Paul? Eu mesma passaria, de boa vontade, mas não é muito
apropriado...Talvez ele esteja disposto a terminar tudo agora, a esquecer toda
essa história sórdida e voltar para casa. O verão está para começar. Você
poderá levá-lo para fazer um cruzeiro em seu iate...Tenho que emalar também
as roupas dela. Seria terrível para George ter que fazê-lo...Oh, Paul, sinto-me
tão triste por ele...
Não podia sentir-me triste por ele porque, naquele momento, estava
odiando-o. Senti-me tentado a dizer-lhe que agora tinha outro cadáver para
jogar diante da porta de Pedro Galvez. E por que não? Uma morte era
bastante parecida com outra qualquer. As flores iriam desabrochar tanto da
boca aberta de Tony Tesoriero quanto do ventre estraçalhado de Juliette
Gerard. E durante todo o tempo eu odiava a mim mesmo, porque era o bravo
guerreiro com a trombeta de bronze que convocava os heróis para a luta e
depois soprava um toque de silêncio sobre os corpos dos derrotados,
afugentando os abutres para longe de seus cadáveres.
Suzanne segurou-me a mão direita e apertou-a entre as suas.
— Paul...por favor! Não se culpe. Nem culpe George. Podemos apenas
percorrer o caminho que avistamos diante dos nossos pés. Por favor, chéri...!
Muito tempo depois é que Arlequim veio ao nosso encontro. Ele estava
tranqüilo agora, raso e vazio como um lago na Lua. Agradeceu-nos a ambos,
por si mesmo e por Juliette. Já tomara as primeiras decisões necessárias:
— Vamos enterrá-la aqui mesmo. Paul, você poderia por gentileza
providenciar os melhores arranjos possíveis? Ela deve ter uma missa.
Devemos informar ao embaixador suíço, a José Luis, a Pedro Galvez e sua
família e aos funcionários do banco. Suzy, por favor, telegrafe a todos os
nossos escritórios e determine que fechem por um dia. Peça aos gerentes
locais que mandem inserir um aviso fúnebre nos jornais. Já telefonei para os
pais dela. Depois...
— Vamos falar sobre isso mais tarde, George.
— Como preferir, Paul.
— Vou chamar um táxi — disse Suzanne.
— Voltarei para o hotel a pé.
— Nós iremos com você.
— Não, Paul, obrigado. Prefiro ficar sozinho por algum tempo.
— George, você quer realmente que Galvez seja convidado para o
enterro?
— Quero. Ele é amigo nosso. Pediu ao cardeal que mandasse rezar
missas pela recuperação de Julie.
Se lhe for possível fazer a escolha — o que está ficando cada vez mais
difícil no ano dos assassinos —, suplico que não opte por morrer
violentamente numa cidade latina. Os documentos exigidos para consigná-lo
fora desta existência são horrendos e terá que esperar no limbo até que todos
eles estejam preenchidos. Fui obrigado a abdicar da tarefa de providenciar o
funeral de Julie, deixando-a ao encargo de José Luis Miramón de Velasco, que
a aceitou como um dever sagrado e como a menor das penas por seus
pecados. Precisaria somente da assinatura de Arlequim. Quanto ao resto,
providenciaria para madame uma cerimônia digna e um lugar tranqüilo para
repousar, perto do jazigo de sua própria família...
E então o mundo voltou a invadir-nos uma vez mais. Havia uma pilha
de telegramas e uma lista de telefonemas com um metro de comprimento.
Nossos gerentes locais estavam em pânico. O mercado estava em estado de
choque. A imprensa queria comentários e esclarecimentos. Todo mundo
queria saber se George Arlequim era um gênio ou se era um louco rematado e
sem mãe. Enquanto Suzanne cuidava dos telegramas, batalhei com telefonistas
e diferenças de horário, para responder aos telefonemas mais importantes. Em
Nova York, era o fim da tarde. Em Londres, era a hora do jantar. Na Europa
continental, era a hora do café e do conhaque, das notícias do dia na televisão
em cores, enquanto o custo de vida continuava a subir e as possibilidades de
uma sobrevivência decente continuavam a diminuir. Acabara de desligar o
telefone pela décima vez quando Suzanne entrou, com um telegrama na mão.
— Acho que deve tomar conhecimento deste telegrama. É de Milo
Frohm.
Liguei para Aaron Bogdanovich e li o telegrama para ele. Seu
comentário foi seco como folhas mortas:
— Se precisar dele, chame-o. O problema é saber o quanto deverá
contar-lhe.
— Não tem mais nada a dizer?
