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Morris West

Arlequim

CÍRCULO DO LIVRO
CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil
Edição integral
Titulo do original: "Harlequin"
Copyright © 1974 by Compania Financiera Perlina S.A.
Tradução: A. B. Pinheiro de Lemos
Layout da capa: Yae Takeda e Cristiano Quirino
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Distribuidora Record
de Serviços de Imprensa S.A.
Venda permitida apenas aos sócios do Círculo
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias
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Para Sheila

"Como se fôssemos vilões por necessidade, tolos por compulsão divina."

Shakespeare, Rei Lear, ato I, cena 2.


1

George Arlequim e eu somos amigos há mais de vinte anos. Contudo,


devo confessar que ele é o único homem que realmente sempre invejei.
Houve um tempo em que cheguei a pensar que o odiava, sendo curado de tal
sentimento por sua virtude e espírito sadio.
Ele é tudo o que eu não sou. Sou alto, corpulento, desajeitado, quase
como partes reunidas ao acaso, o desespero dos alfaiates. Ele é esbelto,
elegante, o cavaleiro clássico, um jogador de tênis que dá gosto apreciar. Eu
sou alfabetizado o suficiente em uma única língua. Arlequim é poliglota,
excepcional em meia dúzia de idiomas. E mais do que isso: ele usa uma
cultura prodigiosa, com o encanto espontâneo de um cortesão da Renascença.
Eu sou seu antípoda, impaciente, impulsivo, predisposto a ser rigoroso ou
simplista em meus julgamentos. Arlequim é um europeu, frio, conciliatório,
sutil, paciente até mesmo com os imbecis.
Ele nasceu para o dinheiro. Seu avô fundou a Arlequim et Cie.,
Merchant Bankers, com sede em Genebra. O pai fez alianças internacionais e
abriu filiais em Paris, Londres e Nova York. Arlequim ampliou a área de
atuação e depois herdou a presidência e a maior parte das ações com direito a
voto. A tradição da casa era-lhe sagrada. O caráter do cliente era mais
importante que os outros fatores de garantia. O risco, uma vez assumido, não
podia ser revogado. Jamais se esquivava ao cumprimento de um contrato por
expedientes legais. Um simples aperto de mãos encerrava as mesmas
obrigações de um documento formal. E se o cliente ou sua família
atravessavam horas difíceis, o lema do banco provava ser verdadeiro: Amicus
certus in re incerta (Um amigo certo nas coisas incertas).
Eu, por outro lado, comecei como um aventureiro, pura e
simplesmente. Abri meu caminho por entre os mercados financeiros, ganhei
muito dinheiro e perdi-o. Nos anos difíceis que se seguiram, senti-me
humilhado pela preocupação que Arlequim demonstrava por mim, incrédulo
ante as somas consideráveis que ele arriscava a uma simples palavra minha.
Quando recuperei a fortuna, entreguei-lhe o dinheiro para investir, enquanto
fazia uma cura prolongada da úlcera péptica que também adquirira e aprendia
algumas das artes do prazer.
Casei-me cedo e não deu certo. Arlequim divertiu-se até os trinta e
cinco anos e então casou-se de repente com Juliette Gerard, a quem ele
conheceu em meu iate, quando eu ainda estava tentando persuadi-la a casar-se
comigo. Depois disso, não nos encontramos durante três anos.
Permanecemos banqueiro e cliente, mas reticentes e constrangidos, até que o
filho deles nasceu e deram-lhe o meu nome, Paul Desmond, convidando-me
para padrinho. No mesmo dia Arlequim ofereceu-me um lugar no conselho
diretor do banco. Num impulso emocional, aceitei imediatamente e tornei-me
o embaixador itinerante de Arlequim et Cie. e o padrinho apaixonado de uma
criaturinha loura, parecida demais com a mãe para servir-me de consolo.
Preciso deixar claro: éramos amigos de coração, mas eu continuava a
ter ciúmes de Arlequim. Ele era por demais o árbitro da elegância, mas
também judicioso o suficiente para que até os homens experientes do mundo
das altas finanças lhe prestassem um respeito como o que se presta a um
rabino. Ele era afortunado demais, possuía virtudes demais. Suponho que se
possa dizer que ele era também, obviamente, feliz. Dirigia automóveis,
velejava, montava purossangues, colecionava quadros e porcelanas. Era
cortejado por lindas mulheres e adorado por sua esposa. Ele era tão
impressionante em seus atributos que intimidava as pessoas de menor
importância. Em momentos de desânimo e abatimento, eu me perguntava por
que ele se importava com um tipo confuso e difícil como eu. Sentia-me um
bobo da corte, circulando em torno do mais requintado dos príncipes.
Não escrevo isso para depreciá-lo. Deus me livre! Devo deixar claro
que o bobo da corte adorava o príncipe e, para mal de seus pecados,
continuava apaixonado pela princesa. E o que eu quero mostrar aqui é o quão
alto Arlequim estava, quão visível e vulnerável, quão alheio aos perigos de ser
ele próprio. Mesmo eu não via isso então com muita nitidez. Juliette podia
apenas adivinhar. Mas, sendo mulher, ela encarava o fato por outro ângulo.
— ... sinto-me tão inútil, Paul! Não posso dar a ele nada senão a mim
mesma na cama, e outro filho, quando ele o desejar. Há pelo menos vinte
mulheres que poderiam tomar o meu lugar amanhã mesmo. Não importa que
George não o veja, pois eu vejo. Não lhe sou necessária e um dia ele vai
descobrir...
Não sou nenhum lago, se bem que algumas vezes tenha desejado sê-lo.
Disse-lhe a única verdade que conhecia.
— Está casada com um homem venturoso, Julie. Seja feliz com ele.
Para George, tudo é alegria, sendo que você é a maior alegria de todas. Aceite
isso e mande o futuro para o inferno.
Arlequim chegou então, exuberante e feliz, com uma nova tela debaixo
do braço e um novo cliente em seu banco, com planos para um fim de
semana em Gstaad, onde a neve estaria profunda e o tempo prometia ser bom
e ensolarado para o prazer do beautiful people.
Pouco depois chegou o mês de abril e Arlequim e eu fomos para
Pequim, porque os chineses estavam querendo fazer negócios com a Europa,
e Arlequim queria uma fatia para seu banco e para seus clientes. Fiquei
imaginando como ele, o mandarim dos mandarins, iria reagir diante dos
padrões espartanos da República Popular. Mas, como sempre, subestimei-o.
Ele imediatamente se sentiu em casa, inteiramente à vontade. Falava
fluentemente, era hábil na caligrafia. Sua cortesia era impecável, a paciência,
ilimitada. Em um mês já mantinha os contatos mais tranqüilos com os altos
escalões da hierarquia, sendo respeitado igualmente pelos políticos e pelos
tecnocratas. Comprou muitas antigüidades, peças de jade, tapetes. Discutiu
projetos de fabricação de antibióticos, drogas sintéticas e instrumentos de
precisão. Fez amigos entre os estudiosos e os arqueólogos. Aprendeu as
sutilezas do humor oriental, mas jamais perdeu a dignidade, nem a alegria. Foi
um desempenho impecável, e nossos anfitriões não fizeram segredo de sua
plena aprovação.
Mas nem tudo foi encantamento e alegria. Arlequim ficou
profundamente comovido com a experiência. As mesmas coisas que me
deprimiram, a imensidão da terra, o vulto dos empreendimentos tribais,
despertaram nele o poeta e o sonhador. Ele passava uma hora inteira
contemplando extasiado os vultos épicos na paisagem: um barqueiro voltando
para casa ao pôr-do-sol, as mulheres acionando um moinho para irrigar os
arrozais. Fazia então um comentário apaixonado, mas um pouco incoerente.
— ... Existe muito de insensatez em nossa existência, Paul...Vivemos
por fantasias e fragmentos de realidade. Destruímos os princípios tribais e nos
condenamos à solidão das cidades. Esforçamo-nos arduamente para
conquistar coisas supérfluas e depois lançamo-nos a batalhas sangrentas para
defender o de que não precisamos. Acumulamos dinheiro e depois
depreciamos o que possuímos. Afastamo-nos do Deus de nossos pais para
freqüentar as salas dos magos e dos charlatães...Sabe que algumas vezes eu
sinto medo? Vivo num jardim murado, bastante agradável, com gramados e
canteiros de flores. Mas, em pesadelos, me pergunto se não é esse o vale dos
assassinos...
Depois de Pequim, fomos a Hong Kong e Tóquio e em seguida ao
Havaí e a Los Angeles, onde Arlequim caiu de súbito doente. O médico
determinou-lhe que se internasse imediatamente num hospital, onde as
radiografias revelaram uma infecção maciça em ambos os pulmões. A
princípio os médicos suspeitaram de tuberculose. Mas quando os testes se
mostraram negativos, eles iniciaram toda uma série de exames. Juliette veio de
avião de Genebra e eu voltei para a Europa. Arlequim melhorou por alguns
dias, mas logo teve uma recaída. Examinaram-no para ver se estava com febre
de Queensland, psitacose e outras enfermidades mais exóticas. E um dia Juliette
telefonou-me, com notícias inquietantes. Os médicos suspeitavam de que
Arlequim estivesse com câncer linfático, recomendando uma biópsia.
Arlequim recusara.
— Mas por quê, Julie, por quê?
— Ele diz que se ressente da idéia. Prefere esperar o que chama de
veredicto da natureza. É um direito dele e não pretendo convencê-lo do
contrário.
— Ele está deprimido?
— Por mais estranho que possa parecer, não. Está até bastante calmo.
Diz que chegou a um acordo com a experiência.
— E você, como está?
— Estou terrivelmente preocupada. Mas ele precisa de mim, Paul. E
pelo menos com isso estou satisfeita.
— Continue pensando assim, menina. Dê um abraço nele por mim.
Diga-lhe que o menino está indo muito bem e que ainda estaremos no
negócio quando ele voltar para casa...
Tal promessa eu podia fazer com bastante convicção. O que não podia
era prometer livrar-me dos abutres que já estavam circulando sobre nós.
Todos os dias alguns colegas prestimosos indagavam-me pelo telefone ou pelo
telex a respeito da saúde de Arlequim. Falava-se em alterações de orientação
política e na possibilidade de fusões no caso de morte ou incapacidade de
Arlequim. Eu fui subitamente inundado de convites, para almoços, jantares,
coquetéis, conferências particulares, em meia dúzia de capitais. Mais de um
amigo há muito desaparecido surgiu de repente com uma informação útil
sobre o mercado ou um lote de ações a preço reduzido. O fato mais
significativo, porém, foi a intervenção pessoal de Basil Yanko, presidente da
Creative Systems Incorporated. Seu telex de Nova York foi lacônico e objetivo:
"Em Genebra amanhã. Solicito conferência particular às dez horas.
Confirme, por favor. Yanko".
É claro que confirmei. Arlequim et Cie. havia subscrito todas as
iniciativas da Creative Systems Incorporated e suas empresas afiliadas. Nossa
participação em seu esquema acionário equivalia a uma licença para imprimir
dinheiro. Por recomendação deles, havíamos conquistado uma dúzia de
contas da maior importância. Basil Yanko poderia pedir-me que dançasse um
tango numa corda bamba e eu prontamente o atenderia.
Não que eu gostasse dele. Muito pelo contrário. Até mesmo sua
aparência me desagradava. Era um homem alto e esquelético, desengonçado,
de pele cinzenta como a de um rato, a boca pequena e fina como um alçapão,
olhos pretos e pequenos, nos quais não havia absolutamente o menor indício
de humor. Era arrogante, autoritário, desprovido de quaisquer virtudes de
convívio social. Mas, por outro lado, era universalmente reconhecido como o
mais brilhante cérebro em tecnologia de computador. Começara como criador
de sistemas difíceis para a Honeywell, mas logo fundara a Creative Systems
Incorporated e passara a projetar programas para grandes instituições, como
órgãos governamentais, corporações internacionais, bancos, empresas aéreas e
até para a polícia. Suas companhias mantinham atividades em todos os países
da Europa, América do Sul,
e Austrália, Japão e Grã-Bretanha. Sua riqueza já se tornara legendária.
Seus sistemas eram os fios que controlavam milhões de vidas-marionetes. Nós
mesmos os utilizávamos. Basil Yanko, porém, fazia questão de deixar bem
claro a todo mundo que eram os sistemas que nos usavam e não nós a eles.
Mal começáramos a reunião quando ele jogou um envelope na minha frente.
— Leia isto. É o relatório médico sobre George Arlequim.
Fiquei furioso e demonstrei-lho.
— Esse é um documento particular. Como diabo conseguiu obtê-lo?
— Foi fácil. O hospital em que ele está internado é também um
instituto de pesquisa, que aluga tempo de um de nossos computadores.
— Mas isso é contra toda e qualquer ética!
— Mesmo assim, leia. Indica duas possibilidades. Ou Arlequim está
com câncer linfático ou com infecção de um vírus extremamente raro. Se ele
por acaso se recuperar, terá uma convalescença prolongada e será obrigado a
reduzir drasticamente suas atividades durante um longo período.
— E daí?
— Se ele morrer, os herdeiros naturais são a esposa e um filho ainda
pequeno. A direção de Arlequim et Cie. será delegada aos atuais diretores e
quaisquer talentos novos que eles possam descobrir. Não é muito fácil
encontrar bons banqueiros. A conseqüência lógica é uma redução no valor das
ações e nos lucros em potencial.
— Essa é a sua lógica, Sr. Yanko.
— Estou disposto a apostar que essa é a conseqüência inevitável. Se
Arlequim morrer, quero comprar as ações dele. Cobrirei qualquer proposta
que seja feita.
— Esse é um problema que competirá aos executores testamentários.
— Dos quais você é o principal.
— Isso é novidade para mim.
— Pode aceitar a informação como verdadeira.
— E se Arlequim viver, como eu não tenho a menor dúvida de que
acontecerá?
— A mesma proposta continua de pé. Solicito que a transmita a ele,
assim que estiver em condições de examiná-la.
— Estou certo de que ele recusará.
— Como alternativa, estou preparado para comprar as ações de seus
sócios, muitos dos quais se mostram dispostos a vender.
— Pelos estatutos de Arlequim et Cie., George Arlequim tem opção
para comprá-las.
— Eu sei. Ele pode estar disposto a renunciar à opção ou a vendê-la.
— Duvido também que isso aconteça.
— Está sendo muito positivo, Sr. Desmond. Deixe-me informar-lhe
que se pode hoje computar, com uma precisão de setenta e cinco por cento, o
comportamento futuro de pacientes não-psicóticos.
— E Arlequim é um dos pacientes dos seus computadores?
— Um dos mais importantes.
— Ele ficará lisonjeado ao sabê-lo.
— Não o superestime, Desmond. E também não me subestime. Eu
geralmente consigo tudo o que desejo.
— E por que está querendo Arlequim et Cie.?
A boca pequena retorceu-se num arremedo de sorriso.
— Sabe de onde vem o nome Arlequim? O trisavô dele era um truão
que fazia o papel de Arlecchino na commedia dell'arte. Pode ter certeza de que é
a pura verdade. Conheço a fundo a história da família. Houve uma
transformação e tanto em quatro gerações. Mas, afinal, assim é o papel,
tradicionalmente. Arlequim transforma o mundo com um golpe do seu
porrete de palhaço, depois ri furtivamente de toda a aflição que provocou. Por
falar nisso...
Ele fez uma pausa e tirou da maleta uma pasta volumosa,
acrescentando:
— Vocês nos pagam para efetuarmos uma verificação de segurança em
suas contas. Este é o relatório dos últimos seis meses. Os computadores
mostraram algumas anomalias curiosas. Descobrirá que algumas estão a exigir
ação imediata. Se precisar de mais algum esclarecimento ou ajuda, o meu
pessoal está à sua disposição.
Ele levantou-se. A mão que me estendeu era frouxa e fria como um
peixe morto.
— Obrigado por dispor do seu tempo. Por gentileza, apresente meus
respeitos a Madame Arlequim e diga-lhe que espero uma recuperação rápida
do seu marido. Bom dia, Sr. Desmond.
Ao acompanhá-lo até o elevador, senti um tênue calafrio, como se um
vento gelado tivesse passado sobre a minha tumba. Os primeiros banqueiros
foram sacerdotes e o dinheiro ainda possui uma linguagem ritual. Assim,
quando se diz a um banqueiro que existem anomalias nas contas que ele
opera, é como apontar um osso em sua direção ou lançar uma praga mortal
sobre sua cabeça. Na teoria, é claro, o computador deve proteger o banqueiro
de tal desastre primitivo. O computador é um cérebro poderoso, que pode
acumular séculos de conhecimento, efetuar milagres de matemática num
piscar de olhos e fornecer respostas infalíveis às mais intrincadas equações. O
computador seduz o homem a uma fé cega por ele e depois o denuncia à sua
própria idiotice.
Não podemos comprar o cérebro. Alugamos o seu tempo.
Contratamos analistas de sistemas e lhes explicamos as nossas necessidades.
Recorremos a programadores para fornecer ao cérebro os fatos e os números.
Baseamos decisões de fundamental importância nas respostas que nos foram
proporcionadas pelo computador. Mas, porque vivíamos atormentados pela
possibilidade de os programadores cometerem erros ou serem subornados,
utilizamos monitores para controlarem o cérebro em busca do menor indício
de erro ou fraude. E assim acreditávamos, como homens religiosos o fariam,
que o sistema era seguro e sagrado, à prova de tolos e escroques.
Havia apenas um único problema: o cérebro eletrônico, os
programadores e os monitores eram todos membros da mesma família, a
Creative Systems Incorporated, que sonhava em ter-nos a todos sob o seu controle,
ao comando do seu chefe, Basil Yanko. Quer gostássemos quer não,
estávamos presos dentro de um círculo mágico, traçado por um mago do
século XX. O relatório que estava em cima da minha mesa, esperando ser
aberto, era um documento de magia, cheio de encantamentos e perigosos
mistérios. Eu precisava reunir toda a minha coragem para abri-lo, precisava de
silêncio e tranqüilidade para examiná-lo. Disse a Suzanne que não me passasse
nenhum telefonema, tranquei a porta e comecei a ler o relatório. Duas horas
depois eu enfrentava a brutal realidade: Arlequim et Cie. fora sangrada em
quinze milhões de dólares. E quem a sangrara fora o próprio George
Arlequim.
Surgia-me agora uma questão das mais simples: como o rabino que falta
à sinagoga e vai jogar golfe no sabá, acertando um buraco com uma só tacada,
a quem eu poderia contar o fato? O réu — ou a vítima — estava a doze mil
quilômetros de distância, internado num hospital, esperando que um homem
de jaleco branco lhe dissesse se iria viver ou morrer. De qualquer forma,
porém, eu precisava cobrir os quinze milhões antes que os auditores
entrassem em ação. Mesmo que eu utilizasse todos os meus recursos, poderia
cobrir cinco milhões, faltando ainda dez. A quem eu poderia explicar a
necessidade? Quem poderia entrar com tanto dinheiro, em confiança? Há
poucos heróis no mundo das altas finanças. Os banqueiros são sensíveis como
anêmonas-do-mar. Basta encostar um dedo neles e se encolhem todos,
tremendo com o ultraje, e de apreensão.
Eu precisava também comprovar se o relatório era falso ou não. Mas
em quem poderia confiar para isso? O pessoal de computadores também é
fechado. Casam-se e promovem casamentos entre si, encontrando-se nos
bailes do condado. Além do mais, a informação dos computadores é como
sexo. Pode-se vendê-la dez vezes e ainda se continua a possuí-la. E quem
pode sabê-lo ou com isso se importar, desde que não se negocie a mercadoria
diante dos olhos de um guarda que está passando? Um de nossos clientes
gastou vinte milhões de dólares em pesquisas de petróleo em plataforma
continental, apenas para descobrir que seus rivais já estavam perfurando no
local antes mesmo que os últimos dados fossem gravados em fita.
Era uma hora da tarde. À uma e meia eu deveria almoçar e falar no
Clube Comercial de Genebra. Eu sabia que, se deixasse escapar a menor
palavra de dúvida ou desânimo, ela daria a volta ao mundo antes que a Bolsa
de Nova York abrisse. Tranquei o relatório em minha maleta, lavei-me no
banheiro de Arlequim, destranquei a porta e chamei Suzanne. Já que eu tinha
de explicar-lhe alguma coisa, o melhor era fazê-lo rapidamente.
Suzanne é a secretária de Arlequim. Está com quarenta anos de idade,
mais um ou menos um, e ama Arlequim desde o dia em que entrou em seu
escritório, quinze anos atrás. Está ficando um pouco grisalha, mas ainda é uma
mulher bonita, com um bom corpo e uma mente brilhante, tendo uma atitude
muito prática em relação ao sexo e à amizade. Por algum tempo fomos
amantes por descuido, hoje somos amigos por opção. Eu poderia confiar-lhe
minha vida, mas não tinha o direito de fazer o mesmo com a de Arlequim.
Por isso, contei-lhe apenas metade da verdade. E a medida do seu valor é que
ela aceitou sem fazer nenhuma pergunta, nem demonstrar o menor
ressentimento.
— Suzy, estamos metidos numa enrascada, das grandes.
— Basil Yanko?
— Exatamente.
— Detesto esse homem.
— Eu também. Mas não tenho outro jeito senão tratar com ele. Tenho
de agir depressa e ir para muito longe. Ninguém, à exceção de você, deve
saber onde estou, nem a quem fui procurar. Certo?
— Mais do que certo.
— Telefone para a Executive Charter e mande que preparem um avião
para as três horas da tarde. Chame também Karl Kruger, em Hamburgo.
Ligue para o clube e diga que chegarei um pouco atrasado para os drinques,
mas a tempo de fazer o discurso. Depois vá ao meu apartamento, arrume
algumas roupas para eu levar e apanhe-me depois do almoço para conduzir-
me ao aeroporto. Quero também ditar um telegrama, a ser enviado em código
a todos os gerentes de filiais. Alguém está manipulando nossos computadores.
Estamos com uma diferença de caixa de quinze milhões de dólares.
— Oh, meu Deus! E George já sabe disso?
— Não.
— Vai dizer-lhe?
— Não, enquanto não soubermos o veredicto médico.
— Ele está envolvido?
— Até o pescoço. Você terá que confiar em mim, Suzy.
— E pode ter certeza de que eu confio, Paul. Mas deve também confiar
em mim.
— O que você ignora, ajuda a todos nós. Por enquanto, vamos deixar a
situação neste pé.
— Só quero que não se esqueça, Paul, de que Arlequim é muito mais
resistente do que você imagina.
— E vai precisar mesmo sê-lo, Suzy... Agora seja uma boa menina e
faça as ligações que eu lhe pedi.
Karl Kruger, presidente da Kruger & Co. AG, ainda estava em sua mesa
de trabalho, tomando cerveja e comendo Knackwurst, enquanto seus diretores
almoçavam com clientes nos melhores restaurantes. Eu podia imaginá-lo, em
seus sessenta e cinco anos, grisalho como um urso do Báltico, resmungando
diante da minha intrusão.
— Also! Em Genebra vocês se divertem com o dinheiro, aqui nós
trabalhamos duro para ganhá-lo. Que diabo você está querendo?
— Jantar, cama e uma conversa esta noite.
— Não há condição. Hilde está na cidade, e você sabe perfeitamente o
que isso significa. Ela é a única mulher com quem eu ainda consigo fazer
alguma coisa.
— Então conversaremos primeiro e depois nós dois a levaremos para
jantar. Por favor, Karl!
— Você parece preocupado, Paul. Algo errado?
— Tudo. Arlequim está num hospital da Califórnia e eu tenho um
abacaxi a descascar. Preciso de você, amigo velho!
— Então apareça às seis horas em minha casa. E, se me atrasar, terá
que dormir com Hilde. Wiedersehen.
— Wiedersehen. E obrigado, Karl.
Estava na hora de eu partir para o almoço. Falei durante vinte minutos
sobre generalidades otimistas, o que daria meia coluna nos jornais da manhã.
Às três e quinze levantamos vôo e faltavam cinco minutos para as seis horas
quando bati na porta da fortaleza de Kruger, no Parque Alster.
Se vocês conhecessem Karl Kruger, certamente não gostariam dele. São
bem poucos os que simpatizam com ele. Os ingleses afirmam que ele é um
junker da velha escola, que integrava a camarilha de Hitler e subornou os
americanos para que lhe dessem uma ficha limpa, empenhando-se a partir daí
na recuperação da sua fortuna na Bundesrepublik. Talvez seja verdade, talvez
não. Eu simplesmente não sei. O que sei, porém, é que Helli Anspacher jura
que ele gastou milhões para salvar seu marido dos carrascos, depois da
conspiração de Schellenberg, que Chaim Herzl, em Tel-Aviv, diz que lhe deve
a vida, e que Jim Brandes escondeu-se em sua casa durante três semanas,
depois que seu avião foi derrubado durante um ataque a Lübeck. Mas tudo
isso agora pertence ao passado, remoto demais para que se possa decifrar.
Portanto, posso apenas falar sobre Karl Kruger neste ano do Senhor que ora
atravessamos, como o conheço agora.
Ele é tão largo quanto alto, com uma basta cabeleira cinzenta, punhos
gigantescos, um caminhar desengonçado e o rosto salpicado de pintas
vermelhas. Parece tão avariado quanto um velho lutador de boxe, mas sua
mente é lúcida e pelo menos metade mais rápida do que a de vocês ou a
minha. Recebeu-me como a um irmão há muito desaparecido, passou o braço
pelos meus ombros e empurrou-me, cambaleando, para junto do fogo.
— Ora essa, Paul, você está pálido como uma freira assustada! Vamos
ter que pôr um pouco de fogo nessa sua barriga. Disse a Hilde que você
estava vindo e ela declarou que guardaria todo o seu amor até encontrá-
lo...Toma um scotch, não é?...Sabe, Paul, conheci Hilde quando ela fazia
filmes especiais para Gregory em Munique. Isso foi há vinte anos, e Hilde
continua linda. Portanto, vamos cuidar logo dos negócios. Sobre o que está
querendo falar-me?
— Quinze milhões de dólares.
— O que está vendendo?
— Nada. Essa quantia é o quanto está faltando em nossa caixa.
Sofremos um desfalque, Karl.
— E quem o deu?
— Os registros dizem que foi George Arlequim.
— E o que você diz?
— Eu digo que não foi ele.
— Já lhe perguntou?
— Ainda não, mas o farei assim que souber se ele vai viver ou morrer.
— Então não foi George. Quem poderia ter sido?
— Alguém que tivesse acesso ao nosso sistema de computadores.
— Quem?
— Digo que foi Basil Yanko.
— Por quê? Ele tem dinheiro que não acaba mais.
— Ele quer assumir o controle de nosso banco. Disse-me isso hoje, ao
entregar-me o relatório de segurança.
— E o que está querendo de mim, Paul?
— Que cubra dez milhões, imediatamente, deixando-nos a limpo, até
que eu possa arrumar as contas e fazer as necessárias transferências.
— E de onde virão os outros cinco milhões?
— Eu mesmo os porei. É tudo o que eu tenho.
— Você é um tolo sentimental, Paul. Está procurando salvar Arlequim
de qualquer maneira. Mas não se esqueça de que, mesmo que cubra, Yanko
continuará a ter provas do desfalque.
— Se estivermos cobertos, será mais difícil para ele usar as provas de
que dispõe. Se o fizer, isso tornará evidente sua cumplicidade. Talvez eu não
tenha que usar os fundos de emergência, Karl, pois, afinal de contas, somos
sólidos como Gibraltar. Mas tenho que ganhar tempo até conversar com
Arlequim e receber autorização para iniciar uma investigação independente.
— E por que procurou a mim e não a seus próprios acionistas?
— Yanko disse que os tem sob controle. Você é o único homem em
quem posso confiar, que tenho certeza de que nada dirá, quer resolva ou não
emprestar o dinheiro para cobrir o déficit.
— E quem vai realizar a sua investigação?
— Esse é outro problema. Preciso de um técnico internacional ou de
uma firma de segurança bem conhecida. Mas o mercado é bastante fechado e
Yanko certamente saberá assim que eu começar a procurar.
— E comprará imediatamente o homem que você contratar.
— Ou talvez faça pior ainda. Pessoas são mortas por muito menos
nesse negócio, Karl.
— Quem foi que disse que o dinheiro não tinha cheiro? Você está
bastante abalado, meu jovem Paul. Sirva-se de outro uísque. Tenho que
pensar um pouco.
Karl Kruger pensando era como uma britadeira triturando concreto.
Andava de um lado para outro da imensa sala, ofegando e arrotando,
murmurando para si mesmo. Abriu as cortinas, plantou o vulto corpulento
diante da janela e ficou um longo tempo contemplando as luzes da velha
cidade hanseática, tão profundamente enraizada no dinheiro da burguesia e na
lama do Báltico que sobrevivera até mesmo ao cataclismo do bombardeio
maciço e à divisão do Reich no pós-guerra. Seus habitantes são banqueiros e
comerciantes, armadores e marinheiros esfuziantes, ciumentos da sua cidade e
das suas liberdades históricas. São espertos e fleumáticos, amigos dedicados e
inimigos obstinados. Se Karl Kruger resolvesse apoiar-me, eu poderia
começar a lutar. Se ele recusasse, no entanto, seria como se eu ficasse nu em
meio à mais terrível tempestade. Finalmente ele virou-se para mim, o rosto
sério.
— Conheci Basil Yanko e creio que o compreendo. Ele é um gênio,
mas só tem cabeça e mais nada. Por isso dedica-se totalmente ao jogo do
poder. O seu George Arlequim, por outro lado, o que é? Um playboy, um
bufão, um amador? Dinheiro é negócio de homem. Esta cidade é prova disto.
Mas o seu Arlequim se comporta como se isso fosse uma brincadeira de
criança.
— Você também sente inveja dele, Karl?
— Inveja? Oh, meu Deus, claro que não! Como posso sentir inveja de
um homem que precisa de uma cobertura de quinze milhões porque não sabe
vigiar suas próprias contas?
— Deixe disso, Karl! Você sabe muito bem que qualquer sistema pode
ser corrompido. Existe em Londres um técnico de segurança que consegue
seus clientes provando justamente isso. Se o contratar, ele demonstra sua
habilidade desviando dinheiro durante seis meses a fio, sem que você o
perceba, depositando o que tirou num fundo de investimento. O que você
está realmente querendo saber é se vale a pena ou não salvar Arlequim. Eu
digo que vale. Não é necessário ser asceta para ser bom banqueiro. Pode-se
sê-lo levando uma vida como a de Arlequim. No seu tempo, você fazia até
mais do que ele. E é capaz de liquidá-lo só porque não aprecia seu estilo de
vida?
— Não é esse o problema. Por que Yanko o escolheu? Por que não a
mim ou a meia dúzia de outros que ambos poderíamos enumerar? Ele
escolheu Arlequim porque há uma fraqueza no homem, assim como em seu
sistema. E eu quero saber precisamente qual é.
— Sou o homem errado para responder, Karl.
— Por quê?
— Porque ele é meu amigo, sou padrinho de seu filho e estou
apaixonado pela esposa dele.
— Deus Todo-Poderoso! E em vez de roubar-lhe a esposa, você
prefere ser o mártir no altar da amizade? E muito mais tolo do que eu
imaginava, Paul.
— Agora que já sabe, Karl, qual é sua resposta?
— Darei a cobertura, mas com uma condição.
— Qual?
— Quer esteja à porta da morte quer não, Arlequim terá que saber de
tudo. E quero a primeira opção sobre suas ações e seus direitos de preferência
em relação aos outros acionistas. Se ele não concordar, então não há negócio.
— Está sendo muito exigente, Karl.
— Isto é Hamburgo, irmãozinho. Aqui não se dá nada por nada. E
quem não andar com a braguilha abotoada, pode pegar uma doença.
— Apresentarei a proposta a Arlequim.
— Está certo. Agora, quanto a seu investigador...Não pode realmente
procurar alguém no campo dos computadores, pois Yanko iria antecipar-se a
todos os seus atos. Concorda?
— Concordo.
— Poderia recorrer à polícia.
— Operamos em muitos países e em todos eles haveria um escândalo
se agíssemos dessa forma.
— Pode usar investigadores particulares.
— Mesmo assim, ainda precisaríamos de um técnico em computação
para verificar todo o sistema.
— Acho que precisa muito mais do que isso.
— Não estou entendendo...
— Yanko tem de tudo à sua disposição: dinheiro, informação,
influência. Tem, em suma, o poder. Pode criar uma mentira e impingi-la da
noite para o dia à metade do mundo. No momento em que começarem a
enfrentá-lo, deverão procurar arruiná-lo, antes que ele os destrua. Foi por isso
que eu quis saber se George Arlequim é um homem de coragem. Se não for, é
melhor vender o que tem agora, enquanto ainda encontra quem compre.
— Eu também lhe direi isso, Karl.
— Se ele está disposto a lutar, então há um homem cm Nova York que
poderá ajudá-lo. Usa diversos nomes, mas o verdadeiro é Aaron Bogdanovich.
Ele é também uma espécie de gênio, mas seu maior mérito é o de não se
deixar comprar.
— O que ele faz?
— Ele organiza o terror.
Naquele momento saímos da velha mansão do parque Alster e
mergulhamos dois mil anos no passado. Estávamos de volta à floresta escura,
conhecida como Hamma, as fogueiras acesas, os guerreiros embriagados e
entregues à luxúria, depois da matança. Compreendi então qual era o
verdadeiro nome do nosso ofício, uma batalha sangrenta por dinheiro e
poder, com os lobos à espreita, esperando pelo que os guerreiros deixariam
atrás de si.
Karl Kruger deixou-se cair pesadamente numa cadeira, pôs um pouco
de uísque no copo e esvaziou-o de um só gole. Depois lançou-me um olhar
sardônico e perguntou:
— Acha que estou brincando, não é mesmo?
— Não.
— Quer fazer alguma pergunta?
— Quero. Como veio a conhecer esse Aaron Bogdanovich?
— Eu sou o agente dos banqueiros dele.
— Quem o emprega?
— O Estado de Israel.
— E por que ele aceitaria um serviço particular?
— Porque tem para comigo uma dívida pessoal. Tirei seu irmão e sua
irmã de Latvia.
— E o que ele poderia fazer por nós?
— Acho que quase tudo. O terror é um negócio bastante flexível. O
público vê apenas seu lado mais tosco, como o assassinato de um agente ou o
seqüestro de um avião. Mas, na verdade, todos nós vivemos sob a pressão da
chantagem. Os especuladores desvalorizam a moeda, os árabes cortam o
fornecimento de petróleo. Nessa base, o relatório que Yanko lhe apresentou
também é um ato terrorista.
— E como posso entrar em contato com esse Aaron Bogdanovich?
— Ele tem uma loja de flores na Third Avenue, entre as ruas 49,h e 50lh.
Basta você entrar e apresentar-lhe meu bilhete. E melhor escrevê-lo agora
mesmo. Hilde deve estar chegando e teremos uma noite movimentada.
Eu estava mais do que disposto. Era um homem livre e há muito que já
passara da idade de precisar de consentimento. Se Karl e Hilde queriam
divertir-se a noite inteira na cidade, iria acompanhá-los. Jantamos em casa,
porque Karl possui o melhor cozinheiro de todo Scheswig-Holstein. Hilde,
que é gorducha, agradável e de voz estridente, como uma franguinha, tocou
Wirtin para nós. Depois, Karl, entusiasmado e afoito, decidiu invadir Saint
Pauli. Não pude dissuadi-lo e Hilde nem tentou. E assim, entre meia-noite e
quatro horas da madrugada, percorremos a Reeperbahn: bares particulares,
shows de sexo, boates de lésbicas e clubes de invertidos, indo também a
antros de marinheiros, onde Karl tocou acordeão e sapateou no chão coberto
de serragem. Eu esperava que a qualquer momento ele desabasse com um
ataque de apoplexia. Em vez disso, contudo, ele encerrou a noite com um
floreio de ator. Enquanto Hilde lhe desabotoava a camisa e eu lhe tirava as
meias, ele abriu um olho e declamou:
— Sabe, meu jovem Paul, se não se pode combatê-los, então é melhor
fazer a outra coisa. Mas, se não pode fazer nenhuma das duas, só resta deitar e
morrer.
Era um sentimento encorajador para encerrar uma noitada alegre. Mas
eu duvidava que pudesse torná-lo apetecível a George Arlequim, o menos
combativo e o mais civilizado dos homens.

Trinta e seis horas depois estava em Los Angeles, passeando pelos


jardins do Bel-Air Hotel em companhia de Juliette, partilhando sua alegria
diante da notícia de que George fora salvo da sentença de morte, que
receberia alta do hospital dentro de uma semana e dentro de um mês estaria
pronto para recomeçar a trabalhar, moderadamente.
Juliette relatava-me os planos que tinham feito.
— ... Decidimos ir para Acapulco. Lola Frank emprestou-nos a villa que
possui lá. Teremos toda uma equipe para cuidar de nós. A casa tem uma
lancha e...Oh, Paul, será como uma segunda lua-de-mel! Mal posso esperar o
momento de seguirmos para Acapulco. As últimas semanas foram terríveis.
Cada vez que o telefone tocava, eu pulava sobressaltada. George parecia-me
completamente estranho, de tão calmo e distante. Era como se ele estivesse
procurando conservar todas as suas forças para o dia do veredicto final. Ele
jamais se queixou. Mostrava-se extremamente cuidadoso para comigo,
bastante atencioso, mas vivia em seu próprio mundo. Mesmo quando lhe
deram a boa notícia, ele mostrou-se tão reservado que foi quase sobrenatural.
Sorriu e agradeceu ao médico por seus cuidados. Quando ficamos a sós, ele
abraçou-me e chorou um pouco. Depois disse uma coisa estranha: "Agora eu
sei o nome do anjo". Quando lhe perguntei o que aquilo significava, disse que
era algo que preferia não explicar...
— Quando posso visitá-lo?
— Esta tarde. Por que não vai sozinho fazer-lhe uma surpresa?
— Se acha que...
— Não há o menor problema. Isso me dará uma oportunidade de ir a
um cabeleireiro e fazer algumas compras. Mas não o deixe falar de negócios,
está certo?
— Prometo que não o deixarei alongar-se muito no assunto.
— Ele ficará na maior alegria em vê-lo! Oh, Paul, não está fazendo um
dia maravilhoso?
Eu achava que o dia era infernal e repugnante. Compreendia agora por
que, nos velhos tempos, mandavam cortar a garganta dos portadores de más
notícias. Ao seguir para o centro da cidade a fim de visitar Arlequim, tinha
vontade de cortar minha própria garganta. Pensei em reter as notícias por
mais algum tempo, mas sabia que não poderia fazê-lo. Sem o consentimento
de Arlequim, não tinha poderes para entrar em ação.
Meu coração contraiu-se quando o vi. Estava sentado numa poltrona,
usando um pijama de seda e roupão, parecendo transparente de tão pálido.
Quando lhe apertei a mão, verifiquei que estava seca e encarquilhada. Apenas
seu sorriso permanecia o mesmo, luminoso, grave, com a eterna expressão de
malícia. Ele não procurou atrair a atenção para si mesmo, como os doentes
costumam fazer. Afastou minhas perguntas sobre a doença com um sacudir
de ombros.
— Já passou, Paul. Tive muita sorte e estou contente por Julie. Agora
quero sair daqui o mais depressa possível. Disseram-me que a convalescença
será demorada. Pode defender o forte por mais algum tempo?
— Claro. Mas vou precisar importuná-lo com o exame de alguns
negócios. Acha que agüenta?
— Não há problema. Pode falar.
— São más notícias, George. Ele sorriu e sacudiu os ombros.
— Pode contar-me o pior e mesmo assim continuarei a sentir-me um
homem de sorte.
Contei-lhe tudo. Ele ouviu-me em silêncio, de olhos fechados, a cabeça
caída de encontro ao peito, as mãos placidamente no colo. Quando acabei, ele
perguntou calmamente:
— Como foi que aconteceu, Paul?
— Está tudo no relatório. Precisaremos de um técnico para verificar os
detalhes, porque há uma ampla série de transações implícitas. O método,
porém, é essencialmente simples. Suborna-se um programador para fornecer
informações fraudulentas ao computador. A menos que elas sejam canceladas,
o computador a partir daí desenvolve todos os seus cálculos tendo-as por
base, até o juízo final...Sabe como operamos no mercado. Compramos e
vendemos em bloco para grupos de clientes, separando depois as ações de
cada um, os lucros e as despesas. Nosso computador foi programado para
apresentar despesas falsas nas transações, o lucro daí proveniente sendo
depositado numa conta numerada do Union Bank, de Zurique. E essa conta
está em sem nome.
— Mas eu nunca tive, em toda a minha vida, nenhuma conta no Union
Bank!
— O relatório declara que é sua a assinatura na abertura da conta e nos
cheques.
— Está dizendo que a conta tem sido operada?
— Retiraram todo o dinheiro.
— Mas então falsificaram o meu nome!
— Teremos de prová-lo e descobrir também quem o fez. Teremos
também que descobrir quem forneceu informações falsas ao computador, em
todas as nossas filiais, e quem pagou para que isso fosse feito.
— Por que nós mesmos não descobrimos a diferença?
— Porque consideramos o computador como coisa garantida.
Enquanto as transações diárias se ajustam, nem mesmo questionamos os seus
resultados. E temos uma tão ampla variedade de operações que somente os
contadores e os auditores preocupam-se com os números finais.
— Mas isso é uma loucura, Paul! Fazer com que pareça que eu estou
roubando minha própria empresa...Não estou entendendo nada.
— Alguém quer fazê-lo de alvo, e creio que esse alguém se chama Basil
Yanko.
— Se isso é verdade, podemos nos livrar dele e contratar os serviços de
outros.
— O diabo que podemos! Já se esqueceu quanto tempo demora para
instalar e treinar operadores num determinado sistema? Além disso, o que está
acontecendo é apenas um aviso, um primeiro bilhete de chantagista.
— Mesmo assim, é um ato criminoso.
— Se pudermos prová-lo. E temos também que cobrir os fundos que
estão faltando. Preciso de instruções suas quanto a isso. No momento, Karl
Kruger e eu estamos dando as garantias necessárias, mas Karl quer muita coisa
em troca.
— Não tem importância, Paul.
— Neste caso, precisarei de uma procuração plena, para poder
movimentar todos os seus bens, pelo menos enquanto não for capaz de viajar
e agir por si mesmo. Sei que isso é um risco muito grande e não me
incomodarei se você não quiser assumi-lo.
— Tenho que confiar em alguém, Paul. E se não puder confiar em
você, quem mais me restará?
— Então vamos enfrentar Basil Yanko.
— Eu não disse isso.
Engasguei, incrédulo. Arlequim sorriu, um sorriso lívido e desalentado.
— Não fique tão chocado, Paul! Acabei de caminhar até a beira da
morte e voltei. Sei agora de quão pouca bagagem um homem realmente
necessita. Devo confessar-lhe que não tenho muita certeza se desejo manter
Arlequim et Cie. Não gostaria de que ela ficasse com Basil Yanko, mas não
me recusaria a vendê-la para Karl Kruger. É uma ótima solução, pois assim
Julie e o menino não teriam que se preocupar com mais nada e eu estaria de
fora da corrida de ratos.
— Se vender agora, será uma atitude tomada sob coação.
— Esse é apenas um dos lados da moeda.
— Então eu lhe direi qual é o outro. Se ceder agora, os miseráveis
ganham. E se ganharem agora, tentarão novamente. E não pode esquecer-se
de que nem todas as vítimas conseguirão escapar com a mesma sorte que
George Arlequim.
Subitamente ele ficou nervoso e começou a suar. Eu me sentia um
criminoso por pressioná-lo tanto. Ajudei-o a ir para a cama, molhei-lhe o
rosto e esperei até que lhe voltasse um pouco de cor. As únicas palavras que
encontrei para dizer eram banais e lamentáveis.
— Sei que exagerei, George. Desculpe. O que quer que decida,
continuaremos amigos.
Ele pôs a mão fraca sobre o meu pulso.
— Vou contar-lhe um segredo, Paul. É muito difícil enfrentar o anjo da
morte, porque ele não quer que a gente lute. Tudo o que nos pede é que
descansemos, durmamos um pouco. E é muito tentador fechar os olhos e
esquecer tudo o mais. Não fique tão revoltado comigo, Paul! Dê-me um
pouco mais de tempo...
— É que não temos muito tempo, George. , — Eu sei.
— Quer que eu conte tudo a Julie?
— Ainda não. Ultimamente temos tido alguns problemas pessoais.
— Quer que eu fique mais um pouco?
— Não, obrigado. Estou muito cansado. Venha verme amanhã, com
Julie.
Ainda era cedo. Eu não queria voltar para o hotel, com suas starlets
artificiais e os agentes de cabelos grisalhos. Queria ser anônimo, livre para
conversar sobre coisas superficiais, como o preço de um bife, a dor de barriga
de um cavalo de corridas e o fato de as garotas de hoje não serem mais como
as de antigamente. Gosto desse tipo de vida modesta. É mais simples de viver
e se tem mais amigos para partilhá-la. Parei num bar na Strip, escuro e quase
deserto. Pedi um bourbon, paguei uma cerveja para a casa e durante meia hora
empenhei-me num lamento lacônico com o barman.
Acabáramos de sair do Oriente Médio e estávamos começando a falar
sobre os escândalos da Administração quando o telefone tocou.
O barman atendeu e depois virou-se para mim.
— Seu nome é Paul Desmond?
— Isso mesmo.
— Nova York está ao telefone.
— Nova York?
— Foi o que o homem disse. Vai atender?
Ele empurrou o telefone na minha direção. Peguei o fone e disse
estupidamente:
— Alô...
— Sr. Desmond? Aqui é Basil Yanko. Liguei para dar-lhe as boas-
vindas aos Estados Unidos.
— Como soube onde encontrar-me?
— Temos uma organização muito eficiente, Sr. Desmond. Já tem
alguma novidade para mim?
— Um conselho, Sr. Yanko: não invada minha vida particular.
Ele riu, sem a menor alegria.
— Há algum serviço que lhe possamos oferecer durante sua estada?
— Nenhum.
— Então divirta-se bastante durante sua permanência aqui, Sr.
Desmond. Continuaremos em contato. Au revoir.
Desliguei e voltei a concentrar-me em meu bourbon. O barman fitou-me,
os olhos espertos a sondarem minha reação.
— Más notícias?
— Estou apostando num perdedor.
— Isso é mau, mas a verdade é que não se pode ganhar todas. Quer
outra dose?
— Obrigado.
Tomei a segunda dose lentamente, enquanto ele me contava,
demoradamente e com todos os detalhes, como acertara o jackpot em Las
Vegas na noite em que se divorciara e passara a melhor noite em vinte anos
com uma corista desempregada.
Sua sorte reanimou-me tanto que decidi procurar meu amigo e cliente,
Francis Xavier Mendoza, que vive em Brentwood. Ele é um resquício da
Velha Califórnia, dos poços de alcatrão, dos sinos das missões, das garrafas de
Capistrano. É um verdadeiro milagre em pequena escala: um cavalheiro de
Castela não manchado pela vulgaridade da costa do Pacífico. Possui três filhos
e uma linda filha. Assiste à missa nos domingos e dias santos, fabrica um dos
melhores vinhos do Napa Valley e, nas horas vagas, empenha-se em traduzir
para o inglês os poemas de Alonso Machado. Na política californiana, ele é
uma espécie de camaleão, sempre presente, sempre poderoso, mas nunca fácil
de identificar.
Quando lhe disse que precisava vê-lo, deu-me as boas-vindas no velho
estilo:
— Minha casa é sua. Venha agora mesmo, se não puder vir antes.
Quarenta minutos depois, descansando em seu jardim, apresentei-lhe a
pergunta:
— O que sabe dizer-me sobre Basil Yanko e a Creative Systems
Incorporated?
Ele fez uma expressão de repugnância.
— É um bruto, mas um bruto poderoso. Metade das empresas da costa
usa os seus serviços e lambe suas botas na hora de pagar a conta. Mas eu não
tomaria banho no mesmo oceano que ele.
— O que há de errado com ele?
— Legalmente, nada. Ele fornece os melhores serviços de
computadores deste país — sistemas, programas, segurança, tudo enfim. É o
chamado garoto prodígio. Mas, uma vez entrando em algum lugar, não se
consegue mais tirá-lo de lá. Ele controla todos os sistemas e fica sabendo de
cada movimento de seus clientes. Ao menor indício de fraqueza, ele se instala
prontamente no gabinete do presidente. Já fez assim com três amigos meus e
um inimigo, que bem o mereceu. Mas por que está perguntando, Paul?
— Nós também o usamos e achamos que adulterou nossos registros.
— Ay de mi! Mas isso é terrível!
— Ele já fez o mesmo com alguém por aqui? Há rumores de que sim,
mas nenhuma prova.
— E, se procurarmos, não encontraremos as provas necessárias?
— Na Califórnia de hoje? Perca as esperanças. O presidente está
desacreditado, o Congresso está com medo, o povo desmoralizado. Duvido
muito que eu consiga relacionar vinte pessoas nesta cidade que jamais tenham
sido compradas por alguém. Eu não poderia nem mesmo enumerar dez
pessoas que pudessem enfrentar uma investigação pública de seus negócios.
— É uma triste conclusão.
— Triste e sinistra. Posso descobrir-lhe um assassino muito mais
depressa do que um homem honesto ou um homem corajoso.
Ele fez uma pausa, abrindo os braços num gesto de desespero.
— Sei que estou exagerando um pouco, como sempre o faço. Mas é
que sou como Diógenes, enfiado em sua barrica. Não se pode negar, contudo,
que assim são os tempos em que vivemos. Quando se vive do crédito, como
nós, americanos, o fazemos, sempre se pode ser pressionado. À medida que -
se sobe a escada das corporações, fica-se com medo do homem que está
acima e do que está abaixo. É esse o poder que Yanko utiliza. Ele conhece os
segredos de todo mundo. O que ele não sabe, trata de inventar, alimentando
com mentiras os seus computadores, e depois apresenta-as como um
evangelho, no momento em que julga mais conveniente.
— E como então se pode vencê-lo?
— Só há uma maneira: viver em seu mundo. É preciso espreitá-lo nas
sombras, talvez durante anos, até o dia em que se possa forçá-lo a sair em
campo aberto, derrotando-o então. Mas para fazer tal coisa é indispensável ter
nervos fortes. E quando sair para jantar num restaurante, não se pode
esquecer de ficar de frente para a porta, as costas contra uma parede sólida de
tijolos. Estou lhe dando um bom conselho, Paul, jamais se esqueça disso. Vou
verificar por aí. Se ouvir algo de útil, eu lhe informarei imediatamente.
— Você me surpreende, Francis, como um legítimo cavalheiro cristão.
— O mérito não é meu. Tive uma mãe — que Deus a tenha! — que
me puxou as orelhas e ensinou-me boas maneiras. Agora, deixe-me oferecer-
lhe um sherry. É o melhor que tenho e sinto o maior orgulho dele.
Ele serviu-me a bebida e fez o brinde: saúde, dinheiro, amor e tempo
para gozar as três coisas. Ao beber, experimentei a sensação sobrenatural de
que Basil Yanko espreitava por cima do meu ombro, sorrindo da ironia.

Anos atrás, quando eu estava em Tóquio, negociando um minério de


ferro que ainda estava debaixo da terra e gastando a minha comissão antes
mesmo de recebê-la, fiz amizade com Kiyoshi Kawai, o decano dos
gravadores japoneses. Ele já era um homem idoso então, mas cheio de
vitalidade e com uma extraordinária sagacidade. Sempre que eu me sentia
infeliz, o que acontecia com freqüência, ia a seu estúdio e lá ficava sentado
durante muitas horas, vendo-o cortar os blocos e misturar as cores,
censurando os aprendizes se as definições não fossem absolutamente
perfeitas.
Quando Kiyoshi estava deprimido, um acontecimento raro mas
cataclísmico, arrastava-me para um clube de travestis em Shinjuku, onde os
rapazes se vestiam como gueixas e as poucas moças presentes pareciam os
sete samurais. Todos adejavam em torno do mestre, enquanto este os
desenhava. Serviam-lhe intermináveis copinhos de saque, enquanto Kiyoshi
improvisava haiku e reproduzia-os em maravilhosas pinceladas. Eu achava a
experiência enervante, porque, depois de uma longa sessão de saque e de
cerveja Kirin, era difícil distinguir os rapazes das moças. Eu tinha sempre que
levar o velho para casa, antes que ele começasse a assinar promissórias e as
distribuísse, como souvenirs.
E numa dessas excursões que ele me deu a receita para uma boa vida.
Quando ficou sóbrio, fiz com que a transcrevesse em caracteres kanji. Agora,
aonde quer que eu vá, sempre levo o pergaminho comigo. Diz o seguinte:
"Nunca misture as cores quando o vento do oeste está soprando e jamais faça
amor com uma mulher que tenha cara de raposa". É difícil explicar o
significado de tal inscrição, mas aqui a reproduzo como prólogo a um dia
péssimo.
Começou com uma série de pequenos desastres. Acordei cedo e fui dar
um mergulho na piscina, escorreguei nos ladrilhos molhados e torci o
tornozelo. Logo depois baixou um nevoeiro intenso e em cinco minutos eu
estava com os olhos turvos e espirrando. Às oito horas, Suzanne telefonou-
me de Genebra. Transmiti-lhe a boa notícia da recuperação de Arlequim e ela
reagiu com um despacho da frente doméstica. Nossos gerentes de filiais
tinham ficado extremamente nervosos com meu cabograma. Estavam
subitamente preocupados com os interesses de seus clientes e com os
próprios pescoços. Será que eu poderia prestar alguns esclarecimentos sobre
as instruções? Como eu nada poderia fazer sem a autorização expressa de
Arlequim em meu bolso, ditei uma mensagem tranqüilizante, dizendo-lhes que
o presidente estava passando bem e em recuperação, e em breve iria apertar-
lhes as mãos. Novas instruções seriam transmitidas dentro de quarenta e oito
horas. Pelo menos era o que eu esperava. Para coroar tudo, Juliette telefonou
e pediu-me que fosse tomar o café da manhã em sua companhia. Achava-se
bastante nervosa porque o pequeno Paul estava com catapora e a idiota da
babá celebrara o acontecimento num telegrama de cem palavras, escrito em
alemão-suíço e mutilado em trânsito. Tinha ainda outras preocupações e
escolheu-me para padre confessor.
— Somos amigos há bastante tempo, Paul. Entre nós, não existem
segredos.
— Existem, minha cara, pois não podemos viver sem eles. Comece
novamente.
— Está sendo detestável agora, Paul.
— Então estou de mau humor e com uma péssima disposição. Hoje
não é meu dia. Qual é o próximo item?
— Estou preocupada com George.
— George e você ou apenas George?
— Apenas George.
— Ontem você me falava sobre uma segunda lua-de-mel. O que
aconteceu para fazê-la mudar assim?
— Ele disse-me ontem à noite que estava pensando em vender a
Arlequim et Cie.
— Ele lhe disse por que ou a quem?
— Não. Achei que talvez você soubesse.
— Olhe, Julie, vamos ser francos. Gosto muito de vocês dois, mas
estou no negócio com seu marido e não vou dizer coisa alguma fora das salas
de reunião.
— Isso quer dizer que ele já lhe falou.
— Eu não disse isso.
— Vá para o inferno, Paul Desmond!
— Já estou a caminho, minha querida...
— Não, por favor, espere!...Desculpe. Sei que estou agindo como uma
louca. Mas estou realmente preocupada. George mudou bastante e você não
faz idéia do quanto.. .
— Ora, Julie, não se esqueça de que ele passou muito tempo doente.
Está distante e deprimido, mas isso é normal. Não se podia esperar que ele
agora se pusesse a dançar fandangos, não é mesmo?
— Por que ele está querendo vender Arlequim et Cie.?
— Talvez ele queira pegar o dinheiro e investir, a fim de poder sair
passeando pelo mundo tranqüilamente. Por que não?
— O que será dele sem o negócio?
— Um homem feliz?
— Ou mais um rico ocioso.
— Em todos estes anos de nossa amizade, jamais o vi na ociosidade.
— Seria então um diletante, sem estar comprometido com coisa
alguma.
— Ele está comprometido com você.
— Será mesmo? Às vezes, tenho minhas dúvidas.
— Olhe, Julie, quanto a isso nada lhe posso dizer. Sou apenas um
solteirão, que sente coceira nos pés.
— Eu o detesto quando você se esquiva dessa maneira, Paul.
— O que quer que eu faça? Você é uma mulher adulta e casada.
Conhece a letra e a música, pode cantar para George.
— Eu cantaria fora do tom.
— Não creio. Apenas você não está querendo tomar uma decisão.
— Decisão sobre o quê?
— Se deve tentar reduzir George Arlequim às dimensões de um
menino ou se você mesma se torna uma mulher amadurecida.
— Sabe por que isso acontece?
— Nem quero saber. O problema é seu e não meu...Só-mais uma coisa:
Arlequim quer ver-nos a ambos no hospital, esta tarde. Virei buscá-la às três
horas.
Deixei-a olhando para o seu café já frio e fui passear no jardim. Estava
furioso com ela, comigo mesmo, com Arlequim e com o mundo inteiro,
irremediavelmente indigesto. Eu precisava de uma crise conjugai tanto quanto
precisava de uma terceira perna. Se não conseguíssemos traçar uma orientação
política nas próximas quarenta e oito horas, teríamos uma revolução palaciana
em nossas mãos. E o pior de tudo era que Arlequim, o homem equilibrado em
todas as situações, parecia estar desmoronando. Três pessoas haviam sentido
uma fraqueza nele e estavam empenhadas em explorá-la: Basil Yanko, Karl
Kruger e sua esposa. Eu era o único que não a estava enxergando. Seria eu o
prodígio de um olho só, rei numa terra de cegos, ou seria o estúpido Paul,
aparvalhado e aturdido com o esplendor de um falso príncipe? Tinha que
descobri-lo, no mínimo para manter o respeito próprio.
E porque estava furioso e porque me torno impetuoso e obstinado
quando estou furioso, decidi iniciar minha própria guerra particular. Liguei
para o escritório de Nova York da Creative Systems Incorporated e pedi para falar
com Basil Yanko. Tive que identificar-me para quatro pessoas diferentes antes
que ele entrasse na linha, macio como manteiga.
— É um prazer imenso, Sr. Desmond. Em que posso servi-lo?
— Irei a Nova York depois de amanhã. Gostaria de conversar com o
homem que preparou nosso relatório.
— Não é um homem, Sr. Desmond, e sim uma mulher. O nome dela é
Valerie Hallstrom.
— Está certo, Eu gostaria de conhecê-la. Depois, gostaria de conversar
com o senhor.
— Ótimo. Não quer sugerir algum horário?
— Ainda não fiz nenhuma reserva. Não seria melhor eu telefonar-lhe
assim que chegar a Nova York?
— Combinado. Já transmitiu minha proposta ao Sr. Arlequim?
— Já. Ele está pensando no assunto. Devo receber uma resposta no
final desta tarde.
— Ótimo. Como ele está?
— Bastante abatido, mas agora já está começando a se recuperar.
— Fico satisfeito. Diga-lhe que desejo uma rápida recuperação.
— Certo. Até nosso encontro...
Eu não tinha a menor idéia do que ia dizer-lhe no dia marcado nem em
qualquer outro dia, mas pelo menos lhe pusera uma pulga atrás da orelha e
esperava que ele ficasse a se cocar por algum tempo. Voltei para meu quarto e
pedi que me providenciassem uma estenografa. Sentei-me junto com ela à
beira da piscina e ditei-lhe as procurações que George Arlequim deveria
assinar. Era uma tarefa longa e tediosa, mas teve o mérito de manter-me
ocupado até meio-dia, quando fui para o bar a fim de tomar um coquetel
antes do almoço.
O barman cumprimentou-me pelo nome e apontou para um homem
que estava sentado sozinho junto à janela.
— Aquele cavalheiro chegou aqui um minuto atrás e perguntou pelo
senhor.
Ele era jovem, não tinha mais do que trinta anos, trajava um terno de
corte italiano. Levantou-se quando me aproximei e apresentou-se
respeitosamente:
— Sr. Desmond? Prazer em conhecê-lo. Sou Alex Duggan, da Creative
Systems Incorporated. Nosso escritório de Nova York pediu-me que lhe
entregasse uma mensagem urgente. Liguei para sua suíte e, como não estava
lá, calculei que poderia encontrá-lo aqui no bar. Não quer sentar-se?
Sentei-me. O barman trouxe minha bebida para a mesa. Só depois é
que perguntei:
— E qual é a mensagem que tem para mim?
— É um telex do gabinete de nosso presidente. Se tiver alguma
resposta, ficarei feliz em transmiti-la para o senhor.
A mensagem era um documento, formal e objetivo:

"Tendo por base os dados atuais e uma projeção de três anos,


avaliamos Arlequim et Cie. à razão de oitenta e cinco dólares por ação. Este
comunicado constitui uma proposta formal de compra à vista da totalidade
das ações, à razão de cem dólares cada uma. Solicitamos que transmita a
proposta imediatamente ao Sr. George Arlequim e informe-o também de que
estamos dispostos a negociar, em termos generosos, a venda ou renúncia às
opções existentes. Os outros acionistas já foram devidamente informados.
Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated".