— Vou voltar amanhã para Nova York.
— Há ainda negócios inacabados por aqui.
— Poderão ser concluídos em Nova York. Telefone-me assim que
chegar lá.
O que deixava o problema de Milo Frohm ainda em aberto. Meu
primeiro pensamento foi adiá-lo até que o próprio Arlequim estivesse
preparado para resolvê-lo pessoalmente. O segundo foi telefonar para
Washington e verificar quais as bases em que Milo Frohm estava disposto a
atuar. Se fossem flexíveis, poderíamos perfeitamente cooperar. Se ele quisesse
apenas bancar o policial cordial da vizinhança, não haveria a menor condição.
Eu não tinha o menor ressentimento contra os policiais, especialmente contra
os que se mostrassem amigáveis. O único problema era que eles cuidavam de
bem poucas coisas: a lei e a ordem e um sono tranqüilo à noite, deixando de
lado muitas causas em disputa e toda uma fossa de injustiça cheirando mal aos
raios do sol.
Milo Frohm ficou na maior satisfação ao receber meu telefonema.
Agradeci-lhe o telegrama e ressaltei que era muito difícil falarmos de negócios
numa linha aberta. Ele achava que, pelo que andara lendo nos jornais, eu
exagerava a dificuldade. Não poderíamos ter sido mais abertos se tivéssemos
anunciado na televisão. Rumores de fontes de confiança diziam que
estávamos prestes a ser processados. Eu lhe afirmei que já esperávamos isso,
até mesmo queríamos que acontecesse. Contei-lhe então sobre a morte de
Julie'.
Por um longo momento ficou em silêncio, depois disse:
— Como o Sr. Arlequim está aceitando o fato?
— Biblicamente.
— O Velho ou o Novo Testamento?
— O Velho...
— E quais são seus sentimentos, Sr. Desmond?
— Eu gostaria de continuar a agir de acordo com as regras. Mas receio
que, se o fizermos, os corvos poderão devorar-nos.
— Suponhamos que as regras fossem ligeiramente contornadas...
— Tem que ser mais do que um simples suponhamos...
— Então asseguro que vamos contorná-las.
— Estamos sendo gravados?
— Desde o início...
— Então aqui vai a história. Valerie Hallstrom foi morta por um
matador profissional chamado Tony Tesoriero, que agora também está morto.
Ele foi pago por um homem chamado Pedro Galvez, uma figura muito
importante aqui no México, ligado à nossa organização e a Basil Yanko. Como
prova, temos uma declaração assinada por Tony Tesoriero. Não serve para
um tribunal, mas acho que poderá servir-lhe. Estamos imaginando, sem
provas, que Galvez foi também o responsável pelo assassinato de Madame
Arlequim. As fraudes em nosso banco na Cidade do México foram cometidas
por uma mulher, Maria Guzmán, paga por um certo Alexander Duggan, que
trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califórnia. Sobre isto temos
depoimentos com testemunhas e fotografias que o identificam, também
assinadas por testemunhas. Galvez foi informado de que conhecíamos a
existência de Duggan. Saul Wells está neste momento vigiando Duggan. Seu
endereço é o seguinte...
Quando acabei, Milo Frohm indagou:
— Contou toda essa história às autoridades mexicanas?
— Não.
— Por que não?
— Oferecemos imunidade a Maria Guzmán. Duggan está fora da
jurisdição mexicana e o resto é confidencia de um homem morto.
— Obrigado pelas informações, Sr. Desmond. Quando pretende voltar
aos Estados Unidos?
— Isso vai depender de Arlequim. Provavelmente logo depois do
enterro...
— Gostaria de ser informado do vôo assim que fizerem a reserva. São
pessoas por demais perigosas para se estar junto num avião e terei que tomar
providências para proteger os outros passageiros.
Pensei que ele estivesse brincando e dei-lhe uma resposta irreverente.
Mas estava profundamente sério.
— Política e dinheiro fazem uma mistura explosiva, Sr. Desmond.
Acrescente-lhes petróleo e terá uma fogueira de grandes proporções. Por
favor, atenda meu pedido.
Pelo menos ele estava sendo franco. Podia contornar as regras, mas não
podia alterar os fatos fundamentais da vida naquele ano da graça duvidosa, em
que nenhuma fortaleza era à prova de dinheiro, em que um pouco de
explosivo plástico podia estourar um avião nos céus, em que uns poucos
homens desesperados podiam manter uma nação como refém. O que nos
levava em rápidas passadas de volta à era do obscurantismo, da justiça sumária
e da lei de talião, do privilégio real do carrasco particular...