Meti a mensagem no bolso do paletó e rabisquei a resposta no


envelope:
"Comunicação recebida. Paul Desmond".

O jovem dobrou o envelope reverentemente e guardou-o na carteira.


— Mandarei sua resposta assim que voltar para o escritório.
— Aceita beber alguma coisa, Sr. Duggan?
— Não, obrigado. Nunca bebo quando estou trabalhando. É essa a
política da companhia.
— Há quanto tempo trabalha para a Creative Systems, Sr. Duggan?
— Há três anos.
— E o que faz?
— Relações com os clientes.
— E isso significa precisamente o quê?
— Tenho um setor exclusivo. Visito todos os clientes uma vez por
mês, verifico as queixas, sugiro melhorias, faço projeções para a ampliação dos
nossos serviços, que são projetados, é claro, para crescerem com os negócios
do cliente.
— E é bem pago?
— Muito bem. Temos um sistema de gratificações, opções para
compras de ações e tudo o mais. É de fato um excelente emprego, com boas
perspectivas.
— E está sempre com o Sr. Basil Yanko?
— Quase nunca. Mas a gente sabe que ele está presente. E como! Ele
sabe o que cada um está fazendo, até o pessoal da limpeza. E quem não está
preparado, não fica muito tempo na Creative Systems.
— Quer dizer então que a movimentação da equipe é muito grande?
— Nem tanto. Acho que só o bastante para nos manter alerta. Eles
ainda dizem que os funcionários que rejeitamos são melhores do que a
maioria. Todos parecem encontrar emprego com bastante facilidade.
— Isso é interessante. E onde eles vão procurar emprego?
— A maioria do pessoal mais experiente em computação registra-se em
três agências de empregos de Nova York e duas aqui na costa do Pacífico.
— E a sua companhia também recorre a uma agência de empregos?
— Não, senhor. Treinamos e recrutamos pessoal apenas para nós
mesmos e para nossos clientes. O Sr. Yanko é inflexível com relação a isso.
— Muito obrigado, Sr. Duggan. Agora não vou prendê-lo por mais
tempo.
— Foi um prazer, senhor. Pode estar certo de que sua mensagem estará
em Nova York dentro de meia hora.
Ele era um jovem simpático, mas ingênuo demais para ser real. Apertei-
lhe a mão e acompanhei-o até a porta, voltando depois, pensativo e infeliz,
para acabar minha bebida. Agora a pulga estava atrás da minha orelha. Yanko
sabia de tudo a respeito do comportamento dependente de pessoas não-
psicóticas. Sabia mesmo! Uma proposta vaga deixa um homem inquieto, uma
proposta concreta deixa-o ganancioso...e uma oferta dezoito por cento acima
do mercado fá-lo sair correndo para assinar os papéis, antes mesmo que Papai
Noel possa sair da chaminé!
Arlequim podia se recusar a vender. Mas a verdade absoluta é que ele
não poderia comprar todas as suas opções e ainda por cima cobrir um
desfalque de quinze milhões de dólares. Karl Kruger poderia comprar a
noventa dólares por ação, mas não daria um cent acima disso e eu não podia
culpá-lo por tal atitude. Arlequim poderia tentar travar uma batalha por
procuração. Nesse caso, Yanko jogaria seu trunfo: a prova documentada de
fraude e apropriação indébita. Quando tal acontecesse, nossos amigos, clientes
e aliados nos abandonariam em massa.
Era realmente um quadro animador para se pintar num quarto de
doente.
Arlequim resumiu a situação com um sorriso triste:
— Estamos presos entre garras de caranguejo. Há apenas um consolo
nisso tudo: o preço é justo.
Juliette ficou furiosa, desafiando-o:
— Arlequim et Cie. foi-lhe entregue numa bandeja de ouro. E vai
vendê-la sem a menor preocupação só porque o preço é justo? Estou
envergonhada de você, George.
Ele corou, irritado, virando-se em seguida para mim.
— Qual é o seu conselho, Paul?
— A razão diz para vender, o instinto diz para lutar.
— E podemos vencer?
— Podemos.
— Mas, mesmo que isso venha a acontecer, sairíamos bastante
abalados, não é mesmo?
— Pelo amor de Deus, George!
Juliette voltava a enfrentá-lo, fria e com uma expressão de desprezo.
— Pare de fazer rodeios e admita logo de uma vez! Você nunca teve
que lutar por coisa alguma em toda a sua vida. Recebeu tudo de presente, até
mesmo o talento que possui. E agora estão-lhe propondo outro presente:
quinze dólares a mais por ação para entregar a companhia que seu avô fundou
e que deveria, por direito, passar para seu filho.
Arlequim ficou a fitá-la por algum tempo, rígido como uma estátua de
pedra. Eu sentia-me triste por ele e envergonhado por todos nós. Por fim, ele
disse asperamente:
— Sente-se, Julie. Você também, Paul.
Sentamo-nos. Arlequim ficou de pé, encostado na janela, o rosto
mergulhado nas sombras, dominando a nós dois. Então ele começou a falar,
lentamente, relutante, como se cada frase fosse arrancada com dificuldade de
algum recesso secreto em seu interior.
— Parece que lhe falhei, Julie. Não tinha consciência disso. Sinto
muito. Sei que você também tem dúvidas, Paul. Mas existem muitas razões e
tentarei explicá-las. Há algum tempo que estou desiludido com esse nosso
negócio, onde cultivamos dinheiro como se fosse repolho e o negociamos
como mascates no mercado internacional. Olho para os recursos que fluem
pelas nossas mãos e cada vez penso mais de onde eles provêm: as
transferências da Flórida são dólares dos gângsteres, fato que sabemos
perfeitamente, embora nunca o admitamos; o dinheiro do petróleo que vem
dos emirados árabes, onde ainda se vendem escravos e os homens têm suas
mãos cortadas por uma simples cesta de tâmaras; os fundos que fogem dos
países pobres; o saque dos ditadores e dos tiranos locais. Sei muito bem que
quando esse dinheiro nos chega já está limpo e desinfetado, cheirando a água
de rosas. E vivemos como reis dos lucros que ganhamos. Não sinto o menor
orgulho disso e a cada dia que passa fico mais envergonhado. Enquanto eu
estava deitado aqui, esperando que os médicos viessem apresentar-me a
sentença de morte, fiquei imaginando como poderia defender o meu
comportamento na vida diante de um julgamento que talvez tivesse de
enfrentar do outro lado...E quando tudo isso aconteceu, pareceu-me a melhor
saída transformar as minhas fichas em dinheiro, comprar tempo e lazer para
tentar decifrar o enigma deste mundo e meu lugar dentro dele. Por outro lado,
sei que sou um bom banqueiro e que homens honestos confiam no nome e na
tradição de Arlequim et Cie. Mas aqui surge o dilema e você o expôs com
bastante clareza, Paul: se resolver enfrentar Yanko, terei que lutar no mundo
dele, em seus termos, com suas próprias armas. Tenho medo disso, Julie, mas
não pelas razões que você imagina. Sabe, Julie, gosto da luta, gosto do risco e
da brutalidade, da crueldade sem lei e implacável desse outro mundo. Creio
que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir
enquanto limpo o sangue de meu alfanje. Mas a questão fundamental é se
poderei viver comigo mesmo depois disso. Será que continuarei a ser para
você o homem que admira, Julie? Será que você e Paul poderão continuar a
passear de iate em minha companhia, tomando vinho no tombadilho,
conversando e rindo despreocupadamente?
Ele sorriu e sacudiu os ombros, num gesto de zombaria.
— Bem, essa foi a fala da defesa. Nunca mais tornarei a fazer nenhuma.
Julie fitou-o, o rosto inexpressivo.
— Ainda está disposto a vender?
— Não, meu amor. Você é uma mulher bastante persuasiva. Vou lutar.
É a única maneira de eu saber se o jogo vale o que custa.
Aquela declaração não pareceu a clarinada sonora de chamada às armas.
Como tema musical para uma segunda lua-de-mel também não era dos mais
propícios. E mesmo enquanto planejávamos a campanha, parecia mais uma
conspiração do que a batalha dos justos contra os pecadores.
Ao voltarmos para o hotel, o vento de Santa Ana soprava forte. Juliette
ia sentada no carro ao meu lado, em silêncio e distante. Eu ansiava por tomá-
la em meus braços e fazê-la sorrir novamente. Mas ela estava distante, na terra
dos devaneios, onde os espíritos das mulheres choram os amores que
perderam ou os amantes que desdenharam. Gastei quatro horas e uma
pequena fortuna em telefonemas. Quando acabei, fui pegar o avião da meia-
noite para Nova York.
2

Sinto-me inteiramente em casa em Nova York, um capitalista descarado


a gozar os despojos da livre iniciativa. Tenho um apartamento, um criado
japonês, um bom clube e uma miscelânea de amigos, de ambos os sexos.
Adoro a cidade por todas as suas loucuras e delírios. Regozijo-me com sua
ostentação espalhafatosa, seu lacônico cinismo e suas bruscas e péssimas
maneiras. E um lugar arriscado para se viver, um lugar muito fácil para se
morrer. Mas sinto-me mais feliz em Nova York do que em qualquer outra
cidade do mundo.
Possuo também em Nova York um abençoado isolamento, porque o
telefone não está no catálogo, na portaria do prédio consta o nome de outro
homem e uso também o apartamento do banco, no Salvador, onde posso
receber os importunos, evitando assim que eles ingressem em meu refúgio. O
arranjo possui suas vantagens diplomáticas. O Salvador é bastante público,
onde todo mundo é visto e se fica especulando sobre os negócios ali
realizados. Lanço as insinuações que desejo num lugar e posso tranqüilamente
descansar em outro.
Às oito horas da manhã, amarrotado e sonolento, registrei-me no
Salvador. Às nove já estava em meu próprio apartamento. Às dez, graças aos
cuidados de Takeshi, estava barbeado, banhado, alimentado, novamente com
uma forma humana. Às dez e meia estava descendo a Third Avenue, a fim de
entrar em contato com Aaron Bogdanovich, que negociava com o terror e
com flores exóticas e caras.
O comércio de flores era bastante próspero. Duas moças, armadas de
tesouras grandes e arames, estavam fazendo arranjos de mesa. Um jovem
exótico estava arrumando um buquê numa caixa. Uma dama opulenta, com
óculos de ouro, uma túnica amarelo-limão e um sorriso voraz, indagou-me o
que eu desejava e já estava me mostrando um catálogo de flores da primavera
antes mesmo que eu tivesse tempo de respirar. Quando pedi para ver o
proprietário, o sorriso dela instantaneamente desapareceu, não mais queria
saber o que me agradava e sim meu nome e ofício.
A informação não lhe proporcionou nenhuma satisfação visível.
Quando lhe entreguei a carta de Karl Kruger, ela segurou-a cuidadosamente,
quase como se fosse explosiva, colocando-a numa pequena bandeja e levando-
a para uma sala nos fundos. Voltou momentos depois, dizendo que eu deveria
atravessar a rua, até a Taverna Ginty's, e esperar por uma chamada no telefone
público. Saí rapidamente, sentindo-me leproso e indesejável.
No Ginty's, tomei um suco de tomate e contei todas as garrafas nas
prateleiras, até que o telefone tocou e uma voz me ordenou que seguisse até a
Catedral de Saint Patrick e me ajoelhasse no primeiro confessionário do lado
direito. A essa altura já estava começando a achar que toda aquela rotina era
um absurdo total. E foi o que eu disse. A voz censurou-me asperamente:
— Quando precisamos de um banqueiro, vamos procurá-lo. Em nosso
negócio, somos os especialistas. Entendido?
A coisa colocada naqueles termos, claro que estava entendido. A
Catedral de Saint Patrick não ficava muito longe e uma pequena oração
poderia ajudar — contanto que eu me lembrasse das palavras certas. O
confessionário estava escuro e com um cheiro de ranço de muitos pecados. A
grade que separava o penitente do confessor estava coberta por uma tela
opaca. A voz que me falou através dela era anônima, um murmúrio suave:
— Você é Paul Desmond?
— Sou.
— Eu sou Aaron Bogdanovich. Possuo uma memória fotográfica. Irá
dizer-me os serviços que deseja. Eu lhe direi se, aceito e em que termos
poderemos aceitá-los. Comece, por favor.
Contei-lhe tudo, numa confissão monótona. Foi um exercício
interessante, pois fez-me ver o quão vagamente eu definira minha própria
posição e quanta razão existia para as dúvidas e hesitações de Arlequim.
Aaron Bogdanovich era um bom ouvinte e um hábil inquisidor. Fez-me
algumas perguntas constrangedoras.
— Como classificaria suas necessidades em ordem de importância?
— Evitar que assumam nosso negócio, investigar a operação
fraudulenta e limpar nosso sistema, provar que Basil Yanko é culpado de
conspiração criminosa.
— As duas primeiras operações são defensivas. A terceira é ofensiva.
Por quê?
— Se empreendermos uma guerra defensiva, estaremos fadados a
perder.
— Já imaginou o custo possível?
— Em dinheiro? Não. Partimos do princípio de que poderá ser
bastante dispendioso.
— O dinheiro não é o problema fundamental.
— E qual é então?
— Vida e morte. Quando se vai à polícia ou a uma empresa de
reconhecida segurança, contrata-se um homem com uma arma para defender
a vida e a propriedade do cliente. A procuração que eles recebem é limitada.
São responsáveis perante a lei por tudo o que fazem. O mesmo não acontece
conosco, porque operamos fora da lei. Contudo, temos alguns princípios
morais e não somos assassinos de aluguel. Pode comprá-los, se quiser, num
mercado que funciona abertamente. A taxa começa em vinte mil dólares por
assassinato.
— Não estamos querendo contratar assassinos.
— Mas talvez haja alguma violência implicada na operação e a morte é
a conseqüência inevitável da violência. Por isso terá que decidir primeiro — e
nós depois — se o problema é grave o suficiente para justificar um risco de
morte.
— Temos que discutir isso?
— Não agora. Gostaria que primeiro definisse à vontade sua posição.
Depois tornaremos a nos encontrar.
— Frente a frente?
— Por que quer saber?
— Falou em princípios morais. Precisamos saber quais são os que
temos em comum. Nunca fiz contrato com um homem que não conhecesse.
Jamais assinei um contrato em aberto. Portanto, a próxima reunião terá que
ser frente a frente ou terminamos tudo agora mesmo.
— Concordo.
— Sugiro que seja em meu apartamento. Pode escolher o dia e a hora
que mais lhe convierem.
— Esta noite, às onze e meia. Tem documentos que eu possa estudar?
— Estão aqui, em minha maleta.
— Deixe-a aberta aí no chão, com seu endereço e telefone. Eu a
pegarei depois que sair. Só mais uma coisa.
— Pois não?
— Sirvo antes de mais nada a um país. Ajudo os seus amigos e os meus
por concessão e corolário. Não posso pôr meu trabalho em risco. Portanto,
deve comprometer-se a manter sigilo absoluto.
— Está certo.
— Deve saber também qual a penalidade por qualquer violação.
— E qual é?
— A morte, Sr. Desmond. E não receberá um segundo aviso.
É impressionante como um homem pensa lucidamente quando a sua
própria morte está em jogo. Ao percorrer a Fifth Avenue, abrindo caminho por
entre a multidão do meio-dia, avaliei minha própria posição em relação à de
meu sinistro confessor. Aaron Bogdanovich tinha uma razão plausível para
seu ofício. Uma morte ou uma centena de mortes eram cifras insignificantes
diante dos seis milhões de assassinados no grande holocausto. Nenhuma vida
era mais importante que a sobrevivência de uma nação sitiada. Mas o que
dizer de um banco? Será que uma sociedade anônima, dedicada
exclusivamente a ganhar dinheiro, tinha o direito de fazer um sacrifício
humano para preservar seus bens? Quem escolheria a vítima e por que
critério? E que direito tinha Paul Desmond, encastelado na segurança de sua
propriedade e de sua riqueza, de designar-se juiz e júri e delegar atribuições ao
carrasco?
Quando parei para admirar os diamantes na vitrina da Cartier, um cego,
com um cartaz pendurado no pescoço, sacudiu uma caneca de lata diante de
mim. Eu não tinha moeda alguma e por isso peguei uma nota amarrotada no
bolso. Ao colocá-la na caneca verifiquei, tarde demais, que era uma nota de
dez dólares. Lamentei o fato tão irracionalmente que aquela esmola
absolutamente não representou uma absolvição.

Tinha um almoço marcado no Salvador com nosso gerente de Nova


York, Larry Oliver, um bostoniano de fina educação e um respeito quase
fanático pela tradição. Ele seria o mais feliz dos mortais se pudesse aparelhar o
escritório com escriturários encurvados, mesas altas e penas de escrever. Certa
ocasião Arlequim deixara-o no escritório de Londres durante seis meses. Ele
voltara chocado e profundamente desapontado com a deterioração moral do
sistema bancário inglês. Os bárbaros de Wall Street faziam piadas a seu
respeito, mas o fato é que nos fizera atravessar a crise de 1970 sem que nossa
carteira sofresse nenhum abalo de maior vulto. A mais simples imprecisão
constituía para ele um tremendo anátema. Um engano em nossas contas era
um horror inimaginável. Por tudo isso é que eu esperava um almoço difícil. E,
a dizer a verdade, foi um desastre total. Com uma expressão de infelicidade,
Oliver mal provou sua comida, enquanto eu lhe explicava a situação, até o
ponto em que ele precisava saber, fornecendo os detalhes referentes ao
escritório de Nova York. Ele não provou o café, levantou-se e, com as mãos
nas costas, por baixo do paletó, ficou andando de um lado para outro da sala,
como um advogado a fazer uma preleção para um cliente difícil.
— Eu compreendo tudo, Paul. Pode ter certeza de que compreendo
perfeitamente a gravidade da situação. Mas por que não me informaram antes?
— Pelo amor de Deus, Larry, nós só soubemos do ocorrido quatro dias
atrás! Passei imediatamente um cabo-grama para você e para todos os outros
gerentes. Levei dois dias conferenciando com George Arlequim e o resto -do
tempo estive viajando. Seja razoável, meu caro!
— Estou tentando sê-lo, Paul. Mas minha reputação está envolvida, o
nome de minha família...
— Arlequim e eu jamais tivemos a menor dúvida sequer a seu respeito,
Larry.
— Mas assim que a história transpirar...
— Isso nunca vai acontecer, Larry! O desfalque já está coberto. E vim a
Nova York para tratar de uma ampla e minuciosa investigação do ocorrido.
— Mas através de uma agência particular.
— Provavelmente mais de uma.
Ele estacou bruscamente e sacudiu-me um dedo reprovador.
— Infelizmente isso não deixará tudo acertado, Paul.
— Como assim?
— A menos que eu esteja interpretando a lei de forma errada, creio que
fomos vítimas de uma fraude. Certo?
— Em face da lei, está certo.
— Então é um caso para o FBI. Por que eles não foram chamados?
— Porque, embora suspeitemos de fraude, ainda não tivemos tempo de
conferir e analisar todas as provas. Além disso, operamos em diversas
jurisdições. Pode ser que o FBI não seja a principal agência envolvida no caso.
Mas terei uma reunião com o pessoal da Creative Systems para examinarmos
juntos o relatório e depois voltarei a encontrar-me com o Sr. George
Arlequim, quando então será decidido se chamaremos ou não os agentes
federais.
— Enquanto isso todo o nosso pessoal e eu próprio estamos sob
suspeita. Acho tal situação intolerável.
— Compreendo, Larry. Mas peço-lhe que seja paciente. Temos que
coordenar nossa ação com todas as demais filiais.
— Sei disso, Paul. Mas será que muita coisa já não transpirou?
— Espero que isso não tenha acontecido.
— Não tenho muita certeza. Ontem almocei no clube numa mesa de
quatro pessoas. Fizeram-me algumas perguntas estranhas.
— Tais como...?
— Se Arlequim estaria apto a um trabalho ativo novamente.
— Estará, muito em breve.
— Se eu sentia qualquer fraqueza em nossas operações de Genebra.
— E você assegurou-lhes que não havia nenhuma?
— Ao que eu soubesse...Nunca faço declarações precipitadas.
— Eu sei, Larry, eu sei. Quais foram as outras perguntas?
— Se estávamos aceitando propostas para a transferência de controle e
se era verdade que já fora formulada uma. Eu respondi "não" a ambas.
— Novamente ao que você soubesse...
— Claro. Depois me perguntaram se eu estaria propenso a uma
mudança. Respondi que estava bastante satisfeito com Arlequim et Cie., e
muito mais ainda com minhas relações com o nosso presidente. Temos muitas
coisas em comum, como o interesse pela pintura e o respeito aos antecedentes
sólidos. E, se assim posso dizê-lo, somos ambos descendentes de famílias
tradicionais.
— Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, Larry. Arlequim está contando
com seu apoio neste momento difícil.
— Pois então, por favor, assegure-lhe que pode contar comigo. Mas eu
não seria honesto se não dissesse também que a menor sombra de suspeita
sobre a reputação do banco ou sobre mim pode levar-me a reavaliar minha
posição.
— Agradeço sua sinceridade, Larry. E tenho certeza de que Arlequim
irá procurá-lo assim que chegar a Nova York. Até lá, estarei em contato com
você diariamente. E, Larry...
— O que é, Paul?
— Este é o momento de todos mostrarem o que realmente são. Sabe
disso, não é?
— Sei, Paul. E obrigado por sua confiança. Agora é melhor eu voltar e
cuidar dos negócios.
Ele saiu da sala de cabeça erguida, o rosto brilhando de dedicação, um
bom bostoniano, no qual, como dizia Tom Appleton, o vento leste
encontrava abrigo. A informação que ele me fornecera era desoladora. A
notícia de nosso problema já transpirara. Haveria novos rumores a cada dia
que surgisse. Os boatos dos bares iriam rapidamente espalhar-se pela cidade e
muito em breve uma proposta de cem dólares por ação pareceria um maná no
deserto. Eu estava precisando tomar um conhaque bem porte. Mas decidi não
tomá-lo, porque Valerie Hallstrom ficara de chegar às três e meia e eu
precisaria de toda a minha lucidez quando nos sentássemos para analisar o
relatório.
Valerie Adele Hallstrom — seu nome completo, conforme pude
verificar no cartão de visitas — era realmente um fenômeno. Alta e loura,
possuía um desses rostos escandinavos francos e saudáveis que os agentes de
viagens usam para seduzir os incautos a um cruzeiro pelo Báltico em pleno
inverno. O corpo era um incitamento ao motim. Não que ela procurasse
exibi-lo, muito pelo contrário. A roupa que usava era um milagre de discrição.
Os gestos eram comedidos, a voz de um contralto suave. Ela sabia o que
pensava e tinha na ponta da língua todas as palavras necessárias para expressar
seus pensamentos. A princípio, deixou-me um pouco perturbado. Mas à
medida que analisamos o documento, item por item, o efeito que me causou
foi apavorante.
— Espero que compreenda, Sr. Desmond, que se resolver tomar
medidas legais, este documento terá que valer como prova nos tribunais. No
momento em que o assinei, o documento passou a contar com minha
reputação profissional e a da corporação onde trabalho.
— Conclui então, como o documento declara categoricamente, que as
fraudes ocorreram dentro de nossa própria organização.
— Não temos a menor dúvida quanto a isso.
— Poderia explicar-me novamente qual o processo que pode ter sido
utilizado?
— Tomemos como exemplo a matriz de vocês em Genebra. O sistema
de computadores está localizado em Zurique. Vocês alugam tempo de uso,
quatro horas por dia, cinco dias por semana. Usam duas linhas diretas para o
computador central, comunicando-se através de um código exclusivo. Quem
quer que conheça esse código, pode usar as linhas de vocês ou as de qualquer
outro para fornecer informações e instruções ao computador ou para retirar
informações.
— Isso tudo está claro, mas há algumas brechas. Ou nossos operadores
cometeram a fraude ou alguém de fora o fez, usando nossa palavra-código.
— A qual só poderiam obter com alguém de dentro de sua
organização, não é mesmo?
— Possivelmente...Segundo estou entendendo, no momento em que
uma instrução é fornecida ao computador, fica depositada no banco de
memória e é automaticamente executada. *
— Exatamente.
— E ninguém sabe que a instrução existe, exceto a pessoa que a
transmitiu ao banco de memória.
— Isso mesmo. E essa é a base de todas as fraudes clássicas. Por
exemplo: se a pessoa possui um limite de saque a descoberto de dois mil
dólares, pode aumentá-lo para duzentos mil, apenas acrescentando dois zeros
ao programa. Depois que tal dado foi incluído no registro, o correntista pode
operar tranqüilamente dentro do falso limite, * sem que ninguém o ponha em
dúvida — a menos e até que alguém vá verificar a instrução original. Posso
dar-lhe outro exemplo. Alguém pode ordenar ao computador que registre um
saldo de cem mil dólares em sua conta num dia determinado, apagando a
transação do banco de memória no dia seguinte. Retira o dinheiro da conta
com um cheque marcado "saldo de conta" e sai tranqüilamente do país. A
menos que possa ser provado que a pessoa foi quem deu a instrução ao
computador para cometer a fraude, é muito difícil provar que tal pessoa foi
culpada de algum crime. Afinal, a pessoa não declarou ter um dinheiro a que
não tinha direito. O erro foi cometido pelo computador, agindo e operando
pelo banco.
— Gostaria, senhorita, de repassar o que aconteceu exatamente em
nosso escritório de Genebra. Alguém, supostamente o próprio George
Arlequim, abriu uma conta numerada no Union Bank. A conta foi aberta pelo
correio, usando documentos assinados ou aparentemente assinados por
George Arlequim. As assinaturas conferem. Arlequim, no entanto, nega ter
qualquer conhecimento de tal conta. Portanto, podemos concluir que as
assinaturas são falsificadas. Em seguida, alguém, usando nosso código, dá
ordens ao computador para cobrar uma despesa de um por cento em cada
transação, depositando os lucros, semanalmente, na suposta conta de
Arlequim no Union Bank. Como as despesas bancárias estão ficando cada vez
mais complicadas, uma decorrência da ganância cada vez maior dos
banqueiros, tal despesa poderia facilmente passar despercebida até o momento
de uma auditoria. Certo?
— Certo. Mas, por ocasião da auditoria, ela teria que ser justificada por
uma instrução original.
— E então, se fosse Arlequim que tivesse emitido tal instrução, ele
estaria imediatamente sujeito a um processo criminal.
— Certo.
— Mas ele não é estúpido e não precisa desse dinheiro. Portanto,
senhorita, qual sua conclusão?
— Que seria impróprio para mim fazer qualquer comentário, Sr.
Desmond. Nosso contrato com vocês é para descobrir anomalias e fraudes.
Compete a vocês tirar as conclusões apropriadas e tomar as iniciativas
adequadas.
— Ótimo. Mas deixe-me formular a pergunta sob outro ângulo. Somos
um homem e uma mulher sozinhos numa suíte de hotel. Não há testemunhas.
Espero que não haja também microfones ocultos, a menos que a senhorita
esteja carregando algum. Estaria disposta a expressar, sem o menor
preconceito, uma opinião particular?
— Não, Sr. Desmond.
— Mas tem alguma?
— Tenho: a de que devo ater-me exclusivamente ao relatório que
assinei.
— Mas esse é um problema extra-relatório.
— Um problema de opinião, Sr. Desmond, não de fato. Se deseja
debatê-lo com a Creative Systems Incorporated, deve procurar diretamente o Sr.
Yanko, sob cuja orientação eu trabalho. Gostaria agora de analisar o que
aconteceu nas filiais?
— Não. As transações variam, mas o método é praticamente o mesmo
e o resultado idêntico. George Arlequim supostamente cometeu uma fraude.
— Posso perguntar quais as medidas que já tomaram para evitar a
continuação de tal situação?
— Anulamos todas as instruções ao computador indicadas em seu
relatório.
— Ótimo.
— E estamos iniciando uma investigação minuciosa para descobrir
quem foi o autor da fraude. Seu relatório afirma que não pode deixar de ser
alguém de dentro ou ligado a Arlequim et Cie. Mas não existe a menor
menção à possibilidade de ter sido alguém da Creative Systems Incorporated.
— Pelo contrário, Sr. Desmond. Na página 85, terceiro parágrafo,
fazemos uma menção específica a tal possibilidade. Aqui está: "Todos os
funcionários da Creative Systems ligados a essas operações foram
meticulosamente investigados e estamos convencidos de que nenhum deles,
sob forma alguma, está envolvido nas operações fraudulentas".
— E espera que aceitemos integralmente tal afirmativa?
— À falta de provas em contrário, é precisamente o que esperamos.
— Srta. Hallstrom, gostaria de fazer-lhe um elogio.
— Faça-o então, Sr. Desmond, por gentileza.
— É uma mulher muito bonita.
— Obrigada.
— Gostaria de que estivesse trabalhando para nós.
— Mas eu estou, Sr. Desmond. Espere até receber a conta. Meus
serviços têm um preço consideravelmente elevado.
— Costuma ter folgas?
— Freqüentemente.
— Gostaria de retribuir-me o elogio e ir jantar comigo uma noite
dessas, se eu prometer não falar de negócios?
— Seria um prazer.
— Para onde posso telefonar-lhe?
— Eu lhe darei meu cartão. Telefone-me por volta das sete horas, no
dia que lhe aprouver.
— Obrigado.
— Mais uma coisa: o Sr. Yanko pediu-me que lhe dissesse que amanhã,
entre dez horas e meio-dia, estará à sua disposição.
— Diga-lhe que me espere às onze horas.
— Au revoir, Sr. Desmond. Foi um prazer conhecê-lo.
— O prazer foi meu, Srta. Hallstrom.
O diabo que foi! Achava-a uma cadela descarada, mas pelo menos tinha
agora seu telefone e endereço e um meio convite para intrometer-me em sua
vida íntima.
Era uma pequena vitória, mas não necessariamente uma frivolidade.
Quando se enfrenta uma corporação gigantesca, é preciso ter amigos dentro
dela. Algumas companhias são mais poderosas que as nações nas quais
operam. Elas ultrapassam as fronteiras e passam por cima das jurisdições
locais. Utilizam os melhores cérebros, compram os melhores serviços
jurídicos em cada país. Muitos diplomatas e políticos estão a serviço
delas...Mas, quando se procura uma resposta objetiva para uma questão
objetiva, pode-se levar dois anos para obtê-la, sendo necessária uma imensa
biblioteca só para abrigar a correspondência a respeito. Assim, o jantar com
Valerie Hallstrom poderia não dar em nada. Por outro lado, porém, poderia
ser a chave para a descoberta de importantes segredos, porque, quanto maior
é a corporação, mais diluídas estão as lealdades e mais encarniçada é a luta
travada pelas facções existentes nos escalões superiores.
Eram seis horas da tarde. Subitamente eu me sentia cansado, deprimido
e velho. Saí do Salvador e percorri dez quarteirões até meu próprio
apartamento, dormindo até Takeshi chamar-me, às onze horas.
Às onze e meia, pontual como o Juízo Final, Aaron Bogdanovich
apareceu. Era um homem alto, esguio, bronzeado e musculoso. Parecia ter
quarenta anos, mas poderia perfeitamente ter cinqüenta. Era impossível dizê-
lo, sem uma certidão de nascimento. Vestia-se de forma negligente, mas
impecável. Sorria com facilidade. O aperto de mão foi bastante firme. Depois
de um olhar avaliador para o apartamento, ele disse:
— Temos um homem vigiando a porta do edifício. Há outro aqui no
corredor. Gostaria de chamá-lo para ele verificar se há microfones ocultos no
apartamento. Faz alguma objeção?
— Absolutamente nenhuma.
Seu agente entrou, um jovem silencioso que examinou todos os
cômodos com um detector, sacudiu a cabeça num gesto de satisfação e depois
saiu do apartamento, sem dizer uma palavra sequer.
Bogdanovich relaxou visivelmente.
— Agora podemos conversar.
— Quer beber alguma coisa?
— Um suco de frutas, por gentileza.
Takeshi serviu as bebidas e retirou-se. Aaron Bogdanovich sorriu-me
por cima de seu copo.
— E então, Sr. Desmond, o que decidiu?
— Estamos encurralados e vamos ter que lutar. Aceitamos a
possibilidade de conseqüências drásticas.
— Seu superior concorda com tal decisão?
— Ele me deu carta branca.
— As despesas são as seguintes: terá que pôr à nossa disposição,
imediatamente, duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro; manterá de
reserva uma quantia igual, para pôr à nossa disposição em qualquer moeda e
na capital que indicarmos. O total é de meio milhão de dólares, podendo
haver um acréscimo que não superará dez por cento.
— Ganhando ou perdendo?
— Exatamente. É um ato de fé. O outro lado da barganha é que
assumimos todos os nossos riscos e nunca, em quaisquer circunstâncias, os
transferimos para o cliente. Se houver sangue na operação, nós mesmos
trataremos de limpá-lo. Pode comprometer-se a nos pagar tal quantia?
— Posso.
— L'chaim, Sr. Desmond!
— Saúde!
Fizemos o brinde e fechamos o acordo. Sentamo-nos para jantar e
Bogdanovich discorreu sobre a campanha, como se fosse um general a instruir
seu estado-maior.
— Li o documento e concordo com suas conclusões. A fraude está
relacionada com a proposta de venda do controle acionário da companhia.
Yanko é o provável instigador. Para prová-lo, teremos que trabalhar dentro da
organização dele e também da sua.
— E podem fazê-lo?
— Podemos. Vamos ter também que montar uma operação de
cobertura, para desviar as atenções de nossas atividades.
— E como o faremos?
— Vocês devem solicitar os serviços de uma organização regular de
segurança.-Sugerimos que usem a Lichtman Wells, que tem âmbito
internacional. Deverão pedir que a operação seja dirigida pessoalmente pelo
Sr. Saul Wells. Ele aceitará a incumbência.
— Por quê?
— Por ter certeza de que ele o fará e designará os agentes adequados.
— Seus agentes, não é mesmo?
— Eu não disse isso. E também não deveria perguntar...Espero que
compreenda, Sr. Desmond, que não é de todo impossível que um dia seja
pressionado para revelar o que sabe sobre esta operação. Considerando a
sanção sobre a qual já discutimos, não acha que é melhor não ter nada para
dizer? ...É por acaso casado, Sr. Desmond?
— Não.
— Tem parentes ou ligações íntimas pelas quais possa ser chantageado?
Uma amante, talvez? Ou então um filho?
— Não. Mas Arlequim tem esposa e um filho.
— Então ele também deve ficar a par dos riscos.
— Tratarei de informá-lo.
— Quero também conhecê-lo pessoalmente.
— Ele recebeu alta do hospital esta manhã. Tencionava tirar umas
férias e passar alguns dias em Acapulco com a esposa. Mas agora os dois virão
para Nova York. Ficarão no apartamento do banco, no Salvador. Já
providenciamos a supervisão médica necessária durante seu período de
convalescença.
— É uma medida sensata, pois é bem possível que ambos tenham de
viajar bastante num futuro próximo.
— Como assim?
— O banco está em crise. Precisarão, evidentemente, visitar todas as
filiais. Além disso, para segurança de vocês e de nossas operações, talvez seja
necessário mantê-los em permanente movimento.
— Confesso que é uma idéia alarmante.
— Eu sei que é. Mas pense no assunto, Sr. Desmond. A sua empresa é
um grande prêmio e as corporações não possuem princípios morais. É muito
fácil providenciarem-se acidentes fatais. Hoje em dia seqüestram-se executivos
e diplomatas por resgate. A tortura foi elevada à categoria de ciência. Leia
qualquer jornal diário e verá que não estou exagerando. E o que não aparece
nos jornais é ainda mais sinistro. Neste momento, por exemplo, há um corpo
flutuando no rio East. É o corpo de um pistoleiro que foi contratado para
assassinar esta noite um delegado árabe junto à ONU. Ele deveria matar o
referido delegado às oito e meia, quando saltasse do carro para comparecer a
um jantar em sua homenagem. E meu povo, obviamente, seria
responsabilizado por sua morte...Espero estar sendo bastante claro, Sr.
Desmond.
— Claro demais para que eu me sinta tranqüilo.
— Dinheiro é poder, Sr. Desmond. Não há tranqüilidade em nenhum
dos dois.
— Quer dizer então que Arlequim e eu talvez tenhamos que viajar
bastante. O que mais?
— Aja o mais normalmente que puder. Yanko espera que entrem em
negociações com ele a propósito da venda das ações. Pois negociem. Ele
espera que realizem uma investigação. Façam-na. E seus gerentes e executivos
devem permanecer ignorando minhas atividades e prosseguir em seus
negócios normais. Deverá transmitir-nos imediatamente qualquer informação
nova que venha a ter.
— De que jeito?
— Aqui em Nova York, pelo telefone, falando de uma cabine pública.
Eu lhe darei dois números que deverá decorar. Deverá identificar-se pelo
nome de Weizman. Quando deixar Nova York, deverá providenciar tudo
através de uma agência de viagens que lhe indicarei. Quando for pegar suas
passagens, receberá as indicações sobre seus contatos nas cidades para onde
for.
— Pois já tenho uma informação nova para lhe fornecer. Conversei
esta tarde com uma mulher, Valerie Hallstrom. Ela trabalha para Yanko e foi
quem preparou o relatório.
— Ela lhe contou algo útil?
— Pelo contrário. Recusou-se a ir um passo além do que já constava do
relatório. Mas convidei-a para jantar e ela não recusou. Deu-me um cartão
com seu endereço e telefone.
— Poderia mostrar-me, por gentileza?
Ele olhou o cartão por um momento e depois devolveu-me. Não pude
resistir à pergunta:
— Possui realmente memória fotográfica?
— Possuo.
— Devo encontrar-me com essa mulher?
— Ela é bonita?
— Bastante.
— E acessível?
— É o que gostaria de descobrir.
— Gostaria apenas de que me informasse de qualquer encontro que
marcasse.
— O que provoca outra pergunta: como vai entrar em contato comigo?
Eu me movimentarei bastante nos próximos dias.
— Aonde quer que vá, Sr. Desmond, eu saberei. Nossos preços são
elevados, mas proporcionamos atendimento vinte e quatro horas por dia...Por
falar nisso, há quanto tempo esse empregado trabalha para o senhor?
— Seis anos.
— E evidente que confia nele. Mas o que sabe a respeito de suas
origens?
— Quase nada. Ele trabalhou para um amigo meu durante cinco anos.
Quando esse amigo partiu de Nova York, fiquei com seu apartamento e com
Takeshi. Há muitas coisas valiosas aqui dentro e, além disso, é ele quem cuida
das despesas da casa. Até agora, não tive a menor razão de queixa.
— É uma boa ficha, mas mesmo assim iremos verificá-lo. O senhor
possui algum vício, Sr. Desmond?
— É uma pergunta difícil de responder!
— Mas tenho que saber.
— Digamos que a resposta é negativa. Não jogo. Gosto de beber, mas
há vinte anos que não fico embriagado. Não compro sexo, gosto apenas de
mulheres e não costumo dizer seus nomes no clube.
— Algum segredo culposo?
— Um casamento malsucedido.
— Dívidas?
— Nenhuma.
— Obrigado, Sr. Desmond. No momento, isso é tudo de que preciso
saber.
— Mais café?
— Não, obrigado.
— Queria fazer-lhe também uma pergunta, Sr. Bogdanovich.
— E qual é?
— Por que concordou em aceitar essa tarefa?
— No fundo, Sr. Desmond, o que está realmente querendo saber não é
por que não procurei quem me pagasse mais?
— Não. Desejo saber exatamente o que perguntei.
— Há duas respostas, Sr. Desmond. A primeira é simples. O senhor foi
recomendado por um bom amigo, Karl Kruger, e está em condições de pagar
pelos serviços que lhe vamos prestar. A segunda é um pouco mais
complicada. Tenho muito pouca fé na integridade dos seres humanos. Sei que
cada homem tem seu preço e só morrerá honrado se ninguém o oferecer. Sei
que cada homem tem um medo, através do qual pode ser destruído. Deixei de
acreditar em Deus porque vejo uma criação fundada numa luta destrutiva pela
existência. No entanto, sei que a ordem é necessária para que a vida
permaneça pelo menos meio tolerável. Se um homem razoavelmente justo é
atacado por um arrogante, todos nós estamos sendo também atacados. E a
única maneira de deter um arrogante é arrebentar-lhe todos os dentes. E se a
pessoa atacada é pequena demais para tanto, então ela me contrata...
Ele ofereceu-me aquele sorriso pronto e fácil e sacudiu os ombros.
— É claro que se trata de um argumento capcioso. O senhor seria um
tolo se o aceitasse por completo. Mas, mesmo em nossa selva, precisamos de
um vestígio de razão para justificar o que fazemos. Agora, deixe-me dar-lhe os
telefones e o nome de nosso agente de viagens.
Depois que ele se foi, Takeshi resumiu-o numa única frase, um tanto
assustadora:
— Tenho a impressão de que aquele homem dorme dentro de um
túmulo, senhor.

A sede da Creative Systems Incorporated ocupava seis andares de um


reluzente edifício de vidro e alumínio na Park Avenue. Havia três andares
repletos de máquinas, patrulhados por guardas armados, e dois de escritórios
imaculados, por onde circulavam jovens de rosto grave, deslocando-se por
entre uma multidão de secretárias. O sexto andar era o domínio particular de
Basil Yanko, um lugar sagrado revestido de lambris de madeiras exóticas,
silencioso por causa dos grossos tapetes, ornado com quadros e artefatos
caríssimos. A recepção era dominada por uma duquesa de meia-idade e dois
guardas, um dos quais conduzia os visitantes através dos corredores
silenciosos, enquanto o outro permanecia vigilante contra os intrusos.
Quando cheguei, faltavam dois minutos para as onze horas. O guarda
verificou meu nome numa relação datilografada; a duquesa anunciou-o pelo
aparelho de intercomunicação e depois pediu-me que me sentasse por um
momento. Às onze horas em ponto acendeu-se uma luz vermelha no painel e
a duquesa fez um sinal para o guarda, que me conduziu ao santo dos santos,
uma sala imensa onde Basil
Yanko estava sentado atrás de uma vasta mesa, sobre a qual não havia
nenhum papel. O guarda retirou-se e a porta se fechou silenciosamente.
Percorri quase meio quilômetro de tapete para apertar a mão fria do senhor
daquele império.
Ele se mostrou brusco como sempre, mas favoreceu-me com um
sorriso e com uma preocupação rápida por meu bem-estar.
— Espero que esteja descansado, Sr. Desmond.
— Estou, sim, obrigado.
— E como está George Arlequim?
— Já recebeu alta do hospital e deve chegar hoje a Nova York. Não
estou muito satisfeito com isso, mas ele insistiu. Deverá continuar por algum
tempo sob cuidados médicos.
— Lamento que isso ainda seja necessário. Ele já chegou a alguma
decisão com relação à minha proposta?
— Já. Pediu-me que lhe dissesse que está preparado para negociar,
assim que estiver recuperado o suficiente para empenhar-se em discussões de
negócios.
— E quando isso pode ser?
— Espero que muito em breve. Mas o médico dele aqui em Nova York
é que poderá dar a resposta definitiva.
— Compreendo. Até lá, nós dois podemos fixar as bases para as
discussões, não é mesmo?
— Arlequim deu-me uma diretiva a esse respeito.
— E qual é?
— Ele não está preparado para iniciar qualquer negociação enquanto
estiver sob dificuldades. Determinou-me que iniciasse uma ampla investigação
sobre as fraudes dos computadores, usando uma organização independente.
Escolhemos a Lichtman Wells. Terei meu primeiro encontro com eles esta
tarde.
— É uma excelente organização. Seus agentes são muito bem
treinados.
— Foi o que me disseram.
— Estamos prontos, é claro, a ajudá-los, de todas as formas possíveis.
— Obrigado.
— Mas não podemos esquecer que o elemento tempo é muito
importante para todos nós, Sr. Desmond.
— Sabemos disso perfeitamente.
— Acho, portanto, que devemos fixar um limite.
— Como assim?
— Nossa proposta de cem dólares por ação continua de pé. Contudo,
temos que fixar um limite para sua validade. Como sabe muito bem, o
mercado de dinheiro é hoje muito inconstante. Não podemos manter
indefinidamente o ágio que oferecemos.
— E que prazo sugere?
— Trinta dias a partir de hoje.
— É muito pouco, Sr. Yanko. Representa apenas vinte e dois dias úteis.
Provavelmente não conseguiremos concluir uma investigação internacional
em período tão exíguo. Precisamos de noventa dias, no mínimo.
— Da maneira como o mercado anda atualmente? Não há condição.
— Seu telex declarava que a proposta era formulada tendo por base
uma projeção de três anos.
— A avaliação, não o ágio.
— Mesmo assim, não podemos fazer por menos de três meses.
— Sessenta dias, não mais do que isso.
— Esse detalhe não consta de minhas instruções. Terei que conversar
com Arlequim.
— Faça-o então, por favor. E quando posso contar com a resposta?
— Isso compete a ele. No entanto, sei que Arlequim é um homem
suscetível à cortesia.
— Coisa que às vezes me falta. Sei disso, Sr. Desmond. Vamos pôr a
coisa nos seguintes termos: se Arlequim desejar adiar sua resposta, estarei livre
para reduzir meu limite de tempo por um período equivalente. Não acha
justo?
— Está sendo muito duro, mas transmitirei sua posição a Arlequim.
— Também é um homem duro, Sr. Desmond. Mas respeito-o por isso.
Se algum dia sentir vontade de mudar de ritmo ou de cenário, ficarei feliz em
poder oferecer-lhe condições das mais generosas.
- E assim, ao melhor estilo de negócios, de forma sóbria e legal, a
ameaça fora finalmente formulada. Se não pudéssemos ser comprados nem
enganados, seríamos espremidos entre as pedras de um moinho. A habilidade
sardônica do predador era uma afronta. Tive vontade de cuspir-lhe no olho.
Em vez disso, porém, agradeci-lhe a cortesia e saí novamente para a loucura
humana da Park Avenue.
Às três horas da tarde compareci à reunião na Lichtman Wells. A
experiência não foi nada confortadora, já que o pessoal de segurança, assim
como os corretores de seguros, vive da perspectiva de desastre. O sócio mais
velho, um ex-coronel da polícia militar, de cabelos brancos, leu-me uma lista
aterrorizante de casos existentes em seus arquivos, nenhum dos quais teria
acontecido se as vítimas tivessem usado os serviços da Lichtman Wells. Saul
Wells, o sócio mais novo, ficou sentado pacientemente durante toda a reunião.
Depois que o contrato foi assinado, reanimou-me com um café em sua
própria sala. Era um homem pequeno e agitado, ruivo, que mastigava
incessantemente um charuto apagado e pontuava sua fala com piscadelas e
gestos.
— Não deixe que o velho o preocupe, Sr. Desmond. Ele é o vendedor
da organização e precisa fazer um discurso. De minha parte terá ação, sem
muita conversa. Gostaria de saber como operamos? Bem, internamente é uma
investigação direta. Nosso agente entra pela porta da frente, sem segredos,
sem disfarces, verifica todos os procedimentos, interroga as pessoas, procura
falhas e contradições. Externamente? ...Bem, aí a coisa é um pouco diferente.
Procuramos descobrir quem dorme onde, quem gasta mais do que ganha,
quem se entrega excessivamente ao sexo ou gosta de jogar nas corridas, coisas
assim...É como um quebra-cabeça, sabe? Ao final, todas as peças têm que se
ajustar. Se fica faltando uma peça, deve estar no bolso de alguém ou fugiu
pelo ralo. Lembro-me de uma vez...
Ele lembrou e lembrou, quase interminavelmente, representando cada
episódio como um comediante. De certa forma, porém, simpatizei com ele. E,
ao final de duas horas, compreendi que sua dissertação sobre método
arrancara-me uma considerável massa de detalhes que, de outra forma, eu
jamais teria pensado em fornecer-lhe. Finalmente ele jogou a ponta apagada
de charuto no cinzeiro e anunciou jovialmente:
— Agora já me conhece e eu o conheço. Creio que nos daremos muito
bem. Portanto, podemos parar com a comédia. Ponha seus gerentes de
sobreaviso, pois entraremos em ação imediatamente. Não existe problema de
língua. Tenho até mesmo uma moça que fala esquimó. Só mais uma coisa, Sr.
Desmond: daqui por diante, o negócio será bastante duro. Se alguém começar
a pressioná-lo, procure no mesmo instante o nosso amigo mútuo.

Até então tudo estava correndo bem. De um lado tínhamos Yanko.


Sabíamos exatamente o que ele queria e como pretendia agir para consegui-lo.
De outro lado tínhamos promessas e mais promessas, um custo elevadíssimo
e uma série de discursos sobre os perigos envolvidos e do quanto
precisávamos de proteção.
Atravessei a cidade em direção à First Avenue, onde o meu amigo Gully
Gordon dirige um bar sossegado e toca piano para os fregueses na hora dos
coquetéis. Gully é jamaicano e o único preto que conheço com sotaque
escocês. Ele também fala com sotaque irlandês, créole, de Nebraska, e
italiano, porque já foi ator. Costuma dizer freqüentemente:
— Fiquei esperto, companheiro, e arrumei uma audiência cativa.
Eu caminhava rapidamente pelo lado esquerdo da rua quando, de
repente, fui violentamente empurrado e cambaleei na direção de um homem
parado num portal. Caí de joelhos e, quando tentei levantar-me, recebi um
golpe no pescoço. Devo ter perdido os sentidos momentaneamente, pois a
coisa seguinte de que me lembro é de estar encostado na parede, com um
homem de aspecto miserável, usando blue jeans e uma suéter esfarrapada,
limpando a poeira de minha roupa. Instintivamente levei a mão ao bolso do
paletó.
Ele sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não, eles não levaram sua carteira. Tremendo, perguntei quem eram
"eles".
— Assaltantes. Um o empurra e o outro tira a carteira. Teve sorte de eu
estar bem atrás. Está bem agora?
— Acho que sim. Obrigado. Gostaria de tomar um drinque comigo?
— Em alguma outra ocasião. Tome cuidado, Sr. Desmond.
Ele deixou-me e desapareceu no meio da compacta multidão. Eu ainda
estava aturdido e abalado e nem mesmo me ocorreu perguntar-lhe como sabia
meu nome. Estava dominado por um único pensamento, assustador: como a
violência era simples, quão rápida e súbita, como não atraía a atenção da
multidão que passava!
O segundo pensamento delineou-se lentamente, enquanto tomava meu
drinque, encostado no piano, ouvindo a música sonhadora de Gully. Eu
pertencia àquele mundo de viajantes solitários e rudes aventureiros. Não
importava o quanto me tivesse afastado dele anos atrás, descansando agora à
sombra do dinheiro e do conforto. Sabia-o por dentro, pela inquietação
permanente, pela atração por prostitutas, pelo gosto amargo do sangue, pelos
contatos furtivos, pelo dialeto empregado no mercado. Algumas vezes,
desesperado e solitário, eu voltava a esse mundo, vestindo o passado como
um velho casaco mofado mas confortável.
Já meu amigo Arlequim pertencia a outro mundo. Era um erudito e um
cavalheiro, criado dentro dos velhos princípios de decência da Europa. Claro
que ele podia representar meu papel e vinte outros diferentes, pois ainda era o
Schauspieler, o ator, atuando através do entrecho, sem nenhum outro
compromisso que não o de entreter a si mesmo e à sua audiência. Perguntei-
me como ele se sairia sem um roteiro, sem um ponto, quando as lâminas
deixassem as bainhas e somente o vencedor voltasse para casa, após o duelo.
Gully Gordon levantou os olhos do teclado e disse suavemente:
— Está triste esta noite, companheiro. Os filhos da mãe acertaram-no
de jeito?
— Foi mesmo, Gully.
— Está precisando de uma boa mulher.
— Tem toda a razão.
— Há uma lá no bar.
Olhei e vi Valerie Hallstrom, sozinha, tomando um drinque e
conversando com o barman. Virei-me antes que ela me visse.
— Já a conheço, Gully. Fale-me mais a respeito dela.
— É solitária, pelo que sei. Costuma tomar dois drinques, que duram
uma hora inteira. Portanto, não é de se embriagar. Depois vai para casa. Pelo
menos é o que eu penso.
— Sozinha?
— Sabe como é, companheiro. Este é um bar de gente sozinha. As
pessoas vêm aqui procurar. Quando encontram o que estão querendo, passam
a ficar em casa.
— E há muito tempo que ela está procurando?
— Há uns seis meses. Mas disse que já a conhecia...
— Tenho negócios com o patrão dela. Fico imaginando se a presença
dela aqui não faz parte de algum plano.
— De jeito nenhum. Ela é uma cliente constante.
Gully dedilhou uma cadência suave e começou a cantarolar a melodia,
murmurando-me por entre as frases musicais:
— Ela gosta disso, companheiro. Suave, suave, a gente vai atraindo a
presa. Venha, menina, venha...Se você per-
der essa chance, Paul, nunca mais vou perdoá-lo...Boa noite, Srta.
Hallstrom. Tem algum pedido especial?
Estávamos lado a lado, os copos quase encostando, antes que ela me
reconhecesse.
Ficou surpresa, mas pude sentir também que o fato não a desagradou.
— Mas que surpresa, Sr. Desmond! Como este mundo é pequeno!
Que Deus abençoe Gully Gordon! Ele sabia aproveitar habilmente a
menor deixa.
— Ele é um velho amigo, Srta. Hallstrom. Só que não o vejo com
muita freqüência, pois anda ocupado demais empilhando seu dinheiro.
— Está ficando cada vez mais difícil, Gully. Acho que estou
envelhecendo. Vem aqui com freqüência, Srta. Hallstrom?
— Ela também é uma velha amiga — interveio Gully. — O que
gostaria que eu tocasse para você, menina?
— Está indo muito bem, Gully. Continue apenas a tocar. Teve um dia
agradável, Sr. Desmond?
— Paul...E meu dia foi comprido e desagradável.
— Então fomos dois.
— Mas meu dia ainda não terminou. Se não fosse isso, eu a convidaria
para jantar.
— Não há nenhum compromisso firmado.
— Mas importa-se de assinar um para amanhã?
— Se quiser...
— Onde posso apanhá-la?
— Em meu apartamento, às sete e meia.
— Contrato assinado e selado.
— Sabe, é um homem bastante delicado...
— Eu sei. Meu irmão gêmeo é que é o miserável. Mas esta noite ele
está de folga.
Era uma tirada antiga, mas arrancou um sorriso dela e uma piscadela de
Gully, levando-nos até um reservado, onde nos sentamos com nossos copos,
enquanto a música se espalhava ao nosso redor.
Depois de algum tempo, ela comentou:
— O bar de Gully é um lugar muito especial para mim.
— Para mim também. Estive aqui na noite da inauguração. Tudo o que
eu possuía então era uma pilha de dívidas e o pouco dinheiro que tinha no
bolso.
— E...?
— Ele deve ter-me dado sorte. No dia seguinte o mercado deu um pulo
e tive um lucro considerável.
— Talvez tenha sorte novamente.
— Já tive: basta ver o que encontrei.
— Agora vai certamente perguntar o que uma moça como eu está
fazendo num bar de gente desacompanhada.
— Não, não vou. Acho que esta é uma cidade solitária e é bom ter um
lugar aonde se possa ir, sem que ninguém lhe pergunte quem é e o que faz. É
melhor do que ser um número num computador de banco.
— Um filósofo ainda por cima!
— Não, apenas um homem de meia-idade, que já viveu muita coisa.
— Pois acho que se conservou muito bem. Não está muito gasto.
— E você, minha jovem Valerie, não o está nem um pouco.
— Não foi o que pensou ontem.
— Não se esqueça de que hoje estou um dia mais velho.
— Desculpe o momento difícil que o fiz passar ontem.
— É seu comportamento usual?
— Não. Ordens. E recebo setecentos e cinqüenta dólares por semana,
com benefícios adicionais, para fazer o que mandam.
Era uma isca que eu não pretendia morder. Se fosse uma indiscrição,
bastava esperar, que outras se seguiriam. Decidi que estava na hora de partir.
— Detesto ter que retirar-me, Valerie, mas não há outro jeito. Meu
presidente chegou a Nova York esta tarde. Tenho que mudar de roupa e ir
jantar com ele, às oito horas. O que me deixa um pouco de tempo para
acompanhá-la à sua casa, se quiser.
— Obrigada, mas vou ficar mais um pouco.
— Então até amanhã.
— Estarei à sua espera. Boa noite, Paul.
Tudo terminou com um sorriso e um aperto de mão. Paguei a conta e
levei uma bebida para Gully no piano. Ele continuou tocando com a mão
esquerda, erguendo o copo com a direita num brinde.
— Saúde, companheiro. Quer dizer que vai agora aparecer mais vezes,
não é?
— Vou, Gully. Dê uma olhada na moça por mim.
— Pode deixar, companheiro. Divirta-se.
Quando cheguei ao Salvador para jantar, encontrei Arlequim e Julie
relaxados e alegres. Arlequim dormira durante quase toda a viagem. Já havia
um pouco de cor em seu rosto. Ele estava inquieto e ansioso por ouvir meu
relatório, mas Julie declarou com firmeza que não poderíamos tratar de
negócios durante o jantar. Depois, ela nos deixaria a sós, contanto que eu
mandasse George para a cama antes da meia-noite. Achei a idéia esplêndida.
Não tinha a menor vontade de falar sobre Aaron Bogdanovich enquanto
comia mos as costeletas à francesa, e havia também alguns assuntos difíceis
sobre os quais eu precisava conversar com Arlequim. Apresentei o relatório
completo enquanto tomávamos café.
Arlequim ouviu em silêncio e passou a interrogar-me minuciosamente.
— Temos então duas investigações paralelas; uma aos cuidados de
Lichtman Wells, que seguirá os padrões convencionais, a outra a cargo de
Aaron Bogdanovich, que poderá envolver ilegalidade e violência. É isso
mesmo?
— É.
— E, enquanto duram as investigações, temos uma equipe apreensiva,
que devemos tentar manter satisfeita e leal, não é mesmo?
— Essa tarefa compete a você, George. Não pode ser feita por
procuração.
— E, externamente, temos Yanko, que está pressionando para
tomarmos uma decisão em sessenta dias.
— Talvez até menos. Ele está aguardando um encontro com você,
assim que estiver apto a tratar de negócios.
— Já estou. Poderemos encontrar-nos dentro de um dia ou dois.
— Por que não o deixa esperar mais um pouco? Vamos fazê-lo suar.
— Só que ele não está suando, Paul. Nós é que estamos. E não gosto
disso. Conte-me agora o resto da estratégia.
— Primeiro vamos deixar clara a nossa posição. A Lichtman Wells está
investigando as fraudes do computador. É uma ação defensiva, para limpar o
nome do banco e o seu. Aaron Bogdanovich está investigando Yanko. Isto é
ataque, para incriminá-lo e à sua companhia como responsáveis pelas fraudes,
desacreditando-os.
— Mas isso ainda não é suficiente, não é mesmo?
— Não. Representa apenas quarenta e oito horas de trabalho da minha
parte. Mas sou somente um procurador, não o diretor principal.
— Vamos a outra questão. Yanko quer comprar um banco. Por que
escolheu o nosso? Por que não o de Herman Wolff ou o de Laszlo Horvath,
já que ambos estão dispostos a vender?
— Arlequim et Cie. é uma instituição mais antiga e mais tradicional.
Temos mais filiais: Londres, Paris, Hamburgo, Nova York, Buenos Aires, Rio,
Lisboa e México.
— São boas razões, mas não justificam inteiramente a atitude dele.
— Usamos os sistemas dele. Portanto, somos mais vulneráveis.
— Continue.
— É o máximo que pude pensar até agora, George.
— Então eu lhe darei mais duas razões. Como subscritores, adquirimos
e ainda conservamos blocos substanciais de ações da Creative Systems e de suas
filiais internacionais. Portanto, representamos uma voz dissidente nos
negócios da corporação.
— Eu não sabia que havia qualquer dissensão.
— Pode ter certeza de que há, Paul. Embora as divergências ainda não
estejam formalizadas, são profundas e pessoais. Os maiores projetos da
Creative Systems, nos quais Yanko está pessoalmente interessado, estão
relacionados com dois setores: a documentação policial e o que é chamado
delicadamente de controle urbano. Na verdade, o que se procura é a vigilância,
controle documental estratégico e a manipulação de amplas massas da
população, em todos os continentes do globo. Os instrumentos para isso já
existem, o pessoal necessário está sendo treinado, os sistemas estão sendo
ampliados e melhorados. Tudo isso está sendo utilizado não apenas contra os
criminosos, mas também contra os dissidentes políticos e para determinar o
destino cotidiano das pessoas comuns. O resultado inevitável é o terrorismo, a
repressão, o contraterrorismo, as câmaras de tortura. A companhia que
projeta tais sistemas está em situação privilegiada, de imenso poder, em todos
os países onde opera, até mesmo naqueles de sistemas e regimes opostos. E se
tal companhia consegue entrar no mercado financeiro internacional,
manipulando dinheiro e crédito, transforma-se num império, extravasando
além das fronteiras geográficas. Há muito tempo que estou vendo tal situação
se desenvolver. Falei sobre isso no ano passado, num jantar de banqueiros em
Londres. Procurei fazer uma distinção entre o uso legítimo das facilidades
proporcionadas pelos computadores e aquelas que constituem uma ameaça
para a liberdade da pessoa humana. Meu discurso foi amplamente divulgado.
Mandei imprimi-lo e distribuí-lo por entre amigos e conhecidos. Nem todos o
receberam de boa vontade. Mandei uma cópia para Yanko, mas ele nunca
acusou seu recebimento. Creio agora que foi nessa ocasião que ele traçou sua
atual estratégia contra mim e contra a companhia.
— Admito que isso é bem possível, George. Yanko é um canalha
sardônico. É o tipo de piada que ele adoraria. Mas não vejo como isso pode
alterar nossa atual situação.
— E não altera. Simplesmente serve para me indicar o caminho a
seguir.
— Deixe-me repetir, George, que não podemos fazer coisa alguma sem
provas. Precisamos de provas que inocentem você e incriminem Yanko.
— Não concordo com você, Paul. Tenho que dirigir um negócio e
enfrentar abertamente uma situação pública. Não posso permitir que Yanko,
você ou quem quer que seja, determine o papel que devo representar.
— Mas já contratamos Bogdanovich. Você concordou em que
precisaríamos dele. Acho que deveria conversar com ele e, pelo menos,
procurar agir em coordenação.
Arlequim ficou pensando no assunto por um momento, depois
ofereceu-me seu sorriso malicioso, que desarmava qualquer um.
— As toupeiras se entocam debaixo dos muros, enquanto Arlequim
representa em praça pública, para distrair a atenção do populacho. Isso tem
sentido. Marque a reunião com Bogdanovich o mais breve possível.
Na saída, parei numa cabine telefônica que havia no saguão e liguei para
Bogdanovich. Não sei por que — talvez porque estivesse cansado e com
disposição para conversar — citei a observação de Arlequim sobre as
toupeiras e os comediantes. Bogdanovich divertiu-se com o comentário e
rematou-o:
— E somos mesmo comediantes! Morreremos todos rindo a valer.
Vamos encontrar-nos amanhã, às dez horas, junto à jaula dos micos, no
Central Park.

Por mais estranho que possa parecer, o encontro daquelas duas


personalidades tão diferentes foi um sucesso. Por um longo momento, na
presença dos micos agitados, eles se mediram um ao outro; depois sorriram,
apertaram-se as mãos e saíram andando sob o sol da primavera. Eu seguia
meio passo atrás enquanto os dois guarda-costas, dois rapazes com a barba
por fazer, vinham dez passos atrás, um em cada flanco. Arlequim e
Bogdanovich caminhavam lentamente, como se o tempo não tivesse o menor
significado para eles. A princípio foram reticentes, depois falaram
fluentemente, mas sempre de maneira respeitosa, como se cada um tivesse
necessidade da compreensão do outro. Arlequim, o eloqüente, estava quieto e
súplice. Bogdanovich, o apologista da violência, sentia necessidade de
justificar a si mesmo e a seu ofício.
— Espero que compreenda, Sr. Arlequim, que a violência começa
quando a argumentação racional se torna impossível.
— Sei disso. Mas não podemos esquecer o outro lado. Eu posso
permanecer cego, saboreando meu conhaque, enquanto alguém morre diante
de minha porta, suplicando por um copo de água. Entre nós dois fica o
mordomo traidor, que assim procura agradar-me e o deixa morrer, só para
ganhar algum dinheiro. Como resolvemos esse impasse?
— Eu o resolvo pela fórmula antiga. Olho por olho, vida por vida. Sem
questionar, sem piedade, sem sentimento de culpa.
— Enquanto eu quero a absolvição por tudo o que faço. Vou contar-
lhe um segredo: procuro refúgio em meu nome, Arlequim, o bufão. O bufão é
sempre perdoado, porque até mesmo sua maldade arranca risadas da platéia.
— Enquanto o carrasco público é um homem sem nome, que vive por
trás de uma máscara. Acha que seria capaz de matar um homem, Arlequim?
— Eu poderia ser levado a fazê-lo.
— Mas acha que é capaz de cometer o ato, o ato final e irrevogável, o
dedo apertando o gatilho, o polegar segurando a lâmina enquanto a mão sobe
de baixo para cima, sim ou não?
— Como posso saber, antes de chegado o momento?
— Tem razão, não pode. Só depois. Fica então muito fácil: o estímulo,
a reação, a racionalização, o sono. Os assassinos, como os adúlteros, sempre
dormem muito bem. Mas basta uma simples migalha no colchão para deixá-
los quase loucos.
— O que acha que devo fazer, Sr. Bogdanovich?
— Seu amigo Desmond disse-me que se considera um comediante.
Deve então entreter a cidade, enquanto nós minamos as muralhas.
— Isso foi apenas uma fantasia, mas reconheço que há nela um pouco
de verdade. Tenho encargos, obrigações, um papel para representar. O papel
acarreta uma obrigação? A obrigação o cria. Basil Yanko está no mesmo
barco. Ele é um gênio. Uma vez reconhecido, precisa justificar-se a todas as
horas de todos os dias.
— É como pensa então tratar com Yanko, Sr. Arlequim?
— Tenciono negociar, se for possível, ganhar tempo para suas
investigações. Se não for possível, irei desafiá-lo e empenhar-me até o pescoço
para cobrir a oferta dele.
— Espero que saiba que há muitos perigos implícitos no que estamos
fazendo, Sr. Arlequim.
— Paul já me explicou.
— Tem uma esposa e um filho. Compreende que está arriscando a vida
de ambos?
— Minha esposa aceita o risco, está disposta a corrê-lo.
— Por quê?
— Porque é algo que pode partilhar comigo plenamente.
— Foi difícil admitir tal coisa?
— Sabe perfeitamente que foi. Alguma coisa lhe é difícil, Sr.
Bogdanovich?
— Muitas.
— Quais?
— Por exemplo: passear ao sol e contemplar as moças, desejando-as;
saber que, ao deitar-me com uma delas, acordarei gritando, por ter dormido
com um cadáver. Ver crianças e querer que fossem minhas, mas saber que não
posso atrever-me a ter filhos, pois os monstros ao final terminariam
devorando-os. Não nos devemos encontrar com muita freqüência, Sr.
Arlequim.
— Tem razão. Compreendo os motivos.
— O Sr. Desmond funcionará como o elemento de ligação entre nós.
— Está certo.
— Quando for tratar com Basil Yanko, não se esqueça de uma coisa:
ele não compreende os palhaços e por isso os teme.
— Por quê?
— Ele nunca aprendeu a rir de si mesmo. E é capaz de matar quem
quer que ria dele.
— O que me faz sentir pena dele.
— Ele é capaz de matá-lo por isso também. Fico satisfeito de tê-lo
conhecido, Sr. Arlequim. Lamento que o preço seja tão elevado.
— É apenas dinheiro.
— É essa justamente a vergonha de tudo, Sr. Arlequim. O dinheiro é a
medida de um homem. Boa sorte.
— Obrigado, amigo.
— Eu é que lhe agradeço. Mantenha-se em contato comigo, Sr.
Desmond.
E então ele se foi, um vulto alto e esguio, caminhando pela grama, com
os dois sabujos a formarem o séquito.
George Arlequim ficou parado a observá-lo, em silêncio, até que ele
desapareceu além de uma pequena elevação. Depois virou-se em minha
direção e indagou:
— Como vamos contar a Julie, Paul?
— Acha que devemos fazê-lo?
— Creio que sim.
Eu estava presente quando ele contou. Não o queria, mas ambos
insistiram, como se eu fosse um intérprete, um dicionário ao qual podiam
recorrer para se explicarem um ao outro. Juliette fez poucas perguntas, não
levantou nenhum protesto. Era como se ela compreendesse, pela primeira
vez, todas as conseqüências de suas próprias atitudes agressivas. Arlequim,
por outro lado, mostrou-se veemente e exaltado, como se tivesse
experimentado uma revelação particular.
— Foi como se eu conversasse com um homem que voltou do outro
lado, Julie, alguém que compreendeu a continuidade das coisas, a terrível
repetição da maldade e da tragédia humanas. Até hoje, você e eu nunca
tivemos de enfrentá-las. Agora somos obrigados a isso. E é por algo inútil, um
banco, um simples repositório de papéis — florins, francos, dólares. É
justamente isso o que eu desprezo, a coisa perecível. Chegamos ao mundo
sem ela e saímos também sem ela. Mas compreendi também que se trata de
algo com propriedades mágicas. Se a tiver nas mãos, terá um gênio às suas
ordens. É isso o que homens como Yanko estão querendo: o gênio que pode
extrair exércitos dos dentes do dragão. Mas nós dizemos que não! Somos os
exorcistas do bem. Vamos dar trigo em vez de espadas. Vamos mesmo? É o
que estamos fazendo? Não posso jurá-lo. E, contudo, também não posso
vender a lâmpada e ficar de lado, observando os janízaros se erguerem do pó.
Mas por que não, Julie? Os janízaros guardarão a mim, a você e ao menino.
Por que nos deveremos importar com os outros, com os quais nunca nos
importamos antes? Por quê, Paul?
Eu estava muito cansado. Queria terminar logo aquela discussão e ir
embora.
— Por que deveremos fazê-lo? Não sei muito bem. Porque nós...Por
Deus, é isso mesmo! Porque um dia, antes de o sol se levantar, os canalhas
estarão em minha porta, à minha procura, porque tenho um nariz errado ou a
pele errada, porque estou na lista errada e ninguém sabe quem me pôs nela.
Quero então ter amigos. Quero ter irmãos e irmãs. Ponha-me no inferno e
mais ainda hei de querer tê-los! Acho que é isso. Agora, vou embora, pois
tenho muito trabalho a fazer. Encontro-o no banco depois do almoço,
George. O garoto de Boston quer que você segure a mão dele.
Ao atravessar o saguão do Salvador, parei diante do telex, a fim de dar
uma olhada nas cotações. Entre os diversos números, apareceu uma notícia:

"Yanko faz proposta para compra de banco europeu. O Sr. Basil


Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated, anunciou esta manhã
que fez uma oferta de pagamento à vista, na base de cem dólares por
ação, para a compra da totalidade das ações de Arlequim et Cie., banco
comercial sediado na Suíça. A proposta, com um ágio substancial, é
válida por sessenta dias. O Sr. Yanko ressaltou que a estrutura de sua
organização possibilita-lhe atender às exigências da lei suíça com
relação às corporações locais. O Sr. George Arlequim, presidente de
Arlequim et Cie., acaba de receber alta do hospital, depois de uma grave
doença, não estando disponível para quaisquer comentários. Outros
acionistas confirmaram ter recebido a oferta, mas se recusaram a
manifestar qualquer reação no atual estágio".

Rasguei o pedaço de papel, dobrei-o e entreguei-o a um porteiro, para


que o levasse a George Arlequim. O serviço custou-me um dólar. Mas, que
diabo! O que era um dólar em comparação com todos aqueles janízaros
brotandoem todos os quadrantes? Era meio-dia e um lindo dia de primavera.
Concentrei as minhas energias, ergui o queixo, endireitei os ombros e fui
enfrentar nossos colegas no clube. Nos dez minutos iniciais, após a minha
chegada, ofereceram-me bebida suficiente para embalsamar um faraó em
álcool. Nos vinte minutos seguintes fui assediado por amigos, conhecidos e
corpos sem nomes. Todos faziam as mesmas perguntas:
— Estão vendendo? O ágio existe mesmo? Não a Yanko? Pelo amor
de Deus, Paul, por que não nos procuram antes de tomarem qualquer atitude?
Arlequim já está de pé? A doença é fatal? Ouvimos dizer...
Eles tinham ouvido, imaginado, sonhado e continuariam a fazê-lo, a
cada novo boato que surgisse. Sabendo que não acreditariam, contei-lhes
simplesmente a verdade:
— A oferta foi realmente feita. Existe de fato um ágio. Não, não vamos
aceitar. E achamos que é jogo sujo divulgar a oferta antes mesmo que ela seja
discutida entre as partes interessadas. Não, a doença não é fatal. Arlequim já
se recuperou e está lutando como um louco. Se não acreditam em mim,
convidem-no para falar no próximo jantar dos associados.
Não sei o que me fez acrescentar a última frase, mas Herbert
Bachmann ouviu-a e usou-a como pretexto para arrancar-me do meio da
multidão e levar-me para almoçar em sua mesa. Herbert é um lutador temível,
cujos antepassados andavam pelas ruas com as notas de câmbio enfiadas
dentro do chapéu. Foi um negociador implacável em seu tempo, mas nunca
soube que tivesse cometido o menor deslize com quem quer que fosse. Eu
preferia ter a garantia de seu aperto de mão do que as assinaturas, com firma
reconhecida, da maioria de seus colegas mais novos. Suas perguntas foram
contundentes, mas sua preocupação era genuína. Eu estava disposto a ser tão
sincero quanto me fosse possível.
— O que acha desse tal de Basil Yanko, Paul?
— Ele é um gênio. Mas é também um homem perigoso e seu
comportamento é digno de uma pocilga.
— Mas talvez a mãe dele tenha visto algo de bom no filho, não é? Está
bem, ele é um porco. Arlequim subscreveu as ações de sua companhia e utiliza
seus serviços. Por quê?
— Porque, se não o fizesse, você e os outros rapazes iriam roubar-lhe a
conta.
— O que torna Arlequim um prostituído como nós.
— A diferença é que ele se prostitui com muito mais categoria,
Herbert.
— Eu entendo...A elegância suíça, a paixão pela precisão, igualzinho a
um desses malditos relógios de cuco...Mas que história é essa que me
contaram a respeito de um desfalque?
— Não sei. O que foi que ouviu, Herbert?
— Vocês contrataram investigadores, não é?
— Onde foi que soube disso?
— Por aí...Não fique zangado, Paul. Sabe muito bem como são as
coisas nesta cidade. Se você der um beliscão no traseiro de sua secretária, dez
segundos depois a notícia já se espalhou. A situação está muito ruim?
— Este é um almoço de negócios ou de prazer, Herbert?
— Para você, Paul, pode ser de prazer. Para mim, é de negócios. Vivo
aqui. Participo de comitês para tentar manter limpas as nossas atividades. É
muito difícil em certas ocasiões, mas depois de Vesco e Cornfeld precisamos
de Yanko assim como da peste bubônica. Seja franco comigo, Paul. Se
Arlequim está precisando de ajuda, providenciarei para que ele a receba.
— Precisamos de sigilo, Herbert, de discrição absoluta.
— Pode estar certo de que de mim não terá outra coisa. A esta altura, já
deveria sabê-lo.
— Ótimo. O desfalque é de quinze milhões de dólares.
— É uma quantia considerável.
— Mas podemos dar um jeito. Quanto a isso, não há problema. A
dificuldade é que suspeitamos de que nossos computadores foram
manobrados fraudulentamente.
— Isso é óbvio. Mas por quem?
— Os registros dizem que pelo próprio Arlequim. Achamos que foi
Yanko.
— Até que possam prová-lo, Paul, isso constitui um crime de injúria.
— Eu sei. O fato é que no mesmo dia em que me apresentou o
relatório sobre o desfalque, Yanko anunciou também que desejava comprar
Arlequim et Cie. A proposta já foi formalizada: cem dólares por ação.
— E quanto vale realmente cada ação?
— Oitenta e cinco dólares...Talvez noventa, com um pouco de
otimismo.
— A proposta não é má. Nossos técnicos calcularam o valor entre
oitenta e três e oitenta e sete dólares. Arlequim vai aceitar?
— Não.
— E os acionistas minoritários?
— Alguns devem vender, por causa do ágio. Outros venderão por
terem ouvido o rumor de que alguém deu um desfalque.
— Então por que Arlequim não compra as partes dos acionistas
minoritários?
— Ele teria que se empenhar todo para fazê-lo. Não pode pagar cem
dólares por ação e ao mesmo tempo cobrir o desfalque de quinze milhões de
dólares.
— E assim vocês terão Yanko no conselho...
— Só por cima de nossos cadáveres.
— Até assim...Quais as providências que Arlequim está pensando em
tomar?
— Desculpe, Herbert, mas isto você terá que perguntar diretamente a
ele.
— É o que farei. Diga-lhe que telefone esta noite para minha casa. Aqui
está o número.
— Obrigado, Herbert.
— Não me agradeça, pois sou parte interessada. Tremo só de pensar
em todo o poder e conhecimento armazenados dentro de uma máquina. Não
se pode desencadear uma greve contra um computador, não se pode levá-lo
ao banco dos réus. Mas é um absurdo que um homem que você nunca viu
possa ler a qualquer momento informações sobre o que você costuma jantar e
a maneira como faz amor com sua esposa. Às vezes fico contente de ser um
homem velho e poder assim evitar quase todas as conseqüências. Vamos pedir
um conhaque, pois estou começando a ficar mórbido.

Passava um pouco das três horas quando cheguei ao banco. Arlequim já


estava lá, despejando simpatia e ungüentos no espírito contundido de Larry
Oliver. Foi um desempenho admirável, com lisonjas sutis, apelos à tradição e
ao código dos cavalheiros, à necessidade de resistir contra a invasão dos
bárbaros. Ao final, Larry ronronava como um gatinho, o leite pingando dos
bigodes.
Lá fora, na sala de reuniões, Saul Wells orientava os trabalhos de dois
aprendizes de gênio, que estavam com-
parando os impressos dos computadores com o relatório de segurança.
Ele levou-me até a janela e, com melancólica admiração, disse:
— É tudo tão simples que é até vergonha pegar o dinheiro. Foram três
instruções codificadas: a primeira, para fazer as deduções; a segunda, para que
os lucros daí provenientes ficassem numa conta suspensa; a terceira, para que
fossem remetidos todas as segundas-feiras, por telex, para Zurique. As
instruções originais foram transmitidas aos computadores no dia 1.° de
novembro do ano passado. Já verificamos o livro de registros diários da
gerência. O Sr. Oliver estava de férias na ocasião. Estava sendo substituído
pelo Sr. Standish, que não fez a menor referência às instruções. Contudo, o Sr.
Arlequim estava em Nova York nessa data. Esse é o ponto número um. O
número dois é que a operadora do computador pediu demissão em janeiro,
por motivos de saúde. Temos o nome dela, Ella Deane, o número do seu
registro no seguro social e seu último endereço, em Queens. Vamos checá-la
imediatamente. Agora, se eu pudesse conversar com o Sr. Arlequim...
A conversa logo se transformou num interrogatório cerrado, que
surpreendeu até a mim. Arlequim, no entanto, submeteu-se com uma
resignação sorridente. Estivera realmente em Nova York na ocasião.
Escrevera realmente memorandos e ditara cartas sobre diversos assuntos.
Estavam todos arquivados, num arquivo trancado à chave na casa-forte.
Poderia mostrá-los? Com prazer. Trouxeram o arquivo. Juntos, examinaram
todos os documentos. Arlequim olhava cada um e depois o entregava a Wells,
que o marcava com seu próprio código. Todos versavam sobre problemas de
orientação política de Arlequim et Cie. Não havia nenhum que pudesse ser
identificado ou mesmo interpretado como uma autorização para a transmissão
de instruções aas computadores.
Saul Wells pediu então que Arlequim escrevesse sua assinatura e sua
rubrica meia dúzia de vezes, em rápida sucessão. Mesmo quando escrita
rapidamente, a letra era firme e arrojada, com um pequeno floreio de desafio
ao final da última letra.
Wells resmungou, com uma expressão infeliz.
— É como atirar contra um celeiro a cinco metros de distância...Eu
mesmo posso falsificar essa assinatura com cinco minutos de prática. Vejam
só!
Durante cinco minutos, contados no relógio, ele praticou a assinatura
de Arlequim, terminando por nos apresentar um fac-símile bastante aceitável.
Mesmo assim, ele ainda não estava satisfeito. Pediu o talão de cheques de
Arlequim e preencheu e assinou um cheque de mil dólares. Levei-o para Larry
Oliver e pedi que o rubricasse para ser descontado. Escrupuloso como
sempre, Oliver verificou a data, a cifra, o número escrito em palavras, a
assinatura. Depois rubricou o cheque e tocou uma campainha, chamando o
chefe dos caixas.
Tirei-lhe o cheque da mão.
— Desculpe, Larry, mas isto foi um teste. Este cheque é falsificado.
Tentamos a mesma coisa com o caixa, sendo o resultado idêntico. Eu
não pude resistir ao comentário de que a reputação das melhores pessoas
podia ser manchada sem que elas soubessem. Oliver teve pelo menos a
delicadeza de assumir uma expressão de humildade. Wells estava se divertindo
com a situação. Já Arlequim parecia profundamente infeliz.
— Mas este tipo de coisa pode acontecer a todo momento! Quantos
milhares de assinaturas minhas não estarão rodando por aí, em cartas, cheques
e abonos de cartões de crédito? Isso é um pesadelo terrível!
— Mas bastante instrutivo.
Saul Wells ficou subitamente pensativo.
— A assinatura é muito fácil de falsificar. Por que será então que eles
não puseram um memorando incriminador no arquivo, só para completar o
quadro?
— Tenho a resposta para isso — declarou Arlequim, enfático e
recuperando um pouco de sua segurança. — Todos sabem que eu jamais
assinaria tal memorando. Seria passar por cima do gerente, coisa que eu nunca
faço. Além disso, a fraude foi repetida em outras filiais. Não havia garantias de
que eu fosse, por exemplo, a Buenos Aires. O melhor era deixar alguma
confusão na fonte e fabricar uma certeza absoluta no local onde o dinheiro era
recebido, o Union Bank, de Zurique.
Saul Wells meteu um charuto novo no canto da boca e deixou-se
envolver por uma nuvem de fumaça.
— É, deve ter sido isso mesmo. Mas assim a promotoria também tem
uma explicação. É algo, aliás, em que temos de pensar, Sr. Arlequim. Até
agora já verificamos que pelo menos seis milhões de dólares foram desviados
somente de
Nova York. Cada um de seus clientes foi atingido pela cobrança de
taxas ilegais. Qualquer um deles pode mover-lhe um processo aqui em Nova
York. As acusações podem ser derrubadas no tribunal, mas serão
terrivelmente embaraçosas.
3

Eram cinco e meia quando voltei ao meu apartamento. Havia três


recados à minha espera: a Srta. Hallstrom pedia-me que me encontrasse com
ela às oito horas em vez de sete e meia; o Sr. Francis Xavier Mendoza
telefonara da costa do Pacífico; o Sr. Basil Yanko pedia-me que telefonasse
para seu escritório, antes das sete horas. Decidi que era melhor receber
primeiro as boas notícias — se é que havia alguma —, e por isso liguei para
Mendoza. Ele se mostrou um pouco misterioso, mas animador:
— É sobre nosso conhecido comum...Eu lhe disse que três amigos
meus haviam-se queimado. Um deles é um homem muito obstinado. Passou
dois anos compilando um dossiê. Já o li. O material é fascinante, embora nem
tudo possa ser admitido como prova pela lei. Convenci-o a tirar duas cópias
fotostáticas, trancando uma num cofre e entregando-me a outra, que mandarei
para você por um portador de confiança. Há pessoas na política e no
Pentágono que adoram Yanko, enquanto outras o detestam como um veneno
mortal. Fiz uma lista, que também lhe remeterei. Lembre-se de que eu lhe dei
um aviso. Ao ler o documento, compreenderá o motivo. Como estão indo as
coisas aí em Nova York?
— Estamos sendo bastante pressionados.
— Era o que eu calculava. Acabei de ler a notícia. Se precisar de ajuda
aqui na costa do Pacífico, pode contar comigo. Vaya con Dios!
Desliguei, abençoando-o pela decência que demonstrava num mundo
cão. Liguei então para Basil Yanko. Por uns poucos momentos, pelo menos,
ele mostrou-se quase humano.
— Obrigado por telefonar-me, Sr. Desmond. Estou aguardando
ansiosamente uma notícia do Sr. Arlequim.
— Ele trabalhou pouco hoje, mas está exausto agora.
— Isso é natural. Pensei em telefonar-lhe, para apresentar-lhe meus
respeitos.
— Sugiro que espere até amanhã de manhã.
— Claro. É Madame Arlequim, está passando bem?
— Está sim, obrigado.
— Leu a notícia que distribuímos à imprensa?
— Li.
— Algum comentário?
— Nenhum. Meu superior já assumiu o controle da situação.
— O que é o correto. Mas hoje o senhor fez alguns comentários
impróprios em seu clube.
— O que eu disse em meu clube, Sr. Yanko, não é de sua conta.
— Posso reproduzir literalmente suas palavras, Sr. Desmond: "Não
vamos aceitar. E achamos que é jogo sujo divulgar a oferta antes que ela seja
discutida entre as partes interessadas". A oferta foi discutida com o senhor, na
qualidade de diretor de Arlequim et Cie. Sua declaração pode ser considerada
como passível de ação judicial, Sr. Desmond.
— Na base do que ouviu de um informante? Duvido muito. Mas, se
quiser dar-me o nome dele, ficarei feliz em confrontá-lo com o comitê diretor
do clube. Mais alguma coisa, Sr. Yanko? Tenho um compromisso para o
jantar.
— Só mais um pequeno problema, Sr. Desmond. Arlequim et Cie.
aplicou uma parte de nossos fundos para investimentos.
— E creio que bem lucrativamente.
— É verdade. Mas as transações referentes a esses fundos foram
oneradas por comissões fraudulentas. Nossos advogados afirmaram que
existem bases para ações civil e criminal.
— Então não tenho a menor dúvida de que discutirá o assunto amanhã
com o Sr. Arlequim. Boa noite, Sr. Yanko. Bati o telefone e amaldiçoei-o.
Estava furioso comigo mesmo. Eu, um veterano de mais de uma centena de
incursões no mercado, com cicatrizes nas costas e lucros no banco, saltando
como o cão de Pávlov quando Yanko apertava o botão de choque. Era a mais
simples de todas as técnicas de terror: o informante onipresente, a advertência
imediata, a ameaça de destruição ao virar a esquina. Subitamente caí na risada,
andando rapidamente pelo apartamento como um estudante, a jogar
almofadas para o ar e a gritar para Takeshi que me trouxesse uma bebida,
preparasse um banho, arrumasse meu melhor terno, reservasse uma mesa no
Cote Basque, pedisse uma limusine na Colby Cadillac e mandasse entregar
rosas à Srta. Valerie Hallstrom, antes das oito horas. Aquilo era
completamente errado, num mundo faminto. Mas, se eu poupasse o dinheiro
e o aplicasse através dos computadores de Yanko, haveria um grão a mais no
prato de arroz de um indiano? Sabia que não haveria. Disse a mim que não
estava preocupado. Mas, lá no fundo, havia a convicção de que, se um homem
ao telefone podia fazer-me procurar refúgio, assustado, na cama, então estava
na hora de largar as cartas em cima da mesa e ir estourar os miolos no
primeiro beco disponível.
Estava me barbeando quando me lembrei de que tinha de ligar para
Bogdanovich. Por um momento senti-me tentado a deixar isso de lado, mas
depois pensei melhor e mudei de idéia. Disquei o número que me fora dado,
apresentando-me como Weizman. Um momento depois, Bogdanovich estava
ao telefone.
— De onde está chamando?
— De meu apartamento.
— Foi avisado de que deveria usar um telefone público.
— Eu sei. Mas é muito tarde e tinha me esquecido de telefonar.
— Desta vez está com sorte, pois eu já ia entrar em contato com o
senhor. Há um homem vigiando a porta de seu prédio.
— Agente seu?
— Há um meu e um outro. Ele está estacionado do lado esquerdo da
rua, num Corvette verde.
— Isso é um embaraço, pois vou jantar com a dama sobre a qual
conversamos.
— Qual é o programa?
— Às sete e quarenta e cinco uma limusine estará diante de meu
edifício. Fiquei de apanhá-la às oito horas. Vamos ao Cote Basque.
— Mude a ordem. Telefone para ela e diga que vai se atrasar um pouco.
Mande a limusine apanhá-la e levá-la ao Cote Basque. Quanto ao senhor,
deverá caminhar até o Saint Regis e entrar no King Cole Bar, onde receberá
uma mensagem. Depois poderá seguir para o Cote Basque. Entendido?
— Perfeito. Mas o que me diz de levá-la para casa?
— Em que casa está pensando?
— No apartamento dela, espero.
— Se houver algum problema, nós o avisaremos. Senão, aja
normalmente.
— É uma instrução bastante objetiva.
— Nem tanto assim. O apartamento dela é território inimigo, até
termos a oportunidade de examiná-lo centímetro por centímetro.
— Com espelhos de duas faces e microfones ocultos nas azeitonas dos
martínis, não é?
— Fico contente ao verificar que ainda pode rir. Por isso vou contar-
lhe uma piada. O homem que está no Corvette verde é Bernie Koonig. Ele já
matou dois homens e uma mulher. Divirta-se, Sr. Desmond.
A medida da loucura da América foi o fato de que a notícia me deixou
consideravelmente assustado, mas não me causou realmente nenhuma
surpresa. Quando um sociólogo respeitado escreve com o maior desembaraço
sobre "níveis aceitáveis de violência", quando um astro da televisão pode
entrevistar um homem mascarado que alega ter matado trinta e oito pessoas,
sob contrato e na maior impunidade, não restam muitas surpresas, apenas a
difusão do terror, como se as paliçadas tivessem sido derrubadas e as bestas
selvagens rondassem livremente pelo enclave humano. Por isso, fiz
exatamente o que me mandaram.
Ao sair do edifício, vi que o Corvette verde estava bloqueado junto ao
meio-fio por uma radiopatrulha. Dois guardas tinham obrigado o motorista a
se debruçar em cima do capo. Eu, macaco velho, nada vi, nada ouvi. Caminhei
até o Saint Regis e sentei-me no King Cole Bar, esperando até que um recém-
chegado empurrasse o pratinho de amendoins na minha direção e
murmurasse o aviso de que eu já estava livre para seguir em frente.
Quando cheguei ao restaurante, Valerie Hallstrom já estava acomodada,
com um coquetel à sua frente e conversando com o maltre. Deu-me um
sorriso caloroso e um aperto de mão de boas-vindas. Agradeceu-me pelas
flores e mostrou-se indulgente para com meu atraso. Conversamos sobre
assuntos superficiais durante os coquetéis e enquanto escolhíamos os pratos.
Quando a refeição foi servida, estávamos à vontade. Eu repassava todo o
repertório das minhas histórias de viajante. Ela estava divertida e interessada,
agradecida por aquela trégua nas invasões convencionais de sua vida
profissional.
— Depois de algum tempo, Paul, esta cidade começa a nos sufocar. É
tudo urgente, tudo impessoal, sem ter o menor sentido. Sou uma moça do
interior. Meu pai ainda cria cavalos na Virgínia. Não podia esperar o momento
de sair de lá e conquistar a cidade grande. Pois bem, eu o consegui, só que
agora sonho cm voltar para casa. Mas isso não é possível, não acha? A casa da
gente não mudou, mas nós mudamos bastante. E você, Paul?
— A minha casa é onde penduro meu pergaminho kanji.
— Ainda não me contou essa história.
Contei então. Falei da antiga lenda das mulheres que se transformavam
em raposas, deixando seus amantes mutilados e desolados. Falei dos
gravadores e dos ceramistas, dos maravilhosos artesãos japoneses, da gente
dos rios da Tailândia, do homem de Rangum que me ensinara a distinguir
entre os rubis bons e os que não prestavam, da assombrosa beleza das selvas
de Arnhem, com as pessoas de pele escura cantando ao redor das fogueiras.
E quando terminei ela me perguntou:
— E o que você é agora?
— Um comerciante, um homem rico.
— Mas não apenas isso.
— Tem razão. Mas, se eu não tivesse comerciado, não teria viajado. E,
se não tivesse viajado, não teria tudo isso.
— E como é seu amigo Arlequim?
— George é muito diferente de mim. Ele sabe das coisas. Possui a
espécie de cultura pela qual eu daria meu braço. Conhece línguas, história,
pintura...Quando viajamos juntos, ele sempre está instantaneamente por
dentro das coisas. Tenho que esforçar-me ao máximo ou deixar que ele me
leve. No ano passado, por exemplo, viajamos pelas ilhas gregas. Eu era o
comandante do veleiro. Mas no momento em que tocávamos em terra,
George imediatamente se punha a conversar com os pescadores, com o
sacerdote local, com o antiquário. Invejo-o por isso.
— Mas gosta dele?
— Como um irmão.
— E, no entanto, está sentado aqui, comigo.
— Como assim?
— Eu represento o inimigo, pois trabalho para Basil Yanko.
— O tempo inteiro?
— Quase.
— Mesmo quando vai ao bar de Gully Gordon?
— Não, lá não.
— E agora?
— Agora também não. Amanhã, talvez. Não sei.
— Yanko sabe que está jantando comigo?
— Não. Se descobrisse, perderia meu emprego.
— Está brincando...
— Não, é verdade. E jamais conseguiria outro emprego na área. Aonde
quer que eu fosse, ele continuaria atrás de mim.
— Tem uma ficha no sistema?
— Todos nós temos. É assim que Yanko trabalha. Aliás, creio que toda
a grande indústria trabalha assim. A ficha segue-nos por toda parte, embora
nunca a vejamos. E, enquanto ela existir, nunca se é livre.
— Isso é chantagem, tirania e escravidão.
— Eu aceitei submeter-me.
— Para quê? Por setecentos e cinqüenta dólares semanais e benefícios
adicionais?
— Estou segura onde estou.
— Tem certeza? Esta noite havia um homem vigiando meu
apartamento. Tenho razões para acreditar que foi contratado por Basil Yanko.
A cor desapareceu do rosto dela. Deixou cair o garfo, estrepitosamente,
e por um momento pensei que fosse desmaiar. Depois, com grande esforço,
ela se recuperou.
— Isso é verdade?
— É.
— Oh, meu Deus!
— Relaxe, mulher. Não fui seguido até aqui e você também não. Foi
por isso que mudei um pouco o que havíamos combinado. Temos também
nosso próprio sistema de proteção, funcionando dia e noite. Vamos, agora
tome seu vinho...Assim está melhor! O que quer que Yanko possa fazer
contra você, não é pior do que esse terror permanente.
— Por favor, não quero mais conversar sobre esse assunto.
— Está certo. Mas agora podemos fazer um joguinho. Digo para você:
"Valerie Hallstrom, conte-me seu segredo
sombrio e eu a libertarei e a protegerei". Você então diz para si mesma:
"Está vendo? Ele quer apenas usar-me". Está mais segura com o diabo que já
conhece. Então eu tento persuadi-la. Você recusa. E de manhã, volta para o
escritório e conta tudo a titio Basil, que a pune um pouco, mas depois a
consola e a manda de volta ao trabalho, penitente mas feliz, para escrever um
relatório confidencial para o cérebro...Portanto, o melhor é não fazermos esse
joguinho, não acha? Vamos tomar café e um calvados e em seguida eu a
levarei para casa na minha reluzente limusine, deixando-a segura e inocente
em sua porta.
— Você é um miserável, Paul Desmond.
— Não, Valerie, você continua enganada. Aquele é meu irmão gêmeo.
Mais uma vez a observação provocou um sorriso ligeiro e incerto.
Ficamos sentados em silêncio, de mãos dadas, contemplando o torvelinho de
garçons em torno das mesas e tentando ler as expressões dos outros fregueses,
antes de termos coragem para tentar novamente ler a expressão um do outro.
Trouxeram-nos café e o calvados. Enquanto tomávamos o licor forte, Valerie
Hallstrom disse:
— Devo avisá-lo, Paul, de que Basil Yanko é um homem bastante
perigoso.
— Eu já sabia disso.
— E George Arlequim é uma obsessão para ele.
— Por quê?
— Acho que pelas mesmas razões pelas quais você o admira. Arlequim
já nasceu com sorte; é um homem altamente civilizado e as pessoas sentem-se
atraídas por ele. Yanko teve que arrastar-se para fora de uma favela de
Chicago. Ele é um gênio, um grande gênio, mas é também rude e feio. Ele é
como um sapo com uma coroa de ouro na cabeça c sabe disso. É isso o que o
torna perverso e cruel. A princípio eu sentia pena dele. Por algum tempo,
cheguei a pensar que estivesse apaixonada por ele. Não acha romântico? E a
linda princesa beijou o sapo feio e ele transformou-se num belo rapaz...
— Só que isso não aconteceu, não é mesmo?
— Não.
— E é por isso que você vai ao bar do Gully Gordon, noite após noite?
E não pode apaixonar-se porque o sapo-rei está sempre presente, rindo,
porque sua vida está presa em seu cérebro mecânico.
— Isso não é nenhuma brincadeira, Paul.
— E por acaso está me ouvindo rir?
— Acho que está na hora de irmos embora.
Se esta fosse uma história de amor — o que não é! —, eu contaria
agora como fomos até seu apartamento e ela convidou-me a entrar, como
dançamos ao som de música suave e depois fizemos amor até que os pardais
começassem a cantar pela manhã, como eu tinha todos os segredos de Basil
Yanko em minhas mãos ao partir. A um quarteirão de seu apartamento,
Valerie pediu que o motorista parasse o carro. Queria seguir a pé o resto do
caminho. Ofereci-me para acompanhá-la. Ela recusou com um sorriso e com
um comentário enigmático:
— Algumas vezes Deus gosta de saber como os seus filhos passam suas
noites. Obrigada pelo jantar e boa noite, Paul.
Ela beijou-me rapidamente no rosto e saiu do carro. Mandei que o
motorista a seguisse lentamente até a casa, a fim de mantê-la a salvo de
assaltantes e viciados. Depois que a porta do prédio se fechou atrás dela,
atravessei a cidade e fui até o bar do Gully Gordon, onde fiquei sentado entre
os meus pares, ouvindo a música triste e suave, até uma hora da madrugada.
E nas horas frias da madrugada tive um sonho. Vi uma planície imensa,
circular, inteiramente vazia, iluminada por uma lua fria. E no centro dessa
planície, pequeno e solitário, havia um vulto agachado. Eu não podia dizer se
era humano ou animal. Sabia apenas que me sentia atraído por ele com um
anseio profundo, sendo porém contido por uma ameaça visível. Em torno dos
limites externos da planície circular havia uma multidão de cavaleiros, alguns
negros, recortados contra a lua, outros brancos como fantasmas ao seu brilho.
Ao lado de cada cavaleiro havia um cão, completamente imóvel. Estavam a
uma distância incomensurável, mas eu podia vê-los nitidamente, como se
estivessem ao alcance de minha mão. Os cavaleiros não tinham rostos, apenas
máscaras, vazias como cascas de ovos. Tentei distinguir as feições do vulto
agachado, mas meus olhos pareciam comprimidos e eu não conseguia
focalizá-los.
Então os cavaleiros e os cães começaram a se deslocar, lentamente, em
ritmo de funeral, convergindo inexoravelmente para o vulto solitário. Os
cavaleiros estavam em silêncio, os cães não latiam. Não se ouvia o menor
ruído dos arreios ou das batidas dos cascos. O vulto moveu-se, espreguiçou-
se, levantou-se. Era uma mulher nua, que se virou lentamente, girando como
um manequim num pedestal, até que seu rosto me ficasse visível. Era Valerie
Hallstrom, sorridente, sedutora, indiferente ao perigo que corria.
Senti-me dominado por um intenso desejo sexual. Chamei-a, mas
nenhum som saiu de minha boca. Tentei alcançá-la, mas fui contido por mãos
gigantescas. E então os cavalos iniciaram um galope desabalado, com os cães
pulando em seus flancos. Senti, mais do que ouvi, os gritos para açular os
cães, os latidos, a terra tremendo sob os cascos dos cavalos, o tropel
irresistível para esmagá-la...