Como se lesse meus pensamentos, Suzanne aproximou-se nesse
momento e passou os braços ao redor do meu pescoço, encostando o rosto
no meu.
— Já chega, Paul...Você também precisa de um pouco de tempo para
dar vazão à sua dor.
— É engraçado, mas não sei como fazê-lo. Existe dentro de mim
apenas um espaço em branco, como se alguém tivesse tirado um quadro da
parede...George já voltou?
— Já. Acabou de chegar. Liguei para o quarto dele. Está descansando e
não quer ninguém junto de si por enquanto. Mandei transferirem para cá
todas as ligações para ele.
— Ele em breve vai estourar, Suzy.
— Não, Paul.
Ela sacudiu a cabeça, enfaticamente.
— Lembrei-me de uma coisa que meu pai costumava dizer-me: Der
grõsste Hass ist still...O maior ódio é o silencioso. George é agora um homem
que odeia. Ele está perdido para nós, foi-se para sempre.
— Relaxe, amor. As pessoas ficam cansadas de odiar.
— O ódio dura mais tempo que o amor, Paul.
— Um uísque a ajudaria agora?
— É bem possível. Oh, chéri! Não me deixe. Estou muito assustada.
Enquanto servia o uísque, o pensamento ocorreu-me como um malho a
cair com toda a força sobre minha cabeça.
Outrora, num ontem já distante, sentíramos medo do mago poderoso,
Basil Yanko. Agora sentíamos mais medo ainda de George Arlequim, que
sucumbira ao seu encantamento e estava num quarto escuro com um estilhaço
de gelo enterrado no coração. E porque eu não podia enfrentar a verdade,
procurei refúgio nas banalidades. Estávamos no meio de um desses diálogos
tolos e consoladores sobre amor e misericórdia e de como, se se compreender
tudo, se pode perdoar quase tudo, quando o telefone tocou e a recepção
anunciou que o Senor Pedro Galvez desejava ver o Sr. George Arlequim.
Suzanne — que Deus abençoe suas sóbrias maneiras suíças! — pediu-lhe que
esperasse um momento, enquanto eu me comunicava com Arlequim pelo
telefone do quarto. Esperava a raiva ou um desespero vago. Em vez disso,
porém, foi-me dada ordem de receber o nosso hóspede com toda a cortesia,
oferecer-lhe um drinque e suplicar-lhe a fineza de esperar alguns momentos,
enquanto Arlequim se preparava para recebê-lo. Transmiti o recado. Suzanne
desceu para o saguão. Arrumei a escrivaninha e providenciei copos limpos,
imaginando o que diabo se podia dizer a um assassino, quando o corpo de sua
vítima ainda nem estava frio. Eu não precisaria ter-me preocupado.
George Arlequim já estava pronto e esperando quando Suzanne
introduziu Pedro Galvez. A recepção que ofereceu ao mexicano foi aparatosa
e emocional.
— Meu caro Pedro! Foi muita bondade sua ter vindo! Não era
necessário, mas estou profundamente comovido!
— George, meu amigo, o que posso dizer? O que posso fazer?
— Nada, Pedro! Sua presença já é o suficiente! Aceita um drinque?
Café? Não é estranho como voltamos aos velhos costumes? Servimos comida
e bebida aos pranteadores. Por favor, por favor, sente-se...Suzanne! Café para
o Senor Galvez!
Pedro Galvez ajeitou-se numa poltrona, um rochedo de conforto num
oceano de dor.
— Meu caro George! Estava plenamente convencido de que isso jamais
poderia acontecer!
— Era o que todos nós pensávamos, Pedro.
— E os arranjos? Talvez eu possa...
— Já está tudo providenciado. De qualquer forma, obrigado. Ela será
enterrada aqui mesmo, nesta sua linda cidade. Ela sempre a amou.
— George, isso é assassinato. Temos que fazer alguma coisa!
— O quê, Pedro? Não posso sair pelas ruas, gritando por sangue e
vingança. Prefiro antes deixá-la dormir em paz.
— Entendo, mas isso não é o bastante.
— Deixe-me enterrá-la primeiro.
— Claro, claro. Mas deve haver uma cerimônia, George, a coisa
apropriada. Tem aqui amigos e clientes. Eles vão querer apresentar-lhe seus
votos de pesar. Posso trazê-los?
— Se quiserem vir...
— Continuará por aqui depois do enterro?
— Acho que não muito. Solicitam minha presença em outros lugares.
Há pessoas que dependem de mim. Ainda estou sendo atacado e tenho que
prosseguir na luta. Agora, até a luta é alguma coisa.
— Tem alguma idéia, George, uma suspeita que seja, de quem possa ter
feito essa coisa terrível? Se tem, diga-me. Prometo, por minha alma imortal,
que o encontrarei.
— Aprecio sua boa vontade, Pedro, mas já sei quem é o responsável.
— E já contou à polícia?
— Não.
— Mas deve contar! É essencial que eles saibam.
— Eu queria dizer-lhe primeiro, Pedro.
— Por que logo a mim?
— Você tem amigos entre as altas autoridades. Não deixaria que uma
coisa destas ficasse enterrada nos arquivos.
— Nunca!
— Pedro, você tem que saber como me estou sentindo. Você ama sua
esposa, seu filho, suas filhas...
— Amo muito todos eles.
— Um dia eu terei que contar a meu filho que sua mãe morreu,
alvejada por um assassino na Cidade do México. Ele é agora um bebê, mas um
dia terá que saber. E então perguntará o que fiz com o homem que matou sua
mãe. E o que lhe direi, Pedro?
— Por enquanto ainda não tem nada para dizer.
— Por enquanto.
Arlequim meteu a mão no bolso do paletó e tirou o envelope que
continha o bilhete de Tony Tesoriero, entregando-o a Pedro Galvez.
— Leia isto, meu amigo, e depois diga-me o que devo fazer a respeito.
— Está colado, George.
— Foi um equívoco. Abra, por favor.
Pedro Galvez enfiou o dedo sob a aba do envelope e rasgou-a.
Desdobrou o bilhete e leu-o. Não houve o menor indício de emoção no rosto
enrugado. Dobrou cuidadosamente o bilhete, colocou-o novamente dentro do
envelope e devolveu-o a George Arlequim. Levantou-se, ajeitou o colete e
abotoou o paletó. Depois, sem o menor tremor, apresentou suas despedidas:
— Senor Desmond, senorita, com licença...George, compreendo sua dor.
Eu mesmo já a experimentei. Por isso, perdôo-lhe esta brincadeira de mau
gosto.
— Espere um momento antes de partir!
George Arlequim estava parado diante da porta, uma das mãos na
maçaneta e a outra erguida para detê-lo.
— A brincadeira ainda não terminou. Aonde quer que vá, a partir de
agora, haverá um homem a vigiá-lo. Aonde quer que sua esposa vá, seu filho
ou suas filhas, haverá também alguém a vigiá-los. Um dia, um deles será
morto. Mais algum tempo e chegará a vez de outro. Mas nunca você, Pedro
Galvez, nunca você...Você é intocável. Sabe perfeitamente que posso fazê-lo,
porque você mesmo o fez e porque, hoje, assisti à morte de Tony Tesoriero.
E sabe que o farei, porque você mesmo me ensinou que não há outro jeito. A
menos que se mate a fera, não haverá carne para o jantar...E da próxima vez
em que telefonar para Basil Yanko, conte-lhe tudo o que acabei de dizer.
Adias, amigo!
Pedro Galvez estava rígido, vigoroso e firme como um velho carvalho
resistindo ao vento da tempestade.
— Posso oferecer-lhe um negócio melhor, George.
— Sei que pode. Sente-se e escreva. Suzanne, ligue para a portaria e
peça que providenciem um tabelião.
Conhecendo bem Saul Wells, eu não esperava que fosse muito longa a
sessão do Muro das Lamentações. Ele tinha o bolso cheio de provérbios para
todos os eventos de morte e desastre. Madame Arlequim estava morta, ele
lamentava mas não ficaria permanentemente marcado. Alex Duggan
desaparecera, mas terminaria aparecendo assim que precisasse de dinheiro ou
algo mais. Enquanto isso, Saul Wells, o superdetetive, prosseguia em suas
incansáveis investigações.
— Alex Duggan, é claro, pode estar morto. Eu digo que não está,
porque Yanko não se pode dar ao luxo de ter outro cadáver em seus
estábulos. Portanto, está vivo. Então, onde se meteu? Quando o perdi de
vista, ele seguia para o sul, em direção a San Diego. O México ele nunca mais
vai querer ver. Ter-se-ia metido em algum lugar do interior? O diabo que foi!