Eu estava iniciando os primeiros rituais do meu despertar quando Saul


Wells telefonou. Ele estava excitado e loquaz. Quase podia ver-lhe o charuto
no canto da boca, pois ouvia-o perfeitamente mastigá-lo. E misteriosamente o
cheiro impregnou meu quarto.
— O que há, Saul?
— Ella Deane.
— Quem?
— A tal moça do computador, a que deixou o emprego em janeiro, por
motivo de saúde.
— Ah, sim...O que há com ela, Saul?
— É muito triste e muito ruim para nós: ela morreu.
— Quando?
— Duas semanas atrás, num acidente. Foi atropelada e o carro fugiu.
— O que diz a polícia?
— A mesma coisa de sempre. As investigações prosseguem. Não acha
que a morte dela foi bastante conveniente para alguém?
— Como sempre acontece. Mais alguma coisa?
— Só uma confirmação. Os nossos agentes começam a agir em todas
as outras filiais amanhã.
— Está trabalhando rápido, Saul. Obrigado.
— E mais uma coisa: Ella Deane morreu rica.
— Quanto?
— Com trinta mil dólares, aproximadamente.
— Onde foi que ela os conseguiu? E quando?
— É o que estamos procurando descobrir. O impossível demora mais
um dia. Ficarei em contato. Ciao.
Pouco depois, enquanto limpava a gema de ovo que respingava em
meu queixo, Aaron Bogdanovich chegou,
vestido como entregador e com uma cesta de flores nas mãos.
— As flores acrescentam fragrância à vida, Sr. Desmond.
— Não pensei que se importasse com tais coisas, Sr. Bogdanovich.
— Conte-me o que aconteceu na noite passada.
A pergunta foi formulada bruscamente, como se ele esperasse
surpreender-me e assim levar-me a alguma confissão inesperada.
— Nada aconteceu. Jantamos, conversamos. Ela me disse que perderia
o emprego se Yanko soubesse que se encontrara comigo em particular. Disse-
me também que já esteve apaixonada por ele, mas o caso terminou mal.
Avisou-me de que ele era um homem perigoso e obcecado com relação a
George Arlequim. Depois pediu-me que a levasse para casa e insistiu em
percorrer a pé, sozinha, o último quarteirão. Nós a seguimos na limusine.
Depois fui ao bar de Gully Gordon, para tomar um último drinque antes de
dormir.
— E como foi que voltou para casa?
— Na limusine.
— A que horas?
— Uma e quinze.
— Pode prová-lo?
— Claro. Assinei o registro do motorista. Takeshi ainda estava
acordado quando cheguei. Tomei um banho de chuveiro, vesti o pijama e ele
serviu-me uma xícara de chá antes que eu me deitasse. Mas por que todas
essas perguntas?
— Valerie Hallstrom está morta. Foi assassinada logo depois que
chegou a casa.
— Deus Todo-Poderoso!
— Espero que consiga assumir a mesma expressão chocada quando a
polícia lhe transmitir a notícia.
— A polícia? Não estou entendendo...
— Nós dois, Sr. Desmond, fomos as últimas pessoas a vê-la com vida.
Sobrou um pouco de café?
— Sirva-se à vontade. Olhe, vai ter que voltar ao princípio. Estou
inteiramente perdido...
Ele deu-me aquele seu sorriso típico, frio e sepulcral, servindo-se de
café, creme e açúcar. Só depois é que me disse:
— Enquanto vocês dois jantavam, fui à casa de Valerie Hallstrom. Já a
viu, do lado de fora. É um desses prédios cinzentos e antigos com um porão e
três andares. Ela é dona de todo o prédio e tudo lá dentro é muito caro. Há
um Matisse no quarto e um Armodio no salão. Há muitas porcelanas de
Dresden e muitas coisas do que acredito chamarem de bijouterie. O armário
está repleto de casacos de peles e vestidos de alta moda. Ela possui dois
telefones, sendo que um não consta do catálogo. O que está no catálogo está
sendo vigiado. O outro está escondido dentro do armário, por trás das roupas,
onde existe também um cofre de parede, que consegui abrir. Depois lhe direi
o que encontrei lá dentro. Demorei-me de oito e meia até as nove e meia
nessa inspeção. Às nove e meia o telefone do catálogo tocou. Esperei até que
parasse e depois saí do prédio, pelo porão. Sentei-me em meu carro,
estacionado do outro lado da rua, e fiquei esperando. Por volta das dez e meia
um homem entrou na casa, levando um pequena valise. Usou uma chave e
não saiu mais, nem acendeu qualquer luz. Esperei até que Valerie Hallstrom
chegasse a casa. Vi-o passar na limusine, e logo se acenderam, dentro da casa,
as luzes da sala de estar e do quarto. Não pude ver o interior, porém, porque
as cortinas estavam fechadas. Cerca de dez minutos depois o homem saiu,
carregando ainda a valise. Saiu caminhando para oeste e eu o segui. Fez então
sinal para um táxi e embarcou. O táxi avançou o sinal no primeiro
cruzamento, por isso perdi-o de vista. Mas anotei o número da placa. Parei
então numa cabine telefônica e liguei para Valerie Hallstrom. Ninguém
atendeu. Voltei para a casa. As luzes continuavam acesas. Entrei e encontrei-a
no chão da sala de estar. Levara um tiro na cabeça. O epílogo é bastante
simples. Voltei à cabine telefônica e avisei a polícia. Eles ainda estavam
trabalhando quando passei por lá esta manhã. Fico imaginando o que teria
acontecido se você tivesse entrado na casa junto com ela.
— Quem era o homem? Reconheceu-o?
— Não. Mas tenho certeza de que o reconheceria imediatamente, se o
visse de novo.
— O que encontrou no cofre?
— Dinheiro. Cerca de vinte e cinco mil dólares. E também um arquivo
de impressos de computador. Havia um caderninho com uma relação de
empresas e os respectivos códigos de computador. Todas as filiais de
Arlequim et Cie. estão relacionadas, com os seus próprios códigos. Creio que
todas as outras companhias relacionadas são também clientes da Creative
Systems. Tirei o caderninho e deixei o resto.
— O senhor...O quê?
— É preciso ter algo para se negociar, Sr. Desmond. Não tínhamos
nada antes. Agora temos, num cofre absolutamente seguro.
— Mas nada disso tem sentido.
— Pelo contrário, Sr. Desmond, vai descobrir que tem muito sentido.
Suponhamos que a Srta. Valerie Hallstrom estivesse agindo por conta própria,
extraindo informações dos computadores e vendendo-as a gente de fora.
Suponhamos que Yanko tenha descoberto. O que faria ele?
— Mandaria prendê-la.
— E permitiria que fosse levada a julgamento, expondo publicamente a
fraqueza de sua organização? Isso seria um golpe terrível para a Creative Systems
e para o próprio Yanko. Ele levaria anos para recuperar-se. Não, Sr.
Desmond, existem precedentes, precedentes demais. Algumas empresas
chegaram até mesmo a subornar os empregados corruptíveis e ofereceram-
lhes as melhores referências para arrumarem outro emprego, preferindo agir
assim a processá-los e depois enfrentar prejuízos no valor de alguns milhões
de dólares. Mas eu não creio que seja esse o caminho que Yanko escolheria. O
que acha?
— Concordo com sua opinião.
— Portanto, ele deve livrar-se desses empregados pelo método mais
barato. O cofre foi encontrado vazio. A polícia pensa que a Srta. Hallstrom
surpreendeu um intruso em sua casa e foi alvejada. Isso acontece todos os dias
com mulheres ricas que vivem sozinhas. E o estilo de vida da Srta. Hallstrom
contribui para reforçar a história.
— Mas nós sabemos...
— Eu sei, Sr. Desmond. Mas tudo o que lhe contei é um conto de
fadas, que irá esquecer no momento em que eu partir. Esse foi o nosso
acordo, lembra-se? Mais tarde, quando encontrar o homem que matou a Srta.
Hallstrom, veremos o que é melhor.
— E acha que irá encontrá-lo?
— Tenho certeza absoluta, Sr. Desmond. A profissão prima pela
discrição, mas os bons profissionais são todos bastante conhecidos. Eu o
descobrirei.
Ele saiu sorrindo, mas deixou atrás de si uma baforada de enxofre e
uma amostra do que era o inferno. E, lentamente, vi-me forçado ao mesmo
dilema em que se encontrava George Arlequim. Éramos banqueiros,
limpávamos todo o dinheiro que passava por nossas mãos. Mas não
conseguíamos fugir à mancha que aparecia no dinheiro. Foi então que George
Arlequim telefonou, enérgico e objetivo, tão diferente de sua personalidade
habitual que nem eu mesmo pude adivinhar qual o papel que escolhera para
desempenhar naquele dia.
— Paul? Importa-se de vir agora para o Salvador? Poderia chegar
dentro de vinte minutos? Vou almoçar com Herbert Bachmann e gostaria
antes de conversar com você. Às três horas Basil Yanko também virá aqui.
Gostaria de que você estivesse presente ao meu encontro com ele. Até lá, há
outras pessoas que estão ansiosas por falar-lhe... Meia hora? Tente chegar
antes, se lhe for possível. Oh, só mais uma coisa: importa-se de levar Juliette
para almoçar? Ela está começando a ficar cansada de minhas sucessivas
reuniões e não posso culpá-la por isso. Obrigado, Paul. À bientôt.
As pessoas que desejavam ver-me eram dois jovens e muito bem-
educados detetives do Departamento de Polícia de Nova York. Explicaram-
me, em frases alternadas, que haviam ligado para o banco, sendo
encaminhados ao Sr. Arlequim, que delicadamente consentira em chamar-me.
Esperavam, sinceramente, que não representasse muita inconveniência para
mim. Assegurei-lhes que isso absolutamente não acontecia. Será que o Sr.
Arlequim não se importaria de deixá-los a sós comigo por um momento?
Arlequim se importava. E muito. Disse-o em frases extremamente
diplomáticas. Eu era seu amigo de longa data, diretor de absoluta confiança,
representante de um banco internacional. Estávamos pisando uma
propriedade do referido. E os dois estavam calcando também sua dignidade.
A menos que eu, especificamente, expressasse o desejo de que ele se
ausentasse, continuaria ali na sala. Não foi uma argumentação muito longa,
mas proporcionou-me o tempo necessário para equilibrar meu espírito
aturdido e planejar um relato simples e objetivo.
— Deixei meu apartamento quando faltavam quinze minutos para as
oito horas e caminhei até o Saint Regis. Por volta de oito e quinze segui para o
Cote Basque, onde jantei com uma moça. Deixamos o restaurante de carro
por volta das onze e meia. Deixei a moça em casa e o motorista levou-me para
o bar de Gully Gordon, na First Avenue. Fiquei lá até uma hora da madrugada,
quando o motorista
me levou para casa. Meu criado pode confirmar minha chegada, por
volta de uma e quinze. Ele estava preparando um lanche para si e eu comi
também...Agora posso saber qual o motivo para essas perguntas?
— Tenha um pouco mais de paciência, Sr. Desmond, por favor...Disse
que jantou com uma moça. Como se chama ela?
— Valerie Hallstrom.
— Conhece-a há muito tempo?
— Três dias. A Srta. Hallstrom trabalha para a Creative Systems
Incorporated, cujos sistemas utilizamos e da qual somos acionistas e banqueiros
de investimentos. Ela preparou um relatório sobre nossas operações de
computação e encontramo-nos para discuti-lo. Foi bastante prestimosa e deu
todos os esclarecimentos necessários. Convidei-a então para jantar.
— Mas não foi buscá-la em sua casa? ' — Não. Mandei o carro apanhá-
la.
— Alguma razão para isso?
— Era mais simples e eu queria esticar um pouco as pernas, pois tinha
passado quase o dia inteiro sentado.
— Disse que acompanhou a Srta. Hallstrom até a casa dela. Ela não o
convidou para entrar?
— Muito pelo contrário. Pediu-me que a deixasse a um quarteirão de
sua casa.
— Não achou isso estranho?
— Muito. Mas, por outro lado...
— O quê, Sr. Desmond?
— A Srta. Hallstrom é uma conhecida de negócios. Não tenho o menor
conhecimento de sua...vida particular. Nova York é uma cidade estranha, por
isso achei melhor acatar seu capricho e não fazer pergunta alguma. Pedi ao
motorista que acompanhasse a Srta. Hallstrom até a porta de sua casa. Só
depois que a vimos entrar em segurança foi que nos afastamos. Tenho certeza
de que poderá confirmar tudo isso com a empresa onde aluguei o carro e com
o motorista que o dirigia.
— Quais serão seus movimentos nos próximos dias, Sr. Desmond?
— Isso depende inteiramente do Sr. Arlequim.
— O que nos diz, Sr. Arlequim?
— É impossível definir qualquer coisa neste exato momento, senhores.
Estamos empenhados em algumas negociações internacionais, altamente
delicadas. Podemos ficar aqui durante uma semana inteira. É possível também
que, a qualquer momento, tenha que mandar o Sr. Desmond para a Europa
ou para a América do Sul.
Um dos detetives tirou do bolso um envelope pardo, abriu-o e pegou lá
de dentro duas fotografias, entregando uma a Arlequim e outra a mim.
Embora eu já estivesse preparado, senti um choque de repugnância e
horror. Valerie Hallstrom parecia uma boneca desengonçada, estendida no
chão de sua sala de estar, o rosto, uma massa ensangüentada.
O detetive tirou a fotografia de minhas mãos.
— Ela levou um tiro, Sr. Desmond. À queima-roupa, com uma pistola
de calibre 38.
— Eu...eu não entendo...Quando? Como?
— Estamos investigando. Importa-se, Sr. Desmond, se dermos um
pulo a seu apartamento para conversarmos com seu criado e verificarmos seus
pertences?
— Em absoluto. Mas certamente não estão pensando que...
— É apenas rotina, Sr. Desmond. Irá ajudá-lo também.
— Tem razão.
— Esperem um momento, senhores!
George Arlequim levantou-se, um homem de ferro, dominando a todos
nós com sua presença.
— Sou testemunha desta entrevista. O Sr. Desmond respondeu
livremente a todas as perguntas que lhe fizeram. Ofereceu-lhes também livre
acesso a seu apartamento, sem um mandado judicial. Relatou-lhes os fatos e
os meios de comprová-los. Agora, porém, estou precisando dos serviços do
Sr. Desmond. Desejo que ele permaneça aqui, para algumas reuniões de
negócios, que envolvem os interesses urgentes de clientes internacionais.
Portanto, com toda a deferência devida à autoridade policial, gostaria de fazer
uma sugestão: que o Sr. Desmond telefone para seu criado e o instrua para
deixá-los entrar no apartamento. Ele permanecerá aqui, à disposição, caso
queiram interrogá-lo novamente...E então, senhores, o que me dizem?
Eles pertenciam à nova raça de policiais, cautelosa, educada e racional.
Depois de uma rápida conferência, terminaram concordando com a sugestão.
Telefonei para Takeshi e entreguei as chaves do apartamento aos dois
detetives, prometendo esperar no Salvador até que eles voltassem.
Quando Arlequim e eu ficamos sozinhos, ele perguntou-me
abruptamente:
— Você deixou algo de fora, Paul. O que foi?
— Nada, George.
Ele ficou magoado, mas procurou não demonstrá-lo. Disse apenas,
calmamente:
— Lembre-se apenas de que não precisa comprometer-se por minha
causa, Paul.
— Não me estou comprometendo em nada, George. Vamos esquecer
o assunto? Você vai encontrar-se com Yanko esta tarde. O que pretende
dizer-lhe?
— Vou recusar a oferta.
— E o que fará então?
— Vou exercer meus direitos de opção e comprar as partes dos
acionistas minoritários.
— Mas não tem condições de fazê-lo.
— Herbert Bachmann acha que pode levantar os recursos necessários.
Vamos discutir o assunto durante o almoço.
— Mesmo que ele o consiga, você ficará endividado durante dez anos.
E com o custo elevado do dinheiro, como está atualmente, talvez demore
ainda mais. Além do mais, Yanko pode aumentar sua oferta. Sabe
perfeitamente que isso é possível, se ele negociar com ações da Creative Systems
em vez de dinheiro. Há um limite para o que até mesmo Herbert Bachmann
pode fazer em Wall Street, sem assustar o mercado.
— Então vamos descobrir que limite é esse, Paul. E vamos procurar
também determinar quanto tempo poderemos ganhar para nossas outras
operações. Creio que Bogdanovich poderá surpreender-nos.
— Há uma coisa que ele deixou bem claro, George: não quer que você
tenha uma confrontação com Yanko, pelo menos por enquanto.
Arlequim ficou irritado. Sua resposta foi áspera e categórica:
— Estamos pagando para receber informações, ajuda e assistência.
Como usar tudo isso, eu é que decido. Recuso-me a permitir que me
manipulem.
— Não vamos começar a discutir, George. O dinheiro é seu. Mas não
se esqueça de que não estamos na Europa e que o cenário americano está
bastante turvo neste momento.
— Então vamos ser bem claros, Paul: o risco é meu, a decisão é minha.
— Vai precisar de minha presença no encontro com Yanko?
— Vou. Eu lhe disse que você estaria presente. Convidei-o a trazer
também um dos seus diretores, se assim o desejasse. Ele disse que não
precisava da ajuda de ninguém, mas que compreendia perfeitamente que eu
ainda estava sob cuidados médicos.
— Filho da mãe arrogante!
— Mas isso bem que ajuda, Paul. Não posso mais curvar-me diante
dele. Estou comprometido. Com tudo o que sou, com tudo o que tenho. Se
homens como Yanko controlarem as máquinas, não restará a menor
esperança para nenhum de nós.
— Como Julie está se sentindo?
— Estamos agora mais ligados do que nunca. Mas algumas vezes eu me
pergunto se ela não seria mais feliz se tivesse casado com um homem mais
simples...
Aquele era um terreno perigoso e eu não queria pisá-lo. Antes que
tivesse tempo de formular um comentário, o telefone tocou. George Arlequim
fez-me um sinal para que atendesse.
Era Basil Yanko.
— Sr. Arlequim?
— Não. É Paul Desmond quem está falando...
— Como vai, Sr. Desmond? Como sabe, temos uma reunião marcada
para esta tarde. Infelizmente, porém, estou envolvido num acontecimento
trágico, relacionado com uma das minhas funcionárias. Será que não
poderíamos transferir a reunião para amanhã?
— Certamente. Falarei com o Sr. Arlequim. À mesma hora, aqui no
Salvador?
— Obrigado...
Ele hesitou por um momento, mas logo continuou:
— Nas circunstâncias, acho que é melhor informá-lo de que a
funcionária em questão é a Srta. Valerie Hallstrom. Ela foi assassinada ontem
à noite.
— Eu já sabia. A polícia veio procurar-me. Vi até as fotografias.
— É mesmo, Sr. Desmond?
Ou ele era um magnífico ator ou então estava realmente chocado.
— Não estou entendendo...
— Jantei com a Srta. Hallstrom ontem à noite. Aparentemente, fui a
última pessoa a vê-la com vida.
— Ela disse alguma coisa? Viu...?
— Não, Sr. Yanko. A polícia já está de posse das poucas informações
que pude fornecer. Estou bastante deprimido. Gostaria de que houvesse algo
que eu pudesse dizer ou fazer...Bem, Sr. Yanko, até amanhã.
— Até amanhã...— A voz dele foi-se apagando num murmúrio vago.
— Adeus, Sr. Desmond...
Quando desliguei, Arlequim perguntou-me suavemente:
— Acha que agiu com sensatez?
— Não pude evitá-lo.
— Ele ficou perturbado?
— Acho que sim. Pelo menos é o que eu espero.
— Creio que você deveria entrar em contato com nosso amigo
Bogdanovich.
— Prefiro esperar até que a polícia termine de revistar meu
apartamento.
Os dois detetives voltaram cinqüenta minutos depois. Tinham revistado
meu apartamento, falado com o motorista da limusine e conversado com
Gully Gordon. Agradeceram-me a cooperação. Tudo de que precisavam agora
era uma breve declaração assinada. Escrevi-a à mão, em papel timbrado do
Salvador, assinei-a e pedi a George Arlequim que assinasse também, como
testemunha. Agradeceram-me novamente, declarando que esperavam não me
incomodar mais.
Havia apenas mais um pequeno detalhe: eles desejavam saber por que
eu não mencionara meu encontro com Valerie Hallstrom no bar de Gully
Gordon. Contei-lhes um pouco de verdade e um pouco de mentira. O
encontro fora acidental e sem o menor significado. Eles compreendiam, é
claro. O que eu não havia compreendido é que moças que freqüentam bares
desacompanhadas encontram com freqüência companheiros de cama bem
estranhos. Concordei em que isso era bem possível, mas que esperava que não
se estivessem referindo a mim. Claro que não. Mas mesmo o solteiro mais
respeitável dificilmente consegue provar que dormiu a noite inteira em sua
própria cama...
George Arlequim zombou do meu embaraço. Convenceu os dois
detetives de que já estavam de folga e bem que podiam aceitar um aperitivo,
antes do almoço. Eu não me sentia absolutamente animado, mas consegui
ensaiar um sorriso de solteiro feliz, contando uma historinha escabrosa sobre
os dias de minha juventude em Tóquio. Quem nos ouvisse rir, não teria
imaginado que fôramos todos reunidos por um assassinato.

Juliette voltou à uma hora da tarde, corada e alegre, depois de uma


manhã inteira a correr Nova York como uma mocinha. Fora ao cabeleireiro,
tomara café com uma amiga e fizera compras. Ficou deliciada ao saber que eu
a levaria para almoçar no Fleur de Lys. Julie, quando está bem disposta, ainda é
capaz de fazer os homens virarem a cabeça para admirá-la. E a minha se vira
mais facilmente ainda que a da maioria. Descemos pela Fifth Avenue, de braços
dados. Paramos para ver as vitrinas da Bergdorfs, da Van Cleefs e da Harry
Winston's. Brincamos de "Você se lembra..." e "Não seria maravilhoso se ..."
Bebemos martínis imensos e analisamos o cardápio como se aquela fosse
nossa última refeição. Enquanto comíamos, fizemos planos para uma noitada
no teatro e para um passeio de carro pelo campo no domingo. Conversamos
sobre um coquetel para receber os amigos e os colegas e discutimos qual seria
a melhor mulher para me fazer par. A conversa era agradável e divertida e eu
não me importava em alimentá-la, se isso a deixava feliz.
Ela de nada sabia sobre o drama da manhã e não seria eu quem iria
informá-la. George Arlequim queria tomar suas próprias decisões. E uma
delas era determinar o quanto sua esposa deveria saber. Além disso, eu estava
começando a ficar cansado do papel de padrinho, de amigo da família, de pau-
para-toda-obra. Meu dinheiro estava comprometido, a polícia estava se
intrometendo em minha vida particular, havia pessoas respirando
audivelmente em meu telefone. Enquanto isso, tudo o que eu queria era ser
um homem sem compromissos, saindo à francesa quando as mulheres eram
muito feias ou quando a bebida se acabava. Não era pedir muito. Ao final da
refeição, descobri que absolutamente não podia compreender as mulheres. Na
hora da sobremesa, Juliette cansou-se da conversa superficial e quis fazer-me
uma confissão:
— Estou feliz, Paul, feliz como há muito tempo não me sentia. George
está ficando mais forte a cada dia que passa e está gostando da batalha. Somos
mais francos um com o outro. Agora, quando está cansado, ele fica irritado.
Houve um tempo em que ele se mostrava tão suave e delicado que eu pensava
que nem mesmo um furacão poderia abalá-lo. Gosto mais dele assim. E
também torna-se mais fácil conviver...
Se estivesse na mesma situação que eu, o que diria você? Que estava na
maior satisfação, que tinha certeza, o tempo todo, de que as coisas iam
terminar dando certo, que o casamento nem sempre é um mar de rosas. Tudo
isso e mais alguma coisa. É claro, porém, que isso não era suficiente, pois a
confissão mal começara.
— Vou ser bastante franca, Paul...
Quando uma mulher diz que vai ser franca, o homem deve
imediatamente sair correndo e esconder-se na primeira moita. Mas nunca é o
que a gente faz. Continua-se sentado no mesmo lugar, paciente, sorridente.
Afaga-se a mão dela e se murmura algo simpático, preparando-se para ouvir
pela centésima vez o canto da sereia.
— Sinto um ciúme imenso de George. Sou por demais insegura. Eu o
amo desesperadamente, mas só o fato de ser casada com um homem como
ele constitui uma ameaça constante. Ele sabe demais, sempre vê tudo com
extrema lucidez. Sinto que me está avaliando a todo momento e sempre fico
aquém das suas necessidades. Esta crise reuniu-nos, mas pode também levá-lo
para mais longe ainda de mim, a um ponto em que não poderia segui-lo. Se ele
for batido, então estarei a seu lado para levantá-lo, tirar-lhe a poeira, amá-lo.
Mas, se ele vencer, então ficará novamente a um milhão de quilômetros de
mim. Você está me entendendo, Paul?
Era uma pergunta tola. Por que mais eu estaria ali se não fosse para
compreender e calar o que não se podia dizer? Que Julie Gerard casara-se
com um homem abençoado, que podia não estar feliz mas tinha que continuar
em frente, até descobrir se o marido era ou não capaz de descer ao inferno
como o resto de nós. Mas não se pode dizer uma coisa dessas no Fleur de Lys.
Eu não podia dizer a Julie que, se tivesse casado comigo, seria uma mulher
caseira e feliz, com um garoto irrequieto agarrado às suas saias, sem sentir a
menor falta do Cézanne na sala de estar ou do Hieronymus Bosch no salão de
banquetes. A única coisa que eu podia fazer era sorrir e assentir, imaginando o
que aconteceria quando George Arlequim chegasse a casa com sangue nas
mãos e ferimentos na boca de poeta.
Lá fora, o ar estava carregado e trovejava. Os nova-yorkinos
continuavam em sua peregrinação ruidosa e ressentida para lugar nenhum. O
ressentimento estava estampado nos rostos carrancudos e cautelosos. A
convicção que tinham era tão nítida como se a manifestassem em cartazes:
Manhattan era um lugar terrível. E não havia condição de melhorar. Pelo
contrário, a tendência era piorar. Era uma cidade enlouquecida, de gente
faminta por dinheiro, faminta por homens, faminta por mulheres. Rosnava
para cada um de seus habitantes em todos os minutos de todas as horas. Se
não se rosnasse em resposta, a cidade tragaria o indivíduo, corpo, alma, roupa
e tudo. Entretanto, ela encerrava um desafio. Quem conseguisse vencer aquela
cidade, poderia caminhar ereto como um rei em qualquer parte. Mas era
preciso vencê-la o dia inteiro, todos os dias do ano. Quem não o conseguisse,
quem se sentisse enfraquecer e ficasse esperando por um sorriso, tinha que se
curvar, voltar ao rebanho submisso e lá permanecer.
Não era necessário um grande exército de lógica para se concluir que,
ao final, todos acabavam sendo derrotados. A idade avançando
inexoravelmente e os jovens bravos e ambiciosos sempre à espreita para se
alimentarem com nosso sangue. O dinheiro transformara-se num monstro
enlouquecido, mastigando sua própria cauda, devorando-se até a extinção. A
propriedade, em Nova York, era algo que se empenhava para se obter crédito,
com o qual se comprava mais propriedade para se empenhar em novas
compras, para por fim capitalizar, na esperança de que existisse ao final um
porto seguro na rua sinuosa. Estávamos todos irremediavelmente condenados
a rodar para sempre numa roda de moinho de tortura: algum despertar, um
pouco de sono, a purificação pelo terror e pela piedade, algum amor, muita
solidão, dois banhos por dia para nos manter limpos, embora jamais o
estejamos. E finalmente chegava o momento em que se começava a imaginar
se não se estava apenas matando o tempo, até que o tempo nos matasse.

O almoço de Arlequim com Herbert Bachmann resultou em esperanças


bem modestas. Era possível levantar o dinheiro necessário para Arlequim
cobrir o desfalque e comprar as ações dos acionistas minoritários. Mas,
mesmo a taxas mínimas, os juros seriam altíssimos e os lucros do banco
seriam drasticamente reduzidos por um longo período. O mais prejudicial,
contudo, seria o fato de que uma ampla parcela dos negócios de subscrição de
ações estaria perdida, tendo em vista que a operação se baseia na promessa de
que, se todas as ações não forem vendidas no mercado, o próprio banco
subscritor ficará com o resíduo. Não seria esse o único prejuízo grave: os
investidores tendem a se afastar de um banqueiro que precisa tomar dinheiro
emprestado para se manter à tona.
Basil Yanko calculara tudo com a maior precisão. O ágio era elevado o
suficiente para atrair o vendedor ganancioso e para assustar o comprador
prudente. Não havia confusão suficiente para provocar um escândalo, mas o
bastante para fazer com que os novos clientes fossem procurar outro
estabelecimento. George Arlequim podia vender e ficar rico ou então lutar e
sair pobre, com uma vitória estéril. Arlequim via a situação com lucidez,
definindo-a com mais precisão do que eu. Mas via também uma esperança,
embora mínima, de melhorar sua posição.
— Até agora, Paul, estamos pressupondo o pior: que todo acionista
minoritário vai querer vender. Baseamos todos os nossos cálculos nessa
suposição. Mas eu tenho opção. Minha idéia é procurar todos os acionistas,
apresentar minha oferta e uma recomendação para não vender, em hipótese
alguma, a quem quer que seja. Quero ter encontros pessoais sempre que for
possível, a fim de não deixar muita coisa no papel. Já estou trabalhando nisto
e é claro que precisarei de sua ajuda. Telefonei para Suzanne em Genebra.
Nós três deveremos conseguir falar com todos os acionistas no prazo
necessário. Assim que eu tiver a relação dos acionistas, fixaremos um plano de
operação.
— Mas continua decidido a rejeitar a oferta de Yanko imediatamente?
— Claro. Sinto-me insultado por esse homem e por suas táticas. Por
que está tão hesitante, Paul?
— Porque, até que as investigações estejam concluídas e Bogdanovich
nos forneça as informações de que precisamos, estamos sem trunfo nenhum
para jogar. Yanko repete sua oferta e você lhe diz um "não" definitivo: isto
encerra toda e qualquer discussão. Ficamos assim numa situação pior do que
aquela em que estamos agora. Yanko é rancoroso. Se você o encostar na
parede, ele irá enfrentá-lo como um rato furioso.
— Tem que confiar em mim, Paul.
— Que assim seja, George. Já disse o que penso.
Ligarei para você amanhã de manhã e estarei aqui às três horas da tarde.
— O que está pensando em fazer agora?
— Vou até o clube tomar um banho a vapor. Depois telefonarei para
Mandy Ducaine, descobrirei o que há de quente esta noite e irei até lá. Estou
ficando embotado, George. Preciso de uma pausa.
— Até amanhã, então. Dê minhas lembranças a Mandy.
Eu estava furioso quando o deixei. Sentia que ele me excluía, que meus
conselhos já não tinham a menor importância. Sentia falta da velha
urbanidade, da antiga sutileza, o senso cômico de proporções. Arlequim estava
agora brusco e inflexível, não passava de mais um mercenário numa cidade de
mercenários. Desejei, ardentemente, poder liberar-me do fardo da amizade e
retornar às rotinas agradáveis, se bem que insípidas, da vida de solteiro.
Depois de uma hora no banho a vapor, eu me sentia menos irritado e
mais bem disposto em relação à humanidade. Liguei para Mandy, uma viúva
jovial com um coração tão grande quanto sua fortuna e cujo único medo é ter
uma data em branco em seu calendário social. Ela ia à ópera. Mas, se eu
quisesse, podia aparecer para a ceia. Iria encontrar Louise, Monty, aquela nova
e maravilhosa soprano brasileira e uma dúzia de outras pessoas. Disse-lhe que
faria o possível para comparecer; se não pudesse, contudo, mandava-lhe beijos
e abraços até a próxima vez. E assim eu continuava sem ter com quem jantar
e com a convicção de que estava ficando velho demais para a dança de
acasalamento das borboletas sociais. Desci até o salão de bilhar do clube e
ganhei dez dólares de Jack Winters, que nunca fez nada mais pesado em toda
a sua vida do que podar roseiras e sempre evitou casar-se. Ele mais uma vez
deixou-me assustado, como sempre acontecia. Nele podia ver-me dentro de
dez ou quinze anos, o primeiro a chegar, o último a partir, uma figura patética,
sempre ansioso por encontrar parceiros para o bridge ou companhia para o bar.
Ao voltar para casa, através dos primeiros clarões dos anúncios
luminosos e da última disparada de formigas pela cidade, estava oprimido por
uma terrível sensação de solidão, um medo pânico da violência e do desastre.
O terreno da lei, no qual eu caminhara com tanta segurança durante anos,
estava se rompendo sob meus pés, como um rio congelado num degelo
súbito. Eu estava envolvido em roubo, conspiração e homicídio. Contratara
gente para semear o terror, porque me sentia encurralado por um sistema
além do alcance da lei, um sistema que corrompia a lei, mantendo-a na
impotência e subserviência.
Era uma máquina terrível. Ela dizia: "Alerta amarelo"; e logo todas as
grandes potências preparavam-se para a guerra. A máquina expelia um cálculo
astronômico e logo uma moeda era desvalorizada. Mesmo Deus é capaz de
perdoar nossos pecados, mas a máquina nos humilha com eles até o Juízo
Final, o qual, aliás, também vai acabar determinando ...E assim se criava a
grande ilusão de que o homem não deveria assumir nenhuma
responsabilidade, já que não podia exercer nenhuma, de que deveria ser
submisso porque seu destino já estava determinado e impresso, de que
somente a máquina podia controlar as correntes cósmicas. O que ninguém
dizia, porque todos se empenhavam laboriosamente em ocultá-lo, é que as
máquinas são alimentadas por mecânicos humanos, tão diabólicos, bons,
sensatos ou estúpidos como o resto de nós. A máquina apenas multiplica os
erros cometidos por tais mecânicos, numa matemática enlouquecida, além da
qual não há recurso possível...A menos, é claro, que se ataque a máquina com
machadinhas, bombas, foguetes e um desprezo mortal, o que constitui a
própria essência do terror moderno, a essência do desespero comum que hoje
existe.
Surpreendi-me de repente refletido na vitrina de uma loja. O que eu via
era um homem de meia-idade, sombrio e hostil, fechado a qualquer contato
humano. Virei-me e abri caminho apressadamente por entre a multidão, numa
vã tentativa de livrar-me do fantasma de mim mesmo.

Quando cheguei a casa, todas as misérias do dia foram suplantadas


pelas atribulações domésticas. Takeshi estava num dos seus maus dias. Devo
explicar agora que quando Takeshi está de bom humor é um modelo a ser
apreciado acima do vinho, das mulheres e das esmeraldas. Ele cozinha melhor
do que Escoffier. Passa uma camisa de forma a que fique parecendo como
uma segunda pele. Tira o pó, lustra, dá polimento, como se fosse o guardião
do mais valioso tesouro imperial. Por outro lado, Takeshi de mau humor é
simplesmente intolerável. Ele arrasta os pés como um caso geriátrico, amarra
a cara como um demônio do templo, funga, geme e se lamúria numa sinfonia
de dores. Quando se digna abrir a boca, parece um idiota ou um
insubordinado. A única solução que já encontrei é expulsá-lo de casa e deixá-
lo ir purificar-se com saque, pôquer e uma visita à mama-san que dirige um
estabelecimento para cavalheiros japoneses na West 58th Street.
"Reconheci imediatamente os sinais no momento em que entrei. Cinco
minutos depois eu já expulsara Takeshi de casa. Meia hora mais tarde estava
de banho tomado, barbeado e pelo menos parcialmente humano, refestelado
num sofá, com um copo ao meu lado e ouvindo Von Karajan reger a Patética.
Chegara o pacote despachado por Francis Xavier Mendoza, mas eu ainda não
o abrira. Há muito que só me movimentava de acordo com as engrenagens da
máquina e achava que tinha direito agora a um pouco de descanso, entregue
apenas a mim mesmo.
Folheei uma revista de iatismo e deixei-me dominar pela fantasia de um
longo cruzeiro. Iria da Europa para o Caribe, atravessaria o Panamá, chegaria
às Galápagos, Papeete, Tonga e Fidji. Podia fazê-lo. Deveria fazê-lo, ao invés
de me debater no estéreo do mercado. Poderia tirar um ano inteiro de folga.
Até mesmo dois, se quisesse. Tripulação não era problema. Havia muitas
alternativas para a escolha de companhia agradável. Jenny Latham estava livre
e ansiosa ...Talvez Paulette...Mas por que deveria prender-me a alguém? Por
que não me renovar em cada vez que aportasse em alguma terra? Despertei de
meu devaneio com o toque insistente da campainha. Tropecei até a porta,
ressentido, para atender.
George Arlequim estava em pé no capacho, com um sorriso de
arrependimento.
— Estou passeando há uma hora e resolvi verificar se você estava em
casa. Se não o encontrasse, teria deixado um bilhete.
— Mas entre logo, George! Isto é um absurdo! Simplesmente não se
pode passear à noite nesta cidade.
— Eu sei, mas precisava espairecer um pouco, para poder pensar
direito. Discutimos hoje, Paul. Isso não deveria ter acontecido. Peço que me
desculpe.
— Esqueça, George. Nós dois andamos muito nervosos. Aceita um
café?
— Quero sim, por favor. Você acabou não saindo?
— Mandy foi à ópera. Sugeriu que fosse cear em sua companhia, mas
eu não estava com a menor vontade. E ao chegar a casa ainda descobri que
Takeshi está de veneta. Onde está Julie?
— Esperando por Suzanne. Ela deverá chegar aqui de madrugada.
— Contou a Julie o que aconteceu?
— Contei.
Ele deu-me seu sorriso infantil e malicioso, acrescentando:
— Julie ficou admirada de você não lhe ter contado coisa alguma
durante o almoço. Mas acho que, a esta altura, ela já deve tê-lo perdoado.
— Espero que sim...Ali em cima do sofá, George, há um pacote. É um
dossiê completo sobre Basil Yanko, que Mendoza enviou-me lá da Califórnia.
Por que não o abre e dá uma olhada, enquanto faço o café?
Fiquei pela cozinha durante dez minutos, satisfeito pelo fato dé
Arlequim ter aparecido, perturbado por ainda não lhe haver relatado minha
conversa com Bogdanovich. Não era o medo que me retinha, era
ressentimento e ciúme, o triunfo menor de possuir uma informação que até
então ele ignorava. Não era fácil explicar, mas, envergonhado pela cortesia de
seu pedido de desculpas, tive que fazê-lo. Ele ficou chocado com os detalhes
da morte de Valerie Hallstrom, mas recusou-se a permitir que eu me
humilhasse.
— Não, Paul! Deixei que você suportasse coisas demais por muito
tempo. Você assumiu os riscos, enquanto eu bancava o crítico e o juiz. A
partir de agora, trabalharemos juntos, sem segredos, sem discussões. Certo?
— Certo.
— Tive algumas notícias ruins esta noite. Larry Oliver foi procurar-me.
Recebeu a oferta de outro emprego e apresentou seu pedido de demissão.
— E quando ele quer ir embora?
— No fim do mês. Tem direito a três meses de licença por tempo de
serviço, o que cobre o período de aviso prévio.
— Mas que diabo! Isso nos prejudica bastante, George.
— Pedi a Standish que assumisse o comando. Ele ficou feliz,
naturalmente.
— Standish não tem muito peso, mas não há outro jeito.
— Há uma coisa que me incomoda, Paul: legalmente nossa posição é
muito fraca. Antes de mais nada, existem fortes indícios de culpabilidade
contra mim, como presidente. Contratando a Lichtman Wells, estamos
ganhando tempo para responder a qualquer possível acusação. Mas qualquer
cliente que se considerar lesado poderá apresentar uma queixa a qualquer
momento, em qualquer uma das jurisdições em que operamos. Oliver sabe
disso e foi o motivo pelo qual pediu demissão, pois não queria sujar suas mãos
imaculadas. A rigor, não se pode culpá-lo. E estamos também empregando
Bogdanovich, que opera fora da estrutura legal e é na verdade o agente ilegal
de uma potência estrangeira. E você, Paul, está agora na situação de reter
provas num caso de homicídio. E como se isso não fosse suficiente, Basil
Yanko telefonou-me hoje, dizendo que tinha um problema de ética
profissional...
— Que coisa admirável: Basil Yanko falar em ética profissional!
— Foram as palavras dele. Disse-me que a Srta. Valerie Hallstrom tinha
acesso a informações altamente secretas, relacionadas com a segurança
nacional. Em conseqüência, tinha sido obrigado a chamar o FBI.
Inevitavelmente, eles solicitariam, e ele não poderia negar, um livre acesso a
todos os arquivos, inclusive os de Arlequim et Cie. Ele esperava que eu não
interpretasse tal atitude como um ato hostil de sua parte, como uma tentativa
de exercer pressão em nossas negociações. O assunto estava fora de seu
controle...Compreende agora por que eu estava precisando dar uma
caminhada para espairecer?
Compreendia muito mais do que isso. Via manchetes garrafais e um
mercado abalado, batalhões de clientes a nos desertar, como se fosse a retirada
de Mons. E ali, em primeiro plano, estava George Arlequim, a xícara de café
bem firme em sua mão, plácido como um mestre zen que acabasse de propor
um enigma insolúvel.
Tentei, hesitante, formular uma resposta:
— Vamos falar primeiro sobre os aspectos legais. Você e eu somos
ambos súditos estrangeiros. Não existe nenhuma prova de que você tenha
cometido qualquer crime em Nova York. Há apenas um indício de que sua
assinatura foi utilizada para colher os lucros de um crime na Suíça...Eu sei de
um homicídio apenas pelo que me contaram. Ninguém sabe que estou a par
de fatos concretos, à exceção de você e de Bogdanovich. Ninguém sabe
também que contratamos Bogdanovich, além de nós e de Saul Wells, que
trabalha em cooperação com ele. E mesmo que soubessem, seria muito difícil
provar qualquer intenção criminosa de nossa parte.
Temos toda a liberdade de contratar até um lixeiro, se assim o
desejarmos, contanto que não conspiremos com ele para cometer algum
crime. Já com o FBI a situação é diferente. Eles podem ter acesso a nossas
transações, legalmente ou não, se alegarem que a segurança nacional está
envolvida. É inevitável que nos venham procurar. O que lhes diremos então?
— A verdade, Paul. Estamos investigando uma fraude internacional.
Eu estou envolvido, apesar de inocente. Uma antiga funcionária nossa, Ella
Deane, morreu subitamente num acidente, deixando uma quantia elevada, fato
bastante suspeito. Acho que podemos ainda acrescentar que estamos
relutantes em aceitar o relatório que absolve a Creative Systems pela simples
declaração de que seus funcionários foram devidamente checados.
— Acha que é uma medida sensata levantar tal questão?
— Acho que sim. Não vamos formular acusações, apenas expressar
uma dúvida razoável. Podemos até ir mais além, ressaltando a coincidência da
proposta de Basil Yanko para comprar-nos.
— Isso nos compromete, George.
— Eu sei. Mas, inocente ou culpado, Yanko ficará preocupado. O FBI,
a esta altura, também estará preocupado, porque Valerie Hallstrom tinha
acesso a segredos governamentais e morreu violentamente.
— Assim que tudo isso estiver às claras, George, nossas atividades
ficarão consideravelmente restringidas.
— Por quê, Paul? Nós agimos exclusivamente dentro da lei.
— Antes de falarmos o que quer que seja, acho que Bogdanovich deve
ser informado.
— Concordo. Por que não o chamamos agora?
— Tenho que usar um telefone público para entrar em contato com
ele.
— Ainda é cedo. Por que não se veste e me leva até o bar do Gully
Gordon? Pode telefonar no caminho. Se Bogdanovich estiver livre,
poderemos encontrar-nos esta noite.
— E o que me diz do relatório de Mendoza?
— Vou levá-lo comigo e estudá-lo. Quando não o estiver usando, eu o
guardarei num cofre. Não é o tipo de coisa que se possa deixar à mostra.
Especialmente agora...
Não pude resistir a um sorriso e a uma pontada de ironia:
— Está aprendendo depressa, George!
Para minha surpresa, ele levou o comentário a sério.
— Não, Paul, eu sempre soube. Mas tinha a vaidade pessoal de que
poderia eternamente esquivar-me aos canalhas e trapaceiros, de que poderia
insular-me contra a maldade através de urbanidade, de que poderia afastar a
violência com uma muralha de dinheiro e privilégio. Esta noite, andando pelas
ruas, compreendi que isso era uma ilusão. O mal é uma realidade e está
sempre à nossa espreita, de emboscada, pronto para invadir nossa casa. Mais
cedo ou mais tarde tem-se que enfrentá-lo, em luta corpo a corpo. Para mim,
esse momento é agora. E fico contente por sermos amigos novamente...
Tomamos dois drinques e ouvimos meia hora do piano de Gully
Gordon. Ao sairmos, uma limusine com motorista estava nos esperando junto
ao meio-fio. Aaron Bogdanovich estava no banco de trás. Seguimos até
Washington Square, no centro da cidade, voltando depois para os subúrbios,
lentamente, enquanto Bogdanovich absorvia as informações que lhe
prestáramos e nos contava outras novidades.
— Concordo com o senhor: não se pode brincar com o FBI. Podem
dar todas as informações que eles puderem deduzir dos arquivos. E creio que
não é prejudicial expressar uma certa intranqüilidade quanto às operações da
Creative Systems. Podem ter certeza de que o próprio FBI também está
preocupado com isso. Mas lembrem-se de que são estrangeiros e de que não
compreendem perfeitamente as atitudes e procedimentos americanos. Isso
ajuda bastante ao tratarem com órgãos governamentais... A única coisa que
não podem mencionar é a ligação comigo. Eles sabem que existo. A política
do governo é favorável a Israel, por isso eles me deixam em paz, contanto que
mantenha a maior discrição com relação a meus atos e distribua de vez em
quando umas gratificações generosas. Mas tenho certeza de que não
permitirão que eu trabalhe para particulares. Ainda não tenho muitas
novidades. Localizamos o táxi. O motorista admitiu que pegou nosso
passageiro. Levou-o para o terminal da TWA no Aeroporto Kennedy. Depois
disso, é claro, não pudemos seguir-lhe a pista. Ele pode ter apanhado um
avião da própria TWA, ter apanhado outro táxi e voltado para o centro da
cidade ou embarcado num avião de outra companhia. Não há condições de
sabê-lo. Contudo, estamos investigando meticulosamente o mercado de
assassinos de aluguel...Estamos também investigando os empregados pessoais
de Yanko — seu motorista, o mordomo, a criada, a secretária particular. A
polícia está investigando a vida particular da Srta. Hallstrom. Um amigo meu
irá transmitir-me o que for descoberto, no momento conveniente. Ah, já ia me
esquecendo de uma coisa, Sr. Desmond. O camarada que estava vigiando seu
apartamento no Corvette verde...
— Bernie Koonig. O que há com ele?
— Meus rapazes o pegaram para uma conversinha. Ele disse que foi
contratado por um amigo para segui-lo e informar todos os seus movimentos.
— E quem é esse amigo?
— Um homem chamado Frank Lemmitz. É o motorista de Yanko.
— Finalmente, a primeira falha. Podemos usá-la?
— Estive pensando nisso. É um risco, mas talvez valha a pena corrê-lo.
Por que não jogar o nome na cara de Yanko, quando o encontrarem?
— Confesso que ficaria deliciado em fazê-lo.
— Deixe para mim — pediu George Arlequim, ansiosamente. — Pode
ser uma tremenda surpresa. Não dizem, no teatro, que em todas as piadas
deve haver sempre duas risadas?
— Três, Sr. Arlequim — disse Aaron Bogdanovich. — Mas deve
certificar-se de que a última não seja a seu respeito.

Estávamos atrasados, mas não demais, para o jantar no Salvador.


Suzanne estava presente e tomei-a nos braços e ali a mantive por mais tempo
do que o usual, já que Arlequim não podia fazê-lo e ela estava precisando,
assim como eu, de mais amor do que tinha. O relatório que ela nos trouxera
de Genebra não era muito animador.
O Union Bank mostrava-se cauteloso quanto a seus direitos e cioso de
sua posição legal. A conta Arlequim fora aberta da forma apropriada. Todas as
transações tinham sido formalmente corretas. O dinheiro fora pago contra
uma assinatura verificada. A responsabilidade do banco terminava aí. Desde
que tal posição fosse reconhecida, eles estavam dispostos a ajudar o honrado
colega de todas as formas legais.
A polícia suíça também não pudera prestar muita ajuda. Haviam
examinado a alegada falsificação, comparando-a com uma assinatura genuína.
Admiraram bastante a habilidade do falsificador. Ressaltaram que era quase
impossível seguir a pista do dinheiro sacado do banco, pois ele podia inclusive
ser legalmente exportado da Suíça. A posição de Arlequim era clara e difícil.
As perdas estavam cobertas. E, a menos que alguma queixa formal fosse
apresentada por uma terceira pessoa, não haveria acusações contra ele.
As notícias do mercado também eram sombrias. Na cidade do bom
Calvino, o trabalho era coisa sagrada. O dinheiro era seu fruto santificado. E
qualquer coisa que manchasse a santidade do dinheiro era um anátema.
George Arlequim ainda não fora excomungado e nem mesmo estava sob uma
moção formal de censura. Mas na Associação dos Bancos Suíços já havia
gente sacudindo a cabeça e os murmúrios corriam livremente. Ainda não
perdêramos nenhum cliente, mas o fluxo de dinheiro para investimento
diminuíra consideravelmente.
Suzanne relatou tudo isso em seu estilo firme e prosaico, como se
estivesse falando de artigos de uma mercearia e não de calamidades. Juliette
ficou furiosa, cortando um nome depois do outro de sua lista de visitas.
Arlequim resumiu tudo com brevidade:
— Uma coisa é clara: não podemos simplesmente ganhar e voltar
mancando para casa. Vamos precisar de bandeiras e fanfarras, de arrastar
nossos inimigos pela lama. Mas já é tarde demais para retóricas. Voltaremos a
nos reunir às dez horas da manhã, para um conselho de guerra...Durmam,
crianças. Tenham lindos sonhos!
Era um desejo agradável, mas não encerrava nenhuma bênção, pelo
menos para mim. Assim que paguei o táxi, diante da porta do edifício onde
morava, três homens saíram das sombras e convergiram em minha direção.
Um deles disse-me:
— Temos um recado de Bernie para você.
Outro agrediu-me com um cassetete de borracha. Tentei reagir, mas
eles eram por demais experientes para mim. Acordei em minha cama, com as
costelas enfaixadas, uma dor terrível nos rins, um médico à minha cabeceira e
dois guardas esperando para tomarem meu depoimento.
4

O médico foi encorajador. Eu tinha uma costela quebrada, escoriações


generalizadas e um galo imenso na cabeça. Ele achava que o resto de mim
estava intacto, mas deveria chamá-lo imediatamente, caso sentisse enjôos,
tivesse dificuldade em respirar ou constatasse a presença de sangue na urina.
Deu-me algumas pílulas e seu cartão, apresentando também a conta pela
consulta a domicílio, bem mais cara que a do consultório. Recomendou-me
que tirasse dois dias de repouso absoluto e foi-se embora, para retomar seu
próprio repouso interrompido.
Os guardas fizeram-me um rápido resumo das últimas horas. Takeshi,
voltando para casa de sua noite de folga, encontrara-me na porta,
esparramado e desmaiado. Chamara a polícia e o médico, e eles haviam me
levado para a cama. Agora, se eu já estava me sentindo capaz, poderia prestar
alguns esclarecimentos? A sensação que eu tinha era de ter sido atropelado
por um tanque, mas mesmo assim procurei atendê-los.
Eles se referiram imediatamente ao nome de Bernie: eu conhecia
alguém com esse nome? Não. Bernie Koonig significava alguma coisa para
mim? Não. Deveria? É que na noite anterior eles haviam apanhado um
homem com esse nome bem em frente ao prédio. Alguma relação?
Absolutamente nenhuma. Eu não teria sido confundido com outra pessoa?
Provavelmente. Vinha constantemente a Nova York, mas não circulava nos
meios do crime, como dezenas de amigos meus, todos respeitáveis, poderiam
confirmar. Poderia reconhecer os atacantes? Duvidava muito. Tudo
acontecera muito depressa. Normalmente é o que acontece. Poderia verificar a
minha carteira? Não estava faltando nada. Bem, eles registrariam a ocorrência
com esses dados. Se me lembrasse de mais alguma coisa, deveria telefonar
para o sargento de plantão na delegacia. E agora, Sr. Desmond, procure
dormir; foi um schlamming e tanto!
Takeshi acompanhou-os até a porta, serviu-me uísque para tomar os
analgésicos, trouxe o telefone para junto de minha cama, fez alguns ruídos
solícitos e finalmente deixou-me como Jó em seu monturo, sozinho com
minhas misérias. Cochilei irrequieto até as sete horas da manhã, quando me
esforcei para sair da cama, a fim de verificar os danos. Não era uma visão das
mais agradáveis. Meu rosto estava todo machucado e inchado. O galo na
cabeça era do tamanho de um ovo. Os nós dos dedos estavam esfolados e as
ataduras no peito faziam-me parecer um bife enrolado. Todos os músculos
doíam intensamente, mas pelo menos eu conseguia respirar com normalidade,
não sentia enjôo e não havia sangue. Depois que tomei um banho de esponja
e me barbeei, fiquei convencido de que iria sobreviver, mas não sabia ao certo
se o trabalho valeria a pena. Contudo, depois de uma xícara de café e uma
torrada, decidi fazer o esforço. Liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe a
saga de um schmuck chamado Paul Desmond. Ele disse que estaria em meu
apartamento dentro de vinte minutos e desligou.
Chegou sem flores e não expressou condolências.
— Foi pura vingança. Meus rapazes trabalharam em Bernie Koonig.
Ele culpou você e resolveu retribuir o cumprimento.
— Mas por que ele haveria de responsabilizar-me?
— E quem mais havia? Não costumamos anunciar-nos a gângsteres, Sr.
Desmond.
— Pensei que estivéssemos pagando por proteção durante vinte e
quatro horas por dia.
— E estão. Meu homem vinha logo atrás de seu táxi. Quando o viu
caído na porta, seguiu adiante. Foi um erro, pelo qual ele será punido. Sinto
muito.
— Nós estamos pagando meio milhão de dólares. Levo uma tremenda
surra e a única coisa que você diz é que sente muito. Essa é boa!
— Sugiro que tire algum proveito do ocorrido, Sr. Desmond.
— Como?
— Decidimos ontem que contaríamos a Yanko que sabíamos da
existência de Koonig e do homem que o contratara. Agora temos a prova. Foi
vítima de um ataque criminoso, que pode ser investigado até se chegar a
Yanko.
— Mas eu disse à polícia que não conhecia Bernie Koonig.
— Yanko não sabe disso. Sabe apenas que o senhor reteve a
informação e que está preparado para usá-la como um argumento nas
negociações.
— Isso pode acarretar-me coisas bem piores.
— É possível. Mas deverá informar também a Yanko que existe um
depoimento seu, com firma reconhecida, pronto para ser enviado à polícia,
caso algo lhe aconteça. Gostaria de estar presente quando falasse com ele.
— Creio que tem água gelada nas veias, Sr. Bogdanovich.
— Houve um tempo em que eu urinava sangue, Sr. Desmond. É então
que a gente começa a ficar preocupado. Quero que me informe como foi a
reunião. Mas só me telefone à noite, pois terei um dia bastante atarefado.
— Com o negócio de flores, é claro.
— Não, Sr. Desmond. Desta vez o problema é de mísseis SAM. Há
três soltos por aí, nas mãos dos terroristas da Setembro Negro. Sabemos que
dois estão na Europa e achamos que o terceiro talvez esteja aqui em Nova
York. Se não o encontrarmos, uma porção de pessoas pode acabar morrendo
numa explosão.
Depois disso, evidentemente, nada mais havia para se dizer. Vesti-me
penosamente, li os jornais matutinos e às dez horas apresentei-me no
Salvador, sentindo-me como um palhaço que perdera o trem do circo. Juliette
já saíra para passar o dia com amigas, poupando-me assim o embaraço de ter
que explicar-lhe meu estado. A Arlequim e Suzanne contei toda a história e
como Bogdanovich sugerira que a usássemos.
Arlequim franziu o cenho por um momento e depois concordou
bruscamente:
— Façamos assim! Vejamos se os nervos de Yanko são realmente
fortes! E agora vamos tratar de nosso programa para esta manhã. São três
horas da tarde na Europa, Suzy. Vamos telefonar para todas as pessoas que
estão em sua lista. Falarei pessoalmente com cada uma. Paul, você e eu vamos
preparar um telegrama para todos os acionistas e a carta que o confirmará.
Depois vamos elaborar duas declarações: uma para Yanko e outra para a
imprensa especializada em assuntos econômicos. O ponto principal de ambos
é a recusa da oferta, com a recomendação de que os outros acionistas também
não aceitem e a exposição dos motivos. Nossos advogados estarão aqui à uma
e meia, para analisar os rascunhos.
Foi um trabalho lento e frustrante. Os ramais para a Europa estavam
sobrecarregados. Das quinze pessoas da lista de Suzanne, conseguimos falar
apenas com cinco. Três estavam dispostas a vender e duas concordavam em
esperar, se Arlequim pudesse apresentar-lhes boas razões para tanto. E isso
era a grande dificuldade: tínhamos muitas razões, mas não podíamos
apresentá-las sem nos tornarmos passíveis de processos de calúnia. Podíamos
objetar ao controle americano de uma tradicional empresa européia. Podíamos
contestar a sabedoria de se entregar um banco ao controle de uma companhia
que planejava sistemas de policiamento e vigilância. Podíamos demonstrar as
táticas de polvo de Yanko. Mas, sem um forte conjunto de provas, não
podíamos pôr em dúvida o caráter pessoal de Yanko. Era o velho adágio: o
dinheiro faz o homem, torna-o mais puro que os anjos. Para se provar o
contrário, é preciso ter pelo menos tanto dinheiro quanto ele.
Enchemos uma cesta de papel com tentativas. Mas quando os
advogados chegaram, tínhamos certeza de haver concluído uma verdadeira
obra-prima de meias verdades. Os advogados ficaram horrorizados. O que era
razão pura em Genebra, não passava de horrenda difamação em Nova York.
De jeito nenhum eles podiam permitir que divulgássemos aqueles
documentos, que nem mesmo os transformássemos em cartas confidenciais.
Em hipótese alguma! Levariam nossas minutas para o escritório e iriam
reescrevê-las.
Arlequim concordou, relutante, e disse-lhes:
— Por acaso já pararam para dar uma olhada no Sr. Desmond,
cavalheiros?
Eles então examinaram-me atentamente, expressando em coro o pesar
que sentiam. Abri a camisa. O coro silenciou.
Arlequim continuou:
— O Sr. Desmond foi barbaramente espancado ontem à noite.
Podemos seguir a pista desse crime até Basil Yanko.
— Como, Sr. Arlequim?
— Foi o motorista dele que contratou o homem que ordenou o
espancamento.
— Pode prová-lo?
— Posso.
— Pode provar também que o motorista estava agindo por ordem de
Yanko?
— Sabemos que é essa a verdade, mas não podemos prová-la diante da
lei.
— Então não temos um caso contra ele, Sr. Arlequim.
— Exato. A lei é impotente. O Sr. Desmond não pode obter uma
reparação, a não ser contra um subalterno. Queremos o conselho que nos
podem dar nesta emergência, cavalheiros. Como podemos obter uma
reparação e proteger o Sr. Desmond e a mim de novas agressões? Já sei a
resposta: não podem comprometer-se, recomendando um recurso ilegal. Mas
os senhores não se limitam a isso, vão mais além, recomendando-me que
preserve a reputação de Yanko, a fim de não ser processado por difamação.
Faço isso e ele nos agride ainda mais violentamente. Quando a lei é impotente,
cavalheiros, como se pode fazer justiça? Pensem nisso, por favor. E tragam-
me, por gentileza, os novos documentos até as seis horas da tarde.
Eles saíram, hesitantes e infelizes, abalados com o que lhes parecera
uma diatribe inútil.
Suzanne não fez o menor segredo de seu desagrado.
— Mas que diabo, George, o que esperava que eles dissessem? Eles não
podem desafiar a lei, pois são seus servidores. Você sabe disso, sempre o
soube.
A resposta de Arlequim foi enérgica e imediata:
— Não! Esse não é o ponto fundamental, Suzy. A questão precisa ser
respondida, porque o dilema é universal. Os palestinos não podem voltar para
casa, pois existe hoje um kibutz onde outrora era seu lar. Os judeus não
podem render-se, pois serão mortos numa masmorra síria. O vietcongue na
cadeia não pode falar porque lhe dão urina para beber e cal viva para comer.
Os famintos nos bairros miseráveis transformam-se em bandidos porque não
conseguem encontrar trabalho nem comida para seus filhos. E, enquanto tudo
isso acontece, os advogados balançam-se nos poleiros de papagaio das
câmaras de torturas! Eu não tenho um caso .perante a lei! O que quer que
aconteça, viverei e morrerei rico, embora sem ter feito por merecer um só
franco de minha fortuna. Mesmo assim, a lei é impotente para defender meu
direito mais simples, o direito a preservar meu bom nome. Este é que é o
ponto fundamental e no qual me torno irmão dos fora-da-lei; talvez eu
mesmo me transforme num fora-da-lei...
Eu nunca vira Arlequim tão veemente e desenfreado. Era como se uma
fonte começasse a jorrar dentro dele e ele simplesmente não a conseguisse
reprimir. O desafio que lançava dirigia-se não apenas a nós, do seu grupo,
como também a si próprio. Depois ele disse algo estranho e perturbador:
— Neste momento estou olhando para o cano da arma e posso até ver
a bala na culatra. Fico imaginando o que irei sentir quando for eu o homem
que estiver com o dedo no gatilho.