Nosso Alex é um garoto da cidade, adora os confortos domésticos e um
drinquezinho ocasional com as garotas, antes de voltar para casa, para os
braços da mamãezinha. A qual, diga-se de passagem, é um maravilhoso
ornamento doméstico. Minha impressão é que ele se meteu em algum lugar da
costa, junto com uma coelhinha das praias. Contudo, ele tem que comer,
dormir e comprar gasolina, talvez mesmo alugar outro carro, porque sabe que
conhecemos a placa do que está dirigindo...Temos também fotografias suas e
cópias de uma descrição, além da relação de todos os cartões de crédito que
lhe foram entregues através da companhia. Tudo o que precisamos agora é de
um pouco de sorte...
— Gostaria de conversar com a esposa dele — disse George Arlequim.
— Pessoalmente, Sr. Arlequim?
— Por que não? Sabe qual é o telefone dela?
— Sei de tudo a respeito dela, Sr. Arlequim, exceto o que usa na cama.
— E onde está seu marido — acrescentou Arlequim secamente. — Dê-
me o número do telefone. Vou ligar agora mesmo para ela.
— Por que não vamos direto até a casa dela?
— Por favor, Sr. Wells! Sei o que estou fazendo!...Sra. Duggan? Meu
nome é George Arlequim. Não me conhece, mas minha companhia usa os
serviços da Creative Systems. Seu marido fez alguns trabalhos para nós na
Cidade do México. Soube no escritório dele que está desaparecido há dois
dias. Tenho algumas informações que talvez possam ajudá-la...Se preferir,
posso transmiti-las à polícia ou à companhia onde ele trabalha...Estou
hospedado no Bel-Air. Posso mandar um carro ir buscá-la? Esplêndido.
Digamos, dentro de meia hora...
Saul Wells ainda estava em dúvida e foi o que expressou em palavras
rudes:
— Disse que sabia o que estava fazendo, Sr. Arlequim. Espero que
esteja certo. Se errar agora, talvez perca Alex Duggan definitivamente.
— Eu assumo o risco, Sr. Wells.
— Ele é uma testemunha sua. Quer que eu esteja presente ao conversar
com a esposa dele?
— Prefiro que não esteja. Seu trabalho é descobrir Alex Duggan, e o
mais depressa possível.
Saul Wells partiu com uma expressão de infelicidade, mastigando seu
charuto. Arlequim folheou seu caderninho de anotações e verificou um
telefone. Pediu a ligação. Poucos momentos depois, ouvi-o dizer:
— É George Arlequim quem está falando. Gostaria de falar com o Sr.
Basil Yanko...É mesmo? Obrigado. Telefonarei para lá.
— Que diabo você está fazendo, George?
Ele fitou-me, com um sorriso onde não havia o menor indício de
humor:
— Estou ligando para Basil Yanko. Ele está aqui na costa do Pacífico.
— E o que pretende dizer a ele?
— Vou convidá-lo para uma reunião.
— Acho que você perdeu completamente o juízo.
— Quando eu telefonar, pegue a extensão e ouça nossa conversa.
Como sempre, demorou um longo tempo para se chegar ao grande
homem. Foi quase um choque ouvir novamente aquela voz seca e áspera, na
qual havia um tom ligeiro de desprezo.
— Ora, ora, Sr. Arlequim! É uma surpresa e tanto. Por favor, aceite
meus pêsames pelo falecimento prematuro de sua esposa.
— Obrigado. Estou hospedado no Bel-Air, juntamente com o Sr.
Desmond. Chegamos ontem à noite. Creio que seria oportuno que nos
encontrássemos agora.
— Pelo contrário, Sr. Arlequim. Creio que seria bastante inoportuno... a
menos que seja na presença de meus advogados.
— Não faço a menor objeção a isso. Se eles desejam apresentar-me
alguma citação — e creio que o desejam —, talvez seja este também o
momento oportuno. Contudo, se prefere não realizar a reunião, não há
problema.
— Dá-me algum tempo para pensar no assunto?
— Claro. Estarei em Los Angeles até amanhã à noite. Pode procurar-
me no hotel a qualquer hora. Se eu por acaso tiver que sair, deixarei instruções
com minha secretária para marcar a reunião, a qual acho que deve realizar-se
em território neutro.
— Eu preferia, Sr. Arlequim, que fosse em meu escritório.
— É mais seguro aqui. Meu bangalô foi verificado pelo FBI. Eles
asseguram que não existe nenhum tipo de dispositivo eletrônico. Depois de
Washington, passamos a tomar certas precauções. Deixo a decisão a seu
critério, Sr. Yanko.
— Voltarei a procurá-lo, Sr. Arlequim. Obrigado por telefonar-me.
Foi um diálogo breve e estéril, não vi nele a menor vantagem. Pelo
contrário, vi sérios riscos numa confrontação com advogados, antes mesmo
que chegássemos aos tribunais.
Arlequim afastou as objeções com um sacudir de ombros e um
comentário sibilino:
— Se não esperamos justiça, os advogados não podem ajudar-nos nem
prejudicar-nos.
— Este é um país de litígios legais, George. Qualquer coisa serve de
arma nos tribunais. Pelo amor de Deus, você já tem problemas demais. Não
comece a comprar mais barulho.
— Não estou comprando, Paul, estou criando...Avise-me assim que a
Sra. Duggan chegar. Vou dar uma volta pelos jardins.
Foi então que mencionei a Suzanne a idéia de que provavelmente iria
deixar minha diretoria no banco, assim que voltássemos a Nova York. Não
era apenas por vaidade e ressentimento. Se ele não podia enterrar seus mortos,
eu certamente queria enterrar os meus e deixar as margaridas desabrocharem
sobre o túmulo. Se ele queria guardar segredo do que pretendia fazer, era um
direito que lhe assistia. Eu estava velho demais para lutas corporais, muito
desgastado para batalhas verbais. Suzanne revelou-me que também estava
muito perto de uma decisão semelhante. Não pedia para ser amada, mas não
podia trabalhar para o estranho que vivia agora sob a pele de Arlequim. Ele
não ficaria sem ajuda. Tinha incontáveis funcionários à sua disposição. E
talvez fosse exatamente disso que estivesse precisando: novos
relacionamentos, não manchados pelas antigas recordações. Concordamos em
que eu deveria discutir o assunto com ele, explicar-lhe como nos sentíamos e
dar-lhe bastante tempo para tomar as providências necessárias. Ao final, a
cirurgia da amputação poderia ser muito melhor que as constantes ventosas e
sangrias.
Dez dias depois George Arlequim voltou para Nova York. Veio com
uma comitiva: os pais de Julie, uma nova babá, o bebê e três jovens, todos
suíços, muito quietos, sempre vigilantes, nada comunicativos. O apartamento
no Salvador não podia acomodar todo mundo, por isso alugamos as suítes
adjacentes, e Saul Wells recrutou outra equipe de segurança, para guardar
todos os acessos e verificar os visitantes e os empregados do hotel. Suzanne
deixou meu apartamento e foi instalar-se junto da família. Arlequim queria
que eu me mudasse também. Disse-lhe que não havia necessidade e, além
disso, fazia questão de manter minha independência. Pediu-me que o
informasse do que acontecera durante sua ausência. Ouviu atentamente,
tomou anotações, elogiou meus atos e encerrou o assunto. Não era o
momento de pressioná-lo para decisões. Quando ele estivesse pronto, eu
estaria à sua disposição.
Ele estava profundamente mudado. As têmporas estavam grisalhas, a
pele do rosto repuxada por cima dos ossos. Os olhos tinham uma expressão
contemplativa. Falava pouco, serenamente, ponderadamente, como alguém
que tivesse passado muito tempo isolado de seus semelhantes. Seus
movimentos também estavam diferentes, não eram mais elásticos e
impacientes como nos velhos tempos, mas calculados, deliberados, quase
furtivos.
Recusava todos os contatos sociais. Durante o dia, trabalhava no
Salvador, pedindo que as pessoas fossem vê-lo. O que, é claro, todos faziam,
quando mais não fosse, em atenção a suas aflições recentes. À noite jantava
com os pais de Julie e brincava com o bebê. Eram as únicas ocasiões em que
eu o via sorrir, um sorriso terno, mas terrivelmente triste, como se ele sentisse
vergonha de ter trazido uma criança para um mundo tão brutal. Só ficava
zangado quando encontrava alguma falha nas complexas medidas de
segurança. Então punia o responsável com palavras frias e cortantes. Tratava
Suzanne com muita delicadeza, mas com cerimônia. Comigo ele não podia ser
formal, mas deixou patente que queria manter uma certa distância. Três dias
se passaram antes que ele me telefonasse e pedisse que fosse encontrá-lo, para
tratar do que classificou de "assuntos pessoais". Quando cheguei, implorou-
me que ouvisse sem nenhum comentário o que tinha a dizer.
— Paul, você já fez bastante por mim, mais do que qualquer homem
tem o direito de pedir a outro. Sei que você amava Julie e apoiou-a no
momento em que ela careceu de meu próprio apoio. Não sinto ciúmes por
isso. Pelo contrário, sou-lhe grato. Fico contente por meu filho ter o tio Paul.