Basil Yanko chegou vinte e cinco minutos depois das três horas, tarde
demais para justificar uma desculpa e apenas o suficiente para sugerir uma
descortesia deliberada. Ele pediu desculpas, é claro, mas de forma tão
negligente que serviu apenas para acentuar o insulto. Esperava que
pudéssemos concluir a reunião com alguma rapidez, pois tinha um encontro
em Pleasantville às seis horas da tarde e queria evitar o tráfego da hora do rush.
Seu carro estava estacionado na garagem subterrânea e queria que seu
motorista fosse avisado pouco antes de terminar a reunião. Era tudo calculado
para nos deixar irritados e fazer com que a reunião começasse nervosamente.
Fiquei furioso, mas Arlequim permaneceu tranqüilo.
Só depois que nos ajeitamos em torno da mesa é que Yanko fez uma
referência à minha aparência.
— O que aconteceu com seu rosto, Sr. Desmond?
— Um acidente. Tenho também uma costela quebrada. Mas o médico
disse que sobreviverei.
— Espero que esteja segurado.
— Estou, sim.
— Pois vamos logo tratar dos negócios. Acredito que já tenha pensado
sobre minha oferta, Sr. Arlequim.
— Já, Sr. Yanko.
— Então concorda que é uma oferta generosa?
— Concordo.
— Isso quer dizer que vai aceitá-la?
— Não, Sr. Yanko. Eu a recuso.
— Está esperando que eu aumente a oferta?
— Pelo contrário, espero que a retire.
Por um instante uma sombra de surpresa surgiu em seu rosto, mas logo
os lábios se contorceram num sorriso.
— E por que eu deveria fazê-lo, Sr. Arlequim?
— Talvez venha a descobrir que essa é a atitude mais prudente.
— Isso não é uma ameaça, não é mesmo, Sr. Arlequim?
— É um conselho, Sr. Yanko. E, a esta altura, ainda amigável.
Basil Yanko recostou-se na cadeira, juntou as mãos, dedo contra dedo,
erguendo-as depois à altura dos lábios descorados, os olhos velados. Tornou
então a sorrir e disse suavemente:
— Sei o que está pensando, Sr. Arlequim: que sou um homem
ganancioso, vulgar e grosseiro, um colega nada adequado para um cavalheiro
europeu como o senhor. Pensa em levantar dinheiro suficiente para confirmar
suas opções e comprar todas as ações minoritárias, mesmo que isso signifique
um prejuízo irreparável. Se assim agir, tenho duas alternativas. Posso elevar a
oferta de forma a que lhe seja impossível cobri-la. Ou posso também mover-
lhe uma série de processos, civis e criminais, em todas as jurisdições onde
opera. Processos por perdas e danos, por fraudes, por estelionato, enfim, por
todos os crimes previstos na lei. E nem preciso ganhar os processos, Sr.
Arlequim. No momento em que as queixas forem apresentadas diante de um
tribunal, o senhor estará arruinado. O banco enfrentará uma crise de
confiança. E, ao final, de qualquer maneira, eu terminarei me apoderando
dele...Não acha que é melhor sermos razoáveis, Sr. Arlequim?
Era a mais arrogante exibição de poder, nua e crua, a que eu já assistira.
Senti-me envergonhado, humilhado e furioso o bastante para cometer um
assassinato.
George Arlequim, no entanto, pareceu não se abalar. Não havia o
menor vestígio de tremor na mão ou na voz, o menor indício de paixão em
sua resposta:
— Estou surpreso, Sr. Yanko. Parece que eu o respeito mais do que o
senhor a si mesmo. É um homem de inteligência excepcional. Por isso, não
posso compreender como pode empenhar-se numa tática tão grosseira. A
menos, é claro, que seja uma tática de desespero...
Basil Yanko riu. Não era um som agradável de se ouvir, mas um ruído
dissonante e áspero, cruel, de zombaria.
— Desespero nenhum! Arlequim, você está meio século superado. Isto
é negócio! Ao estilo americano, da década de 70! Não sou um gnomo suíço a
perder tempo com frivolidades no Clube dos Banqueiros! Você não
encontrará, em qualquer mercado do mundo, um negócio melhor do que o
que estou lhe oferecendo. Se quer discuti-lo, muito bem!
Estou aqui para ouvi-lo. Mas, se recusar a minha oferta, então terá que
agüentar as conseqüências!
— Dê-me licença por um momento. Arlequim levantou-se e foi até a
porta.
— Preciso tomar um copo de água. Yanko virou-se para mim.
— Pelo amor de Deus, Sr. Desmond! Ele é seu amigo e o senhor
conhece as regras do jogo. Veja se consegue fazer com que entre um pouco de
juízo naquela cabeça!
— De que maneira, Sr. Yanko? Possuo apenas uma participação
nominal. Quando deixar de ser diretor, terei que devolvê-la, pois está em
usufruto. A idéia foi sua, Sr. Yanko. Divirta-se agora.
Arlequim voltou logo depois, enxugando os lábios com um lenço.
Sentou-se, esticou as pernas por baixo da mesa e retomou a conversa:
— Onde estávamos? Ah, sim! No ponto em que eu teria de agüentar as
conseqüências caso recuse sua oferta. Mas antes que tome qualquer iniciativa
precipitada, Sr. Yanko, permita-me que lhe enumere alguns fatos. Primeiro:
tenho em meu poder um dossiê completo sobre sua vida e suas atividades
profissionais. Levaram dois anos compilando todos os fatos e devo dizer que
nem tudo lhe faz crédito. Alguns detalhes apontam-no até como um colega
altamente indesejável. Segundo: sou, como bem sabe, um acionista substancial
da Creative Systems Incorporated e de suas subsidiárias. Tenho direito a voto nas
assembléias e certos direitos para proceder a investigações legais nos negócios
de suas companhias. Terceiro: a Creative Systems depende da confiança pública
tanto quanto a Arlequim et Cie. E depende muito mais da confiança política,
para manter e executar vultosos contratos governamentais. Quarto: a
confiança política ficaria profundamente abalada se eu provasse que os altos
escalões da Creative Systems ou até mesmo seu presidente estão ligados ou
empenhados em atividades criminosas. Quinto: acredito que, se tais provas
existem, é meu dever, como acionista e como honrado homem de negócios,
solicitar uma investigação por parte dos órgãos governamentais. Sexto: e tais
provas existem, Sr. Yanko, e estão à minha disposição.
Basil Yanko sacudiu os ombros e ergueu as mãos, num gesto de
desprezo.
— Então cumpra seu dever, Sr. Arlequim. Use-as!
— Infelizmente não está acreditando em minhas palavras, Sr. Yanko.
— Para dizer a verdade, não.
— Então vou referir-me apenas a um pequeno assunto. O seu
motorista está esperando lá embaixo. Minha secretária acaba de telefonar-lhe,
como havia pedido. O nome dele é Frank Lemmitz. Agindo por ordens suas,
ele contratou um criminoso conhecido, chamado Bernie Koonig, para vigiar o
apartamento do Sr. Desmond. Ele assim o admitiu a investigadores
particulares que trabalham para mim. Foi esse mesmo Bernie Koonig o
responsável pelo bárbaro espancamento de que o Sr. Desmond foi vítima na
noite passada. Temos depoimentos assinados sobre a ocorrência, prontos para
serem entregues à polícia...Mas isto é apenas a ponta do iceberg, Sr. Yanko.
Há muito mais por baixo da água. Compreende agora por que lhe aconselhei
prudência?
Que se dê ao diabo o crédito que merece: Yanko absorveu o golpe
muito melhor do que eu esperava. Conseguiu até ensaiar um sorriso débil e
gelado de aprovação. Suas primeiras palavras foram endereçadas a mim:
— Lamento que se tenha machucado, Sr. Desmond. Pode estar certo
de que não tive nada a ver com isso. Também tenho que pedir-lhe desculpas,
Sr. Arlequim. Parece que o subestimei.
— Isso é sempre perigoso num mercado incerto como este em que
operamos.
— Mas prometo que não tornará a acontecer. Aconselha a que retire
minha oferta, não é mesmo? Suponhamos que eu retire a ameaça e mantenha
a oferta?
— Então estaremos mantendo um relacionamento de negócios normal,
contra o qual não há objeção na lei, nem na prática usual.
— E de sua parte, Sr. Arlequim?
— Posso declarar que não é necessário que eu tome nenhuma iniciativa
oficial, tendo em vista que a Creative Systems está sob investigação pelo FBI, e
enquanto nosso relacionamento comercial permanecer normal. A informação
à minha disposição será apenas, digamos assim, uma política de segurança.
— Não gostaria de cedê-la a um bom preço?
— Não.
— Eu já sabia que ia recusar. Bom, vamos resumir a situação. Fiz-lhe
uma oferta. Recusou-a; aconselhou seus acionistas a fazerem o mesmo. É uma
pena que tenhamos chegado a este impasse, mas em sessenta dias muita coisa
pode acontecer...Boa tarde, senhores.
Não havia tempo para comentários, pois tínhamos que despachar os
telegramas para os acionistas, as cartas de confirmação tinham de ser
datilografadas e postas no correio. Os advogados chegaram, com uma
declaração tão fraca e lamuriosa que Arlequim amassou-a num gesto de
desprezo. Resolvemos ficar com nosso segundo rascunho. Julie voltou no
meio da confusão e pediu que lhe relatássemos os acontecimentos do dia.
Queria saber também por que eu me parecia com um ferido em combate, o
que trouxe à baila, de forma final e definitiva, o problema do quanto lhe
deveríamos contar.
A opinião de Arlequim era de que ela deveria saber de tudo. Aleguei
que era um privilégio meu mantê-la na ignorância de certas coisas, porque fora
minha cabeça que se colocara no cepo e Aaron Bogdanovich não iria gostar.
Julie argumentou, com bastante razão, que era muito difícil dormir com um
homem se não pudesse conversar com ele; que, se havia riscos a correr, ela
deveria compreendê-los; que, se ele podia confiar numa secretária, por que
não numa esposa? Insisti num argumento que me provocou calafrios: quanto
mais ela soubesse, mais vulnerável se tornaria; eu tinha até as cicatrizes para
provar que não estávamos brincando. Ao que Julie respondeu, com extrema
compostura, que éramos um pequeno grupo de amigos enfrentando um
mundo hostil. Se a confiança não fosse partilhada, o grupo não conseguiria
permanecer unido. Capitulei então e Arlequim contou-lhe tudo. Julie ficou
chocada ao ver quão profundamente estávamos comprometidos e o quão
perto estávamos da selva impiedosa. Ficou também envergonhada por sua
leviandade, furiosa por a termos deixado tanto tempo na ignorância. Ela se
recusava a ser novamente protegida e mimada.
Arlequim ficou mais feliz. Podia agora raciocinar abertamente na
assembléia familiar. Podia admitir suas necessidades, ao invés de escondê-las
por trás de uma máscara de sorrisos e polidez. Até mesmo sua aparência ficou
diferente. A fala tornou-se mais vigorosa, os gestos, menos contidos. De certa
forma, mais simples e também mais singular, ele era como um monge que
descobrira subitamente a chave para seu próprio coração.
Jantamos espaguete e vinho no Bertolo's. O espaguete foi idéia de Julie.
Ela calculou que eu teria mais facilidade
em mastigar espaguete do que um bife. Pedimos ao acordeonista que
tocasse canções antigas e sentimentais. Demo-nos as mãos e cantamos.
Brindamos à morte e à perdição dos ímpios, enquanto Arlequim entoava
maldições em tantas línguas quantas se podia lembrar, a fim de que Basil
Yanko não pudesse escapar ileso. Éramos como pessoas em tempo de peste,
reunidas em torno da fogueira e da garrafa, cantando para expulsar o
Demônio da nossa porta. Mas o Demônio estava presente e nós o sabíamos
perfeitamente: era a infecção de violência e terror que se alastrava. No
momento em que deixássemos o círculo mágico, seríamos novamente presas
dele.
Ao voltarmos para o Salvador, de braços dados, as tensões do dia
subitamente me dominaram e senti-me fraco e nauseado. Descansei por um
momento na suíte de Arlequim, mas não melhorei. Suzanne declarou que iria
levar-me de táxi para casa e passaria a noite em meu apartamento. Protestei,
mas fui firmemente vencido. Meia hora depois, estava acomodado em minha
cama e dopado por sedativos, enquanto Suzanne e Takeshi preparavam chá na
cozinha. Não podia acontecer e sabia que jamais aconteceria, mas não pude
deixar de pensar, sonolento, como seria ter uma mulher em minha casa todos
os dias.

Pela manhã, cedo demais, recebi uma visita inesperada de Aaron


Bogdanovich. Takeshi levou-o até meu quarto, onde ele se sentou na beira da
cama com uma xícara de café nas mãos, começando imediatamente a
interrogar-me:
— Não me telefonou ontem à noite. Por quê?
— Estava passando mal. A secretária de Arlequim teve que trazer-me
para casa. Ela está dormindo no quarto de hóspedes.
— Se eu lhe disser para telefonar, não poderá deixar de fazê-lo. Meus
esquemas dependem de informações sistemáticas. O que aconteceu ontem?
Contei tudo, item por item.
Ele avaliou nossas atitudes e aprovou-as.
— Ótimo. Eu estava querendo saber como Arlequim se iria comportar.
O que vai acontecer em seguida?
— Vamos esperar as respostas dos acionistas. Vamos reunir fundos
aqui em Nova York para comprar as ações dos hesitantes. E quais são as
notícias que tem para nós?
— Já sabemos quem matou Valerie Hallstrom. O nome dele é Tony
Tesoriero e está agora em Miami. Em breve estaremos conversando com ele.
— Como foi que o descobriram?
— Essa pergunta é indevida, Sr. Desmond.
— Desculpe. Não sou muito esperto a esta hora da manhã.
— Saul Wells transmitiu-me todas as informações que descobriu sobre
Ella Deane. Ela fez três grandes depósitos em dinheiro, em novembro,
dezembro e janeiro. Durante esse período, manteve um relacionamento
bastante cordial com Frank Lemmitz.
— Acho que está na hora de conversar com esse homem.
— Tentamos a noite passada, mas ele não foi para casa. E hoje de
manhã não se apresentou para o trabalho.
— Provavelmente foi despedido logo depois da reunião que Yanko
teve conosco.
— Na verdade, ele seguiu para Londres no vôo especial da meia-noite.
Amigos meus irão procurá-lo lá.
— Pode ser que ele continue voando pela Europa.
— A passagem dele era só de ida até Londres, classe econômica. E
agora, Sr. Desmond, poderia dizer-me como estão seus nervos?
— Um pouco abalados. Por quê?
— Receberá esta manhã, entre sua correspondência, um envelope
pardo comum. Dentro encontrará o caderninho de anotações de Valerie
Hallstrom e um bilhete datilografado dizendo apenas "Com os cumprimentos
de Valerie Hallstrom". Deverá chamar imediatamente o Sr. Arlequim e seu
investigador particular, Saul Wells. Este chamará a polícia, em seu nome.
Entregará o caderninho à polícia. O Sr. Arlequim telefonará para o Sr. Yanko
e lhe transmitirá a notícia.
— E será então que os problemas irão começar. A polícia e o FBI irão
concentrar-se em mim.
— Exatamente. E lhes dirá a verdade, que encontrou o caderninho em
sua caixa de correspondência. Tanto o FBI como a polícia irão interrogá-lo
sobre sua breve associação com a Srta. Hallstrom. Durante esses
interrogatórios, mas não logo no princípio, irá recordar-se da única coisa que
esqueceu de dizer à polícia: o medo que a Srta. Hallstrom tinha de Basil
Yanko.
— E como poderei explicar minha péssima memória?
— De forma bem simples: com um comentário de que não queria
lançar suspeitas sobre um homem inocente. Enquanto isso, estaremos
conversando com nosso amigo Tony Tesoriero, em Miami. Qualquer
informação que consigamos será, de um modo ou de outro, transmitida ao
FBI. Isso deve manter todo mundo ocupado por algum tempo.
— Detestaria ter que enfrentá-lo, Sr. Bogdanovich.
— Tenho certeza de que isso jamais acontecerá, Sr. Desmond. Quanto
a essa secretária...
— É uma velha e querida amiga.
— Ótimo. Não haveria mal algum se ela o visse abrindo a
correspondência. O que acha de ela mesma ir apanhá-la?
— Takeshi é quem costuma fazê-lo.
— Melhor ainda. Boa sorte, Sr. Desmond...Ah, sim! Em nossa próxima
reunião, gostaria de receber cem mil dólares.
— Não há problema. Quando devo chamá-lo?
— Dessa vez, eu o chamarei. Talvez passe um ou dois dias fora da
cidade...Boa sorte!
Eu aceitara a loucura e sabia disso, mas num mundo lunático os loucos
estão mais seguros do que os sãos. Eles se acostumam ao caos e esperam
todas as monstruosidades: bombas na correspondência, veneno na água,
crianças sem cabeça nas ruas, assassinatos em massa. Eles sabem que se pode
ser alvejado nos aeroportos, violentado nos elevadores, torturado por
profissionais pagos com dinheiro público. É normal os presidentes mentirem
assim como os policiais cometerem perjúrio, é rotina companhias telefônicas
patrocinarem revoluções.
Dentro do contexto da insanidade de massa, Aaron Bogdanovich era o
mais razoável dos homens. A matemática fria pela qual ele trabalhava era o
único sistema viável num mundo de princípios morais conflitantes e leis
desacreditadas. Se Deus não existia ou se ausentava por um tempo longo
demais, Aaron Bogdanovich e sua espécie eram os substitutos lógicos. Mesmo
no inferno era necessário manter a ordem, e o terror era o instrumento mais
refinado para tal. Não era preciso usá-lo com muita freqüência, bastava apenas
exibi-lo, numa constante ameaça e com alguns exemplos sangrentos
ocasionais. O único recurso contra isso era um terror ainda maior. Ao final, a
humanidade acabaria por se render, pelo menos para poder viver em paz
numa terra devastada. Era uma lógica de pesadelo. Mas, uma vez aceitas as
premissas, não havia como escapar à conclusão inevitável.
Suzanne veio ver-me então e, pelo menos por um momento, o pesadelo
dissipou-se. Ela estava calma e carinhosa. Beijamo-nos e ficamos de mãos
dadas, recordando, sem qualquer arrependimento, um passado apaixonado.
Quando lhe perguntei, jovialmente, se não gostaria de revivê-lo,
Suzanne sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não, chéri. Nossos corações não estariam empenhados numa nova
ligação e já não somos bastante jovens para mentir um ao outro. Nós dois
perdemos o trem e estamos agora de pé na estação, de mãos dadas. Foi o que
sonhei na noite passada.
— Fico contente por sua presença, Suzy. Obrigado.
— Não há o que agradecer, Paul. Fiquei satisfeita por poder sair do
hotel. Sorrio quando o vejo travando discussões de apaixonado com Juliette,
mas quase esqueço que tenho de controlar-me ao máximo toda vez que
George aparece. Sob o mesmo teto, é quase intolerável...
— Se quiser, pode vir morar aqui.
— Obrigada, Paul, mas não posso aceitar. Se precisar de companhia,
virei sempre que me chamar.
— Que Deus a abençoe, mulher! Agora saia daqui e deixe que me vista.
Temos um dia atarefado pela frente. Eu lhe falarei a respeito durante o café.
Felizmente para nossos propósitos, Takeshi era um escravo da rotina. A
mesa do café estava posta, as torradas embrulhadas como um presente de
casamento, a manteiga enrolada, o suco acondicionado em gelo picado. A
correspondência e o jornal da manhã foram trazidos logo depois do bacon
com ovos e antes da segunda xícara de café. Takeshi rasgou os envelopes
tirando os selos estrangeiros para seu sobrinho de San Francisco. Recolheu as
contas domésticas a fim de pagá-las com sua verba especial. Peguei o jornal e
minha correspondência pessoal, seguindo para a sala de estar, onde Takeshi
serviu outro café, em xícaras limpas. Depois ele saiu, para dedicar-se às suas
tarefas domésticas.
O envelope pardo era o último da pilha. Takeshi tinha observado que
ele não trazia selo nem carimbo postal. Fingi surpresa. Sopesei-o e entreguei-o
a Takeshi, que voltara à sala, para que o abrisse, observando que não tinha
nenhum endereço de remetente. Certifiquei-me de que ele lesse o bilhete e
partilhasse minha surpresa pelo recebimento de uma correspondência enviada
por uma mulher morta. Pedi-lhe então que ligasse para Arlequim, a quem eu
disse:
— Acaba de acontecer algo muito estranho, George. Precisamos tomar
uma decisão urgente. Suzy e eu estaremos aí dentro de trinta minutos. Não, é
melhor não discutirmos o assunto por telefone. Creio que é um problema
para a polícia. E acho que vamos precisar também de Saul Wells...

Saul Wells falava cem palavras por minuto, andando de um lado para
outro, soltando baforadas e espalhando cinzas e frases esparsas de conselho.
— Ambos são estrangeiros. Estão me pagando para descobrir as coisas.
Assim, quando o barulho começar, deixem que eu fale tudo...Tudo o que
precisam dizer é que o caderninho caiu na caixa de correspondência como
dinheiro chovendo do céu. É claro que sabem o conteúdo dele. Eu também
sei. Tenho cópias fotostáticas de todas as páginas. Isso é normal. Sou um
agente de segurança, registrado e licenciado. Mas sou também um homem de
negócios, à procura de novos clientes. Entro em contato com as outras
empresas relacionadas no caderninho, contatos de alto nível, na base do mais
estrito sigilo, e com sua permissão, Sr. Arlequim. O senhor levou um golpe, o
mesmo pode acontecer com as outras empresas. Os diretores ficam
agradecidos...e também assustados. Assim que eu saio, eles telefonam para
Basil Yanko. Ele fica preocupado...e é exatamente isso o que estamos
querendo. Enquanto isso, a polícia se apodera do caderninho e o FBI também
toma conhecimento dele. A polícia está preocupada com um assassinato. O
FBI está preocupado com a segurança nacional, fraude internacional e uma
porção de grandes companhias a pressioná-lo. Terá que responder a duas
perguntas embaraçosas, Sr. Desmond: quem poderia ter-lhe enviado o
caderninho e por quê? Eles tentarão descobrir as respostas por vinte
caminhos diferentes, mas sempre voltarão a procurá-lo. A resposta será
sempre a mesma: o senhor não tem a menor idéia.
— Terei então que mentir.
— Viu o envelope sendo entregue?
— Não.
— Pode ler mentes?
— Não.
— Como poderá então estar mentindo? Não se sinta culpado, amigo,
pois isso é fatal. Não matou ninguém, não roubou nada. É um banqueiro
estrangeiro, que contratou ajuda local e quer agir rigorosamente de
conformidade com
a lei...Agora a sua parte, Sr. Arlequim. Disse a Yanko que estava de
posse de um dossiê sobre ele. Mande copiá-lo agora mesmo. Se o FBI lhe
pedir o original, terá que entregá-lo... isso pressupondo que Yanko lhes fale a
respeito.
— Ele seria tolo o bastante para isso?
— Não seria uma tolice, Sr. Arlequim. Pelo contrário, seria uma
manobra bastante esperta. Yanko opera alguns contratos consideravelmente
delicados e já foi investigado uma centena de vezes. Quando se trabalha para
o governo, não é necessário ter uma ficha limpa, contanto que se façam
confissões honestas nos interrogatórios. Está chocado? Meu caro Sr.
Arlequim, quando se contrata um homem para projetar um sistema de mísseis,
compra-se o seu talento e esquecem-se seus pecados. Enquanto tais pecados
estiverem arquivados, o esquema é seguro para os dois lados. Terá que
responder também algumas perguntas embaraçosas, Sr. Arlequim. Por
exemplo: suspeita de que Yanko tenha cumplicidade nas fraudes? Vê alguma
relação entre as fraudes e a morte da Srta. Hallstrom?
— Estou preocupado apenas com a coincidência de sua oferta para
comprar meu banco.
— Ótimo. Essa é precisamente a linha que deverá seguir. O fato de ter
chamado a polícia suíça ajudará bastante.
— Há outro problema, Sr. Wells. Disse a Yanko que minhas
investigações haviam constatado uma ligação entre Bernie Koonig e Frank
Lemmitz. Os ferimentos do Sr. Desmond ainda são bastante evidentes.
Provavelmente o problema será levantado.
— Esse ponto está coberto, Sr. Arlequim. Tem um contrato escrito
com a Lichtman Wells. Pode apresentar algum contrato com outro
investigador?
— Não.
— Então relaxe.
— A impressão que tenho, Sr. Wells, é de que estou vivendo em outro
planeta.
— Está enganado, Sr. Arlequim — disse Saul Wells alegremente. — Ê
a mesma velha Terra de sempre. O único problema é que o senhor não tem
circulado o bastante. Agora respire fundo, pois vou chamar a polícia. Depois
contaremos até dez e telefonará para o Sr. Yanko. Só quero ver a cara dele
quando chegar aqui!
Esse prazer, no entanto, lhe foi negado. O Sr. Basil Yanko seguira para
a Europa na noite anterior. Sua secretaria não sabia informar quando voltaria.
A polícia mostrou-se grata, mas bastante vaga. Ouviram em silêncio as
explicações eloqüentes de Wells. Pediram-me que as confirmasse. Tomaram
anotações. Examinaram o envelope, ficaram com o caderninho, assinaram um
recibo por ele, agradeceram-nos pela ajuda prestada e partiram.
Saul Wells ficou desconcertado e infeliz.
— Nós lhes entregamos dinamite e eles a trataram como se fosse fogo
de artifício! Yanko está mergulhado até o pescoço no fracasso e parte
inesperadamente para a Europa! Não estou gostando. Algo está me cheirando
mal.
Arlequim recusou-se a ficar perturbado.
— Isso é teatro, Sr. Wells. O silêncio é mais assustador que a fala. Não
podemos ficar hesitantes e temerosos. Até agora, nossos depoimentos estão
sendo integralmente confirmados. Por favor, mantenhamos a calma.
Foi então que o telefone tocou. Atendi.
Karl Kruger estava na linha, falando de Hamburgo.
— Olá, meu jovem Paul! Como vão as coisas?
— Estamos lutando, Karl. E até agora estamos conseguindo resistir.
— Aí, talvez. Aqui acho que estão se precipitando rapidamente. Foi por
isso que resolvi telefonar. Pediram-me que reunisse um grupo de subscritores
para a emissão de um bônus municipal da Bundesrepublik. Não é nada grande,
mas é uma operação importante. Incluí o nome de Arlequim na relação, mas
eles o cortaram.
— Por que motivos?
— E quem dá as razões? Você sabe perfeitamente como é o mercado,
Paul. E como o menino está se comportando?
— Maravilhosamente.
— Ouvi dizer que ele pretende exercer as opções, a cem dólares por
ação. Isso o transforma num idiota. Onde ele está?
— Aqui ao meu lado. Gostaria de falar com ele?
— Quero, sim. Há uma reunião em Frankfurt amanhã. Foi Yanko que
a convocou. Alguns dos acionistas de vocês estarão presentes.
— São todos minoritários. E não podemos esquecer também que
Arlequim tem opção para comprar suas participações. A segunda opção é sua.
O que eles podem fazer?
— Podem gritar que o peixe está podre e provocar uma reviravolta no
mercado, só isso. Arlequim deve ser informado. Acho até que ele deveria vir
participar da reunião. Diga-lhe isso.
— Diga-o você mesmo. Vou chamá-lo...George, é Karl Kruger quem
está ao telefone.
Arlequim pegou o telefone e iniciou uma conversa longa e animada, em
alemão. Saul Wells levou-me para a ante-sala e fez-me uma preleção queixosa.
— Ouça-me com atenção, Sr. Desmond! Conheço esta cidade.
Conheço a polícia e o FBI, sei como eles trabalham. Nos jornais, tivemos
apenas uma notícia de meia coluna, depois mais nada. E da polícia, o que foi
que tivemos? Muito obrigado pela informação, perguntas de rotina, tudo
suave como o diabo! Daqui por diante, verifique seus telefones e não fale
coisa alguma diante dos empregados. Vou mandar um homem verificar
diariamente este apartamento e o seu, à procura de microfones ocultos. Se
quiser falar algo em particular, vá para um parque ou até uma biblioteca.
— Está certo, Saul. Seguiremos seu conselho. Mas que diabo, nós não
somos criminosos!
— Eu sei que não. Mas estão agora de posse de informações da maior
importância. Não conhecem todas as companhias relacionadas naquele
caderninho, mas eu conheço. Pelo menos cinco delas são organizações de alta
segurança, trabalhando em projetos de defesa nacional. Portanto, mesmo
sendo irmãos de sangue do presidente, os telefones de vocês poderão ser
controlados. Ambos são estrangeiros, e nós temos medo dos estrangeiros, Sr.
Desmond. Preferimos proteger uma meretriz nascida aqui como Yanko a um
par de virgens estrangeiras...Não faz a menor idéia de como é fácil incriminar
uma pessoa. Já fizeram negócios com a Cortina de Ferro? Já estiveram na
China? Alguma vez já tiveram qualquer ligação com agentes de alguma
potência estrangeira? E como podem explicar as informações de Yanko sobre
o banco? Não é necessário que sejam verdadeiras. Pode ser uma simples
opinião, mas, uma vez impressa nos cartões de um computador, passa a ser
encarada como um evangelho sagrado. Espero que me perdoe o comentário,
mas a verdade é que basta uma simples palavra para transformar a Virgem
Maria em Maria Madalena. O Sr. Arlequim talvez não compreenda tal situação
e...
— Eu compreendo perfeitamente, Sr. Wells. Arlequim estava parado na
porta, vermelho e indignado.
— Procurarão intimidar-nos até a rendição final.
— Não quis ofendê-lo, Sr. Arlequim. Está me pagando para prestar-lhe
um serviço completo, e é precisamente isto o que estou tentando fazer.
— Eu sei, Sr. Wells, e aprecio devidamente seus esforços. Não estou
zangado com o senhor. Estou é afrontado por todo esse caso sórdido,
incluindo essa reunião em Frankfurt e o suborno de colegas meus. Prefiro
padecer no inferno a ceder às pressões de Basil Yanko. Quantas cópias fotos-
táticas nós temos do caderninho de anotações de Valerie Hallstrom?
— O senhor tem uma e eu tenho três.
— Dê-me mais uma.
— O que pretende fazer?
— Sr. Wells, sou um suíço extremamente bem considerado. Vou fazer
uma visita a meu embaixador em Washington. Acho que devemos ir todos
nós, Paul. A mudança de ares nos fará bem. Tenho seu telefone, Sr. Wells.
Pode deixar que o informarei onde poderá encontrar-me.
— Quero avisar-lhe, Sr. Arlequim, que Basil Yanko tem muitos amigos
em Washington.
— Eu sei. Mas nós temos também uma relação de seus inimigos.
— Experimente-os antes de lhes dizer qualquer coisa. Washington tem
um clima engraçado, a que algumas pessoas não se acostumam muito bem.
Desejo-lhe boa sorte.
Dez minutos depois que ele se foi, o chefe da portaria ligou para a suíte.
Um cavalheiro desejava falar com o Sr. Arlequim. Suzanne desceu para
encontrá-lo e descobrir o que ele desejava. Poucos minutos depois ela
apresentou-o pessoalmente: o Sr. Philip Lyndon, do FBI. Ele era jovem,
bronzeado, bem-vestido. A princípio, suas maneiras foram impecáveis. Ficou
satisfeito ao encontrar-me também, dizendo que isso lhe pouparia tempo e
repetição. Em primeiro lugar, queria deixar bem claro que aquela era uma
reunião confidencial, de parte a parte. Estava relacionada com a Creative
Systems Incorporated, com a qual Arlequim et Cie. mantinha ligações como
subscritora, acionista, banqueiro e cliente. Informara-se que a Creative Systems
apresentara uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. O Sr.
Arlequim era o presidente e o maior acionista, não é? E o Sr. Desmond,
também presente...
— Não é suíço, não é, Sr. Desmond?
— Não. Sou australiano. Tenho um visto de negócios.
Portanto, devem ter detalhes pessoais a meu respeito nos arquivos.
— Temos, sim. Qual é sua posição em Arlequim et Cie.?
— Sou diretor executivo.
— Ele é o meu colega de diretoria mais importante e um amigo de
longa data.
— Obrigado, Sr. Arlequim. Agora vamos poupar tempo. Estamos
cientes de suas dificuldades, Sr. Arlequim. Lemos o relatório de suas
operações de computador. Sabemos que contratou a Lichtman Wells para
investigá-las. Tais operações podem vir a ser investigadas também por outros
aspectos.
— Talvez ainda não saiba, Sr. Lyndon, que a polícia suíça já foi
informada de todo o ocorrido e está trabalhando no caso. A operadora de
Nova York implicada no caso, Srta. Ella Deane, está morta. Nossos
advogados informaram-nos que não temos mais nenhum recurso legal nesta
jurisdição, a menos e até que recebamos mais informações de nossos
investigadores.
— Compreendo. Tendo em vista que contratou investigadores
particulares, posso supor que não está satisfeito com o relatório da Creative
Systems?
— Eu não disse isso, Sr. Lyndon. O relatório estava de acordo com o
contrato, que estipula a verificação da segurança do sistema e a indicação de
quaisquer anomalias no funcionamento do programa.
— Certo. Mas foram cometidas fraudes em todas as suas filiais, e até
agora o senhor identificou apenas uma única operadora.
— Os investigadores ainda estão trabalhando nas outras filiais.
— Está convencido de que a Creative Systems não está envolvida na
fraude?
— É difícil responder a essa pergunta sem criar uma falsa impressão.
Há dois pontos a destacar. Primeiro: o relatório exime de culpa todos os
funcionários da Creative Systems, mas não apresenta nenhuma prova a
corroborar tal afirmativa. Segundo: existe a curiosa coincidência de se haver
apresentado uma oferta para assumir o controle de Arlequim et Cie. logo
depois da entrega do relatório.
— Isso pode ser, é claro, apenas um ato de oportunismo empresarial,
não* muito ético, é verdade, mas também não criminoso.
— É possível.
— Suponho, Sr. Desmond, que tenha agido em todo este caso como
procurador do Sr. Arlequim, não?
— Exatamente.
— Inclusive quando discutiu o relatório com a Srta. Valerie Hallstrom?
— Inclusive.
— E inclusive quando se encontrou com ela em duas outras ocasiões?
— Aí, não. O primeiro encontro foi puramente acidental, o segundo foi
um encontro social.
— Depois do qual ela foi assassinada. Sobre isso, é claro, estamos a par
das investigações da polícia. Sr. Desmond, pediu por acaso à Srta. Hallstrom
que explicasse ou comentasse o relatório?
— Pedi.
— E ela o fez?
— Ela explicou-me o significado. Convidei-a a enunciar suas
conclusões, mas ela recusou, alegando que não tinha ordens para fazê-lo.
— E pressionou-a?
— Não.
— Pediu ou induziu-a a fornecer quaisquer informações sobre a Creative
Systems?
— Não.
— Ela sugeriu que estava disposta a fazê-lo, sob determinadas
condições?
— Não.
— Por que procurou ter um encontro social com ela?
— Sou um homem solteiro. E ela é...era uma mulher atraente.
Arlequim interveio suavemente:
— Acho que poderíamos poupar um tempo precioso ao Sr. Lyndon, se
o informássemos do que aconteceu esta manhã.
— Agradeceria a informação, Sr. Arlequim.
— Esta manhã o Sr. Desmond encontrou em sua caixa de
correspondência um envelope pardo comum, sem carimbo postal nem
endereço do remetente. O envelope continha um caderninho preto e um
bilhete com as palavras "Cumprimentos de Valerie Hallstrom". O caderninho
continha os nomes de diversas empresas, entre as quais a nossa, com os
respectivos códigos de computador. O Sr. Desmond telefonou-me
imediatamente. Encontramo-nos aqui com o Sr. Wells e logo depois
entregamos o caderninho à polícia. Imaginamos que ele seria posteriormente
encaminhado ao FBI. Mas suas perguntas ao Sr. Desmond parecem indicar
que ainda não o receberam.
— Ainda não, Sr. Arlequim.
O Sr. Philip Lyndon estava visivelmente abalado.
— Isso...isso é algo inteiramente novo para mim. Tem certeza quanto
ao conteúdo do caderninho?
— Tenho. Se me der licença por um minuto, irei buscar o recibo da
polícia e uma cópia fotostática dos registros. Sugeri ao Sr. Wells que se
comunicasse com as companhias relacionadas, no caso de elas terem sofrido
também uma quebra da segurança...
— Infelizmente tal atitude é bastante irregular.
— Irregular!
Arlequim, que já ia saindo da sala, estacou bruscamente.
— Irregular como, Sr. Lyndon?
— Os códigos de computador são informação confidencial.
— Eu também pensava que fossem, Sr. Lyndon. E tal erro custou ao
meu banco quinze milhões de dólares...Pronto, aqui estão o recibo e a cópia
fotostática.
— Terei que ficar com eles.
— Não, Sr. Lyndon. Por lei, esses documentos me pertencem. Mas
pode perguntar, delicadamente, se permito que os leve.
— Peço desculpas. Poderia levá-los?
— Pode, Sr. Lyndon. Mas, naturalmente, terá que assinar um recibo.
Ele fechou as páginas, franzindo o cenho e deixando escapar pequenos
murmúrios de aflição. Depois, virou-se para mim.
— Sr. Desmond, poderia informar-me, com detalhes, como esse
caderninho chegou às suas mãos?
Ele queria detalhes e conseguiu-os. Falei sobre meus hábitos matutinos,
a rotina de Takeshi, a coleção de selos de seu sobrinho e, para rematar, a
presença de Suzanne. Ele então formulou a pergunta que realmente
importava:
— Quem lhe enviou o caderninho, Sr. Desmond?
— Não sei.
— Mas deve ter pensado a esse respeito.
— Que horas são, Sr. Lyndon?
— Meio-dia em ponto. Por quê?
— Recebi o caderninho durante o café da manhã, há quatro horas.
Desde então tenho estado numa roda-viva, com o Sr. Arlequim, com Saul
Wells, com a polícia e agora com o senhor. Não tive muito tempo para pensar.
E, por favor, gostaria que considerasse todos os fatos. O que eu iria fazer com
esse caderninho? Vendê-lo? Comê-lo? Trata-se de uma prova material num
caso de homicídio. Quis livrar-me dele o mais depressa possível.
— Não o comprou, por acaso?
— De quem, Sr. Lyndon?
— Talvez da própria Srta. Hallstrom.
— E ela estava vendendo segredos?
— A possibilidade está sendo analisada.
— Mas por que haveria de querer comprá-los?
— Talvez para desacreditar a Creative Systems. Li a declaração que
distribuíram à imprensa esta manhã. Suponho que não estão dispostos a
vender. Mas hão de convir que o preço é bastante atraente para alguns
acionistas.
— Está fazendo uma pergunta ou uma afirmação, Sr. Lyndon?
— É apenas uma hipótese, Sr. Desmond, para estimular a discussão.
— Não haverá mais discussão alguma.
As palavras de George Arlequim eram categóricas. Ele levantou-se e foi
ao telefone, ligando para a telefonista do hotel e pedindo uma ligação para o
embaixador suíço em Washington.
O Sr. Philip Lyndon era um bom interrogador, mas perdeu a calma no
último instante.
— Por favor, Sr. Arlequim, espere um instante. Eu exagerei. Peço
desculpas.
Mas Arlequim estava inflexível.
— Sinto muito, Sr. Lyndon. A reunião está encerrada. Nós lhe
dissemos a verdade. Se não aceita tal fato, em nada mais podemos ajudá-lo.
Considero sua insinuação como extremamente ofensiva. Tenho razões para
acreditar que talvez seja inspirada. Se assim é, isso o desacredita inteiramente
como funcionário do governo...Alô? Erich? Aqui é George Arlequim. Estou
em Nova York. Preciso falar-lhe sobre um problema diplomático de alguma
importância. Mas é melhor falarmos em nossa língua.
Ele conversou durante cinco minutos em alemão-suíço, desligando em
seguida.
— Vamos para Washington, Paul. Sugiro que procure também sua
embaixada assim que chegarmos lá. E agora, Sr. Lyndon, vamos ser claros.
Estamos e estaremos sempre dispostos a fornecer-lhe quaisquer fatos à nossa
disposição sobre assuntos relacionados com sua investigação, a qual, segundo
o Sr. Yanko me informou, versa sobre problemas de segurança nacional. Por
outro lado, porém, devo declarar-lhe que não nos iremos submeter a
interrogatórios insolentes e trataremos de nos proteger, se necessário através
de intervenção diplomática.
— É um direito seu, Sr. Arlequim.
O Sr. Lyndon já recuperara suas boas maneiras e um pouco de sua
coragem.
— Extra-oficialmente, não o culpo por isso. Usou a expressão
"insinuação inspirada". Não poderia explicá-la?
— Vou defini-la, Sr. Lyndon: é uma forma de assassinato, pela qual se
sufoca um homem com insinuações malévolas. Bom dia.
Nunca vira Arlequim tão furioso. Estava totalmente branco e os olhos
pareciam duros como pedra. Ficou andando de um lado para outro da sala,
batendo com o punho fechado na palma da outra mão e despejando uma
torrente de palavras iradas, enquanto Julie e Suzanne o contemplavam,
chocadas e em silêncio, paradas na porta.
— Estou simplesmente revoltado. Karl Kruger acha que devo ir a
Frankfurt. Para quê? Para suplicar a homens a quem enriqueci...para provar-
lhes que não sou um vilão nem um idiota!...É agora somos intimidados por
burocratas e agentes, assustados como criancinhas a ouvirem sussurros na
escuridão!... Não! Não! Não! Prefiro antes morrer numa fossa!...Julie, arrume
nossas malas. Vamos partir para Washington. Suzanne, faça reservas para
todos nós. Iremos de trem. Arrume acomodações no...
— Espere um momento, George. Eu é que faço as reservas. Isso é
parte de nosso acordo com Bogdanovich.
— Faça-as então, Paul. Mas tem que ser agora mesmo. Suzy, ponha
Herbert Bachmann ao telefone. Depois...
— George, por favor!
Julie plantou-se diante dele, pondo as mãos em seus ombros,
procurando acalmá-lo.
— Agora é você quem está bancando o arrogante. Você não é assim,
querido. Pare com isso!
Passou-se um longo momento antes que Arlequim conseguisse
dominar-se. O esforço que ele fez foi visivelmente doloroso. Quando
finalmente falou, sua voz era áspera e tensa:
— Lamento muito se estou parecendo agressivo. Vocês queriam que eu
lutasse. Avisei que talvez não fossem gostar do homem que vive dentro de
mim. Agora eu tenho que conviver com ele. Vocês têm outras alternativas.
Juliette fitou-o por um instante, pálida e assustada. Depois desatou a
chorar e saiu correndo da sala. Suzanne lançou um olhar de censura para
Arlequim e seguiu atrás dela. Eu enfrentei-o, furioso também.
— Pelo amor de Deus, George! Por que tinha de dizer uma coisa tão
brutal?
— Será que foi mesmo? Ao final de toda essa história, Julie talvez
pense que foi apenas um momento de delicadeza. E o mesmo talvez lhe
aconteça também, Paul.

A Agência de Viagens Apex não era absolutamente um lugar em que


alguém pudesse esperar providenciar acomodações de primeira classe numa
viagem, muito menos conseguir suítes de luxo em Embassy Row. Era uma loja
pequena e cheirando a mofo, na parte ainda não recuperada de Greenwich
Village, com cartazes pregados com percevejos e folhetos dobrados. A
recepcionista tinha cara de cigana, usava um vestido de brim e muitas contas.
Mas quando eu enunciei meu nome e declarei que estava no negócio de flores,
a loja pareceu subitamente adquirir vida. A cigana parecia dez anos mais moça,
seu sorriso era a promessa de boa sorte. Washington era uma cidade
permanentemente cheia, mas ela tinha certeza de que arrumaria alguma coisa.
Dentro de uma hora as passagens de trem estariam no hotel. Haveria uma
limusine à nossa espera assim que chegássemos a Washington.
As outras providências demoraram um pouco mais para serem
explicadas. Nosso contato em Washington seria um certo Kurt Saperstein,
que também estava no negócio de flores, com uma loja chamada Bernard's
Blooms. Ao que parecia, suas atividades tinham âmbito nacional. Portanto, as
comunicações não constituiriam problema. Assim que nos acomodássemos,
eu deveria informar-lhe os números de nossos quartos. Talvez houvesse um
contato no próprio Embassy Row, mas Kurt me informaria a respeito no
devido tempo. Ele seria o responsável pela transmissão das informações a
Aaron Bogdanovich. Mas era preciso ser cauteloso.
Washington era uma cidade muito sensível, na qual os agentes secretos
eram mais numerosos que a grama num gramado. As medidas de segurança
eram rigorosas e compensava ser supercuidadoso. Entreguei os cartões de
crédito à cigana e voltei para meu apartamento.
Takeshi ficou contente ao ver-me. Ele também fora visitado pelo Sr.
Philip Lyndon, que o interrogara a respeito da correspondência. Ouvira falar
sobre a agressão e queria saber também a respeito disso. Mas aparentemente o
que mais o interessava era saber os nomes e as descrições de meus visitantes
mais recentes. Ele ficara furioso porque Takeshi o deixara de pé no capacho,
sem convidá-lo para entrar a fim de poderem conversar mais à vontade.
Esse, é claro, fora seu grande erro. Takeshi possui um orgulho
desmedido de sua cidadania americana e uma sensibilidade japonesa com
relação à dignidade. Quando se sente insultado, descobre que lhe é difícil
compreender o inglês mais simples e muito mais difícil ainda falá-lo
inteligivelmente. Recordar nomes e rostos torna-se então uma impossibilidade
absoluta. E assim o Sr. Lyndon partira mais infeliz do que chegara e sem saber
de mais nada. Como eu ia partir, pareceu-me uma medida sensata despachar
Takeshi numas pequenas férias, à custa do banco. Seu sobrinho devia estar
sentindo saudades. Takeshi confirmou que isso de fato acontecia. Fez minha
mala e a sua também. Saímos juntos do apartamento.
A viagem para Washington foi uma lúgubre peregrinação. George
sentou-se numa extremidade do vagão, ditando cartas para Suzanne, enquanto
eu me sentava na outra extremidade, bebendo bourbon e jogando gin rummy
com Juliette. Ela estava calma, mas pálida e distante como se vivesse no
mundo da lua. Jogou com uma concentração profissional, desencorajando
qualquer conversa que não fosse sobre assuntos triviais. Fiquei satisfeito por
não ter que envolver-me no que parecia ser uma crise conjugai de amplas
proporções. Eu ainda estava furioso com Arlequim. Ressentia-me de sua
pressuposição que o fazia tratar-me como um simples servidor sempre às suas
ordens, como um acompanhante eventual para sua esposa. Empenhara toda a
minha fortuna para ajudá-lo, assumira até mesmo riscos pessoais. Não fazia
parte da barganha ter que assumir o papel de substituto que sofria os
dissabores no lugar dele.
Além disso, eu estava bastante preocupado com a súbita ruptura de seu
autocontrole. Estávamos empenhados numa
estratégia complicada e perigosa. Até aquele momento, traváramos
apenas simples escaramuças. E se os nervos já começavam a lhe faltar, então
corríamos grave perigo. Até mesmo Suzanne, a tolerante, a ponderada, estava
preocupada. O cavalheiro galante, sorridente e sempre bem-humorado que ela
amara por tanto tempo era agora um homem de lábios cerrados e arrogante,
não se apercebia mais da afeição que lhe dedicavam.
Juliette estendeu a mão por cima da mesa e colocou-a sobre a minha.
Estava extremamente fria.
— É sua vez de jogar, Paul.
— Desculpe. Estava a muitos quilômetros de distância.
— Já se cansou de jogar?
— Se não se importa...
— Você parece estar muito triste.
— Não estamos seguindo exatamente para um piquenique, menina.
— Por favor, Paul, não culpe George.
Fitei-a, perplexo. Aquela era outra Julie, grave como uma freira, fria,
uma completa estranha.
Ela continuou imediatamente, impassível:
— Sei que é difícil de entender, mas você tem que procurar fazê-lo.
Para mim também é muito difícil. Mas hoje fui obrigada a aceitá-lo. Nós todos
sempre consideramos George pelas aparências. Ele é tão bom em todas as
coisas que nunca perguntamos o que o fazia tão bom. Eu, inclusive, menos do
que qualquer outra pessoa. Você ouviu o que eu lhe disse no hospital, que
tudo que ele tinha ganhara-o de presente, que nunca precisara lutar por nada.
Mas não é verdade...Quando ele faz algo, tem que ser perfeito, tão perfeito
que parece não ter exigido o menor esforço. E assim esquecemos o esforço
que ele na realidade fez. Montar a cavalo, velejar, falar muitas línguas, é tudo a
mesma coisa. Comecei a recordar uma porção de coisas. Muito antes de viajar
para a China, George passou muitas noites acordado, praticando os
ideogramas e entoando a fala cadenciada dos chineses, como se fosse um
cantor de ópera a exercitar-se. Já o vi no lago, sozinho, amarrado num
trapézio, em dias de muito vento, fazendo circuitos intermináveis numa
prancha de wind-surf. Quando o vemos nas corridas de cavalos, esquecemos
que ele conhece de cor o stud-book. Há muito que eu achava tudo isso
normal. E, ao atacá-lo, não me apercebi da ferida profunda que estava
abrindo...George está fazendo a mesma coisa agora, e é terrível assistir a isso.
Mas não podemos esquecer que ele nos avisou, chegou mesmo a dizer: "Creio
que posso transformar-me no maior pirata entre todos, capaz de sorrir
enquanto limpo o sangue de meu alfanje". Ele inclusive está praticando
também para isso. Está querendo afastar-nos, porque o amor que sentimos
por ele é uma desvantagem. Está procurando tornar-se um homem
impiedoso, para ser exatamente aquilo que mais detestava, que mais tinha
medo de ser. Ele nos disse a verdade. Nós é que estávamos cegos demais para
enxergá-la...Era o discurso mais longo que já ouvira Julie fazer, e também o
mais triste. Era uma confissão de fracasso pessoal e uma premonição de
desastre, mais terrível que a perda de um império financeiro. Expressava
também uma solidão além de nossa experiência: a solidão do exorcista que, ao
esconjurar os demônios, está consciente de que ele próprio pode ser a
qualquer momento possuído.
— ...Compreende, agora, Paul, por que não deve deixá-lo? O que quer
que ele diga, o que quer que faça, você não pode deixar que ele se afaste. Você
o adora e ainda não o perdeu. Eu o amo, mas ele está agora muito longe de
mim e não sei se algum dia poderei tê-lo de volta. Ao final, é possível que
nosso filho volte a nos unir. Talvez mesmo Suzanne...Não, não precisa sacudir
a cabeça. Eu sempre soube que ela estava apaixonada por George. Nunca
compreendi por que ele jamais o viu.
— É que ele estava apaixonado por você, Julie. E ainda está.
— Paul, você não está compreendendo!
Ela estava agora desesperada. Sua mão era como um torno a apertar-me
o pulso.
— Ele está rejeitando o amor! Está tentando arrancá-lo de dentro de si
mesmo, porque ingressou nesse mundo novo, onde não existe amor, apenas
ganância, inveja e terror. Mas você é um homem diferente, meu querido Paul.
Usa a vida como se fosse um terno velho, com manchas e tudo. George não
pode fazê-lo, nunca o fez. Para ele, é o paraíso ou o inferno, sem nada entre
os dois...Sei que você me ama, Paul. E é por isso que lhe suplico: fique com
ele!
Eu ainda estava procurando palavras para dizer quando o chefe do trem
surgiu ao nosso lado e anunciou a chegada iminente à Union Station.
5