E fico contente também por tê-lo como meu maior amigo. E quero manter
nossa amizade. Mas do jeito que as coisas estão atualmente, receio que possa
vir a perdê-la. Por isso, gostaria que renunciasse ao cargo de diretor da
Arlequim et Cie.
— A qualquer hora, George. Hoje mesmo, se você quiser.
— Hoje então. Mandarei Suzanne datilografar o pedido de demissão.
Poderá assiná-lo antes de ir embora. Vou também cancelar sua procuração.
Terá uma indenização integral pelo período em que exerceu o cargo de
diretor. Você e Karl Kruger cobriram-me em quinze milhões de dólares. Já
substituí essa cobertura e creditei-lhe o dinheiro, inclusive os juros
correspondentes.
— No meu caso, George, isso não era necessário.
— Mas era apropriado, Paul. Creditei-lhe também a soma
correspondente aos prejuízos que sofreu com a venda de suas ações na
Creative Systems. Assim que acabarmos nosso trabalho aqui em Nova York,
vou aposentar Suzanne, com o que penso ser um prêmio generoso por sua
dedicação. Acho que ela precisa ter liberdade, tem suas próprias decisões a
tomar...
— E aonde tudo isso o leva, George?
— Onde estou no momento, com um filho para criar e um negócio
para reconstruir.
— Posso perguntar-lhe como se propõe a fazê-lo?
— Claro. Vou entrar num acordo com Basil Yanko.
— Está querendo dizer que pretende vender-lhe Arlequim et Cie.?
— Não. Vou apenas fazer um acordo com ele. Você e Karl Kruger já
discutiram os termos fundamentais do acordo. Posso melhorá-los um pouco,
numa negociação pessoal. Tudo dependerá, em parte, do sucesso que Milo
Frohm obtiver em Londres e do compromisso que puder estabelecer entre a
administração e sua agência. Essa parte, porém, está fora de meu controle.
Ele estava sendo deliberadamente vago, mas eu não estava com
disposição para pressioná-lo. Queria afastar-me de qualquer maneira. Ele
estava me proporcionando a oportunidade de fazê-lo com dignidade.
Poderíamos continuar amigos, mas a amizade nunca mais seria a mesma,
porque ele mudara e eu não podia fazê-lo. O melhor era esperar que as coisas
se acomodassem. Eu lhe disse então:
— Já sabe que pedi a Suzy para casar-se comigo?
— Não, ainda não sabia. Mas fico contente. Acho que é uma excelente
idéia.
— Mas ela ainda não aceitou.
— Por que não?
— É que ainda está apaixonada por você. Sempre esteve.
Ele fitou-me com uma ligeira expressão de surpresa, como se eu
estivesse falando sobre o preço dos tomates.
— Mas não estou apaixonado por ela.
— Era tudo o que eu queria saber. Obrigado, George. Esperarei em
Nova York até que ela termine seu serviço e depois a levarei para longe...E
agora vamos tratar dos documentos, está certo?
Naquela mesma manhã, por vontade de ter algo melhor para fazer,
caminhei até a loja de flores da Third Avenue e pedi para falar com Aaron
Bogdanovich. Dessa vez fui convidado a passar para uma sala nos fundos,
atravancada, onde o mestre do terror estava empenhado na tarefa prosaica de
calcular suas contas.
Ele acenou para que me sentasse, escreveu mais alguns números e
depois recostou-se na cadeira, contemplando-me com uma expressão
sardônica.
— E então, Sr. Desmond, qual é a sensação de estar desempregado?
— Estou começando a me acostumar. E como se sente, Sr.
Bogdanovich?
— Os agentes funerários e os floristas têm sempre trabalho. Além
disso, continuo na folha de pagamento de Arlequim et Cie.
— Isso é surpresa para mim.
— Imaginava que seria. Por que deixou a companhia?
— Pediram-me que me demitisse.
— Sabe por quê?
— Foram-me dadas algumas razões.
— E elas o satisfizeram?
— Não.
— Por que ainda continua em Nova York?
— Estou esperando para casar-me com Suzanne. Pelo menos, é o que
espero.
— Ela é uma ótima escolha.
— Obrigado.
— Por que veio até aqui?
— Gostaria de pagar-lhe um almoço.
— Obrigado, mas eu nunca almoço. Como está aqui, no entanto, vou
lhe dar alguns conselhos.
— Quais?
— Não tenho amigos, Sr. Desmond. Não posso dar-me ao luxo de tê-
los. Há poucas pessoas que respeito. Seu amigo Arlequim é uma delas. Ele é o
tipo de homem que eu gostaria de ter sido, se as circunstâncias fossem
diferentes. Por outro lado, não está preparado para ser o homem que eu sou...
— Continue.
— Ele pediu-lhe que renunciasse para que não fosse acusado de
cumplicidade em seu plano.
— Que é...?
— O que sempre foi: matar Basil Yanko!
— Não acredito! Não posso acreditar! Ele me disse...
— Que ia fazer um acordo com Yanko. E vai. Depois ele o matará.
Nenhuma outra coisa poderá satisfazê-lo. Depois, é claro, descobrirá que nada
foi resolvido. Pediu-me que o ajudasse. Eu o farei, porque minha gente quer
que Yanko seja eliminado. Posso agora imaginar, como não o conseguia antes,
um meio de fazê-lo. Não poderá impedi-lo. Seria inútil tentar. Mas sugiro que
fique por perto, para recolher os restos de George Arlequim ou pelo menos
cuidar de seu filho.
— Ter-me-ia contado tudo isso se eu não tivesse aparecido aqui esta
manhã?
— Teria. Só ontem à noite é que soube o que ele se propõe fazer.
— Isso é engraçado, realmente engraçado...
— O quê, Sr. Desmond?
— Arlequim me desobriga de qualquer compromisso, e agora o senhor
torna a me vincular, Sr. Bogdanovich.
— E é exatamente isso o que nunca desejou, Sr. Desmond! Quer
ambas as extremidades e o meio da salsicha. Quer a respeitabilidade sem a
virtude, a posse sem a ameaça, o prazer sem o pagamento. Quer mercenários
para executar suas mortes e cegos para enterrar seus mortos. Não é possível,
isso não é mais possível no mundo de hoje. Mártir ou matador, eis as únicas
alternativas! A menos que queira juntar-se à legião dos acorrentados, que se
arrastam do nascimento à morte, chorando pelo Messias que nunca vem!
Se ele não tivesse sido tão veemente, não o teria percebido. Se ele não
tivesse sido tão positivo, eu teria ignorado a dúvida importuna que há muito
se alojara no fundo de minha mente. Era uma dúvida tão tênue que tive de
procurar as palavras para expressá-la:
— Acho...acho, Sr. Bogdanovich, que o senhor está nos usando, a mim
e a Arlequim.
Não houve o menor indício de emoção em seu rosto taciturno. Os
olhos eram janelas vazias para uma alma vazia.
— O que está querendo dizer com isso, Sr. Desmond?
— Valerie Hallstrom...
— O que há com ela?
— Vamos voltar à seqüência dos acontecimentos. Revistou o
apartamento dela. Saiu. Viu um homem entrar. Viu-a chegar a casa. Viu o
homem sair. Voltou e encontrou-a morta. Foi isso o que me contou.
— Exatamente.
— Mas ela era sua agente. Enquanto ela estava sendo assassinada, o
senhor ficou esperando do lado de fora...
— E daí?
— Sabia o que estava acontecendo e deixou que acontecesse.
— Tem razão.
— Por quê, Sr. Bogdanovich?
— Valerie tinha chegado ao fim. Andava bebendo no bar de Gully
Gordon e falando demais, como fez com o senhor. Sua identidade tinha sido
descoberta. Yanko mandou matá-la. Deixei que acontecesse, como o disse.
Agora estou acertando as contas. Yanko morrerá muito em breve. Arlequim e
eu já acertamos todos os detalhes. Será uma solução perfeita para todos nós.
Creio que compreenderá que fizemos jus aos nossos honorários.
— Ainda acho que está nos usando...
— Está me insultando, Sr. Desmond. Além do mais, esquece nosso
contrato: se houver sangue no tapete, eu limpo depois; por outro lado, ambos
se comprometeram ao silêncio. Se não tem estômago para o que está
acontecendo, volte para casa. É um privilégio que ainda lhe resta.
— Vou falar com Arlequim.
— Pode fazê-lo. Mas não se esqueça de que não era sua a esposa
assassinada na Cidade do México, não é seu o filho que foi pendurado para
fora da janela de um quinto andar em Genebra.
Ele não estava zangado, nem mesmo estava enfático. Poderia estar
lendo uma cartilha de criança. Ao levantar-me para partir, fez um gesto para
que ficasse mais um instante e murmurou com uma ironia estranha e
condescendente:
— Eu estava falando a sério, Sr. Desmond. O menino vai precisar de
seu apoio. E talvez o senhor tenha que recolher o que restar de seu amigo.
Fique por perto. Não será tão ruim quanto está pensando. A morte é um
acontecimento muito banal.
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