Em Washington, descobri que a mulher com cara de cigana fora


extremamente generosa comigo. Arlequim e Juliette ficaram alojados numa
imensa suíte do quinto andar, onde poderiam receber um regimento, se assim
o desejassem. Suzanne e eu ganhamos dois quartos, com uma sala de estar
comum, no andar inferior. A geografia era importante. Estávamos isolados do
atrito doméstico. Suzanne tinha um lugar para trabalhar. Poderíamos ficar
sozinhos ou fazer companhia um ao outro, conforme tivéssemos vontade. A
gerência nos enviara chocolates e frutas e eu recebera também um exótico
arranjo de flores da Bernard's Blooms. O bilhete dizia: "Seja bem-vindo a
Washington. Cumprimentos de Aaron". Eu acabara de desfazer as malas
quando o telefone tocou, com um novo voto de boas-vindas.
— Sr. Desmond? Quem está falando é Arnold, chefe da portaria. Estou
telefonando para saber se recebeu as flores e o bilhete.
— Recebi, sim, obrigado.
— Às ordens, senhor. Fazemos muitos negócios com Bernard e
gostamos de manter seus clientes sempre satisfeitos. Se precisar de alguma
coisa, não hesite em chamar-me pessoalmente. Desejo que sua estada aqui seja
a mais agradável possível.
Esperava que fosse, mas estava propenso a duvidar. Um momento
depois, Suzanne entrou em meu quarto, corada e irritada. Estava exausta da
viagem, e Arlequim ainda queria que todas as cartas que ditara estivessem
datilografadas e prontas para serem assinadas antes de ele partir para a
embaixada, às dez horas da manhã seguinte. Ela não se importava com o
trabalho, mas por que ele tinha de ser tão frio? Nunca fora assim antes e não
tinha necessidade de sê-lo agora. Fi-la sentar-se e abasteci-a de scotch e
simpatia. E então, distraidamente, ela contou-me que Arlequim estava se
preparando para descarregar no mercado todas as ações que o banco possuía
da Creative Systems e de suas subsidiárias. As únicas considerações que ainda o
retinham eram os interesses dos seus clientes e o fato de que possuía também
uma parcela considerável das referidas ações.
Fiquei furioso, porque ele não discutira o assunto comigo e porque tal
operação é tão moral quanto um assassinato, muitas vezes até mais brutal que
um assassinato. O princípio é o mesmo, embora seja necessário muito
dinheiro e muito sangue-frio, muito mais que num assassinato. Quando se
começa a vender grandes quantidades de ações de uma determinada empresa,
imediatamente se desvaloriza a cotação. Se se continua a vender, provoca-se
um pânico entre outros acionistas, que saem correndo para vender também. A
cotação desce então até o porão. Se se começa a comprar novamente, no
mercado exato e com dinheiro suficiente para cobrir o mercado, pode-se
terminar, senão com o controle, pelo menos com um lucro considerável e
possivelmente com votos suficientes para se conquistar um lugar na diretoria
da empresa. Isso é ótimo para o autor da manobra, mas pode ser ruinoso para
outras pessoas menos afortunadas, que vêem as economias de toda uma vida
liquidadas da noite para o dia, ou os seus limites de empréstimos
drasticamente reduzidos a uma simples penada de um banqueiro.
Podia compreender o raciocínio de Arlequim. O banco possuía uma
grande quantidade de ações da Creative Systems. Muitos dos seus clientes
também. Alguns haviam dado ao banco plena liberdade para movimentar seus
investimentos, de forma que Arlequim podia vender as ações deles sem
consultá-los. Se todas essas ações fossem lançadas no mercado, haveria
pânico. Basil Yanko ficaria alguns milhões mais pobre. Para evitar a débâcle,
ele teria que começar a comprar e continuar comprando até que o mercado se
estabilizasse novamente. Acrescentando-se a isso seus outros problemas —
uma investigação federal, uma lista de clientes cheios de suspeitas, problemas
políticos em Washington —, ter-se-ia uma reversão de sua ameaça a
Arlequim, com a crise de confiança atingindo uma escala global.
Eu já vira isso ser feito antes. Ouvira também as justificativas, cínicas
como as explicações dos exploradores de mulheres, a alegação de que era uma
operação normal do mercado. Vira também algumas das conseqüências: um
amigo que pulara de uma janela do décimo andar, outro tão abalado que fugira
para sempre à realidade, enquanto alguns canalhas conhecidos tornavam-se
tão ricos quanto Midas. O fato de Arlequim poder sequer cogitar de tal tática
enchia-me de desgosto e desilusão. Já estava me preparando para invadir sua
suíte e desafiá-lo, mas Suzy me conteve.
— Por favor, Paul! Se ele souber que eu lhe contei, nunca mais confiará
em mim. Além disso, tenho certeza de que ele não tomaria essa iniciativa sem
consultá-lo primeiro. Sei que ele conversou com Herbert Bachmann a respeito
e pediu-lhe que fizesse alguns cálculos sobre os efeitos no mercado. Ainda
não recebeu os cálculos e não transmitiu quaisquer instruções aos nossos
gerentes. É uma operação grande e ele tem que prepará-la minuciosamente.
— Se ele fizer isso, Suzy, para mim acabou. Para sempre! E estou
falando sério. Não sei o que deu nele!
Ela lançou-me um olhar demorado e inquisitivo e disse
categoricamente:
— É muito diferente do que você mesmo está fazendo, Paul? Só que
você o está fazendo por procuração, através de Aaron Bogdanovich. E é
muito diferente do que Basil Yanko está fazendo, exceto pelo fato de ele estar
querendo aumentar as cotações ao invés de baixá-las?
— É muito diferente, Suzy. A nossa é uma guerra particular. Yanko
atacou-nos e estamos reagindo com suas próprias armas. Mas, se George
iniciar essa operação, muitos espectadores inocentes acabarão sofrendo as
conseqüências.
— Se eles jogam no mercado, sabem que estão correndo riscos.
— É pirataria pura e simples. E George sabe disso. No mesmo instante
Suzanne incendiou-se, com a ira dos justos.
— Por que você está bancando Simão, o Puro, enquanto George
transforma-se subitamente num monstro? Vou lhe dizer por quê! É porque
você quer ver George nas alturas, empoleirado num pedestal, como o protetor
dos fiéis. Ele o faz sentir-se bom, mesmo que você não o seja. Você é como
Julie. Nenhum dos dois acredita que ele seja um homem. Querem que ele seja
algo de que possam ao mesmo tempo orgulhar-se e sentir inveja. Querem
olhar pela janela e vê-lo de pé lá fora, todos os dias o mesmo, faça sol ou
chuva, com os pombos empoleirados em sua cabeça. Para vocês, ele tem que
ser como o cavaleiro de bronze do Capitólio. Enquanto ele estiver lá, Roma
estará segura. Mas George não é de bronze nem de mármore. Ele é de carne e
osso, com um sangue mais quente do que vocês jamais admitiram. Se ele quer
lutar, deixem-no lutar! Não lhe amarrem as mãos. Não quero que ele seja
motivo de zombaria nesse antro de salteadores a que vocês chamam
pomposamente de mercado. E não me importa que ele esteja certo ou errado!
Eu o amo, entende? Eu o amo...
De todos os idiotas do mundo, eu era certamente o maior. De todos os
apaixonados do mundo, era certamente o mais cego. Tivera aquela mulher em
meus braços, dia após dia, mês após mês, e nunca fora capaz de encontrar o
talismã que abriria a caverna do tesouro de seu amor. Pois bem, agora eu o
tinha, só que, para mim, era a mesma coisa que tê-lo no fundo do Potômac.
Servi-nos de outra rodada e fiz um brinde secular:
— Ao crime!...Até que ponto nós iremos?
— Até que ponto você irá, Paul?
— Acho que até o ponto em que meus nervos agüentarem.
— Ou sua consciência.
— Pensa mesmo que tenho uma?
— Meio confusa, mas tem.
— Como assim?
— É que ela sempre se interpõe entre você e George, entre você e
Julie...Não, chêri, não fique zangado. Você e eu passamos muito tempo juntos.
Foi bom, mas não foi o melhor. Ambos sabemos por quê. Ambos estamos
vendo o que há de errado naquele casamento. Se ele terminar, você
provavelmente ficará com Julie. Eu não ficarei com George, pois sou apenas
uma parte da mobília, para a qual ele nem olha mais. Além disso, já estou
muito velha para o jogo do amor. Por isso, prefiro vê-lo feliz a infeliz.
— Prefiro ver ambos felizes. Julie conversou comigo no trem. Ela sabe
que fez uma porção de coisas erradas. Não sabe, porém, como desfazê-las.
Acho que você poderia ajudar.
Suzanne lançou-me um olhar impiedoso, igual ao de todas as mulheres
no ápice de seu descontentamento. Sacudiu a cabeça lentamente e disse-me
com frieza:
— Não, Paul. Sou a querida e boa Suzy, mas não sou tão boa assim. Se
você quer ser o galante cavaleiro servidor de Julie, eu baterei palmas para você
e o estimularei, e ajudarei a montá-lo na sela do fogoso corcel...Quanto ao
resto...não! Não! Não!...Pelo menos sou uma cadela honesta, chéri. E agora
será que você poderia levar-me para jantar?
George Arlequim chamou-me às oito horas da manhã. Ia sair do hotel
às nove e quarenta e cinco para fazer uma visita matutina ao embaixador. Ele
gostaria de almoçar comigo. Esperava que eu tivesse descansado bastante.
Tinha, sim, obrigado. Recebera alguma notícia de Nova York? Nenhuma. Eu
passaria a manhã andando de um lado para outro e lhe informaria tudo ao
meio-dia e meia, quando nos encontrássemos. Não estava fazendo uma linda
manhã? Eu ainda não vira, mas ficava satisfeito por saber que pelo menos
havia um pouco de sol em nossas vidas. Até mais tarde... E se era tudo o que
ele queria dizer-me, que fosse para o inferno!
No quarto ao lado, Suzanne estava datilografando as cartas, com o
ritmo firme de uma boa máquina suíça. Meti a cabeça dentro do quarto para
desejar-lhe bom-dia. Ela fez-me uma saudação distraída e continuou a bater à
máquina. Senti-me como o último dos lanceiros na brigada dos esquecidos e
sem amor. Desci rapidamente para o saguão, esperando travar conhecimento
com Arnold, o homem que me telefonara na noite anterior. Mas deparei-me
com um caos de hóspedes de partida, todos gritando por suas contas, por
quem lhes pegasse as malas, por quem lhes providenciasse táxis. Saí então
para o sol, peguei um táxi e segui para o Tidal Basin, tão descansado quanto
qualquer turista provinciano, a fim de encontrar-me com o velho Thomas
Jefferson, em seu santuário entre as cerejeiras.
Vou contar-lhes um segredo sentimental. Esse é o lugar da América que
realmente amo. Esse é o único homem, de toda a turbulenta história
americana, que realmente me comove até a admiração e, de vez em quando,
até a meditação. Fragmentos de sua sabedoria e de seu código tolerante
perduram por mais tempo em minha memória que as vozes estridentes de
nosso tempo. Ele detestava "a raiva mórbida da discussão". "Se eu não puder
ir para o céu com meus amigos, então não irei para lá...Alguns homens
encaram as Constituições com uma reverência hipócrita e consideram-nas,
como a Arca da Aliança, sagrada demais para ser tocada ..." Suponho que,
mais jovem e mais aberto, eu teria encontrado nele a mesma coisa que
encontrara — e perdera — em George Arlequim: uma largueza de espírito, a
sagacidade, o bom humor e uma alma hospitaleira a toda a experiência da
humanidade.
Mesmo tão cedo, já havia namorados e famílias nos gramados. Invejei-
os. Fiquei satisfeito ao descobrir que o
santuário estava vazio, pois assim poderia meditar na solidão do
passado, que é como a solidão do mar, lava e cura todos os males. Era uma
pena que o passado pertencesse tão-somente àqueles que o tinham vivido.
Jefferson também sabia disso. "...Conheço bem essa época, pois pertenci a ela
e em seu favor envidei todos os meus esforços. E ela fez jus a seu país..." Eu,
Paul Desmond, pertencia à minha época, lucrava com ela e não fazia jus a
coisa alguma. Daquele lugar partiria para um outro, onde se vendiam flores e
cumprimentos por telegrama, onde homens recebiam um tiro ao abrir a porta
para receber o telegrama. Outros tempos, outros costumes! Tom Jefferson
tivera sorte em não ter vivido para vê-los, pois teria então perdido muitas de
suas nobres ilusões.
O Sr. Kurt Saperstein, da Bernard's Blooms, não tinha a menor
semelhança com o Thomas Jefferson do Condado de Albermale. Ele era
baixo, gordo e maneiroso, a cabeça calva, cercada de um tufo de cabelos
negros. Usava um terno azul-escuro, gravata borboleta e óculos grossos de
míope. A mão rechonchuda era úmida e o sorriso largo, como que recortado
numa melancia. Falava com um sotaque forte e num ritmo cadenciado, como
se estivesse entoando versos.
— Meu caro senhor!...Seja bem-vindo, seja bem-vindo! Espero que
tenha gostado das flores. Foi um de nossos melhores trabalhos. Um dos
melhores! Arnold lhe telefonou? Ótimo! É um bom elemento, muito bom
mesmo. E agora, meu caro senhor, posso sugerir-lhe uma caminhada? Está
fazendo um dia maravilhoso...
No momento em que saiu para a rua, ele mudou completamente.
Caminhava rápido e falava com calma. Apesar de sua estranha aparência,
passava despercebido como um lagarto numa rocha. Juro que teria passado
por ele sem vê-lo. Suas instruções foram objetivas e lacônicas:
— As instruções primeiro, Sr. Desmond. Não haverá mais contatos
entre nós dois. Já o vi, já o conheço. Arnold me trará suas mensagens.
Mandarei as minhas com flores. Podemos fazer quase tudo o que desejar:
aluguel de carros, acompanhantes de confiança, um guarda-costas, caso venha
a precisar. Temos amigos em quase todos os lugares: no Pentágono, nos
órgãos de segurança nacional, nas embaixadas. Somos muito bons em matéria
de documentos, mas lembre-se de que isso demora um pouco...Tenho
algumas notícias. Aaron está viajando, mas Tony Tesoriero já foi localizado
em Miami. Não pode nem cuspir sem que alguém o veja. O FBI esteve
conversando com Saul Wells. Ele está convencido de que em breve virão
procurá-lo aqui. Também deu os telefonemas que prometeu, e o gato neste
momento está se divertindo entre os pombos. Ele acha que seu presidente
deverá receber alguns telefonemas de outros presidentes preocupados...É tudo
o que tenho a dizer-lhe até agora. Está precisando de alguma coisa neste exato
momento?
— Conhece um bom jornalista que possa divulgar uma história e
esquecer a fonte onde a obteve?
— Claro. Esta cidade está fervilhando de jornalistas, bons e maus.
Deixe-me pensar um pouco a respeito. Quando gostaria de vê-lo?
— Esta noite, se possível. Mas em particular, longe do hotel.
— Pode deixar comigo. Arnold lhe dará a informação sobre hora e
local.
— Preciso de um homem que depois não saia falando por aí.
A observação ofendeu-o. Ele precisou dar dez passos para recuperar-se.
Depois censurou-me um tanto asperamente.
— Já esteve no Yad Vashem, Sr. Desmond?
— Nem mesmo sei o que é.
— Fica em Israel. É um monumento a seis milhões de mortos. Não
queremos construir outro.
— Desculpe-me.
— Mas como poderia saber? Como alguém que não cheirou a fumaça
de um holocausto poderá saber? Agora tenho que voltar para minhas queridas
flores e para meus caros fregueses...São pessoas muito estranhas, Sr.
Desmond! O teto do mundo pode estar desabando sobre suas cabeças que
elas não ouvem absolutamente nada!... Shalom!
Ainda me restava algum tempo, por isso continuei passeando e fui
juntar-me à pequena multidão de ociosos e turistas nos limites da Casa
Branca, onde o presidente vivia, sitiado, entre as ruínas de sua própria
reputação e as esperanças de um grande povo. Eu não tinha o direito de julgá-
lo, era um estranho, um flibusteiro de muito longe. Mas não consegui escapar
à assustadora reflexão de que aquele homem também procurara construir um
aparato de terror. Recrutara uma equipe indigna, de delatores, espiões,
chantagistas, ladrões e perjuros, amparando-os com o manto do poder, que os
cidadãos lhe haviam reverentemente colocado nos ombros no dia de sua
posse.
Ao final, o aparato se desmoronara e os lacaios haviam-no abandonado.
O terror, porém, persistia. Se o próprio presidente escarnecia da lei, qual a
ordem escrita que podia ser cumprida, qual o contrato que podia ser mantido?
Se a autoridade estava desacreditada, os centuriões mantinham o forte e os
anarquistas estavam no comando das ruas. Se um homem não podia viver em
sua intimidade, se não podia andar pelas ruas e morrer tranqüilamente no
tempo que o bom Deus lhe fixara, então o mal era rei e os seus emissários
iriam assolar e devastar a terra impunemente...Era quase meio-dia. O gosto da
infâmia era rançoso em minha boca. Virei-me e voltei rapidamente para o
hotel.
Precisava apresentar-me a Arnold. Mas, ao parar na portaria para pegar
a chave do quarto, fui cumprimentado pelo Sr. Philip Lyndon, chegado de
Nova York, bancando a ama-seca do Sr. Milo Frohm, que se parecia com um
banqueiro mais que a maioria de nossos colegas e falava como o Venerando
Médico numa consulta domiciliar de urgência. O Sr. Frohm esperava que eu
pudesse dispor de algum tempo. Disse-lhe que estaria livre até meio-dia e
meia, quando deveria almoçar com o Sr. Arlequim. Onde eu gostaria de
conversar? No bar? Eles preferiam um lugar mais reservado. A minha suíte?
Ótimo. Eles me agradeciam por tal. Ao subirmos no elevador, falei-lhes de
minha visita matutina a Thomas Jefferson, descobrindo que o Sr. Frohm o
apreciava tanto quanto eu. Fiquei deliciado ao encontrar uma alma irmã, que
sabia tudo sobre a vida, a liberdade e a busca da felicidade, que estudara os
alicerces morais do organismo político.
Suzy ainda estava trabalhando na suíte, mas concordou em afastar-se
para ceder lugar a nós quatro. Perguntei-lhe, incisivamente, se Arlequim já
voltara de sua reunião com o embaixador. Ela compreendeu a deixa e
respondeu que não, que o Sr. Arlequim previra um encontro demorado. E por
falar nisso, havia um recado para ligar para minha própria embaixada. Depois
ela perguntou-me se íamos querer café ou um coquetel, já que o almoço
estava próximo. O Sr. Frohm e o Sr. Lyndon escolheram suco de tomate.
Decidi-me por um bourbon com água. O Sr. Frohm elogiou meu gosto pela
boa bebida sulista. O Sr. Lyndon limitou-se a sorrir, sem nada dizer. Depois
de fazermos um brinde, o Sr. Frohm iniciou a exposição do caso da
República.
— Antes de mais nada, Sr. Desmond, quero declarar que apreciamos
sua franqueza na reunião anterior com o Sr. Lyndon. Lamentamos que a
formulação de certas questões tenha causado uma ofensa involuntária ao
senhor e a seu presidente. Em nosso trabalho, tratamos com tantas pessoas
diferentes que alguma falta de tato é inevitável. Espero que compreenda, não é
mesmo?
— Claro que compreendo, Sr. Frohm. Nem o Sr. Arlequim nem eu
temos qualquer ressentimento com relação ao Sr. Lyndon. Mas, como
estrangeiros, ficamos algumas vezes chocados com os métodos americanos.
Mas...o que posso fazer pelos senhores agora?
— Infelizmente terá de responder a mais algumas perguntas, Sr.
Desmond.
— Posso fazer uma primeiro?
— Claro.
— Verificou as respostas que lhe dei em nosso primeiro encontro, Sr.
Lyndon?
— Verifiquei, Sr. Desmond.
— E viu que eram todas corretas? Dessa vez o Sr. Frohm respondeu
por ele:
— Em todos os aspectos, Sr. Desmond. Contudo, existem algumas
lacunas na narrativa. Gostaríamos de preenchê-las, se for possível. Vamos
voltar a seu jantar com Valerie Hallstrom. Foi um encontro puramente social?
— Foi.
— Poderia dizer-nos sobre o que conversaram?
— As banalidades usuais. Contei-lhe a história de minha vida. Ela não
me contou a sua, dizendo apenas que o pai criava cavalos na Virgínia e que
muitas vezes ela se perguntava se setecentos e cinqüenta dólares semanais
valiam o desgaste de Nova York.
— Ela então lhe falou sobre dinheiro?
— Disse que ganhava setecentos e cinqüenta dólares por semana e
tinha benefícios adicionais.
— Ela especificou qual era o desgaste a que se referia?
— De certa forma, suponho que sim.
— De que forma, Sr. Desmond?
— Bem...Primeiro ela disse que, se seu empregador descobrisse que
estava jantando comigo, perderia o emprego e jamais conseguiria outro igual.
— E não achou isso estranho?
— Bastante. Disse a ela que era chantagem, tirania e escravidão.
— Por que chantagem, Sr. Desmond?
— Ela explicou-me que já estivera apaixonada por seu empregador e
que o caso não terminara muito bem. Chamou-o...deixe ver se me lembro...de
sapo com uma coroa de ouro na cabeça. Avisou-me também que ele poderia
transformar-se num homem perigoso.
— Mais alguma coisa?
— Só mais uma. Quando ela saltou do carro a fim de seguir a pé o
resto do caminho até sua casa, disse-me: "Algumas vezes Deus gosta de saber
como seus filhos passam suas noites".
— Ela costumava dizer frases surpreendentes.
— É mesmo, não é?
— Por que não as mencionou em seu primeiro depoimento para a
polícia e no segundo que fez para o Sr. Lyndon?
— Vou explicar, Sr. Frohm. A polícia estava investigando um
homicídio. Essas frases eram simples rumores. Embora inadmissíveis como
provas, poderiam lançar suspeitas sobre um homem inocente. A observação
sobre Deus sugeria que era Basil Yanko quem a estava esperando no
apartamento. Não gosto do que ele faz em matéria de negócios, mas não
tenho o direito de insinuar que ele possa ser um assassino. Quer saber
também por que não as mencionei para o Sr. Lyndon. A resposta é bem fácil.
A última pergunta que ele fez, aquela que provocou o fim de nossa reunião,
implicava a suspeita de termos comprado o caderninho de anotações de
Valerie Hallstrom, para desacreditarmos um rival em negócios...
O Sr. Frohm levou algum tempo meditando sobre minha declaração,
mas finalmente pareceu aceitá-la.
— Está bem, Sr. Desmond. Agora, vamos falar sobre o caderninho.
Aceitamos seu relato sobre a maneira como foi parar em suas mãos. Na
ausência de provas em contrário, temos que aceitar também que não sabe
quem o enviou nem por quê. Contudo...
Fez uma pausa deliberada, para deixar-me em suspense.
— Contudo, o fato é que os senhores ou os investigadores que
contrataram, agindo de acordo com ordens, estão, neste momento, tirando
proveito dele.
— Proveito em que sentido, Sr. Frohm?
— O Sr. Saul Wells está divulgando o conteúdo do caderninho para as
partes interessadas. Esta manhã já fomos procurados por cinco grandes
empresas, informando-nos de quebra em sua segurança. Tenho certeza de que
haverá outras. Tendo em vista as suas relações com a Creative Systems e com
Basil Yanko, isso não indica um esforço para assegurarem vantagens táticas?
— Representa uma tentativa, gratuita e não solicitada, de evitar que
outras empresas respeitáveis sofram o mesmo destino que nós.
— Não teria sido mais aconselhável que o próprio Sr. Basil Yanko
fizesse isso...ou mesmo nos solicitasse que o fizéssemos?
— Temos algumas restrições quanto à ética profissional de Basil
Yanko.
— Não poderia especificá-las?
— Neste momento, não.
— Vamos então à segunda parte da pergunta, Sr. Desmond: por que
não nós?
— Sou um simples visitante em seu país, Sr. Frohm. Prefiro não deixá-
lo embaraçado.
— E não deixará, Sr. Desmond. Por favor, seja tão franco quanto o
quiser.
— Serei então o mais polido possível: representam um organismo
doméstico americano, preocupado com muitos problemas, políticos e
criminais. Nós somos de uma organização européia, cujos interesses podem,
em determinados pontos, conflitar com os seus. Em vez de solicitar a ajuda
do FBI, achamos que era melhor exercer o nosso direito de livre
comunicação. Esta é a posição de meu presidente e a minha também.
— Em outras palavras, Sr. Desmond: não confia em nós.
— Pelo que se vê em seus comitês e tribunais, Sr. Frohm, os senhores
não confiam uns nos outros.
Para minha surpresa, ele sorriu e sacudiu a cabeça, numa concordância
relutante.
— Eu pedi por isso, não é mesmo? É uma excelente testemunha, Sr.
Desmond.
— Tenho bastante prática. Os kempeitais1 trabalharam em mim durante
mais de um mês, em Cingapura.
— Espero que nos ache mais civilizados do que eles foram.
— Acho, sim.
— Obrigado. Agora vamos conversar sobre outra lacuna em seu relato.
Foi agredido do lado de fora de seu apartamento. Disse à polícia que não
podia identificar os agressores. Isso é verdade?
— Era verdade na ocasião. Fui posteriormente informado de que os
agressores tinham sido contratados por um homem chamado Bernie Koonig,
que por sua vez tinha sido contratado por um certo Frank Lemmitz.
— Quem lhe deu essa informação, Sr. Desmond?
— Nossos investigadores. Suponho que já tenha conversado a respeito
com o Sr. Saul Wells.
— Já.
— Então deve saber tanto quanto eu, possivelmente até mais.
— O que sabe exatamente, Sr. Desmond?
— Somente o que me informaram. Frank Lemmitz, que é motorista do
Sr. Yanko, contratou Bernie Koonig para vigiar-me. Nossos investigadores
objetaram a isso e Koonig, em represália, mandou que me espancassem.
— Mencionou o fato ao Sr. Yanko?
— O assunto foi abordado em nossa reunião com ele, no Salvador.
— E o que foi que ele disse?
— Que lamentava eu ter-me machucado e que nada tinha a ver com o
espancamento.
— Mas admitiu que mandara vigiá-lo?
— Digamos que se esquivou à pergunta.
— Por que o senhor não o pressionou?

1
Corpo militar japonês encarregado da manutenção da ordem nos países ocupados ou anexados depois
de 1910. (N. do E.)
— Não precisava fazê-lo. Foi devidamente informado de que eu me
reservava o direito de apresentar uma queixa contra todas as pessoas
envolvidas.
— Mas não apresentou queixa alguma. Por quê?
— Prefiro não expressar minhas razões para isso.
— Sr. Desmond, por que Basil Yanko mandou vigiá-lo?
— Não sei. Recordando os acontecimentos, parece-me que ele
suspeitava de uma associação minha com Valerie Hallstrom.
— E por que ele suspeitaria disso?
— Foi o Sr. Lyndon quem me deu a idéia. Disse que Valerie Hallstrom
talvez estivesse vendendo material do banco de memória dos computadores.
Não é verdade, Sr. Lyndon?
O Sr. Lyndon ficou embaraçado, mas enfrentou a situação com a
galhardia de um escoteiro.
— Pode ter interpretado nesse sentido uma observação minha.
O Sr. Frohm sorriu debilmente, e virou-se para mim.
— E então, por extensão, Basil Yanko pensou que o senhor fosse um
possível comprador.
— Talvez.
— Mas não era, não é mesmo?
— Estou sendo interrogado oficialmente, Sr. Frohm. Nenhuma
proposta foi apresentada, nenhuma solicitação foi feita.
— O que nos leva à grande lacuna, Sr. Desmond: quem lhe mandou o
caderninho e por quê? E sua resposta terá também caráter oficial. Mas vamos
tentar uma hipótese. Valerie Hallstrom lhe diz que tem medo de Basil Yanko.
Age como se soubesse que havia alguém à espera dela no apartamento. Ela lhe
entrega o caderninho para guardar. Sabe que é um artigo quente e resolve
então encenar a pequena comédia de mandá-lo a si mesmo, a fim de poder
usar a informação legalmente...O que me diz, Sr. Desmond?
— Só posso fazer um comentário, Sr. Frohm: isso é um absurdo total!
E já que está falando em lacunas, acho que está deixando de lado a maior de
todas: quem matou Valerie Hallstrom e por quê?
— Estamos investigando. A lacuna está ficando cada vez menor.
Sabemos que dois homens entraram no apartamento dela naquela noite. Um
deles era, evidentemente, o assassino. O outro era o homem que telefonou
para a polícia. Talvez tenha sido ele quem lhe enviou o caderninho...Se se
recordar de algo, informe-nos imediatamente, por favor.
— Pode deixar que o farei, Sr. Frohm. Aceita outro suco de tomate?
— Não, obrigado. Temos que ir agora. Ajudou-nos bastante, Sr.
Desmond...Essas flores são muito bonitas. Onde as arranjou?
— Isso, Sr. Frohm, é algo que nunca deveria perguntar.
— Agora é assim, hein? Normalmente é o homem quem tem de
comprar as flores. Mas, afinal, é possível que o Women's lib signifique alguma
coisa. Vamos, meu jovem Lyndon. Estamos entrando de folga. Vou lhe pagar
um drinque e um hambúrguer.
Se isso foi uma insinuação, fingi que não entendi. Acompanhei-os até a
porta, fechei-a e encostei-me nela, suando por todos os poros. Milo Frohm
não era nenhum noviço. Pelo contrário, era bastante experiente em
interrogatórios, astucioso e inteligente, a expressão sempre inabalável. Não
precisava de nenhuma bola de cristal para saber que muito em breve teria
novamente notícias dele. Isso, porém, não me preocupava. Achara-o
extremamente simpático. Usávamos o mesmo dicionário e o mesmo manual
de lógica elementar. O único problema era que a lógica não funcionava mais.
Não podia dizer como nem por quê, mas sentia que a nossa premissa maior
estava repleta de falhas e que a menor estava desaparecendo sem deixar
vestígios. O que, é claro, não era lógica absolutamente, mas puro instinto
animal.

Arlequim atrasou-se para o almoço. Às doze e quarenta e cinco paguei


um drinque para as meninas e depois despachei-as para a churrascaria do
hotel. Passavam quinze minutos de uma hora da tarde quando Arlequim
finalmente me telefonou, dizendo que pegasse um táxi e fosse encontrá-lo
numa traí torta em Foggy Bottom. Quando lhe pedi uma explicação, ele disse
que estava com vontade de comer spaghetti alia carbonara e cervelli ai burro,
o que me fez pensar que era seu próprio cérebro que estava amanteigado. Era
uma e quarenta quando nos sentamos a um canto do que devia ser o
restaurante mais escuro e menos popular de todo o Distrito de Colúmbia. O
espaguete estava queimado, o vinho era vinagre puro. Mas isso não tinha a
menor importância. A partir do momento em que Arlequim começou a falar,
tudo o que eu podia sentir era o gosto de cinzas.
— Antes de partirmos de Nova York, Paul, liguei para Herbert
Bachmann e pedi-lhe que procurasse delinear um panorama do que
aconteceria se eu começasse a despejar no mercado nossas ações da Creative
Systems. Ele telefonou-me às sete horas da manhã de hoje. Todo corretor da
cidade tem uma lista de ordens de compra, todas grandes. Pelo que Herbert
pôde calcular, a soma vai a mais de dez milhões de dólares.
Não pude resistir. Disse-lhe o que pensava sobre aquela operação e
sobre ele, por ter sequer cogitado de executá-la. Ele ouviu-me em silêncio e
depois continuou, inalterado:
— Essas ordens de compra são bastante significativas, Paul. E já vou
lhe explicar por quê. Esta manhã passei três horas na embaixada. Erich
Reiman é um velho amigo meu. Mostrou-se extremamente simpático, mas, a
princípio, não estava muito prestativo. Sua atitude só mudou depois que lhe
mostrei as cópias fotostáticas do caderninho. Foi uma mudança completa,
Paul, de cento e oitenta graus! Ele quis saber de tudo...
— Espero que não lhe tenha contado!
— Não contei tudo, mas falei mais do que você teria aprovado.
— Oh! Céus!
— Fiz uma troca com ele, Paul, item por item. Não tinha outro jeito.
— Pois estava negociando com minha vida, George!
— Sei disso. E Erich agora sabe também.
— E como bom diplomata, ele esquecerá tudo, enquanto isso lhe for
conveniente. Eu nem mesmo sou suíço. Não passo de um joão-ninguém
dispensável, lá de baixo...Agora conte-me o que conseguiu descobrir com as
trinta moedas de prata.
Essa estocada atingiu o alvo. A haste do copo de vinho escorregou de
seus dedos e o líquido derramou-se como sangue pela toalha branca. Um
instante depois ele estava me censurando, com palavras duras e uma
argumentação irresistível:
— Vai ter que me ouvir primeiro, Paul, e só julgar depois. Se então
quiser largar-me, pode fazê-lo. O que soube esta manhã torna todo o nosso
raciocínio inteiramente inócuo. Somos peões de um jogo global, que eu ainda
não tinha começado a compreender. Foi-me explicado esta manhã por um
amigo — não tão íntimo quanto você, mas mesmo assim um amigo —, e
acreditei no que ele me contou, porque é pago para saber e mora aqui, o lugar
do mundo mais apropriado para se tomar conhecimento das coisas...Garçom!
Arlequim estalou os dedos imperiosamente e o garçom veio correndo.
— Por favor, limpe essa sujeira e traga-me outro copo. Fiquei
esperando que o garçom cuspisse em sua cara e confesso que isso me deixaria
na maior alegria. Em vez disso, porém, ele saiu correndo para buscar
guardanapos limpos, colocando um em cima do outro, até que a mancha
ficasse escondida. Trouxe depois um copo limpo e uma nova garrafa de
vinho, servindo com mais reverência do que o necessário. Devia ter chegado
recentemente do Velho Mundo, pois inclinou-se e pediu desculpas antes de se
retirar. Arlequim bebeu todo o vinho de seu copo de um só gole e limpou a
borra dos lábios. Estava mais calmo agora, embora não menos insistente.
— Estamos assistindo este ano, sem que a maioria acredite, ao fim de
um milênio. E termina onde começou, na bacia do Mediterrâneo...Oh, não,
isto não é uma mera preleção política. E a dura realidade. Os príncipes do
deserto descobriram que podem parar o mundo, simplesmente fechando as
bicas do petróleo. Os proscritos do Crescente Fértil descobriram que podem
aterrorizar o mundo, com pistolas, granadas e explosivos plásticos. É verdade
e todos nós o sabemos. Todo aeroporto do mundo se transformou num
acampamento fortemente armado. Temos que sofrer uma revista minuciosa
para podermos ir visitar nossa mãe agonizante!... O outro fato é essa besta
fabulosa a que deram o nome de "crise de energia". O que isso significa
exatamente? Significa que, se os mineiros ingleses pararem de trabalhar, a
nação inteira irá morrer de frio. Significa que o Japão precisa curvar-se em
vassalagem aos xeques do petróleo, caso contrário sua indústria será paralisada
e o horror se apossará das ruas de uma centena de cidades. Na África e na
América do Sul, o progresso, lento e árduo, cessa por uma década ou mais. E
o que acontece então? Aqueles que aprenderam as lições de terror estão
preparados para disseminar o pânico e a confusão. Aqueles que detêm o
poder tentarão recolocar o tufão dentro da garrafa e isso provocará também
outro tipo de terror. Os exércitos particulares de agentes de segurança irão
transformar-se nos Block-Führers e nas forces de frappe2 de amanhã...Sabe
qual foi o nome que deram ao próximo ano no calendário dos serviços
secretos? O Ano dos Assassinos! Diante disso tudo, meu amigo Paul, onde
nos situamos, você, eu e Arlequim et Cie.?
Eu não sabia, por isso não podia dizer-lhe. Sua eloqüência silenciara
minha língua vulgar. Ele arrasara completamente minhas defesas, em seu
acesso de paixão e convicção. Nada podia fazer, a não ser sacudir os ombros e
dizer:
— Diga-me. Estou escutando.
— O preço do petróleo dobrou e triplicou. E o que acontece com o
dinheiro? Os príncipes do deserto não são tolos. Eles já viram que o dinheiro
é o sonho de um louco, um pesadelo de papel. O que mais eles vão querer
depois que seus arsenais estiverem cheios de armas, as estradas militares
construídas e os aeroportos atulhados de caças a jato? Sua própria indústria?
2
Equipes de combate dotadas de armamento ullra-sofisticado, capaz de exercer efeito dissuasivo sobre
eventuais ameaças nucleares e de coibir qualquer ofensiva bélica a partir de intervenção imediata. (N.
do E.)
Sua própria tecnologia? Alguns vão querer exatamente isso. Mas a
industrialização cria um proletariado e atrai uma força de operários nômades,
que rapidamente aprenderão as técnicas do terror. O que os príncipes mais
querem é segurança, por isso preferem investir na Europa e na América. Mas
não querem apenas ações e bônus, simples papéis. Querem assumir o
controle! Provas? Os sauditas cortaram as vendas de petróleo aos holandeses.
Agora estão negociando para construir uma refinaria saudita em solo
holandês. O que está sendo discutido em segredo possui um significado ainda
maior. Os italianos estão oferecendo vinte e cinco por cento de sua
companhia nacional de petróleo em troca da garantia de fornecimento do
petróleo bruto. Podem-se fazer todas as leis possíveis e imaginárias para se
excluírem os estrangeiros do controle das empresas domésticas, mas as leis
não passam de dragões de papel levados pelas ruas por homens venais e
invisíveis. O que nos leva imediatamente a Basil Yanko...Ele sabe, Paul! Ele
está vendo o que acontece! Tem o mundo inteiro encerrado em seus bancos
de memória. Ele me comprará com um ágio e me venderá pelo dobro aos
árabes, usando o dinheiro deles. Venderá também parte de si. Herbert
Bachmann identificou algumas das ordens de compra. Elas vieram do Oriente
Médio, através de vias tortuosas. Yanko vai mais longe. Ele pode equilibrar-se
entre os assassinos e os príncipes, porque, em todos os mercados, existem
também ofertas da Líbia...Meu amigo Erich explicou-me o padrão e vi que
todos os detalhes se ajustam. Karl Kruger, por exemplo: por que ele mantém
um relacionamento tão íntimo com os israelenses? Suas atividades bancárias o
explicam apenas pela metade; o sentimento é uma parte ínfima. Hamburgo
vive de navios. Os navios vivem de cargas. Uma Europa em depressão
significa uma Hamburgo agonizante. Os israelenses são o último posto
avançado da Europa no Levante. Eles não escondem sua intenção de
responder ao terror com o terror. Por que Aaron Bogdanovich se dispôs tão
prontamente a ajudar-nos? Por amizade? Não! É que nosso dinheiro lhe
permite sobreviver. Ele alega que trabalha para nós, mas estamos também
trabalhando para ele.
Arlequim fez uma pausa e um arremedo de sorriso contorceu-lhe os
cantos da boca.
— Estamos vivendo num mundo sórdido, Paul. A única moeda estável
é a mentira política. Se isso o faz sentir-se um tolo, lembre-se de que não é o
único. Eu também me senti um tolo, inclusive porque o FBI entrou em
contato com Erich Reiman muito antes de eu procurá-lo. Eles queriam saber
o quanto eu sabia. Erich convenceu-os de que era muito pouco, mas até ele
ficou chocado com minha ignorância total. Sabe o que ele me disse? "George,
você está no teatro errado. Isto não é a commedia deli'arte. É drama em seu
ponto máximo. E você não tem muito tempo para aprender o texto."
— Mas por que temos que continuar a ler as falas escritas por outras
pessoas? Por que nós mesmos não escrevemos a peça que vamos representar?
— E como sugere que o façamos, Paul?
— Vamos deixar que a imprensa a escreva para nós.
Foi preciso meia hora de argumentação para convencê-lo, mas, ao final,
ele acabou consentindo. Poderíamos estar cavando nossos próprios túmulos,
mas pelo menos teríamos um funeral vistoso.
De volta ao hotel, tive meu primeiro encontro com Arnold, o chefe da
portaria. Alto, triste, com cara de cavalo, o mesmo rosto inexpressivo dos
comediantes do cinema mudo. Tinha dois recados para mim. O primeiro era
um convite para um coquetel às sete horas da noite, num endereço em
Arlington. Estava assinado por um certo L. Klein. Não conhecia nenhum
Klein, Arnold também não. Mas o convite viera através da Bernard's Blooms e
parecia que o melhor era aceitá-lo. O segundo recado era simplesmente uma
tira rasgada de telex. Era um telegrama da UPI, vindo de Londres, datado da
última quinta-feira. O texto era curto mas informativo:
"Um turista americano, identificado como Frank Lemmitz, da cidade de
Nova York, foi encontrado morto esta manhã, com um tiro, num elegante
hotel do West End. A polícia londrina está tentando descobrir uma moça que
acompanhou Lemmitz a dois conhecidos cassinos da capital e que
provavelmente retornou ao hotel em sua companhia. Mais informações..."

Dessa vez, pelo menos, Aaron Bogdanovich contara a verdade. Rasguei


a mensagem em pedacinhos e joguei-a no vaso. Sentia-me como um estudante
solitário, brincando de espião na enfermaria. Juliette apareceu nesse momento.
Arlequim estava ditando correspondência e ela queria companhia. Por que
não? Eu também estava precisando de companhia. Ela tirou os sapatos e
acomodou-se num sofá. Liguei o rádio num programa de músicas antigas e
acomodei-me também, numa poltrona, de pés para cima e pronto para relaxar.
A música era suave, sem lágrimas, sem paixão, sem grandes profundidades.
Era um passeio pelos escaninhos da memória, um ou outro toque ocasional
nas cordas do coração. Juliette estava com um aspecto bem melhor, mais
tranqüila e menos perplexa. Sentia-me mais velho e devia aparentá-lo, pois
logo Juliette franziu o cenho e disse:
— Está parecendo cansado, Paul. Há algo errado? Não, não havia nada
errado. Minhas costelas doíam de vez em quando, ainda não podia mastigar
um bife. Mas não restava a menor dúvida de que eu estava prontinho, como
dizia meu avô, para casar com a Viúva McGonigle. Achei que George também
estava com um ótimo aspecto. E pensar que só duas semanas antes...
— Paul!
— O que é, minha cara?
— Acho que em breve voltarei para casa.
— O que George acha disso?
—- Ele deixou a meu critério. Desejaria que não o tivesse feito.
— Se quer um conselho do tio Paul, fique por aqui mais algum tempo.
— Razões especiais?
— Algumas. A previsão de hoje é de tempo muito ruim.
— Não sabia. Assim que voltou, George imediatamente chamou
Suzanne e começou a ditar cartas. Quando lhe perguntei o que acontecera na
embaixada, disse que explicaria depois. Fiquei magoada, mas não procurei
demonstrá-lo. Foi por isso que desci para visitá-lo.
— Está aprendendo, não é, querida?
— Não me esconda nada, Paul, por favor...
— Prometo que não o farei. George lhe contará todas as notícias. É
uma história longa e leva tempo para explicar.
— Mas ele contou-lhe tudo.
— Contou. E eu disse que ele me vendera pelo dinheiro de Judas.
— Oh, Paul, isso não!
— Foi um erro, mas eu disse. Por isso não o culpe se ele estiver de mau
humor...e não volte logo para casa.
— Paul, tenho que pensar no bebê e...
— O bebê ainda tem toda uma vida pela frente e um padrinho bastante
viajado para ajudá-lo. Ouça, querida: se você se vir na chuva e não tiver
ninguém para levá-la para casa, pode ter certeza de que estarei a seu lado. Mas
se Colombina ama Arlequim, é melhor ela vestir-se e preparar-se para o
momento em que a cortina se abrir. Caso contrário...
— A substituta toma seu lugar, não é?
— Exatamente, Julie. E há muitas garotas maravilhosas esperando
ansiosamente por isso. E agora por que você não sobe e pede café para dois,
dizendo a George que quero tomar Suzanne emprestada por meia hora? Ele
não deve monopolizá-la, mesmo sendo o presidente.
Ela não se foi imediatamente. Veio sentar-se no braço de minha
poltrona e pegou meu rosto entre as mãos, beijando-me na testa, dizendo
como eu era maravilhoso, gentil, bondoso, como era o melhor amigo que uma
mulher podia ter. Mais três palavras e estaríamos embolados no tapete. Não
sou nenhum santo, pelo contrário. Mas isso...não, muito obrigado! A menos
que estivéssemos dentro de uma cápsula a caminho da Lua, com passagem só
de ida. Fiquei grato pelo beijo, agradeci-lhe os elogios e levei-a ajuizadamente
até a porta, despachando-a para o andar de cima. Tentei sentir-me virtuoso,
mas não consegui. Sentia-me como um sacerdote Judas, rondando e
resmungando diante dos portões do convento à meia-noite.
Isso devia estar estampado em meu rosto, porque, ao descer, Suzanne
ficou parada com as mãos nas cadeiras, como se eu fosse uma forma de vida
muito rara e muito baixa. Depois deu-me seu sorriso suave e cúmplice,
dizendo meigamente:
— É duro, não é, chéri?
— Se o sabe, não precisa perguntar.
— Eu sei, querido, eu sei. E acho que, quanto mais cedo voltarmos
para casa, melhor será.
— Pode demorar um mínimo de sessenta dias.
— E será que você agüentará esse tempo todo?
— Duvido muito. E você?
— Não. Diga-me algo suave, Paul.
— Suzy, querida, por que não nos apaixonamos um pelo outro?
— Eu tentarei, se você tentar também.
— E como começamos?
— Você me beijando.
Depois disso, as regras foram flexíveis. E embora não estivéssemos
com muita prática, foi um jogo agradável para uma tarde quente em
Washington, D.C. Se vocês se dispõem a sorrir diante de duas pessoas, há
muito já passadas da juventude, empenhando-se no jogo do amor no Embassy
Row, então apreciem a comédia integralmente — e vejam se podem fazê-lo
melhor quando a solidão também as dominar.

Às sete horas em ponto eu estava tocando a campainha de uma casa


modesta mas até que bonita, em Arlington. A porta foi aberta por uma mulher
pálida, cujos óculos lhe davam uma aparência de coruja hostil. Disse-lhe meu
nome, expliquei que tinha um encontro marcado com o Sr. Klein. Ela
declarou que o encontro era com a Sra. Leah Klein e que era a dama em
questão. Levou-me para uma pequena sala, atulhada de livros, revistas e
arquivos desarrumados de recortes. A um canto havia uma escrivaninha
coberta de papéis, em outro havia um pequeno armário com bebidas. Havia
duas poltronas na sala, uma das quais estava ocupada por um gato. Não vi
nenhum cabo de vassoura, mas a Sra. Leah Klein parecia uma bruxa, imensa e
estranha, os dedos manchados de nicotina e uma voz profunda e áspera. Ela
preparou dois drinques, um bourbon para mim e uma dose de rum com coca-
cola para si mesma. Depois do primeiro gole, entrou direto nos negócios:
— Kurt Saperstein disse-me que deseja divulgar uma história. Certo?
— Certo.
— Fato ou boato?
— Alguns fatos, um pouco de inferências. Gostaria, se possível, de que
a história parecesse oriunda de Londres.
— Por quê?
— Porque a situação política assim o exige.
— Pode ditar a história?
— Posso fazer um esboço.
— É tudo o de que preciso.
Ela sentou-se diante da máquina de escrever, pôs papel, acendeu um
cigarro, pendurou-o no canto da boca e disse:
— Nenhum comentário, apenas os fatos. Certo?
— Certo. A UPI despachou hoje de Londres um telegrama contando
que um certo Frank Lemmitz, turista americano, foi encontrado morto num
hotel do West End. A polícia está à procura de uma moça que foi vista em sua
companhia em dois conhecidos cassinos londrinos. Aqui termina a história
que eles tinham para contar. Agora começa a minha. Frank Lemmitz era
motorista de Basil Yanko, presidente da Creative Systems Incorporated. Ele era
conhecido por possuir contatos no submundo do crime, especialmente um
certo Bernie Koonig. Basil Yanko no momento está em Frankfurt,
participando de uma reunião internacional de banqueiros. Está me
acompanhando?
— Estou na sua frente. Continue falando.
— Uma funcionária da Creative Systems, a Srta. Valerie Hallstrom, foi
assassinada em seu apartamento há três dias. A notícia saiu nos jornais. Mas os
seguintes fatos não foram divulgados: o FBI está investigando a divulgação de
segredos dos bancos de memória da Creative Systems; diversas grandes
empresas americanas estão envolvidas; os nomes delas são...
— Soletre, por favor.
Soletrei os nomes de todas as companhias, uma por uma, inclusive a
nossa. Ela batia à máquina como se estivesse enfrentando um inimigo mortal.
— Arlequim et Cie. foi lesada em uma soma considerável, pelo mau
uso de seus serviços de computadores, controlados pela Creative Systems e por
suas subsidiárias em outros países. Já se identificou a autora da fraude no
terminal de Nova York. Seu nome era Ella Deane. Morreu há duas semanas,
atropelada por um carro não identificado. Deixou um dinheiro considerável,
quase todo depositado nos últimos três meses que passou no emprego. Um de
seus namorados era Frank Lemitz. Por coincidência, Basil Yanko está neste
momento tentando assumir o controle de Arlequim et Cie. A oferta que ele
fez já é do conhecimento público. O acionista majoritário recusa-se a vender.
Os minoritários ainda estão indecisos. Até aqui, relatei fatos comprováveis.
Pode verificá-los pessoalmente. Daqui por diante, uma parte é constituída de
fatos e a outra de inferências.
— E quais são os fatos?
— Todos os principais corretores de Nova York possuem inúmeras
ordens de compra das ações da Creative Systems. Algumas das ordens maiores
são de clientes do Oriente Médio...
— Dinheiro do petróleo!
— Pode verificar. E alguns são líbios.
— E quais são as inferências?
— Os árabes querem ter uma base em atividades bancárias e industriais,
na Europa e nos Estados Unidos. Isso é patente por tudo que têm falado e
feito. E eles possuem dinheiro bastante para consegui-lo. Acreditamos que
Basil Yanko os está ajudando. A pretensão é legal, os meios é que são escusos.
Em nosso caso, são criminosos. Trouxe-lhe uma cópia de um dossiê que
preparamos sobre o passado de Yanko. Devem tê-lo também em seus
arquivos. E esse é o final da história.
— Diga-me agora, por que deseja vê-la divulgada?
— Queremos atenuar a pressão em cima de nós e aumentá-la sobre
Yanko. Queremos vê-lo totalmente desacreditado.
— Muitas outras pessoas estão querendo a mesma coisa.
— E essa história é suficiente para consegui-lo?
— Não. Mas não resta a menor dúvida de que irá agitar o formigueiro.
Pode dizer-me mais alguma coisa a respeito da morte de Valerie Hallstrom?
— Poderia, mas não vou fazê-lo. Se quiser saber por quê, pergunte a
Kurt Saperstein.
Ela girou a cadeira para encarar-me. Deu uma tragada profunda no
cigarro. A cinza caiu em seu colo e ela limpou-a distraidamente.
— É por acaso judeu?
— Não. Sou um goy.
— Essa história, Sr. Desmond, é muito quente. E poderá ficar ainda
mais quente para o senhor.
— Eu sei. Quando a história será publicada?
— Hoje é sexta-feira. Com um pouco de sorte, tê-la-ei preparado para
sair nos jornais de domingo na Inglaterra. De lá, ela se espalhará. Os serviços
telegráficos a mandarão de volta para cá a tempo de sair nos jornais de
segunda-feira. O mesmo acontecerá na Europa. Será como jogar merda no
ventilador. Talvez fosse aconselhável que o senhor tirasse um longo fim de
semana.
— Obrigado pela sugestão. Vou pensar no assunto.
— Aceita outra dose?
— Não, obrigado. Vou terminar esta e depois irei embora. Importa-se
de me dizer uma coisa?
— O quê?
— Parece que aceitou muita coisa em confiança. Por quê?
Ela jogou a cabeça para trás e riu, um riso áspero, zombeteiro e sem o
menor humor, um riso típico de homem.
— Confiança? Não confiaria nem em minha própria irmã num assunto
deste...Se o senhor não tivesse sido meticulosamente checado, não teria
chegado nem a dez quarteirões desta casa. Antes de sua história ser divulgada,
será devidamente examinada por peritos. Se não se ajustar aos fatos, está
liquidado, Sr. Desmond. E, se não se ajustar à nossa política, então
simplesmente não será publicada.
— Então eu a levarei para algum outro lugar.
— Para onde quer que a leve, precisará de alguém que a reescreva e de
um editor simpático. Em mim, encontrou ambas as coisas. Não abuse de sua
sorte.
— É que também não gosto de que abusem de mim.
— Se não gosta de feijões, então não abra a lata... L’chaim!

Havia um recado para mim na portaria do hotel: Saul Wells acabara de


chegar de Nova York de trem e estava me esperando no bar. Empoleirado
num tamborete alto, inclinado sobre seu drinque, ele se parecia mais do que
nunca com um furão, rabugento, inquieto e combativo. Seu rosto se iluminou
quando me viu. Fomos sentar-nos num canto escuro, longe dos ouvidos dos
outros fregueses. Ele tirou o celofane de um charuto novo, enfiou-o no canto
da boca e acendeu-o. Entre uma baforada e outra, cada uma formando nuvens
de fumaça, foi-me dando as notícias:
— Já recebi os primeiros relatórios de suas filiais. A operação em todas
foi a mesma, com variações locais. Nos países em que vigoram restrições à
exportação de recursos locais, somente as contas estrangeiras foram atingidas.
Em três casos, como a Cidade do México, por exemplo, suas operadoras
pediram demissão logo depois do acontecimento. Em outras duas filiais elas
continuam no emprego, o que pode levar à suposição de que a fraude foi
efetuada no próprio sistema. Na Inglaterra, tivemos mais sorte. A operadora
era uma mulher chamada Beverly Manners. Ela pediu demissão para casar-se.
Promoveram-lhe uma grande festa no escritório e o gerente deu-lhe uma
gratificação. Ela está viva e com saúde, morando numa casa grande no Surrey.
Segundo o relatório, ela está grávida de cinco meses.
— E isso é relevante, Saul?
— Creio que sim. Não podemos pressionar uma mulher grávida. O
mais importante, porém, é que o marido dela trabalha para a subsidiária
inglesa da Creative Systems.
— Isso é um tanto estranho.
— As coisas são mais estranhas do que está pensando. A dama em
questão e seu marido são quase vizinhos do seu gerente em Londres, e
costumam jogar golfe com ele. As transações fraudulentas foram justificadas
por uma instrução de telex recebida de Genebra e assinada por George
Arlequim.
— E já verificou nossos arquivos de telex em Genebra?
— Já. Não encontramos a menor pista. O telex foi despachado de
outro terminal.
— O negócio é mesmo uma conspiração...
— Se quiser descobrir mais alguma coisa, terá que recorrer à polícia
britânica.
— Ainda não chegou o momento. Procure ir o mais longe que lhe for
possível sem a ajuda da polícia. Não podemos nos dar ao luxo de perder mais
funcionários ou aumentar a publicidade sobre o caso. Como se saiu com o
FBI?
— Eles me fizeram suar. E como foi o encontro deles com o senhor?
— A mesma coisa.
— Alguma novidade?
Falei-lhe de minha conversa com a Sra. Leah Klein. Ele mordeu o
charuto com força e fitou-me com uma surpresa indisfarçável.
— Irmão, foi procurar sarna para se cocar! Circule por Washington e
irá descobrir que todo mundo a chama de coveira, porque enterrou algumas
figuras importantes e escreveu alguns obituários espetaculares. Se ela está do
seu lado, então está com sorte. Caso contrário, está na hora de sair da cidade.
— De qualquer forma, Saul, ela quer que deixemos mesmo a cidade.
No mesmo instante ele ficou alerta e extremamente sério:
— Se ela disse isso, Sr. Desmond, é melhor comprar
logo as passagens. Quando Leah começa a disparar da cintura, até
mesmo o pessoal da Casa Branca sai correndo em busca de cobertura. Ela dá
apenas um único aviso: o último.
— Falarei com Arlequim a esse respeito.
— Uma sugestão, Sr. Desmond: há bons aviões para a Cidade do
México. Tenho aqui as informações sobre sua filial de lá. É um pretexto, se
precisar de um.
— Eu o usarei, se for necessário. Se não tem mais nada a dizer-me de
urgente, poderemos encontrar-nos em minha suíte para tomar o café da
manhã e então repassar os relatórios.
— É melhor encontrarmo-nos no restaurante.
— Alguma razão especial?
— A melhor possível. A Srta. Suzanne deixou-me dar uma olhada nos
quartos que estão ocupando. Eles estão quentes como o interior de um reator
nuclear. Mas a suíte de Arlequim está limpa, o que é bastante estranho.
— Não é tão estranho assim. Há sempre gente lá, quase o dia inteiro.
Saul sorriu e fez alguns movimentos cômicos com o charuto.
— Se andou fazendo alguma coisa diferente lá em cima, está agora tudo
gravado e os monitores devem ter tido uma diversão maravilhosa.
— E quem serão os monitores, Saul?
— Há duas alternativas, Sr. Desmond: o FBI ou o pessoal de Basil
Yanko.
— Dê um palpite.
— Sou capaz de apostar que é Yanko. Motivo: o FBI sabia que
Arlequim ia visitar o seu embaixador e que o senhor também deveria
encontrar-se com o seu. Nessa circunstância, creio que eles agiriam de acordo
com os regulamentos.
— O FBI entrevistou-me esta manhã em meu quarto.
— Se eles voltarem, como provavelmente acontecerá, fale-lhes sobre os
microfones. Há um dentro do telefone. O outro está debaixo da mesa, ao lado
do sofá.
— E por que não os arrancamos logo de uma vez?
— Porque fazem com que o senhor pareça inocente, Sr.
Desmond...mesmo que não o seja. Trabalhando com Aaron Bogdanovich e
Leah Klein, está jogando muito alto. Esse é outro motivo pelo qual eu gostaria
de vê-lo fazendo uma viagem ao México.
E com essa observação confortadora nos separamos,
Saul para passar a noite do Sabbath com os amigos e eu para transmitir a
Arlequim o relato de minhas ações e tentar persuadi-lo de que o clima da
Cidade do México era muito mais saudável que o de Washington. Ele
concordou com o roteiro de minha história, embora receasse que Leah Klein
ou outra pessoa qualquer o alterasse. Não queria também partir porque
precisava ficar em contato com o mercado de Nova York. Talvez precisasse
ter mais algumas conversas com Herbert Bachmann. Detestaria dar a Yanko a
impressão de que estávamos fugindo. Argumentei que teríamos de visitar a
Cidade do México de qualquer maneira. Por que então não íamos no fim de
semana, quando todos os negócios estavam paralisados por dois dias?
Estávamos pagando para receber os conselhos de peritos; por que não aceitá-
los? Julie acrescentou calmamente a sugestão de que poderia voar até
Acapulco e fazer uma visita a Lola Frank. Assim, se tivéssemos que voltar a
Nova York às pressas, não teríamos de nos preocupar com ela. Finalmente
Arlequim concordou e desci até a portaria para providenciar as reservas com
Ar-nold. Quando fiz o pedido, um pouco de cor surgiu em seu rosto
impassível e ele disse:
— Como foi que recebeu o aviso, Sr. Desmond?
— Que aviso? Vamos fazer uma viagem de negócios, pois temos um
escritório na Cidade do México.
— Ahn!...
— Algum problema, Arnold?
— Nenhum. É que é uma coincidência. Acabei de saber que um amigo
seu está a caminho do México e queria que entrasse em contato com ele por
lá. Tenho o telefone dele aqui.
Entregou-me um cartão e começou a folhear os horários de vôo,
falando o tempo todo em tom monótono:
— ...Creio que gostarão de ficar no Camino Real. O mesmo arranjo que
aqui, certo? Ligarei para lá assim que confirmar o vôo. Ah, aqui está! A Braniff
tem um vôo que sai daqui às três e quinze da tarde, faz escala em Dallas e San
Antônio e chega à Cidade do México às nove e meia. Primeira classe e uma
limusine esperando no aeroporto? Não, creio que seu próprio pessoal irá
esperá-lo. Quanto tempo pretendem ficar? Quatro, cinco dias? Vamos calcular
uma semana. Sempre poderão cancelar as reservas. Endereço para
correspondência? O escritório de seu banco, está certo? Providenciarei para
que seu amigo tome conhecimento das
disposições. É engraçado como as coisas acontecem, não acha?
Quanto mais eu pensava no caso, mais engraçado achava: um humor
fúnebre, que fazia meus nervos formigarem e os cabelos da nuca arrepiarem.
Estávamos de volta ao que George Arlequim chamava de jogos de fantasmas:
sussurros no escuro, rangidos no revestimento de madeira, toda uma cabala de
sinais e símbolos para confundir o jogador principiante. Ao seguir para o
elevador, ouvi uma voz familiar chamando-me. Virei-me para ver o Sr. Milo
Frohm dois passos atrás de mim. Ele estendeu a mão em cumprimento e
apertei-a distraidamente.
Disse-me então:
— Ia subir para falar com o Sr. Arlequim.
— Eu também.
— Espero que não seja muito tarde.
— Mas é. Amanhã estaremos partindo para a Cidade do México.
— É mesmo?
A porta do elevador se abriu e fizemos rapapés de mandarim para ver
quem entrava primeiro. O Sr. Frohm era um homem muito bem-educado e
deixou para insistir em suas perguntas diante de George Arlequim, que o
recebeu com café e conhaque e explicou a viagem súbita com sua habitual
franqueza desarmante:
— Não há mistério algum em nossa viagem, Sr. Frohm. O Sr. Wells
acaba de entregar seu relatório sobre nossa filial na Cidade do México.
Precisamos conversar com o gerente e com os acionistas locais. Enquanto
estivermos trabalhando, minha esposa visitará amigas em Acapulco. Isso me
causa algum problema?
— Problema nenhum, Sr. Arlequim. Fico apenas preocupado.
— Fico contente em ouvi-lo. Depois de minha conversa com o
embaixador esta manhã, senti-me como se estivesse, por assim dizer, em
território inimigo. Neste momento, o seu Departamento de Estado não anda
muito feliz com os europeus...Oh, Julie! Este é o Sr. Frohm, do FBI. Sr.
Frohm, minha esposa.
— Prazer em conhecê-la, madame. Lamento muito vir aqui incomodar
a uma hora tão tardia.
— Há algo errado, George?
Ela estava de olhos arregalados numa expressão de inocência.
— Não, querida. Fique aqui conosco. Pode continuar, Sr. Frohm.
— Suponho, Sr. Arlequim, que seu embaixador se tenha referido às
bases políticas do problema, não?
— Ele o fez.
— Referiu-se também, sem a menor dúvida, a certos elementos de
violência na situação.
— Falou a respeito.
— Sr. Arlequim...
Ele tossiu, hesitante, como se estivesse à procura da frase certa.
— Eu...isto é, nós...temos certas opiniões...pode até chamar de
posições...que não estou autorizado a divulgar. Contudo, quero declarar que
os senhores não estão, como o disse, em território inimigo. Pode sentir, Sr.
Arlequim, com alguma razão, que tem um inimigo pessoal em Basil Yanko.
Podemos achar, embora eu não afirme que isso aconteça, que suas táticas em
questões de negócios são rudes e até mesmo repreensíveis, mas não podemos
intervir. Temos dois assassinatos nas mãos e uma situação política altamente
tensa, aqui no país e no exterior. Em nossa sociedade, a violência é endêmica
e pode tornar-se epidêmica. O senhor pode também ser ameaçado por ela, Sr.
Arlequim. É nosso dever avisá-lo de que não poderemos protegê-lo em todos
os momentos. E é bom que Madame Arlequim também compreenda isso.
Arlequim ficou em silêncio por um momento, olhando para as costas
de suas mãos longas e delicadas. Disse então, gravemente:
— Não está generalizando demais, Sr. Frohm? Por quem estamos
sendo ameaçados?
— Pergunte a si mesmo, Sr. Arlequim, quem mais deverá lucrar com
sua morte. E pense também que, se o senhor, ou as pessoas que trabalham
com o senhor, identificar-se com alguma facção de fanáticos, então estará
dobrando' seu risco pessoal. Sabe que Frank Lemmitz foi assassinado em
Londres?
— Ouvimos falar. Quem o matou?
— O senhor mesmo. Matou-o com uma palavra intempestiva.
Ele franziu o cenho e estendeu as mãos num gesto de súplica.
— É exatamente isso o que estou tentando mostrar-lhe. É um estranho
nesta cidade, não fala o mesmo idioma.
É um suíço, vem de um país pequeno e bem-organizado, no qual se
precisa de licença até mesmo para tossir, embora seja um homem de tão boas
maneiras que não costuma fazê-lo...Posso perguntar-lhe se já providenciou
proteção para seu filho?
— Já solicitei a vigilância da polícia. E estou certo de que é adequada.
— Espero que sim. Perdoe-me, Sr. Arlequim, mas isto é a América no
último rolo do Sonho americano, que se transforma num pesadelo em
tecnicolor. Não sinto o menor prazer em estar aqui a pedir desculpas por meu
país e também por mim mesmo, mas estou preparado para fazê-lo, desde que
isso o faça ver a verdade.
— E qual é a verdade, Sr. Frohm?
— As leis são inadequadas. As "forcas da lei são mais inadequadas
ainda. Algumas delas são corruptas, embora nem todas. A corrupção se
dissemina à medida que a confiança declina. Estou lhe pedindo que confie em
mim, Sr. Arlequim. Peço-lhe a mesma coisa, Sr. Desmond.
Era a minha vez. Não ia deixar passar aquela oportunidade, não podia.
— Sr. Frohm?
— Pois não, Sr. Desmond.
— Acredito, porque quero acreditar, que é um homem honesto.
Responderia a duas perguntas?
— Se me for possível, claro que sim.
— Tem ordens para escutar meu telefone e pôr microfones em meu
quarto?
— Não.
— O senhor ou algum de seus agentes tomou então essa iniciativa por
conta própria?
— Ao que eu saiba, não.
— Pois alguém o fez, Sr. Frohm. O Sr. Wells descobriu os microfones
no início da noite.
— Ele verificou este quarto também?
— Verificou. Está inteiramente limpo.
Ele sacudiu a cabeça lentamente. Fitou-me e depois a George Arlequim
e a Julie. Levantou-se e foi ao telefone. Completada a ligação, disse lenta e
raivosamente:
— Carl? ...Milo Frohm. Sabe onde estou. Traga Pete e sua caixa de
ferramentas até aqui, o mais depressa possível.
Voltou a sentar-se. George Arlequim serviu-lhe uma dose de uísque.
Ele bebeu lentamente, colocando o copo em cima de uma mesinha, com
extremo cuidado, quando acabou.
— Compreende agora nosso problema, Sr. Frohm? — disse Arlequim
gentilmente.
Milo Frohm assentiu, sacudindo a cabeça para cima e para baixo,
repetidas vezes. Parecia uma dessas velhas estatuetas de Buda que os
marinheiros costumam trazer de Xangai.
— Compreendo, Sr. Arlequim. Neste momento, não tenho certeza do
que nós vamos fazer. Uma coisa, porém, é certa: quando chegarem à Cidade
do México, devem todos ter muito cuidado.

Nossa partida de Washington nada teve de gloriosa. Chovia forte, o céu


estava cinzento, as nuvens, baixas. O êxodo do fim de semana já começara e
éramos apenas mais quatro cordeiros sendo levados à imersão de
desinfetantes e despachados o mais rapidamente possível. Nossa bagagem de
mão foi revistada, tivemos que passar por um portão especial de detecção.
Fomos apalpados e interrogados, levados para um curral, enquanto agentes de
segurança revistavam o avião, à procura de engenhos letais. Bons cordeiros
que éramos, dissemo-nos uns aos outros que aprovávamos os cuidados que
estavam sendo tomados para salvar nossas vidas. Deploramos a violência que
tornava a precaução necessária e nos entregamos, com fé absoluta, aos
cuidados de nossos guardiães armados e anônimos. Minha fé se tornara mais
frágil com o passar dos anos e, assim que levantamos vôo, pedi minha ração
de coquetéis, mergulhando imediatamente na leitura do relatório de Mendoza
sobre a fabulosa carreira de Basil Yanko.
A primeira parte era o folclore padrão: filho de imigrantes pobres da
Boêmia, ele vendera jornais e fora entregador de mercadorias para custear os
estudos, enveredando, com muita coragem e inteligência extraordinária, pela
nova ciência da tecnologia de computação. Sua carreira nas grandes
companhias fora rápida e imaculada. Era muito bem pago e economizava
tudo o que podia. Sua parcimônia era, aliás, a única característica notável de
sua vida particular. Não tinha filiações políticas e aparentemente quase não
precisava de amizades. Submetia-se, sem qualquer queixa, à disciplina das
grandes corporações. Não pedia favores para si mesmo. Não era indulgente
com os subordinados. Recusava-se a participar das intrigas da companhia. Sua
única declaração registrada era um julgamento sumário numa disputa entre
executivos:
"Nós fabricamos cérebros e ensinamos as pessoas a usá-los. Vamos ver
se conseguimos usar também nossos próprios cérebros".
Tinha trinta e dois anos quando resolvera estabelecer-se por conta
própria. Tinha então economizado um quarto de milhão de dólares,
comprando um terço de uma pequena organização de processamento de
dados de Nova York. No mesmo ano casara-se com a filha do sócio
majoritário. No ano seguinte, a esposa viajou para Nevada e divorciou-se dele.
Ela também era citada no relatório, com uma descrição um tanto histérica da
personalidade do marido:
"Ele não era cruel. Também não era um homem bom. Simplesmente
não existia. Casei-me com ele com estrelas nos olhos, mas o que eu realmente
estava vendo eram refletores a se acenderem e se apagarem, fitas de
computadores a girarem...Quando o procurava, tudo o que encontrava e podia
tocar era esmalte ressecado. Não era um homem. Era um monstro mecânico".
Seis meses antes do divórcio, Basil Yanko fundara uma pequena
companhia, chamada Creative Systems Incorporated. Ela nada fazia, exceto existir.
Seis meses depois do divórcio, seu sócio mais velho morreu de uma dose
excessiva de barbitúricos. Houvera rumores de escândalo: fraude nas contas,
espionagem industrial, vendas de informações aos competidores dos clientes.
O homem morto abdicara de sua defesa. Basil Yanko defendera-o tão
vigorosamente que adquirira a imagem de homem justo e amigo leal,
conseguindo manter a maioria dos clientes. A Creative Systems Incorporated
comprara então a outra companhia, por uma bagatela. Basil Yanko era agora o
único dono de uma companhia de processamento de dados. Podia oferecer os
serviços exclusivos de um gênio, sem estar preso à submissão a espíritos
menores. As grandes corporações começaram a mandar-lhe negócios. Ele
expandiu-se, lentamente, mas com uma espécie de certeza inexorável,
comprando talentos, vendendo idéias, oferecendo sempre mais do que estava
estipulado no contrato.
Seu modo de vida também mudou. Passou a viver mais luxuosamente,
esbanjando ao receber, mas cercando-se, ao mesmo tempo, de uma aura de
mistério faustiano. Era uma atitude que atraía as críticas, pois sugeria
charlatanismo. Mas essa atitude foi compensada, sem dúvida, quando se
comprovou que ele era realmente um mago dos computadores. Companhias
poderosas passaram a basear-se em suas pesquisas. Homens nas mais altas
posições procuravam seus conselhos e ele, em troca, dotava-os com os
instrumentos do poder.
Casou-se novamente com a filha de um deles, uma mulher de trinta
anos que tinha a fama de gostar de mocinhas, sendo rica o suficiente para se
permitir essa excentricidade. Ela morreu ao dar a partida em sua lancha no
lago Tahoe, tendo a gasolina explodido. Basil Yanko estava no momento em
Nova York. Ele pegara um avião para ir prantear a esposa falecida junto ao
seu túmulo, receber o seguro e ouvir a leitura de um testamento que tinha
apenas três meses e o deixava oito milhões de dólares mais rico.
Passou a expandir-se mais rapidamente, devorando as pequenas
companhias, despojando-as de seus bens, mantendo os melhores funcionários
e mandando o resto para seus rivais. Nos dias prósperos de meados da década
de 60, quando todos os pequenos reis estavam pagando fortunas por roupas
invisíveis, Basil Yanko saiu em público e ganhou outra fortuna. Comprou
outras companhias. Invadiu a Europa, comprando ações e propriedades
imobiliárias, fazendo aliados e criando subsidiárias. Havia rumores insidiosos
de que ele estava também vendendo informações, em troca de participação
em empreendimentos europeus. O relatório de Mendoza citava diversos
casos, mas em nenhum havia provas irrefutáveis. Num exemplo sinistro, um
laboratório europeu fora acusado de roubar segredos de concorrentes. Três
dias depois, um analista-chefe da Creative Systems morrera num acidente de
automóvel nas Dolomitas.
De certa forma, era tudo conhecido, dêjà vu, uma reedição das histórias
dos barões do tabaco, dos imperadores do petróleo, dos traficantes de armas.
A gente sabia que tinha acontecido, mas seria necessário uma fortuna e três
vidas para provar. E quando finalmente alguém conseguisse provar, ninguém
lhe daria uma medalha, mesmo que ainda estivesse vivo para aceitá-la...O que
não importava, contanto que tivesse acontecido ontem e com outra pessoa
qualquer. Mas, na verdade, estava acontecendo hoje e conosco. O pessoal do
mercado sabia disso, mas enquanto os seus próprios bolsos não fossem
atingidos, eles dificilmente iam se importar. Se ganhássemos, talvez ficassem
mesmo constrangidos. Se perdêssemos, continuariam a jantar com Basil
Yanko no Clube dos Banqueiros, esquecendo-nos com o epitáfio que
desculpava qualquer coisa: negócios são negócios. Acendeu-se o aviso para
apertarmos os cintos. A aeromoça informou que estávamos descendo para
aterrissar em Dallas, a cidade em que mataram John Kennedy e enterraram a
verdade com o seu assassino, e todo mundo viveu em paz e felicidade depois
disso.
6

Eu estava adormecido e sonhando quando atravessamos o rio Grande.


Acordei para ver o pico do Popocatepetl, coberto de neve e sereno, recortado
contra um céu cheio de estrelas. Lá embaixo havia montanhas menores e
lagos de escuridão, pontilhados pelas luzes de aldeias. À frente e à distância
podia-se distinguir a presença da Cidade do México, um brilho dourado que se
difundia por entre o nevoeiro e se erguia até a altura dos campos estrelados.
Experimentei uma estranha sensação de libertação e alívio, como se tivesse
acabado de emergir de um longo túnel e encontrasse uma selva vasta mas
cordial. Suzanne, a meu lado, irradiava também a mesma excitação e assombro
súbitos. Segurou minha mão e começou a conversar como uma criança, cheia
de fantasias e histórias lembradas pela metade: a serpente emplumada, a
cidade de ouro no lago, as pessoas para quem o tempo era um mistério
sagrado, Cortês, que fora recebido como um deus e era humano demais para
percebê-lo.
George Arlequim veio partilhar aquele momento conosco. Estava
obcecado pelas pequenas luzes nos grandes vales, tesouros de memória racial
que jamais seriam registrados, pois aqueles que os detinham não sabiam ler
nem escrever e a língua que falavam morreria com eles. Falou sobre a estranha
amnésia que aflige a raça humana, capaz de jogar ao vento, numa única
geração, toda a sabedoria adquirida em uma era inteira. Pairando entre o céu e
a terra, vimos fragmentos de visões, por um momento tivemos poeira de
estrelas em nossas mãos.
Quando aterrissamos, as visões se dissolveram num nevoeiro acre, a
poeira de estrelas transformou-se em poeira da terra, áspera em nossos dedos,
seca em nossas bocas. Arrastamo-nos lentamente pelo controle de
passaportes. Esperamos como peões pacientes que nossas bagagens fossem
desembaraçadas pela Alfândega. Depois fomos envolvidos por um mar
agitado de homens, mulheres, crianças e animais domésticos diversos.
Quando já estávamos prestes a nos entregar ao desespero, o mar se abriu e
José Luis Miramón de Velasco deu-nos as boas-vindas na terra dos astecas.
Pelos nossos registros, ele tinha trinta e cinco anos, era solteiro,
formara-se pela Universidade Nacional Autônoma e pela Escola de
Administração de Negócios de Harvard, e pertencia a uma velha família
gachupin — o que significava que seus ancestrais usavam sapatos e falavam
castelhano, enquanto o resto do país andava descalço e falava nahua ou
espanhol deturpado. Significava também que ele era rico de nascença, belo e
orgulhoso como Lúcifer, podendo caminhar de olhos fechados pelo labirinto
da administração mexicana.
Sua recepção foi a mais cortês possível. Apresentou-nos no hotel com
uma pompa real. Colocou imediatamente à nossa disposição a si mesmo, a
seus serviços, a sua casa. Percebi que as mulheres ficaram surpresas pelo fato
de um homem tão másculo e tão bonito ter conseguido ficar tanto tempo
solteiro. Antecipei-me em dizer que um rico gachupin, que dirigia um banco de
investimentos na Cidade do México, precisava de casamento tanto quanto
precisava de pulque e tamales para o jantar.
Antes de partir, solicitou o obséquio de uma conversa particular
comigo e com Arlequim. Estava insultado com o que acontecera ao banco,
não podia dormir em paz enquanto não fosse removida a nódoa em sua
reputação. Conhecendo seu orgulho inabalável, receei que estivéssemos
fadados a ter uma reedição em castelhano da arenga de Larry Oliver. Mas,
pelo contrário, sua preocupação imediata era para com George Arlequim.
— ...Esteve doente, meu amigo. É monstruoso que tenha de se
envolver tão cedo nessa...nessa sofisteria! Mas é assim que os negócios
funcionam com os ianques. Se alguém não concorda em vender ao preço que
eles fixam, começam a assediá-lo por todos os meios possíveis, assustam-no
com processos e espiões a escavarem sua vida privada. Mas aqui, pelo menos,
conseguimos mantê-los à distância. Não há dúvida de que fomos
prejudicados. Quero que saiba disso antes de mais nada. Argumenta-se que
um bom banqueiro pode cheirar uma fraude antes mesmo que aconteça.
Argumenta-se também que vendemos ações da Creative Systems, que
contratamos seus serviços; se agora estamos encontrando dificuldades, o erro
foi nosso e não deles...
Amanhã, você e Madame Arlequim estão convidados a almoçar com
Pedro Galvez e dois outros de seus acionistas mexicanos. Galvez é o homem
forte. Convença-o e conseguirá sair das sombras, voltando aos negócios. Ele
está querendo financiamento para a exploração de novas minas e a construção
de novas estradas de acesso. Preferiria obtê-lo na Europa ou no Japão a ir
buscá-la ao norte da fronteira. Existem aqui algumas características difíceis de
se perceber, mais difíceis ainda de se interpretar. Nossas raízes estão na
Europa e na velha vida indígena deste país. Nossas lealdades são apenas para
conosco mesmos. Nossas inimizades remontam ao Álamo. O próprio Hernán
Cortes ainda não foi absolvido...Perdoe-me, não estou sabendo explicar-me
muito bem. Tenho mais uma coisa a dizer-lhe. Muito embaraçosa, mas não
posso calar...
Ele parou de falar bruscamente, como se estivesse esperando o perdão
antecipado, enquanto procurava pôr em ordem uma declaração difícil.
Finalmente falou:
— George, meu amigo, fui um idiota! Com um sorriso triste, Arlequim
comentou:
— É um lamento comum, José. Acontece a mesma coisa com todos
nós.
— Mas desta vez, George, você é que está sofrendo as conseqüências.
Nos últimos dois dias estive trabalhando com seus investigadores no banco.
Ficou evidente que a operadora que codificou as falsas instruções foi uma
moça chamada Maria Guzmán, que nos deixou em janeiro. Disse a seus
investigadores que ela desaparecera de circulação e que seria muito difícil
descobrir-lhe a pista...Mas isso foi uma mentira.
— Tenho certeza de que teve uma boa razão para dizê-la, José.
— Deixarei isso para seu julgamento. Essa Maria era. .. é uma mulher
muito bonita. Por algum tempo eu...eu a namorei. Quando ela começou a
levar o caso muito a sério, tratei de deixá-la. Isso aconteceu em setembro,
outubro, do ano passado. É claro que continuou conosco, pois era muito
eficiente em seu trabalho. Ganhava muito bem. Em janeiro, anunciou-me que
gostaria de sair do banco. Recebera uma oferta bem melhor na Petróleos
Mexicanos. Dei-lhe uma recomendação de primeira e deixei-a ir. Para mim, o
assunto estava encerrado, da melhor maneira possível. Não é nada agradável
quando se tem que encontrar todas as manhãs com uma antiga paixão. E
Maria não fazia nada para facilitar a situação.
— Você é um idiota, José — disse George Arlequim mansamente.
— Eu sei. Se assim quiser, eu lhe entregarei minha cabeça numa
bandeja.
— Prefiro ter os fatos, José.
— Pois eu os tenho, George. Antes de transmiti-los, porém, queria
pedir-lhe um favor. Não tenho o direito de fazê-lo, mas pedirei assim mesmo.
A moça é culpada, não há a menor dúvida. Peço-lhe, contudo, que não a leve
perante a lei. Se conhecesse o interior das prisões mexicanas, compreenderia
por que o estou pedindo. Empenharei tudo o que possuo para cobrir suas
perdas. Mas eu lhe imploro...
— Ainda está apaixonado por ela, José?
— Claro que não! Acho que ela é uma cadela estúpida, mas a verdade é
que fui mais estúpido do que ela.
— Está certo. Não haverá acusações. E a última coisa que desejo é seu
dinheiro, José. Agora conte-me o que você tem.
— Tenho uma confissão em espanhol, uma tradução inglesa e duas
fotografias, tudo assinado e com firmas reconhecidas.
— Como as obteve?
— Preferiria que não me perguntasse, George. Também não sinto
muito orgulho disso. Apenas leia o documento.
George Arlequim leu a confissão bem devagar, depois passou-a para
mim. Era cristalina como uma lágrima.

" ...Apaixonei-me por um homem que não estava apaixonado por mim.
Quando ele me disse que nosso caso estava terminado, senti-me uma tola,
magoada, furiosa. Mas continuei no emprego porque sabia que isso o
constrangia, embora tampouco me fizesse bem algum. Um dia, um jovem
visitou o banco para verificar o funcionamento de nossos sistemas de
computação. Chamava-se Peter Firmin. Disse que ia passar um mês no
México, visitando clientes. Convidou-me para jantar. Depois disso, passamos
a nos encontrar constantemente. Abri-lhe meu coração. Tornamo-nos
amantes. Ele disse que queria casar-se comigo, mas teria primeiro que
divorciar-se de sua esposa e que isso custaria muito dinheiro. Eu nada tinha,
não podia ajudá-lo. Então ele me disse que, se eu fornecesse certas instruções
ao nosso computador, receberia uma soma elevada: dez mil dólares. Disse que
isso não seria um crime, que não estaria roubando coisa alguma. Quando a
história fosse descoberta, seria uma terrível pilhéria contra José Luis, pois ele
teria que assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Concordei, mas não fiquei
com o dinheiro. Entreguei-o a Peter, para que ele pudesse assim obter seu
divórcio. Ele foi-se embora e nunca mais tornei a vê-lo. Escrevi-lhe muitas
vezes, para sua companhia e para o endereço que ele me dera na Califórnia.
Minhas cartas foram devolvidas, com o carimbo de endereço ignorado.
Ninguém jamais pôs em dúvida as instruções que eu transmitira ao
computador. Mas, em janeiro, resolvi deixar o banco. Tudo o que me restava
de Peter Firmin eram algumas fotografias que tirara dele num domingo no
parque Chapultepec. Afirmo e declaro que este depoimento é verdadeiro e
que o fiz por minha livre e espontânea vontade, na presença de..."

Uma das fotografias mostrava um jovem, numa roupa esporte de verão,


posando ao lado de um vendedor de balões. Na outra, estava agachado, diante
de uma indiazinha, que lhe oferecia uma flor. Ele parecia jovial e simples,
como qualquer próspero jovem executivo a passear com sua namorada numa
tarde de verão. Eu já vira dezenas iguais, em dezenas de cidades. E, no
entanto...no entanto...
— Está reconhecendo-o, Paul?
— Creio que não. Mas ele tem algo que me parece familiar.
— Eu o conheço — declarou de repente José Luis Miramón de
Velasco.
Deu-nos um sorriso embaraçado e sacudiu os ombros, num gesto de
desculpas.
— Eu próprio fiz algum trabalho de detetive. Ele assinou um contrato
de um mês de aluguel desses apartamentos mobiliados, especiais para turistas
e homens de negócios. Para fazê-lo, tinha que apresentar o passaporte e dar
uma referência comercial. Seu verdadeiro nome é Alexander Duggan e ele
trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califórnia. Disse que a garota
era estúpida. Ela própria poderia ter descoberto essas mesmas informações.
Lembrei-me então. Era o mesmo rapaz de aparência ingênua que me
encontrara no bar do Bel-Air Hotel, o camarada inocente que achava que o
sol brilhava a cada movimento de Basil Yanko e pensava que gratificações e
opções caíam do céu para a compra de ações. Comecei a balbuciar excitado,
mas Arlequim interrompeu-me no meio da frase:
— É uma informação útil, Paul, muito útil mesmo, embora nem de
longe seja conclusiva. Vamos pensar um pouco...José, eu lhe agradeço. Julie e
eu vamos almoçar com Galvez amanhã e voltaremos a nos encontrar no
banco, na manhã de segunda-feira. E não diga uma palavra disso a ninguém.
Compreendido?
Ele compreendia. Sentia-se punido, mas não podia esquecer a sua
dignidade. Fez um discurso breve e sóbrio de agradecimento e depois uma
reverência, como um cortesão que acabara de ser salvo do carrasco.
Assim que ele se retirou, George Arlequim recostou-se na cadeira e
suspirou pesadamente.
— O que acha, Paul? Tenho a impressão de que, por muito tempo, José
não se esquecerá de sua leviandade.
— Isso não tem a menor importância, George. O que importa é que ele
nos proporcionou a primeira prova sólida contra Basil Yanko.
— Correção. Temos apenas um depoimento sem outras provas a
corroborarem-no, feito por uma mulher desapontada.
— Essa não, George! Basta pôr Alexander Duggan no banco dos réus e
confrontá-lo com a confissão de Maria. Vai causar a maior sensação.
— E como o levaremos ao banco dos réus, Paul?
— Mande prendê-lo sob a acusação de conspiração para nos lesar.
— A conspiração foi cometida na Cidade do México. Não podemos
extraditá-lo sem provas do crime. E não podemos obtê-las sem acusar Maria
Guzmán, o que prometemos não fazer. Não, Paul, a situação é delicada.
Nosso amigo José Luís é um homem muito distinto. Ele tratou de limpar seu
nome e incriminou uma moça, assegurando-se antes de que não a
chamaríamos para depor. Deu-nos o nome de um homem que não podemos
acusar oficialmente. O que isso lhe diz?
— Que devemos entrar em contato com Saul Wells, mandando-lhe
uma cópia da confissão e as fotografias, para que ele comece a investigar
Alexander Duggan.
— Isso é tudo?
— É o melhor que posso imaginar, à meia-noite, depois de um dia
extremamente cansativo.
— Então eu lhe darei algumas coisas para meditar enquanto dorme,
Paul. Um homem não entra num banco como se fosse um mecânico de
telefone e diz que vai verificar o sistema do computador. Ele telefona
primeiro, marcando um encontro. Apresenta-se ao gerente. Suas credenciais
são verificadas na fonte e por seus documentos pessoais...
— Então Maria Guzmán estava mentindo...
— Não. Pelo que imagino, José Luis foi negligente. Ele recebeu um
telefonema de um certo Sr. Peter Firmin, da Creative Systems, marcou uma
reunião e, ao melhor estilo latino, não se preocupou em verificar as
informações, acreditando que o homem era tudo o que dizia ser.
— Ele pode ter participado também da conspiração.
— Não, Paul. José Luis é rico demais para precisar disso.
— Nesse caso, é também rico demais para nós. Vamo-nos livrar dele o
quanto antes, George.
— Ainda não, Paul. Vamos deixá-lo primeiro salvar as aparências.
Neste momento, precisamos disso tanto quanto ele. Este é um país diferente.
A vida aqui não é apenas feita de negócios. O estilo também é muito
importante.
Ele provavelmente estava certo. De qualquer forma, eu estava cansado
demais para discutir. Tudo o que pude dizer é que se podia comprar estilo que
não acabava mais por quinze milhões de dólares, e que um gerente que não
conseguia manter as mãos longe das funcionárias não era absolutamente meu
estilo. O que, é claro, era uma completa hipocrisia, pois ao voltar para minha
suíte encontrei Suzanne vestida para sair, querendo que eu lhe mostrasse
como era a vida na Cidade do México numa noite de sábado.

Acordei exausto e arrependido, com a impressão de que a boca estava


cheia de carvões em brasa. Estava cego também, o que provavelmente era
uma bênção. Certamente não estava surdo, porque a campainha do telefone
era um tormento em meus ouvidos. Encontrei-o finalmente e consegui emitir
um grunhido subumano.
Quem me telefonava era um velho habitante do mundo das trevas.
— Bom dia, Sr. Desmond. Aqui é Aaron.
— Oh...
— Fiquei esperando que me telefonasse a noite passada.
— Chegamos muito tarde...
— E divertiu-se até mais tarde ainda. Ela é uma mulher muito bonita.
— Direi a ela.
— Quero vê-lo hoje.
— Onde e a que horas?
— Conhece a Praça das Três Culturas?
— Eu a encontrarei.
— Às três horas da tarde, do lado de fora do portão da igreja.
— Estarei lá.
— Sozinho, Sr. Desmond.
— Seja como quiser. Conhece alguma cura infalível para ressaca?
— A melhor de todas: não beba. E especialmente não beba tequila.
Hasta luego, amigo!
A única cura para viver era morrer, por isso eu tive que agüentar.
Barbeei-me com as mãos trêmulas, tomei banho lentamente e vesti-me com
dificuldade, procurando ignorar as explosões ensurdecedoras que ocorriam
dentro de minha caixa craniana. Quando finalmente consegui deslocar-me até
a sala de estar, encontrei Suzanne milagrosamente viçosa, vestida para sair,
acabando de remover os guardanapos que cobriam os pratos do café da
manhã. Ela emitiu alguns ruídos de piedade, desculpou-se por manter-me
acordado até tão tarde e depois ficou parada a meu lado, como uma górgona,
enquanto eu comia o que ela ficou satisfeita em classificar como um desjejum
civilizado. E então, quando comecei a sentir dentro de mim, ainda bastante
débeis, os primeiros impulsos de vida, Suzanne anunciou que eu estava era
precisando de ar fresco e um pouco de exercício. Protestei em vão,
argumentando que o único ar fresco que por ali havia era no próprio interior
do hotel e que, a três mil metros de altitude, até mesmo esse era rarefeito
demais para proporcionar algum conforto. Consegui atrasar o ordálio por
meia hora, enquanto telefonava para Saul Wells e informava-o a respeito de
Alexander Duggan. Ganhei mais dez minutos com uma rápida visita a
Arlequim e a Julie. Depois, ainda protestando, fui empurrado quase à força
para o esplendor dominical da Cidade do México.
Os mexicanos dizem que a sua capital é infestada — infestada de gente
rica, de gente pobre, de monumentos, igrejas, história, doenças, animais,
crianças, cores, barulho, lendas, polícia, fantasmas, turistas e uma centena de
línguas diferentes. Tente absorver tudo de uma vez e ficará apenas aturdido e
ofegante. Vá aprendendo as coisas lentamente, caminhe ao ritmo de domingo,
com uma mulher participante pelo braço, e logo o mosaico começará a ter
sentido. Os astecas ainda estão lá, caminhando pelo asfalto que cobre sua
antiga capital de Tenochtitlán. Os conquistadores ainda estão lá, dirigindo
Mercedes e Fiats e vivendo como os senhores da criação, à distância de uma
pedrada das favelas sórdidas. A Virgem de Guadalupe ainda vela sobre a
cidade católica entre as católicas, a serpente-deus ainda sobrevive, no fundo da
memória popular. Entre num pátio cheio de sombras, sente-se num banco de
pedra e terá a sensação de que está de volta à velha Sevilha. Meta a cabeça
para dentro de uma porta de porão e verá certamente um amontoado de
vítimas, mais desesperançadas que todas as outras que ficavam esperando que
seus corações fossem arrancados no alto da pirâmide sagrada. Preste atenção à
conversa dos estudantes e ouvirá falar numa revolução mais feroz que em
qualquer outra parte do mundo. Sente-se numa sala de reuniões com
industriais e eles lhe dirão que existem mais riquezas sob a terra do que
Montezuma jamais sonhou. Compre um balão, jogue uma moeda para os
mariachis a fim de que eles toquem longe de você; procure acreditar que nunca
houve e jamais poderá haver nenhum lugar mais alegre para se passar um
domingo.
Chegou o momento em que até mesmo Suzanne se entregou, e
sentamo-nos para tomar cerveja gelada num café de cadeiras na calçada,
contemplando o desfile incessante e sentindo-nos agradavelmente distantes de
tudo o mais.
Subitamente, a propósito de nada, Suzanne disse:
— Paul, tenho a sensação de que estamos sendo vigiados.
— Claro que estamos. Somos estrangeiros, caras-pálidas...
— Estou falando sério, Paul. Não olhe agora, mas há um homem
parado ao lado de um carro vermelho, do outro lado da rua. Já o vi em pelo
menos quatro lugares diferentes esta manhã.
— Como é ele?
— É bastante jovem, usa uma calça azul e camisa aberta no
pescoço...Vem vindo uma camioneta. Quando passar por ele, eu aviso para
você se virar...Agora!
Virei-me na cadeira e fiquei olhando diretamente para a rua. Assim que
a camioneta passou, vi o rapaz encostado a um poste, fumando um cigarro.
Poderia passar perfeitamente por um jovem ocioso num domingo, tentando
conquistar as garotas que passavam — se não fosse o fato de as garotas
passarem pela calçada às suas costas. Chamei o garçom, paguei a conta e nós
dois descemos rapidamente a rua, na direção do Paseo de la Reforma. O rapaz
jogou o cigarro fora e atravessou a rua rapidamente. Paramos cinqüenta
metros adiante e fizemos sinal para um táxi. Ele ainda estava atrás de nós. Ao
nos afastarmos, pude vê-lo procurando, frenético, outro táxi. Suzanne estava
abalada. Tentei tranqüilizá-la com uma conjetura.
— Aaron Bogdanovich está na cidade. Vou encontrar-me com ele hoje.
Talvez o rapaz seja um dos agentes dele.
— E se não for?
— Então contrataram um espião muito desajeitado.
— O que está acontecendo conosco, Paul? Não reconheço mais
ninguém, nem mesmo a mim. Somos como personagens saídos de Kafka,
vivendo num mundo de insinuações e alusões, de terrores desconhecidos.
Não temos que nos submeter a isso. Nenhum de nós, especialmente George.
Por quê, Paul...por quê?
Era uma pergunta difícil de responder num táxi sacudindo-se todo e
seguindo em alta velocidade pelo Paseo. Esperei até voltarmos ao hotel e
subirmos para nosso pequeno refúgio, tranqüilo e temporário.
— Não posso dizer-lhe que tenha a resposta certa, Suzy, nem mesmo
que tenha uma resposta. O melhor que posso fazer é tentar raciocinar com
você, assim como estou tentando raciocinar comigo e assim como o próprio
George está tentando fazer. Pergunte-me se Arlequim et Cie. ou uma
plantação de repolhos valem a vida de um homem e eu lhe responderei que
não. Pergunte-se se temos o direito de ficar sentados calmamente aqui no
Camino Real, enquanto lá fora doze crianças estão amontoadas num porão e o
pai não consegue encontrar trabalho para alimentá-las, e eu lhe responderei
que absolutamente não. Nós estamos errados. O sistema está completamente
errado e desmoronado sob nossos pés. É como esta cidade, que flutua sobre
um lago de esgotos. Se as bombas quebrarem, as ruas ficarão inundadas de
sujeira até a altura dos joelhos...Por isso tentamos fazer com que o inexeqüível
se torne exeqüível. Procuramos manter o terror acuado, enquanto tentamos
criar uma espécie de vida melhor para todos. Há os que dizem que isso é
impossível, que é melhor explodir logo toda a confusão e recomeçar do nada.
Essa é uma ilusão maior que a Utopia, porque, depois da explosão, os
saqueadores também voltarão, assim como os exploradores e os tiranos. Esse
é o terrível paradoxo: os humildes herdarão a Terra, mas os tiranos e os
assassinos é que irão dirigi-la. Num certo sentido, eles são necessários. A ação
provoca a reação. E quando a gente luta, alguém ou alguma coisa acaba
morrendo. Uma morte acarreta uma vendeta. A maioria das pessoas acha-se
confusa demais para ver o que está acontecendo debaixo de seus narizes. Vou
contar-lhe algo que nunca disse a ninguém, Suzy. Lutei na Guerra do Pacífico.
Estávamos ocupando uma posição na encosta de uma colina na Nova Guiné.
Há três dias que os japoneses nos bombardeavam. No dia seguinte eles
atacariam. Recebemos ordens para recuar, levando os feridos. Conseguimos
tirar a maioria. Mas dois estavam tão feridos que não podiam ser removidos.
Estavam a poucas horas da morte. Se os levássemos, sofreriam uma agonia
insuportável por nada. Se os deixássemos, seriam chacinados logo na primeira
investida. Imploraram para que os matássemos. E eu os matei, Suzy, dois
amigos meus! Estava certo ou errado? Nunca o soube com certeza. Nunca
ninguém pôde dizer-me, na ocasião nem depois. Chega um momento em que
a razão desaparece e somente o coração pode comandar...Desculpe, menina,
mas isto é o melhor que posso fazer.
Ela não disse nada. Aproximou-se de mim, inclinou-se e beijou-me nos
lábios, saindo depois do quarto. Olhei para o relógio. Eram duas e meia,
tempo para arrumar-me e ir ao encontro de um homem que tinha todas as
respostas, porque dormia num túmulo.

A Praça das Três Culturas foi apropriadamente denominada. Fica


dentro dos limites da antiga Tlaltelolco, onde se realizou a carnificina final e
sangrenta dos astecas. Uma placa de mármore assinala o acontecimento e
destaca a ironia de suas conseqüências:

"No dia 13 de agosto de 1521, Tlaltelolco...caiu sob o poder de Hernán


Cortês. Não foi um triunfo nem uma derrota, mas o doloroso nascimento de
uma raça mista que é o México de hoje".

O México de hoje é celebrado em quarteirão após quarteirão de aço,


concreto e vidro, construções iguais, impessoais, sem características definidas.
A memória dos astecas está mantida numa grande pirâmide mutilada, de
pedras já gastas. Entre elas, mais alta que a pirâmide e mais baixa que as
construções de concreto, situa-se a Igreja de Santiago, com suas torres
desproporcionadas e suas muralhas com ameias, dando mais a impressão de
uma fortaleza.
A praça estava bastante tranqüila quando cheguei. Os que podiam dar-
se ao luxo de comer em restaurantes ainda estavam sentados à mesa. Os que
não podiam, estavam cochilando a siesta ou flertando sonolentamente nos
gramados do parque Chapultepec, esperando a hora da tourada. Aaron
Bogdanovich estava sentado, relaxado e melancólico, nos degraus da igreja
mastigando um pedaço de cana-de-açúcar. Tirei a poeira do degrau e sentei-
me a seu lado.
Cumprimentou-me rápido e foi direto aos negócios:
— Disseram que andou muito ocupado. Conte-me tudo.
Relatei os acontecimentos, dia a dia, hora a hora. Bogdanovich
interrompia-me de vez em quando, pedindo que repetisse uma frase ou
interpretasse uma determinada atmosfera. Mas, quase o tempo todo, ele ficou
sentado em silêncio e com uma expressão impassível, mastigando a cana-de-
açúcar e contemplando a pirâmide asteca. Quando acabei, ele jogou fora o
pedaço de cana, cuspiu a polpa na poeira e disse, sem a menor ênfase:
— Aprovei a reportagem de Leah Klein. Saiu esta manhã nos jornais de
Londres, em meia página. As reações foram intensas. Amanhã sairá em Nova
York.
— Está satisfeito?
— A divulgação da reportagem ajuda-os...e é para isso que estou sendo
pago.
— Como Yanko irá reagir?
— Ele já começou a reagir. Neste momento, deve estar voltando para
Nova York.
— O FBI avisou-nos que deveríamos esperar por problemas na Cidade
do México.
— E eles estavam certos.
— O quanto eles sabem?
— Sobre o quê, Sr. Desmond?
— Sobre Frank Lemmitz e Valerie Hallstrom, por exemplo.
— Menos do que eu, mais do que o senhor.
— Isso realmente responde minha pergunta!
— Não fique zangado, Sr. Desmond, pois isso prejudica a capacidade
de julgamento. O senhor disse que foi seguido esta manhã. Descreva o
homem novamente, por gentileza.
Descrevi.
Bogdanovich franziu o cenho e sacudiu a cabeça.
— É novo para mim. Meu homem também não o reconheceu.
— Eu não vi seu homem.
— Se o tivesse visto, ele não estaria mais trabalhando para mim. É
melhor eu adverti-lo logo de uma vez: os problemas de vocês começarão
realmente no momento em que Yanko chegar a Nova York. A partir de
amanhã, o senhor e Arlequim passarão a ter guarda-costas, dia e noite. E não
aceito objeções de nenhum dos dois. Se as mulheres saírem do hotel, juntas
ou sozinhas, serão também acompanhadas.
— Se acha que assim é melhor...Teve alguma notícia de Tony
Tesoriero?
— Nós o trouxemos aqui para o México. Quero que vá visitá-lo
amanhã, juntamente com Arlequim. A essa altura, ele já deverá estar
preparado.
Por tudo o que eu imaginava, ele podia estar brincando comigo. Fitei-o,
com uma expressão perplexa. Pela primeira vez, ele lançou-me um sorriso frio
e outonal, explicando:
— O contrato para matar Valerie Hallstrom foi fechado aqui na Cidade
do México. Muitos negócios semelhantes são feitos aqui. Através de amigos,
comunicamos a Tony Tesoriero que havia outro contrato para ser discutido.
Nós lhe mandamos uma passagem e o dinheiro para as despesas, indo depois
buscá-lo no aeroporto. Desde então o guardamos numa hacienda no interior.
— E por que precisa de nossa presença?
— Faz parte da estratégia. Queria também lembrar-lhe que estão me
devendo dinheiro. Gostaria de receber um quarto de milhão amanhã, em
dólares.
— Tinha falado em cem mil.
— As despesas têm sido muito elevadas.
— Vamos precisar de vinte e quatro horas para providenciar.
— Certo. Vamos então marcar para depois de amanhã. Às nove horas
da manhã, mandarei um carro apanhá-los no hotel. É uma viagem de oitenta
quilômetros até a hacienda. Receberão as instruções quando chegarem lá.
— Queria falar-lhe sobre Alex Duggan. Mandei que
Saul Wells começasse a investigá-lo, mas não sei ao certo se é o
suficiente.
— E por que não seria?
— Digamos que Saul é apenas um investigador convencional.
— E nós temos métodos diferentes?
— Algo parecido.
— Poderia indicar qualquer método que julgue ser útil em tal
circunstância?
— Bem...não.
— Espero que compreenda, Sr. Desmond, que é preciso muito tempo
para treinar gente para a espécie de trabalho que fazemos. E são bem poucas
as pessoas que servem. Estava pensando em Frank Lemmitz, não é mesmo?
Eu lhe disse que meus homens iriam encontrá-lo em Londres. E realmente o
encontraram. A moça que a polícia londrina está procurando trabalhava para
nós. Estamos procurando por ela também, mas achamos que está morta.
Quando eles voltaram para o hotel, depois de fazerem a ronda dos cassinos,
alguém os esperava no quarto. Foi esse alguém que matou Lemmitz e saiu
com a moça do hotel, certamente apontando-lhe uma arma.
— E por que não a mataram também logo de uma vez?
— Parece que foi melhor assim como fizeram. Além do mais, nossa
agente podia ser induzida a falar. Nada é tão simples como parece. Vocês
compram petróleo da Líbia para fazer seus aviões levantarem vôo. Os líbios
fornecem passaportes e asilo para as pessoas que explodem esses mesmos
aviões. Nós treinamos soldados para o xá da Pérsia e fanáticos japoneses
disparam contra a multidão no Aeroporto de Lod... Em Israel, temos judeus
que espionam a favor dos sírios. Os ingleses recusam-se a nos enviar peças
para nossos tanques, enquanto seus próprios soldados são mortos no Ulster
por guerrilheiros treinados pelos árabes. Basil Yanko conspira como um don
da Máfia e Tio Sam torna-o cada vez mais rico, com contratos de defesa. Não
tente ensinar-me meu negócio, Sr. Desmond. Eu próprio ainda o estou
aprendendo. Quanto a Saul Wells, deixe-o fazer seu trabalho, à sua própria
maneira. Entrarei em contato com ele, no momento oportuno, e lhe direi o
que fazer com Alex Duggan, apenas para ter certeza de que ele continua vivo!
Por uma fração de instante ele suavizou-se e vi ou pensei ver um
lampejo de humanidade em seus olhos, enquanto acrescentava
sardonicamente:
— Encare a realidade, Sr. Desmond! A guerra continua, mesmo depois
que as armas silenciaram. Vocês ganham vinte por cento sobre seu dinheiro,
jamais o investem num orfanato. Pelo contrário, investem-no nos homens que
estão fabricando armas para manter os orfanatos sempre cheios. Até terça-
feira de manhã, às nove horas. E não se esqueça de providenciar o dinheiro.
Afastou-se e fiquei observando-o descer a rampa de concreto, passar
pela pirâmide asteca e encaminhar-se para o outro lado da praça. Levado por
um impulso súbito, entrei na igreja. Estava frio lá dentro, um ambiente
turbulento de imagens e ornamentos barrocos, mas igualmente tranqüilo,
como se a paixão que criara tudo aquilo se tivesse esgotado e restasse apenas o
mistério, ainda sem solução, para sempre insolúvel. Eu não podia rezar. Não
havia nada no mundo que eu pudesse glorificar, muito menos a mim.
Também não havia nada que eu pudesse pedir. Tinha tudo o que o dinheiro
podia comprar, mas não era o suficiente. Se Aaron Bogdanovich estava certo,
não restava a menor esperança, apenas a de um adiamento do desastre final. A
fé existia, alguns homens morriam por ela, outros também matavam em seu
nome. Amor?... O amor ainda existia, estranho, confuso, egoísta, nobre ou
perverso. Mas existia e era o último ponto de apoio antes do salto irreversível
para o caos. Ajoelhei-me e enterrei o rosto nas mãos, encerrando-me no
mundo dos sonhos com o pouco de amor que ainda me restava.

Ao cair da tarde, encontramo-nos na suíte de Arlequim para tomar uns


drinques. Durante vinte minutos Juliette ocupou o palco, com o relato de um
almoço com os hidalgos da Nova Espanha.
— ... Eu juro, Suzy, que é melhor a gente se entregar às mãos de Deus
do que cair nas mãos das matronas mexicanas! Quantos filhos eu tinha? Não
pretendia ter mais nenhum? Meu marido era fiel? Como se reage em Genebra
ao problema da amante? E o problema das filhas? Eu devia agradecer a Deus
todos os dias por não ter uma filha. Com os meninos é muito diferente.
Tendo um pai bom como Pedro, que compreende essas coisas, eles se
arrumam sem grandes riscos. No começo, uma mulher mais velha é sempre
melhor! Eu ainda não tinha um amante? Com um marido que viaja tanto,
devia pelo menos considerar a idéia de um amante. Ay de mim. Essas norte-
americanas, com suas idéias de libertação das mulheres! O que elas fazem
senão se escravizar ao trabalho? Mas o meu Pedro...Vamos, George, conte-
lhes sobre o nosso Pedro!...
George Arlequim também tinha uma comédia a representar: os
conflitos domésticos latentes, as ordens imperiosas, o formalismo dos
cumprimentos, a lenta e indireta aproximação do assunto que motivara o
almoço.
— ...O problema é mais complexo do que parece, Paul. Nosso amigo
José Luis não está muito nas boas graças das famílias tradicionais, que há dez
anos vêm tentando casá-lo com suas filhas. Dizem também que ele joga, o que
é novidade para mim e não das melhores, se for verdade. Pedro Galvez é uma
personagem saída diretamente de Calderón. Ele é capaz de condenar o papa
ao inferno e ajoelhar-se em seu leito de morte para receber a extrema-unção.
Despreza Yanko por ser um arrivista e trampista. Desprezará muito mais a
mim se eu não puder trapacear melhor. Detesta computadores e de bom
grado os dispensaria, se pudesse encontrar quem lhe fizesse uma contabilidade
honesta. Quando lhe disse que estava empenhando tudo o que possuía para
exercer meus direitos de opção e comprar as ações, ele classificou-me de
romântico do século XIX...mas, não obstante, fez um brinde à minha decisão.
Quando lhe falei em violência, limitou-se a sacudir os ombros e dizer que se
não se matasse a fera, não haveria carne para o jantar. Sua promessa é ótima.
Manterá suas ações até o último momento e insistirá para que seus colegas
façam o mesmo. Se vencermos, ele nos entregará uma porção de negócios. Se
perdermos, mandará rezar uma missa por nossas pobres almas. Estas são
minhas notícias, Paul. Quais são as que você tem?
— A história foi publicada hoje em Londres. Amanhã sairá na América.
Basil Yanko está voltando para Nova York. A partir de amanhã, teremos
guarda-costas. E na terça-feira teremos que entregar duzentos e cinqüenta mil
dólares em dinheiro.
— Não quero saber de guarda-costas! Arlequim estava sendo
categórico.
— Sou um homem civilizado e não quero saber de viajar cheio de
capangas!
— Mas Bogdanovich insiste na necessidade da medida. Concordo com
ele. Suzanne e eu fomos seguidos durante nosso passeio desta manhã.
Poderíamos ter sido alvejados. Você tem que concordar. Deve isso a todos
nós...e também a seu próprio filho.
— A polícia está guardando o menino...Quer dizer então que teremos
guarda-costas? Amém! O que mais?
— Não marque nada para terça-feira. Eu e você teremos uma reunião
no interior.
— Para quê?
— Para nos encontrarmos com o homem que matou Valerie
Hallstrom.
— Com que objetivo, Paul?
— Não sei. Bogdanovich não quis dizer-me.
— Mas o que somos nós, pelo amor de Deus? Simples marionetes?
— Somos estrangeiros, George.
Juliette interveio, censurando-o com firmeza.
— Somos estrangeiros numa estranha cidade. Você mesmo disse isso,
ao voltarmos para casa. E gostaria de lembrar-lhe, meu caro marido, que tudo
o que vi até agora foi bastante sombrio!
— Esta noite então, meu amor, iremos dançar. Não quer ir também,
Paul? E você, Suzanne? Então estamos combinados. Paul, por que você não
liga para José Luis e o chama para ir conosco, levando a moça com quem
esteja se distraindo neste momento?
José Luis lamentava muito, mas naquela noite era de todo impossível.
Tinha que participar de uma reunião de família e amigos da família, reunião
que se realizava periodicamente. Talvez, mais tarde...Nem que fosse apenas
por uma hora. Disse-lhe que poderia encontrar-nos na San Angel Inn. Ele
afirmou que era uma escolha esplêndida: excelente música, ótima comida.
Tornou a pedir desculpas e expressou seus votos de que nos divertíssemos
bastante. Fiz uma prece silenciosa a fim de ainda estar de pé para apreciar a
noite.
As mulheres se retiraram e Arlequim pediu que eu ficasse mais um
pouco, para uma conversa em particular. Galvez entregara-lhe uma cópia da
carta de Yanko aos acionistas minoritários, um documento que deixava
implícito muito mais do que dizia:

"... O desenvolvimento de Arlequim et Cie. tem sido limitado pelas e


para as aspirações da família que a fundou. E existe apenas uma criança
pequena na lista de sucessão. O próprio Sr. Arlequim tem-se mostrado um
presidente capaz e até mesmo ousado, mas tem negligenciado o treinamento
de um substituto que possa assumir o controle, na eventualidade de sua morte
ou incapacidade. Seu colaborador mais chegado é o Sr. Paul Desmond, que
reuniu uma considerável fortuna particular através de negócios de
especulação, mas que, provavelmente, jamais poderia indicar a si mesmo
como uma peça central estável de qualquer conselho diretor...
Arlequim et Cie. possui uma base segura para desenvolver-se. Em seu
presente estado, porém, não tem o ímpeto necessário para crescer, nem o
acesso a novos investimentos que poderiam ser proporcionados pela Creative
Systems Incorporated...
Seus sistemas de informações e resgates estão superados. E, como ficou
demonstrado numa recente experiência, não são seguros contra manipulações
fraudulentas. Numa nova estrutura da empresa, trataríamos imediatamente de
atualizar esses sistemas, numa escala de preço de nações favorecidas,
operando-os com mais segurança e numa base mais lucrativa...
A reputação de Arlequim et Cie. foi bastante prejudicada por recentes
manipulações fraudulentas por gente da própria companhia, que ainda está
sendo investigada. O preço de compra das ações está fixado com um ágio, a
fim de reparar tais prejuízos, restaurar a confiança do mercado e permitir à
nova administração operar numa atmosfera de confiança, harmonia e
desenvolvimento agressivo..."
Havia mais coisas, tudo na mesma linha. O carrasco público não teria
feito um serviço mais limpo. Era um trabalho sem sangue, sem rancor, um
assassinato extremamente profissional, sem nem ao menos um toque de
misericórdia.
Dobrei a carta e devolvi-a a Arlequim.
— Não acha que isso explica tudo? Os rumores, as dúvidas, a queda
dos negócios...Tudo o que nos falta agora é um sino amarrado no pescoço.
— Acha que a reportagem de Leah Klein responderá a todas as
perguntas?
— Só amanhã é que o saberemos, George...Não, espere um pouco!
Passe-me o catálogo!
— Para quê, Paul?
— Vamos descobrir quais são as agências de notícias que possuem
escritório na Cidade do México. Elas devem ter recebido a notícia pelo
teletipo...
— E acha que a entregarão a você?
— Não custa tentar. E, se estiver difícil, vamos lançar uma pequena
isca, a existência de ameaças contra a vida de George Arlequim e também
contra as de seus acompanhantes. Temos a autoridade do FBI por trás de
nós...
Lançamos a isca e conseguimos obter a história, entregue por um
plantonista ansioso, que anunciou para o mundo que o Sr. George Arlequim,
atualmente na Cidade do México, fora alertado pelo FBI, antes de sair de
Washington, que corria perigo físico. Ele até mesmo contratara guarda-costas
profissionais; recusara-se, porém, a fazer quaisquer comentários sobre a fonte
das ameaças ou se elas tinham alguma relação com a notícia divulgada em
Londres. Assim que o jornalista partiu, começamos a examinar os métodos
cirúrgicos de Leah Klein. Para uma mulher tão áspera e rude, ela até que
manejava o bisturi com extrema precisão.

"... A polícia de Londres está investigando o assassinato de um certo


Frank Lemmitz, encontrado morto por um tiro de revólver, em sua suíte de
hotel, na semana passada...Frank Lemmitz era um criminoso e estava
intimamente ligado a criminosos. Foi condenado por assalto à mão armada
em Chicago, em 1960, cumprindo uma sentença de dois anos de prisão. Em
1965, em Miami, foi condenado sob a acusação de assalto com arma letal.
Essa condenação foi suspensa, depois de um apelo do réu, por erros
processuais. Por ocasião de sua morte, Frank Lemmitz estava empregado
como motorista e guarda-costas do Sr. Basil Yanko, presidente da Creative
Systems Incorporated, uma organização internacional de computação, que
manipula contratos de alta segurança para os Estados Unidos e para outros
governos, além de trabalhar também para empresas internacionais.
Dois dias antes da morte de Frank Lemmitz, outra empregada do Sr.
Basil Yanko foi assassinada em Nova York. Chamava-se Valerie Hallstrom,
era analista de sistemas muito bem remunerada e durante algum tempo foi
amiga íntima do Sr. Yanko. Ela foi morta com um tiro na cabeça, em seu
próprio apartamento. As circunstâncias de sua morte estão sendo investigadas
pela polícia de Nova York e pelo FBI.
Um caderninho de anotações, pertencentes à Srta. Hallstrom e
contendo os códigos secretos de acesso aos computadores de diversos
clientes, foi posteriormente entregue a um desses clientes, que imediatamente
o entregou à polícia.
As empresas relacionadas no caderninho estão profundamente
preocupadas com essa quebra de segurança. O governo dos Estados Unidos
está ainda mais preocupado, por causa da natureza delicada dos contratos
manipulados pela Creative Systems.
Inevitavelmente será levantada a questão de se os negócios altamente
lucrativos de Basil Yanko com governos estrangeiros e seu envolvimento com
a política do petróleo no Oriente Médio estão integralmente de acordo com
seu papel de guardião dos segredos e projetista dos sistemas essenciais à
defesa dos Estados Unidos...
O Sr. Yanko fez recentemente uma oferta espetacular para assumir o
controle de uma tradicional organização bancária européia, Arlequim et Cie. A
oferta foi firmemente rejeitada pelo presidente, Sr. George Arlequim; mas
com dois assassinatos dentro da sua própria organização, o Sr. Yanko ainda
gasta tempo cortejando os acionistas minoritários da referida empresa, em
Frankfurt...
A proposta do Sr. Yanko possui algumas características surpreendentes.
A Creative Systems fornece serviço de computador para Arlequim et Cie. Um
relatório de segurança, assinado pela Srta. Valerie Hallstrom, revelou que o
sistema fora fraudulentamente adulterado, resultando num prejuízo de quinze
milhões de dólares para Arlequim et Cie. No dia em que o relatório foi
apresentado, o Sr. Yanko fez sua primeira proposta para comprar o banco.
Essa tática é interessante para todos os que acompanharam a carreira desse
homem brilhante e original. Aparentemente, o fato está também interessando
ao FBI. Indagado por esta repórter sobre o que achava de todas essas
coincidências, um porta-voz do FBI declarou: 'Se as coisas coincidem, então é
possível que estejam relacionadas; estamos investigando todas as
possibilidades'. A carreira de Basil Yanko, considerada..."

O resto era uma colcha de retalhos de biografia padrão e dos trechos


mais maliciosos do relatório de Mendoza. Arlequim soltou uma risada brusca
e rápida.
— Se não fosse por todas aquelas ordens de compra, eu começaria a
vender minhas ações da Creative Systems no momento em que a Bolsa abrisse...
No primeiro impulso de júbilo, inclinei-me a concordar. Mas depois,
pensando melhor, não tive tanta certeza assim.
— Vamos examinar a realidade, George. Essa história ajuda-nos
bastante junto aos acionistas. Mas não se pode saber o que fará por nós no
mercado. Lembre-se de que ainda não existe um escândalo. Apenas cheira
como tal. Depois de dois anos de Watergate, as pessoas andam muito céticas.
Os políticos e os homens de negócios são como os atores: espera-se que
sejam competentes, não castos. O único pecado real é a estupidez, e Basil
Yanko não é absolutamente estúpido. — Eu sei que não — murmurou
George Arlequim, pensativo. — Mas ele é incapaz de compreender os
palhaços...
Chega-se à San Angel Inn como se fosse um peregrino a caminho do
paraíso, a pé, por ruas estreitas de pedras e praças antigas, cheias de sombras.
À entrada, é-se recebido num jardim cheio de flores. Depois, conduzido
através de pátios calçados, cheios de caramanchões com trepadeiras em flor,
é-se introduzido cerimoniosamente no passado imperial. Nada ali é novo,
exceto a comida, as pessoas e a música mariachi. O resto é venerável pela
idade, as vigas esculpidas, as grades de ferro, as pratarias, os quadros, as mesas
pesadas e as imensas cadeiras de couro, fabricadas para acomodar
confortavelmente os traseiros dos fidalgos da Espanha.
As luzes são abafadas e as câmaras cavernosas absorvem o som, de
modo que as pessoas podem comer em paz e contar os segredos que
desejarem. Se alguém quiser música, os mariachis tocarão para ele. Se quiser
dançar, eles o seguirão até o pátio, onde a mais vigilante das duenas teria
dificuldades para controlar um apaixonado impetuoso. Depois da agitação da
cidade, aquele era um oásis bem-aventurado de cortesia e repouso.
Foi ali que, pela primeira vez em muitos meses, vi George Arlequim
completamente à vontade. Em pouco tempo ele conhecia todos pelo nome,
do garçom ao chefe dos músicos. Logo mantinha longos colóquios com o chef
e fazia pilhérias pessoais com o barman. À meia-noite, quando os músicos
fizeram uma pausa, ele pegou uma guitarra emprestada e tocou durante dez
minutos algumas sevillanas passáveis, ganhando uma salva de palmas da
multidão e uma rodada de drinques por conta da casa.
Juliette estava deliciada. Quando dançamos juntos, ela confessou-me:
— Eu já tinha esquecido o que era rir assim e dizer tolices
despreocupadamente. É quase como se nós estivéssemos divididos em várias
partes e não conseguíssemos mais ajustar umas às outras. Estou quase
desistindo de seguir para Acapulco...
Suzanne tinha uma opinião mais cética:
— Ele está representando, Paul. Tudo o que está fazendo é
cuidadosamente planejado. Julie vai embora e ele quer vê-la feliz e contente. É
o mesmo erro que sempre cometeu. George assumirá os riscos e ela saboreará
os primeiros frutos. E ela não irá agradecer-lhe, porque George está lhe
roubando a oportunidade de ser sua mulher. Ó Deus, como é que pessoas
inteligentes podem ser tão cegas?
À uma hora da madrugada José Luis ainda não aparecera e por isso
decidimos partir, em meio a um coro de agradecimentos e bênçãos. Voltamos
lentamente para a rua principal, onde o carro estava à nossa espera. Era um
passeio agradável e sossegado. As pequenas praças achavam-se agora desertas.
As persianas estavam fechadas, as luzes eram fracas e esparsas. Os becos
estavam imersos em silêncio. Nossos passos ecoavam nas pedras do
calçamento e nossas vozes, nas paredes nuas. Suzanne e eu íamos na frente,
de braços dados, com Arlequim e Juliette seguindo poucos passos atrás de
nós.
Paramos à entrada da última aléia, debaixo de um lampião, para admirar
a perspectiva estranha e secular: os balcões de ferro, com seus padrões
intrincados e as plantas penduradas, os lampiões balançando-se em seus
suportes enferrujados, as poças de ouro reluzente nas pedras do calçamento,
os relevos esculpidos das arcadas, tudo convergindo para o poste com luz de
neon que assinalava a entrada da rua principal.
Num momento a aléia estava deserta, no outro ali estava um homem,
um vulto escuro contra a luz, uma arma na altura da cintura. Gritei e atirei-me
na direção das mulheres, tentando arrastá-las para o chão comigo. Ouvi o
matraquear dos disparos automáticos, o zumbido das balas, a imprecação de
um homem, um grito de mulher, passos correndo. E depois o silêncio.
Quando Arlequim e eu nos levantamos, a aléia estava vazia. Suzanne estava
ajoelhada ao lado de Julie, estendida no chão, gemendo, com sangue por todo
o vestido.

Às seis horas da manhã, no Hospital de Jesus Nazareno, o médico deu


seu diagnóstico:
— Ela levou dois tiros, Sr. Arlequim: um na coxa e outro no abdome
inferior. Felizmente não houve danos na espinha. Mas tudo o mais foi
atingido: o útero, os intestinos e o tecido do peritônio. Fizemos o que era
possível no momento. Se não houver complicações, esperamos pôr tudo em
ordem mais tarde. Infelizmente, contudo, ela nunca mais poderá ter
filhos...Perigo? Sim, Sr. Arlequim, há algum perigo. O choque profundo, o
trauma, a hemorragia...Ficaremos observando-a atentamente pelos próximos
dias. Se quiser, poderá vê-la por um momento. Ela, porém, não o
reconhecerá...
Arlequim entrou sozinho no quarto, enquanto eu e Suzanne ficamos
esperando no corredor, com um guarda, um detetive e um par de repórteres.
Ao sair, parecia um homem talhado em pedra, cinzento, sombrio e impiedoso.
Quando os jornalistas insistiram em que fizesse uma declaração, ele recitou
em tom monótono:
— Creio que sabem que foi feita uma oferta para assumir o controle de
minha organização. Sabem também que um homem foi assassinado em
Londres e uma mulher em Nova York e que ambas as mortes estavam
relacionadas com a Creative Systems Incorporated. Declaro agora que a tentativa
contra nossas vidas está relacionada com todos esses acontecimentos...Podem
dizer que declarei ainda que não descansarei enquanto o homem — e peço-
lhes que destaquem a frase —, enquanto o homem que a ordenou não for
levado perante a justiça. Neste momento, não tenho mais nenhum comentário
a fazer.
O detetive apoderou-se dessas palavras e começou a esmiuçá-las como
um cão de caça faz com a presa.
Arlequim interrompeu-o, com frieza e implacavelmente:
— Tenente! Já lhe falamos durante quase três horas. Dissemos-lhe para
entrar em contato com a polícia suíça e com o FBI. Aqui terá que procurar
apenas por um assassino de aluguel. O verdadeiro culpado está fora de seu
alcance. Não direi agora quem é, pois nada posso provar. Leve as declarações
para o hotel e nós as assinaremos. Fico-lhe agradecido por sua assistência,
mas, pelo amor de Deus, agora deixe-nos ir!
De volta ao hotel, ordenou que fôssemos tomar café e depois o
procurássemos para uma conferência, dentro de uma hora. Eu argumentei,
Suzanne suplicou: ele tinha que descansar um pouco. Mas George recusou.
Não nos deixaria descansar, enquanto certas coisas essenciais não fossem
feitas. Se precisássemos de estimulantes para nos manter de pé, chamaria um
médico para ministrá-los. Parecia um homem possuído por um demônio do
inverno, frio e obstinado, sem qualquer toque de compaixão. Quando
voltamos a seu quarto, ele já estava trabalhando. Fiquei horrorizado com o
que nos pediu e que já começara a executar.
— Suzanne, quero que despache imediatamente, com a máxima
urgência, o seguinte telegrama, para todas as nossas filiais, em meu código
pessoal. Abre aspas: Minha esposa em estado crítico depois tentativa de
assassinato na Cidade do México ponto Essa tentativa relacionada recentes
atividades Creative Systems Incorporated ponto Ordeno que venda imediatamente
todas repito todas as nossas ações e todas as ações de nossas contas
discricionárias da Creative Systems e suas subsidiárias ponto Continuará
vendendo quaisquer que sejam os prejuízos envolvidos ponto Avisará os
clientes não-discricionários de nossas intenções ponto Não cumprimento
desta ordem por qualquer razão ou por qualquer conselho resultará em
demissão imediata ponto Assinado: George Arlequim, presidente.
Não pude conter-me e explodi num protesto:
— Isso é uma loucura, George! Não pode fazer tal coisa!
— Já fiz, Paul. Transmiti ordens verbais a Londres, Genebra, Paris e
Nova York. Informei também a Herbert Bachmann e a Karl Kruger, a fim de
proporcionar-lhes a oportunidade de se protegerem. Com relação às suas
ações, determinei a Genebra que as vendesse. Eu lhe cobrirei pessoalmente os
prejuízos que porventura tiver.
— Pelo amor de Deus, George! Você vai se arruinar!
— Talvez...Mas neste momento, Paul, não me importo. Compreenda
isto: não me importo com nada! Suzanne, passe outro telegrama para os
nossos acionistas minoritários. As duas primeiras frases iguais: Minha esposa
etc. etc. Depois continue. Abre aspas: Recomendo insistentemente rejeite
oferta de Yanko ou pelo menos adie aceitação até resultado investigações
policiais ponto Impossível no momento excluir possibilidade atividade
criminosa por parte do comprador ponto Assinado: George Arlequim.
— Se esse telegrama for divulgado, George, o que é inevitável, Yanko
poderá processá-lo por crime de calúnia.
— Pois quero que ele me processe, Paul! Peço-lhe que telefone para
Leah Klein e conte-lhe exatamente o que aconteceu e o que estamos fazendo.
Quando tiver acabado, ligue para José Luis. Ele ainda não soube do
acontecido, pois caso contrário já nos teria procurado. Diga-lhe para
providenciar os dólares de que estamos precisando e vir encontrar-se aqui
comigo ao meio-dia. Depois marque um encontro com Aaron Bogdanovich
para o mais breve possível.
Era como contemplar um homem preparando-se para o seppuku,
abrindo o tapete vermelho, colocando a espada curta sobre a mesinha,
preparando-se com um ritual inflexível para enfiá-la na barriga. Eu seria o
kaishaku, o amigo que lhe deceparia a cabeça no momento em que a lâmina
lhe perfurasse a carne. Só que eu não o faria. Fiz uma última e desesperada
tentativa de trazê-lo de volta à razão:
— George, suplico que me ouça! Devo-lhe muito, mas você também
me deve alguma coisa. E estou cobrando o pagamento agora. Quero que
ouça...
—- Suzanne, por favor, datilografe esses telegramas. E poderia também
poupar-nos tempo, dando aquele telefonema para José Luis e outro para
Pedro Galvez. Conte-lhe o que aconteceu e pergunte se poderia fazer a fineza
de vir ver-me agora.
Assim que ela saiu do quarto, Arlequim iniciou um monólogo rápido e
desordenado:
— Paul, você não vai dizer nada! Eu já sei de tudo. Podemos discutir
até o dia do Juízo Final e eu não mudarei sequer uma palavra, nenhum ato dos
que me proponho fazer. Você está pensando que estou desvairado, fora de
mim pela dor que estou sentindo. Mas não estou. Se Julie morrer, também
estarei morto. Eu a tenho amado de uma maneira que nem mesmo ela jamais
compreendeu plenamente. Se ela viver, serei como Lázaro, a voltar do mundo
dos mortos para descobrir que seu mundo mudou para sempre, embora nem
um graveto ou uma simples pedrinha tenha mudado de lugar. Neste
momento, nada posso fazer por Julie. Absolutamente nada! Os médicos vão
operá-la, as enfermeiras cuidarão dela. Ela nem mesmo poderá saber agora o
quanto eu a amo. Depois, se tivermos sorte, poderei segurar-lhe as mãos e
levar-lhe flores...E durante todo esse tempo Basil Yanko estará sentado em
Nova York, fazendo equações financeiras da tragédia alheia. Mas não
permitirei que seja assim. Não permitirei que ele acredite por um só momento
mais que poderá continuar a agir impunemente. A melhor arma dele é o
segredo e o medo que o segredo engendra. Não mais! Vou trazê-lo para uma
luta em campo aberto. É certo que isso reduz minha vantagem. Mas, por
outro lado, dá-me outra vantagem. Posso suportar a luz da atenção pública e
ele não pode. No mercado, dirão que sou um tolo, que sou um palhaço. Pois
que falem! Eu seria muito mais tolo se não pudesse me livrar das correntes
com que querem prender-me: as posses, o prestígio e tudo o mais. Mais uma
coisa, Paul, só mais uma, um aviso para você: se Julie morrer, eu matarei Basil
Yanko. E não vou querer que você esteja por perto quando isso acontecer...
Depois disso, não tinha mais nenhum lugar onde me apoiar, nenhum
lugar onde cair, mais nada me restava dizer. Suzanne voltou com o telegrama.
Fui para meu quarto, a fim de telefonar para Leah Klein e para Aaron
Bogdanovich.
O desastre era um prato habitual para Leah Klein. Ela lamentou,
embora fosse delicada o suficiente para não dizê-lo, não termos um cadáver.
No entanto, os detalhes da operação também serviriam. A venda das ações
daria também uma boa reportagem. Um amigo dela possuía umas poucas
ações e ficaria contente com a oportunidade de vender antes que o pânico
começasse. Ela faria o que fosse possível para dissuadir compradores e para
lançar o temor de Deus nos corações dos corretores. Quando citei a frase de
Arlequim sobre "atividade criminosa", ela deu uma risada gutu-ral e
comentou:
— Então ele está furioso a esse ponto? Diga-lhe que tem companhia
aqui em Washington. Recebi também a visita de um amigo de vocês, Milo
Frohm. Ele queria saber onde obtive minhas informações. Nada lhe disse, é
claro. Continue em contato comigo, Sr. Desmond. Estão indo muito bem. E
não se esqueça de que uma reportagem exclusiva escrita por mim recebe mais
espaço nos jornais do que o proporcionado pelos rapazes das agências
telegráficas. Por isso, se a moça morrer, avise-me em primeiro lugar...
Aaron Bogdanovich já sabia do ocorrido. Manifestou seu pesar, mas
sem nenhuma emoção.
— Um de meus agentes seguiu-os até o restaurante na noite passada.
Enquanto vocês comiam, ele percorreu o caminho por duas vezes. Disse que
em ambas não encontrou absolutamente ninguém. Quando vocês saíram,
tornou a segui-los. Estava logo atrás quando o atentado ocorreu. Não
apareceu depois, porque seria apanhado como testemunha. Para ser franco,
não esperava que surgissem problemas tão cedo.
Quando lhe relatei o que Arlequim estava fazendo, mostrou-se apenas
ligeiramente interessado. Sua preocupação básica era a segurança de sua
própria operação. Recusou-se a mudar o momento do encontro, pois o
horário era muito importante. Fiquei furioso e o disse. Ele recordou-me,
friamente, que eu mesmo fixara as prioridades do contrato e que Arlequim as
endossara. O carro estaria à nossa espera às nove horas da manhã seguinte, a
menos que, até lá, Madame Arlequim morresse. Como consolo, deu-me
apenas um aforismo conciso:
— Posso abrir portas, Sr. Desmond. Mas não posso garantir o que
encontrarão do outro lado. Tenho a certeza de que o Sr. Arlequim
compreenderá isso.
Essa foi a coisa mais próxima de um pedido de desculpas que jamais o
ouvi dizer.
Ao voltar para o quarto de Arlequim, encontrei-o em reunião com um
homem que eu nunca vira antes. Ele era mais alto do que eu, corpulento
como uma árvore, os cabelos brancos e as sobrancelhas hirsutas, o rosto da
cor de madeira velha, enrugado e marcado pelo passar do tempo. As roupas
eram de um estilo antiquado, mas cortadas por um alfaiate exímio. Usava um
alfinete de gravata de esmeralda e no dedo tinha um anel de sinete asteca, de
jade. De capacete e couraça, poderia perfeitamente passar por um lugar-
tenente do próprio Hernán Cortês. Arlequim apresentou-o como Pedro
Galvez. Sentamo-nos todos e Galvez prosseguiu em seu discurso
interrompido:
— Como estava dizendo, esqueça a polícia e esqueça esse pistoleiro
contratado. Poderão encontrá-lo ou não. É até mais provável que não. Numa
cidade deste tamanho, com tantos imigrantes e tantos desempregados, pelo
menos metade da população masculina vive fora da lei. Confesso que ontem,
quando almoçamos, não me sentia muito confiante com relação a você.
Sempre me parecera muito suave, por demais civilizado. Não digo que isso
seja errado. Mas aqui, no Novo Mundo, não é o suficiente. Não se pode
transformar um celerado num homem honesto pelo simples fato de se lhe dar
um colarinho duro e uma gravata. É por isso que agora o aprovo plenamente,
quando me diz que vai lutar e como pretende fazê-lo! Eu apoiarei, pelo menos
aqui, onde o nome Galvez ainda significa alguma coisa. Diga-me agora do que
está precisando. Depois lhe direi o que penso que está precisando.
— Quero que traga um homem de Los Angeles para a Cidade do
México.
— Quer que ele seja seqüestrado?
— Quero que ele seja atraído até Tijuana, do outro lado da fronteira, e
de lá trazido para a Cidade do México. Se necessário, estou preparado para
mandar prendê-lo no momento em que puser o pé em solo mexicano,
acusando-o de conspiração para lesar-me. Preferiria, no entanto, falar com ele
antes que a polícia o agarrasse.
— Deixe-me pensar um pouco a respeito. Tudo é possível. O que
deseja em seguida?
— Disse-me que nosso amigo José Luis anda jogando.
— Bem...Talvez eu tenha tido uma impressão errada. É verdade que ele
joga, nos cavalos e nas mesas, algumas vezes apostas bem elevadas, mas não
enfrenta a menor dificuldade. O pai deixou-o rico e ele continua rico. Mas a
maneira como ele vive não é a mais apropriada para um homem a quem se
confiou o dinheiro de outras pessoas. Ele anda em companhias estranhas.
Acho que conhece os tipos que são atraídos por nossa cidade: organizadores
de empresas, especuladores, intermediários de dinheiro fácil. Ele os trata
como príncipes. Costuma introduzi-los onde não deveria. Algumas vezes usa
o nome do banco para tanto. Sei que o senhor não é um homem dessa
espécie, nem eu tampouco. Não aprovo esse comportamento. Posso apontar-
lhe pelo menos três homens que lhe serviriam muito melhor.
— Preciso dele agora — disse George Arlequim firmemente. —
Preciso dele leal e feliz, até poder confrontá-lo com Alex Duggan e obter, sem
coação, um depoimento, na presença de testemunhas.
— Por que não levá-lo para a Califórnia e fazer lá a acareação?
— Porque lá não temos nenhum recurso legal contra Duggan e
nenhuma maneira de forçá-lo a contar a verdade.
— Parece-me, meu amigo, que tem tantas dúvidas a respeito de José
Luis quanto eu.
— Dúvidas sim, certezas não.
— Deixe-me ver então se lhe posso descobrir algumas. Até lá,
concordo em que o melhor é mantê-lo feliz e confiante. Quanto a esse Alex
Duggan...
Fez uma pausa, o rosto contraído se iluminando num sorriso astucioso
e divertido.
— Certa vez um yanqui roubou-me em vinte mil dólares e voltou para a
Flórida para gozá-los. Nós lhe mandamos cem gramas de heroína pelo
correio. Quando ele abriu o pacote para a inspeção do pessoal da
Alfândega...he aqui! Há muitas outras maneiras de se cozinhar um coelho,
além de recheá-lo com pimentas vermelhas!
Virou-se então para mim, cordial e um tanto condescendente:
— Não está falando muito, Sr. Desmond. Talvez esteja achando tudo
isto um pouco fastidioso...
— É verdade, Sr. Galvez. Estou um pouco aborrecido.
— Por quê?
— Ontem José Luis era um jogador. Hoje ele se cerca de companhias
vulgares. É uma mudança, se não uma contradição.
— É um modo de dizer — observou George Arlequim com aspereza.
— E eu o compreendo perfeitamente.
— Então essa é minha resposta. Desculpe-me, Sr. Galvez.
— Não há de quê, Sr. Desmond. Cada um de nós é vítima de sua
própria história.
Ele levantou-se, alisando os vincos da roupa, e dirigiu-se a George
Arlequim:
— Vou começar a trabalhar imediatamente. Suplico-lhe, meu caro
amigo, que procure descansar um pouco. Telefonei para o cardeal e pedi-lhe
que providenciasse uma novena de missas pela recuperação de sua esposa.
Sabe o que eles costumam dizer: "Deus cura e o médico recebe o pagamento".
Em breve receberá notícias minhas...
Ele acabara de sair do quarto quando José Luis telefonou do saguão.
Arlequim estava quase dormindo em pé e eu também. Suzy entrou, pálida mas
controlada. Ela acabara de telefonar para o hospital. Julie ainda estava na sala
de recuperação. Tendo em vista a natureza do caso, seu estado era bastante
satisfatório. Concordamos em que, assim que tivéssemos acabado de falar
com José Luis, todos nós dormiríamos um pouco.
Ele entrou no quarto como um penitente, lamentando-se e flagelando-
se. Se ao menos nos tivesse acompanhado na noite anterior, se ao menos
tivesse percebido toda a perversidade que havia naquela história, se ao
menos...
Arlequim não estava com disposição para ouvir lamentações.
— Já tem o dinheiro, José?
— Ele será entregue esta tarde, pelo Banco Central.
— Precisarei tê-lo comigo às nove e meia da manhã. Passaremos para
apanhá-lo. Mantive minha promessa: a polícia nada sabe a respeito de Maria
Guzmán. Contudo, devo saber todo o resto da história. Encontrou-se
pessoalmente com esse homem que disse chamar-se Peter Firmin e que
alegou ter vindo verificar os computadores?
— Não. Naquela semana eu estava de cama, fortemente gripado.
Cristóbal Enriques é que estava no comando.
— E como foi que ele admitiu um homem com nome falso e
documentos falsos?
— Os documentos estavam em ordem. Isso está no diário. Cristóbal
ligou para o escritório da Creative Systems. Eles confirmaram o nome e o
número do documento. As fotografias combinavam. Temos uma cópia da
carta de apresentação em nossos arquivos.
— Cristóbal não lhe pediu o passaporte?
— As instruções de segurança não especificam que se deva pedir o
passaporte. Dizem que basta apenas a carteira funcional da companhia, com
uma fotografia e o número, além da carta de apresentação.
— Obrigado, José. Gostaria de que me providenciasse duas declarações
com testemunhas, uma sua e outra de Cristóbal Enriques, enunciando esses
fatos. Poderia também indagar à Creative Systems como um homem que eles
identicaram como Peter Firmin passou a chamar-se Alex Duggan ao voltar
para a Califórnia?
Intervim então na conversa.
— Sugiro, George, que por enquanto fiquemos longe da Creative
Systems.
Ele hesitou por um momento, mas acabou concordando.
— Paul está certo, José. Providencie-me apenas as duas declarações.
— Com prazer. Elas estarão prontas pela manhã. Por favor, o que
posso agora fazer por você, por sua pobre esposa...?
— Talvez rezar.
— Ah, se ao menos eu acreditasse em orações!
— Diga-me francamente, José: quem você acha que poderia ter feito
uma coisa dessas?
— Não sei, George. Por dinheiro, jóias...Isso mesmo! Quando um
homem está faminto o bastante ou ganancioso em demasia, o assassinato é
uma coisa muito simples. Por vingança, em conseqüência de uma desonra a si
mesmo ou à sua esposa, também se mata. Mas isso...Não, não, não! Parece
coisa de gângsteres. Creio que terá de procurar fora do México. O que diz a
polícia?
— Eles estão procurando um homem com uma arma.
— Uma agulha num palheiro! Não há a menor condição de encontrá-
lo!
— Tem amigos que possam ajudar?
Por um momento ele pareceu desconcertado, mas logo sorriu,
pesaroso, ao compreender a insinuação.
— Ah, minhas más companhias! Tenho de fato uma inclinação por
gente vulgar. Se tivesse vivido na minha família, talvez sentisse a mesma
inclinação. Jogo com eles e choco os meus amigos com eles. Algumas vezes,
porque eles são espertos e ousados, ganho dinheiro com eles. Mas não são
gângsteres, George, meu amigo...Oh, não, isso nunca! Agora quero que seja
também franco comigo: quer que eu peça demissão? Posso pedir hoje mesmo
ou mais tarde, quando melhor lhe aprouver.
— É muito generoso de sua parte, José, mas preciso de você. E agora
mais do que nunca!
— Está me fazendo um elogio. Algum dia eu o retribuirei. Como se
saiu com Pedro Galvez?
— Melhor do que eu esperava. Temos um pouco de tempo para
respirar.
— Ele é um homem estranho, um bom amigo, um inimigo implacável.
Se precisar de mim, estarei no banco. À noite, estarei em casa.
Ele deu um sorriso amargurado e acrescentou:
— E desta vez sozinho. Estou começando a pensar que me curei dos
pecadilhos da juventude. Agora procure descansar um pouco, por favor...
Assim que ele saiu do quarto, Suzanne assumiu o comando. Não
haveria mais conversas, não receberíamos mais nenhum visitante até as seis
horas. Se houvesse algum telefonema do hospital, ela atenderia. Comprara
sedativos na farmácia. Arlequim teria que tomar um e dormir até ser chamado.
Exausto, ele concordou, seguindo para a cama. Olhei para o relógio. Passava
meia hora do meio-dia. Todos nós estávamos acordados há trinta horas.
Ao descermos para nosso andar, Suzanne começou a tremer
incontrolavelmente. Apressei-me em levá-la para o apartamento, sentei-a
numa poltrona e procurei reanimá-la com um drinque. Ela engasgou ao
primeiro gole, depois correu para seu quarto e bateu a porta. Fui para meu
quarto, vesti o pijama e um roupão, servi-me de uma dose dupla e fui ver
Suzanne. Encontrei-a deitada na cama, os cabelos em desalinho, o rosto
contorcido e manchado de lágrimas. Sabia como ela estava se sentindo. Toda
aquela história era uma confusão cruel e sangrenta, com amostras de mentiras
e brutalidade, um rosário de esperanças perdidas. Julie estava além de nossa
ajuda. Arlequim recusara-a e retirara-se para a solidão dos fanáticos. Nem com
todo o amor que existisse no mundo, alguém poderia alcançá-lo. Nada havia
que eu pudesse dizer a Suzy, a não ser as palavras simples e suaves que se
usam para com as crianças. Nada havia que eu pudesse fazer, a não ser
mostrar-me gentil com ela até que a dor e o pânico se dissipassem. Depois
voltei para meu próprio quarto e dormi irrequieto até o anoitecer.
À noite Arlequim foi visitar Julie sozinho. Telefonou para dizer que ela
estava consciente, embora bastante fraca e sentindo fortes dores, apesar das
doses maciças de sedativos. Haviam lhe oferecido uma cama para passar a
noite no hospital, a fim de poder ficar perto dela. Pediu-me que lhe mandasse
um pijama, os artigos de toalete e uma muda de roupa de baixo. Pela manhã
eu deveria apanhar o dinheiro no banco e depois ir buscá-lo no hospital, a fim
de irmos ao encontro marcado com Bogdanovich. Suzanne deveria ficar de
vigília até que voltássemos. Se o estado de Julie piorasse, eu deveria ir ao
encontro sozinho.
Pouco depois, Saul Wells telefonou de Los Angeles. Localizara nosso
amigo, Alex Duggan, que vivia um tanto luxuosamente num bloco de
apartamentos no Olympic, com uma linda esposa e um filho. Havia um
apartamento vago no mesmo edifício, e Saul estava pensando em alugá-lo
como base de operações. Iria dedicar-se a manter Alex Duggan com uma
saúde perfeita. Tinha também outras notícias para mim. Os jornais
vespertinos e os noticiosos da televisão haviam divulgado a tentativa de
assassinato ocorrida na Cidade do México. Os jornais matutinos iriam dar
uma grande cobertura na manhã seguinte. A tônica era a da história de Leah
Klein, falando em "Fusões e homicídios". Falava-se em Washington de uma
investigação do Congresso sobre a segurança dos bancos de memória dos
computadores. Até aquele momento Basil Yanko recusara-se a fazer qualquer
comentário. Em Wall Street, o mercado estava em baixa e os corretores
mostravam-se cautelosos. Esperavam para ver o que aconteceria na terça-
feira...Até aquele momento, tudo estava indo muito bem. Já se podiam ouvir
as trovoadas, mas ainda não começara a chover.
Depois disso, tínhamos toda a noite para nós mesmos...e um desejo
profundo de passá-la em segurança. Sentamo-nos no bar e ficamos bebendo
margaritas, ouvindo a conversa dos turistas. Jantamos num canto distante e
tranqüilo e conversamos sobre George e Juliette, sobre o futuro incerto que
todos tínhamos pela frente.
Suzy resumiu a situação com uma declaração melancólica:
— Está tudo mudado, Paul. Nenhum de nós jamais voltará a ser o
mesmo.
— Se Julie ficar curada, minha querida, todos nós vamos melhorar
rapidamente.
— E se ela morrer?
— Não saberei como controlar George. Você conseguirá fazê-lo?
— Houve uma ocasião em que sonhei que poderia consegui-lo.
As palavras saíram lentamente, arrancadas do fundo de um poço de
tristeza.
— Agora, sei que é impossível. Nunca antes tinha visto esse lado
sombrio de George. Julie o conhecia. E talvez fosse exatamente isso o que
amava nele e queria acima de todo o resto...Engraçado, sempre achei que ela
era a mulher errada para George. Agora sei que eu é que seria. Mesmo assim,
continuo a amá-lo. É um inferno, não acha? Quando tudo isso tiver acabado,
acho que vou fazer uma mudança em minha vida, antes que seja tarde demais.
Você me dará uma boa referência, Paul?
— Se quiser ir comigo, eu lhe darei inclusive um emprego, muito
melhor do que o que tem agora.
— Não está também pensando em deixar tudo, não é?
— Não há nada para deixar, minha querida. Tenho apenas uma
participação e uma boa retirada, da qual não preciso. Estou é cansado do
mundo dos negócios e dos miseráveis que o infestam, inclusive eu. Mas não
posso largar tudo enquanto George não tenha superado todas as dificuldades
e volte outra vez a pastagens mais tranqüilas...
— Se é que conseguiremos ajudá-lo a transpor as dificuldades...
— Você confia em mim, Suzy?
— Sabe que sim. Você nunca me magoou, Paul. Poderia fazê-lo, mas
nunca o fez. Por que pergunta?
— Um dia... e se esse dia chegar, será muito em breve...posso pedir-lhe
que me apóie contra George. Estarei agindo assim não por mim, mas pelo
próprio bem dele. Você fará o que eu pedir?
— Terei que saber primeiro qual o motivo.
— Ele pode tentar matar Basil Yanko.
Ela não demonstrou o menor sinal de choque ou surpresa. Ficou em
silêncio por um momento e depois disse calmamente:
— É precisamente o que estava dizendo: nenhum de nós jamais voltará
a ser o mesmo...Sim, Paul, farei qualquer coisa que me pedir. Agora, por favor,
pague-me um conhaque e vamos mudar de assunto.
O resto da conversa foi apenas bobagem, simples banalidades. Ficamos
por lá até tarde, bebemos muito e terminamos a noite estranhamente sóbrios.
Quando subimos e eu a abracei para um beijo de boa-noite, ela disse com a
maior simplicidade:
— Por favor, Paul, fique comigo. Não poderia agüentar passar esta
noite sozinha.
O mais triste é que eu queria ficar sozinho e não tive coragem de dizer-
lhe. Nosso amor foi afetuoso e ela não viu os fantasmas que assombravam os
cantos escuros do quarto. Depois adormeceu em meu ombro. Puxei as
cobertas para cima dela e ficamos enlaçados a noite inteira, duas pessoas
solitárias, encolhidas como crianças num bosque escuro.
7

Às nove horas da manhã, pontual como a morte, a limusine parou


diante do hotel. Suzanne e eu seguimos para o banco e recebemos uma sacola
de lona, dentro da qual havia duzentos e cinqüenta mil dólares em dinheiro.
Chegamos ao hospital às nove e meia. George Arlequim estava esperando-nos
na porta. As notícias que tinha não eram boas nem más. Julie continuava na
mesma. Havia uma infecção pós-operatória, mas os médicos esperavam
debelá-la. O cirurgião que a operara não estava insatisfeito. Havia um quarto
em que Suzanne poderia descansar e ler. Se Julie acordasse, ela poderia vê-la
por um momento. Afastamo-nos do hospital e mergulhamos no tráfego
tumultuado e feroz, seguindo para o norte, ao longo da Avenida dos
Insurgentes.
Nosso motorista era um sujeito idoso e taciturno, com o rosto moreno
de índio. Contudo, consentiu em dizer-nos que nosso destino era quinze
quilômetros além de Tula e que, no caminho, veríamos alguns monumentos
antigos dos mais interessantes: as serpentes emplumadas de Tenayuca, a
Pirâmide de Santa Cecília e a Procissão dos Jaguares. Tempo houvera em que
Arlequim teria insistido em escalar a pirâmide. Agora limitava-se a ficar
sentado no canto, mudo e cego, querendo apenas que a viagem fosse a mais
rápida possível e que resolvêssemos logo o assunto de que íamos tratar.
Procurei interessá-lo na paisagem, mas ele não prestou a menor atenção.
Quando lhe relatei minha conversa com Saul Wells, resmungou uma
aprovação e caiu novamente no silêncio. Somente quando lhe perguntei sobre
Julie é que demonstrou alguma animação.
— Ela parece pálida e pequena, como uma boneca de cera. Quase não
tenho coragem de tocá-la. Eles estão alimentando-a com soro intravenoso,
mas ela se queixa de que a boca está sempre seca...Perguntou por você, Paul.
Disse-lhe que iria visitá-la assim que ela estivesse mais forte. Julie está
preocupada também com o bebê. Cheguei a pensar se não seria melhor trazê-
lo para cá de avião, junto com a babá. Mas o médico aconselhou-me o
contrário...O pessoal do hospital é muito bom. De meia em meia hora alguém
ia vê-la. Fiquei sentado ao lado dela quase a noite inteira. Senti-me
inteiramente impotente, mas ela podia segurar minha mão ao
acordar...Apareceu também um padre. Era muito jovem e queria dar uma
bênção a Julie. Eu lhe disse que ambos nascêramos calvinistas. Ele respondeu
que os homens é que mantinham listas e faziam distinções...Deixei-o pôr as
mãos em Julie...É algo bastante primitivo, mas a verdade é que, depois, ela
pareceu sentir menos dor...Ó Deus! Por que a vida tem que ser tamanha
blasfêmia?
Gostaria de poder explicar-lhe, mas faltavam-me a sabedoria e as
palavras. O rosto dele endureceu-se e ele caiu num silêncio meditativo.
Depois de Tula, seguimos pela encosta de um penhasco escarpado e
atravessamos um desfiladeiro alcantilado, que se abria num platô circular, a
cratera de um vulcão há muito extinto. No centro do platô havia um lago,
cercado por um pântano cheio de juncos, a terra erguendo-se abruptamente
para pastos verdes e terraços de cultura de milho e outros cereais. A casa da
hacienda ficava na orla mais distante da cratera, um prédio comprido e baixo,
de pedras, com gramados e canteiros de flores na frente, com anexos nos dois
lados, e logo depois as casas dos camponeses, os estábulos e os cercados para
carneiros e bois. Parecia uma rica propriedade particular e feudal, como um
ducado antigo que sobrevivera a muitas revoluções e continuava a ignorar os
democratas.
Aaron Bogdanovich estava nos esperando à entrada da casa. Disse-nos
algumas palavras de saudação e perguntou por Julie. Depois levou-nos a uma
sala ampla, com chão de cerâmica, uma lareira de pedras, tapetes coloridos e
pesados móveis coloniais espanhóis. Apontou para algumas peças toltecas
muito raras e em seguida chamou um criado para nos trazer café. Explicou
vagamente que a hacienda era propriedade de amigos diplomatas. Observei,
como já o fizera em Nova York, que se dirigia a Arlequim com deferência e
com a preocupação de ser respeitado. Depois que o café foi servido, ficou de
pé junto à lareira e explicou-nos a missão daquele dia:
— Vocês vão conhecer um homem que, sob muitos aspectos, é bem
parecido comigo. Isto é, faz do assassinato uma profissão. A diferença entre
nós dois não é muito grande. Tenho uma educação melhor. Ele é um bruto
inteligente. Eu alego em minha defesa que sou um patriota. Ele não alega
coisa nenhuma, reconhece-se tão somente um mercenário. Quando
conversarem com ele, acreditarão que é perfeitamente lúcido. No momento,
ele está profundamente desorientado, por sedativos fortes, privações
sensoriais e métodos de sugestão. Não pode ainda distinguir entre a realidade
e a ilusão. O senhor irá confirmar-lhe, Sr. Arlequim, a ilusão. Veio aqui
contratar os serviços dele para matar um homem em Nova York. Está
disposto a dobrar o preço pedido, mas primeiro quer saber de todas as
credenciais dele. Eu orientarei a conversa. O senhor intercalará algumas
perguntas, sempre que lhe fizer sinal para isso. O Sr. Desmond permanecerá
em silêncio, a menos que o convide a falar. Alguma pergunta, Sr. Arlequim?
— Vamos encontrar-nos frente a frente com ele?
— Exatamente.
— E não é perigoso?
— Deve aceitar minha palavra de que não há o menor risco.
— Falou em privação sensorial. Ele sabe o que lhe aconteceu?
— Apenas fragmentos... Vou explicar. Fomos encontrá-lo no
aeroporto, como amigos, e o trouxemos para cá, a fim de aguardar esta
reunião. Ele concordou. Foi narcotizado durante o jantar. Quando acordou,
estava suspenso em pleno ar num porão, amarrado e com um capuz negro na
cabeça. Não havia o menor ruído, nenhuma alteração da temperatura. Sempre
que se mexia, girava no vazio. O resultado foi uma rápida desorientação. Foi
narcotizado novamente e alimentado por soro intravenoso. Ao acordar, estava
novamente suspenso na escuridão, mas dessa vez sujeito a sons cacofônicos e
notas de alta freqüência, entremeadas de vocábulos. O resultado foi uma
alucinação profunda. Esta manhã acordou em seu próprio quarto, assistido
por uma linda enfermeira, que lhe explicou que fora atacado por uma
virulenta febre local. Ele acredita que esteve delirando, mas que poderá, com a
ajuda de estimulantes, encontrar-se com seus prováveis clientes...Esse, em
resumo, mas não em profundidade, é o método refinado da tortura moderna.
Pode-se ser treinado para resistir a ele por um período muito limitado. Tony
Tesoriero nunca teve tal treinamento. Acreditamos que ele esteja
suficientemente preparado para esta reunião. Se tal não acontecer, talvez eu
tenha que recorrer a outras medidas. Se sentirem algum escrúpulo, lembrem-
se de como ganha a vida — muito boa, por sinal, como irão verificar.
Esperem aqui um momento, por gentileza!
Ele já saíra da sala há uns dez minutos. George Arlequim continuava
sentado, plácido e de rosto vazio, olhando para as achas na lareira. Fui até a
porta e lá fiquei parado, contemplando a terra verde a se estender até a orla da
cratera, bastante escura e recortada contra o céu pálido do meio-dia.
Atrás de mim, Arlequim disse:
— Não há necessidade de você ficar, Paul. Isso tudo não me causa a
menor impressão.
Causava em mim, mas era covarde o suficiente para mantê-la para mim
mesmo. Eu é que o iniciara naquela jornada para o inferno. O mínimo que
podia fazer agora era continuar a acompanhá-lo e tentar trazê-lo de volta
ainda humano. Aquele era o verdadeiro terror do momento: estávamos, por
consentimento mútuo e depois de uma deliberação racional, apoiando-nos no
rompimento e fragmentação de outro ser humano. Não importava o quão
degradado e animalesco ele fosse, mesmo assim ainda era um ser humano,
nascido de uma mulher, amamentado num seio, erguido um dia diante da
tribo como a promessa de sua continuidade.
Quando Tony Tesoriero entrou, apoiado no braço da enfermeira e
acompanhado por Aaron Bogdanovich, não parecia absolutamente
animalesco. Devia ter entre trinta e quarenta anos, era magro e pequeno, com
a graça aquilina e morena que se encontra entre os albanesi de Puglia e da
Sicília. Os olhos estavam inexpressivos e inchados, ele movia-se lentamente e
a voz era engrolada, como se a língua fosse grande demais para a boca. O
sotaque era do Brooklyn, de Little Italy. Ele afundou-se pesadamente numa
poltrona. A enfermeira ficou parada atrás dele. Bogdanovich foi encostar-se
no parapeito de pedra da lareira e ficou brincando com uma estatueta tolteca
que representava um jaguar. Poderia perfeitamente passar pelo presidente de
uma organização de caridade, cuidando das últimas providências para uma
feira beneficente no domingo.
— Tony, estes são os cavalheiros que desejam contratá-lo. Senhores,
este é Tony Tesoriero. Ele esteve doente nos últimos dias, devido a mordidas
de carrapatos. Encontramos picadas no braço dele, a confirmar que foi
mordido por insetos. Contudo, dentro de dois ou três dias ele já estará
inteiramente recuperado. Agora, para começarmos, Tony, o dinheiro já está
aqui...
— Quanto?
— Mostrem-lhe, por favor.
Arlequim abriu a sacola de lona e derramou alguns maços de notas no
chão de cerâmica. Depois, ele disse:
— E agora, Sr. Tesoriero, quero fazer-lhe algumas perguntas.
— Chame-me de Tony. É assim que todo mundo me trata. Quais são
as perguntas?
— Quero matar um homem em Nova York. Pode fazê-lo?
Tony mostrou uma expressão indolente, tolerante e divertida.
— Você paga e eu executo o serviço. Esse é o contrato.
— Garante os resultados?
— Esse é meu trabalho. Até agora cumpri vinte e três contratos, todos
sem o menor problema nem reclamações dos clientes.
— Qual é o preço?
— Começa em vinte mil dólares e sobe até cinqüenta mil, mais as
despesas. Terá também que pagar o seguro.
— O que significa isso?
— Se eu for apanhado, terá que pagar os advogados e trezentos dólares
por semana à minha garota, enquanto estiver preso... se é que ficarei.
— E como posso ter certeza de que não irá dizer alguma coisa?
— Se falar, você manda me matar; por isso eu não falo. Sabe disso,
caso contrário não me teria chamado, não é mesmo?
Ele hesitou nas últimas palavras e uma expressão desconcertada surgiu-
lhe nos olhos apáticos.
— Isso...é isso o que gostaria de saber. Quem foi que me indicou?
Aaron Bogdanovich sorriu pacientemente.
— Eu já lhe disse, Tony...O caso Hallstrom, aquela mulher em Nova
York...
— Ah, sim...Uma loura alta. O contrato dela foi firmado na Cidade do
México...Como era mesmo o nome do cara?
— Basil Yanko.
— Não, não...Era outra pessoa...Mexicano...Como é que pode conhecê-
lo e não saber o nome?
— Nós sabemos, Tony — disse Bogdanovich, a gentileza em pessoa.
— Estamos apenas tentando descobrir se você é tão esperto quanto diz.
Tony fitou-nos atordoado e hostil, como um lutador de boxe sonado.
— O que está querendo dizer? Aceitei o contrato e recebi trinta mil
dólares. Fiz o serviço. Será que isso me torna estúpido ou algo parecido?
— Pois acaba de provar que foi, Tony. O preço do contrato era de
cinqüenta mil. Sei porque Basil Yanko me contou. Tenho a impressão de que
você foi roubado em vinte mil...E tenho certeza de que Yanko também não
ficará muito satisfeito.
— Porca madonna! Depois de tantos anos, Tony Tesoriero foi passado
para trás! Mas não há de ser nada. Assim que eu sair daqui, terei que fazer um
acerto de contas particular.
— Não, se quiser este trabalho, Tony. Bogdanovich comportava-se
como um mestre-escola paciente, diante de um aluno por demais ansioso.
— Meus amigos precisam de um trabalho limpo, sem risco algum.
Receberá por ele sessenta mil.
— Mas fui enganado em vinte mil! Isso não é direito!
— É por isso que estamos querendo saber o que saiu errado, Tony.
Foram despachados cinqüenta mil de Nova York para um cara na Cidade do
México. Nós o conhecemos e sabemos que é um intermediário honesto. Mas
talvez ele tenha passado o contrato por intermédio de outra pessoa, que ficou
então com uma parte do dinheiro...É exatamente isso o que estamos
procurando determinar.
Era doloroso assistir à sua tentativa de recolher as lembranças e
impressões dispersas em sua mente. Começou a raciocinar lentamente,
destacando os itens nas pontas dos dedos:
— Está certo, vamos começar do princípio. Um cara em Miami disse-
me que tinha um amigo na Cidade do México que queria acertar um contrato
comigo, exatamente como vocês mesmos fizeram. Encontrei-o. Aceitei o
serviço. Recebi o pagamento. Não me encontrei com dois caras, apenas com
um. Ele é velho, parece um don, de cabelos brancos e um anelão verde no
dedo...Ah, sim! Agora estou me lembrando também: tinha um alfinete de
gravata com uma esmeralda do tamanho de uma noz. O nome do cara era
Pedro Galvez, o mesmo que me deram em Miami. É sobre esse sujeito que
estão falando?
— Esse mesmo.
Não havia o menor vestígio de emoção na voz de Arlequim.
— Pedro Galvez...
— Ele é amigo de vocês?
— Não é mais, Tony.
— Como posso então recuperar meu dinheiro?
— Aceite meu contrato — disse Arlequim — e eu o farei recuperar seu
dinheiro.
— Está falando sério?
— Claro. Sessenta mil, mais as despesas e o seguro. Acertaremos os
detalhes amanhã, quando estiver melhor e mais alerta. Aqui está o dinheiro.
Abaixou-se e contou alguns maços de notas, empurrando-os com o pé
sobre o chão de cerâmica.
— Quando voltar amanhã, eu lhe trarei os vinte mil. Mas precisarei de
um bilhete seu para recebê-los.
— Que espécie de bilhete?
— Algo bem simples..."Para Pedro Galvez: Basil Yanko deu-lhe
cinqüenta mil dólares para pagar-me pelo contrato de Valerie Hallstrom.
Ainda está me devendo vinte mil. Entregue-os ao portador deste bilhete. Se
não o fizer, eu mesmo irei recebê-los..." Depois basta assinar. O que lhe
parece?
— Perfeito.
Aaron Bogdanovich ajudou-o a levantar-se e a ir até uma escrivaninha,
ficando a seu lado enquanto ele escrevia o bilhete, bem devagar e com a
caligrafia laboriosa de uma criança.
Quando acabou, Bogdanovich pôs o bilhete dentro de um envelope e
entregou-o a Arlequim, indagando em seguida:
— Está satisfeito com Tony?
— Inteiramente.
— Não há mais nada que deseje saber dele?
— Não.
— Tony, você deve agora descansar um pouco. Esse trabalho é dos
grandes e amanhã você tem que estar completamente recuperado. Além disso,
está na hora de sua injeção, não é mesmo?
— Mas que droga! Estou parecendo uma almofada de alfinetes!
— Mas esta será a última injeção, Tony — disse a enfermeira
jovialmente.
— Está certo. Eu os verei amanhã.
Ele abaixou-se e pegou os maços de notas, enfiando-os na frente da
camisa e fazendo piadas desconexas sobre como aquilo ia melhorar sua
aparência. Depois, rindo e balbuciando, apoiou-se no braço da enfermeira e
saiu da sala.
Arlequim virou-se para Bogdanovich e indagou:
— O que vai acontecer com ele agora?
— Exatamente o que ouviu, meu amigo. Ele vai receber sua última
injeção: uma bolha de ar na veia. Quando chegar ao coração, ele morrerá.
Não pude conter uma exclamação de horror. Bogdanovich girou
rapidamente em minha direção, desafiando-me.
— Está chocado, Sr. Desmond? Ouviu-o dizer que já matou vinte e
três pessoas. E pensa que poderia ser condenado simplesmente pelo que
ouviu dizer nesta sala? Nunca!.. . Além disso, há algo que ainda não sabe.
Valerie Hallstrom era minha agente. Treinei-a e plantei-a na organização de
Yanko. Tony Tesoriero matou-a. Uma vida por uma vida. Essa é a lei. Sabia
disso quando começou.
Fez uma pausa para respirar e virou-se para George Arlequim.
— Quem é esse Pedro Galvez?
— Um amigo. É também um de meus acionistas.
— E o quanto ele sabe sobre seu negócio?
— Bastante. Falei-lhe a respeito de Alex Duggan.
— Má notícia...
— Minha esposa é também uma das vítimas dele.
— Podemos eliminá-lo, mas assim perderemos um dos elos em nossa
cadeia de provas. Deixe-me pensar um pouco sobre o melhor caminho a
seguir.
— Eu gostaria de mandar-lhe um presente.
— Que espécie de presente, Sr. Arlequim?
— O corpo de Tony Tesoriero. Acha que poderia providenciá-lo?
— Posso, mas não vou fazê-lo.
Bogdanovich foi categórico, acrescentando logo a seguir:
— Fale-me mais a respeito de Pedro Galvez...
— Uma família tradicional, muito rico pelas minas que possui e
arrogante, pelo poder que detém...
— Mas não louco, nem estúpido?
— Não.
— Então por que ele faz contratos com matadores profissionais...não
para si mesmo e sim para Basil Yanko?
— Ele precisa de milhões de dólares para investimento em novos
empreendimentos. Um dinheiro de risco e a longo prazo, duas coisas muito
difíceis de se conseguir hoje em dia. As taxas seriam elevadíssimas. Eu calculo
que Yanko lhe tenha oferecido dinheiro do petróleo, assim que nosso caso
estivesse encerrado...
— Mas isso ainda não explica, Sr. Arlequim, por que um velho
aristocrata como Pedro Galvez iria negociar diretamente com Tony Tesoriero.
— Isso é fácil de compreender.
Arlequim fez uma pausa curta, o cenho enrugado numa expressão de
autozombaria.
— A idéia certamente o atrairia, como aconteceu comigo. Há algo
exótico em se possuir um carrasco particular. .. É um privilégio de rei.
Ele mexeu na pilha de notas com a ponta do sapato e acrescentou:
— Uma pilha de papel compra a morte de um homem.
— O que ela não pode comprar-lhe — observou Aaron Bogdanovich
— é o adiamento de sua própria morte.
George Arlequim digeriu o pensamento lentamente. Não havia o
menor indício pelo qual se pudesse determinar se o achava amargo ou doce.
Depois de algum tempo, ele disse:
— Se foi Galvez, por que ele teria dado seu verdadeiro nome?
Bogdanovich sorriu.
— Está esquecido, Sr. Arlequim, de que esse é um relacionamento
profissional. Envolve, acima de tudo, segurança. E o contratado teria que
saber se de fato existia o dinheiro para pagar a apólice do seguro.
— Existe um telefone nesta casa? — indagou subitamente Arlequim.
— Gostaria de ligar para o hospital.
— Ali no canto. A linha não é muito boa e talvez tenha que ter um
pouco de paciência.
Enquanto ele telefonava, Bogdanovich e eu saímos da casa e
começamos a passear juntos pelo pátio. Bogdanovich comentou:
— Galvez é uma surpresa desagradável. Ele constitui também uma
ameaça para Alex Duggan, que se torna agora um homem muito importante.
Temos que decidir o que fazer com ele.
— Não creio que Arlequim esteja num estado apropriado para decidir o
que quer que seja.
— Discordo, Sr. Desmond. Se falarmos em termos de princípios
morais, é evidente que ele está atuando dentro de um sistema de valores
completamente novo. Se estamos falando sobre sua capacidade de planejar e
executar uma estratégia, creio que no momento ela está consideravelmente
maior, porque agora não está limitada por considerações morais.
Evidentemente, isso o perturba. Seu problema, Sr. Desmond, é que é um
homem confuso, desnorteado, meio acreditando, meio negando, a procurar
eternamente um compromisso. Seu amigo Arlequim não é absolutamente
assim. Ele pega a vida ou a morte com as duas mãos. Mas compreendo suas
dúvidas. Aceito ter que ser condenado à inutilidade de tudo. Arlequim irá
condenar-se a um propósito determinado. E quando o realizar e compreender
sua inutilidade...O que acontecerá então? É essa sua dúvida, não é mesmo?
— Suponho que sim.
— Não tenho resposta para ela, Sr. Desmond. Tampouco é-me exigido
que tenha. Como Tony, eu aceito um contrato, executo-o e depois me preparo
para o próximo trabalho...Ah, Sr. Arlequim! Conseguiu dar o telefonema?
George Arlequim estava parado na porta, o rosto lívido, os olhos
vidrados.
— Consegui. Julie morreu há quinze minutos. Eles disseram que foi
uma embolia nas coronárias.
Aaron Bogdanovich cravou um punho de ferro em meu braço e
murmurou:
— Leve-o de volta à cidade. Eu lhe telefonarei mais tarde. Não posso
controlar um marido de luto.

Vou contar-lhes agora que fui eu quem mais chorou. Ao lado da cama,
chorei sem o menor constrangimento. Inclinei-me e beijei-lhe os lábios frios,
disse-lhe adeus e murmurei um requiescat. Arlequim ficou parado ao meu lado,
rígido, distante, sem lágrimas, esperando que eu estivesse pronto para sair. O
que se passou entre eles depois, se ele esbravejou ou chorou, eu simplesmente
não sei — e, por algum tempo, nem me importei em saber. Foi tudo muito
estranho. A morte de Julie era a grande morte. Eu sentia a pequena morte da
separação, o patético do nunca-mais, do jamais-apreciado, a esperança para
sempre irrealizada. E, contudo — como os mortos são felizes por jamais
saberem-no! —, eu me sentia aliviado. Ela não podia mais sofrer. Eu estava
libertado de uma servidão que carregava há tempo demais, uma tentação que
se tornara mais aguda com o passar dos anos. Estava finalmente livre — se
bem que num deserto frio e árido — mas livre.
Enquanto esperávamos por Arlequim, Suzy e eu sentamo-nos juntos,
mantendo a conversa vazia e rememorativa que se segue a cada morte. As
lágrimas dela há muito que se haviam esgotado e, como todas as mulheres, em
todos os funerais, precisava pensar nos cuidados da casa.
— Espero que George resolva enterrá-la aqui mesmo. Do contrário, a
situação se arrastará por um tempo excessivo. Vamos precisar de um agente
funerário, Paul. Você poderia cuidar disso? Pedi alguns sedativos ao médico.
George vai precisar deles esta noite. Você passará a noite com ele na suíte,
não é, Paul? Eu mesma passaria, de boa vontade, mas não é muito
apropriado...Talvez ele esteja disposto a terminar tudo agora, a esquecer toda
essa história sórdida e voltar para casa. O verão está para começar. Você
poderá levá-lo para fazer um cruzeiro em seu iate...Tenho que emalar também
as roupas dela. Seria terrível para George ter que fazê-lo...Oh, Paul, sinto-me
tão triste por ele...
Não podia sentir-me triste por ele porque, naquele momento, estava
odiando-o. Senti-me tentado a dizer-lhe que agora tinha outro cadáver para
jogar diante da porta de Pedro Galvez. E por que não? Uma morte era
bastante parecida com outra qualquer. As flores iriam desabrochar tanto da
boca aberta de Tony Tesoriero quanto do ventre estraçalhado de Juliette
Gerard. E durante todo o tempo eu odiava a mim mesmo, porque era o bravo
guerreiro com a trombeta de bronze que convocava os heróis para a luta e
depois soprava um toque de silêncio sobre os corpos dos derrotados,
afugentando os abutres para longe de seus cadáveres.
Suzanne segurou-me a mão direita e apertou-a entre as suas.
— Paul...por favor! Não se culpe. Nem culpe George. Podemos apenas
percorrer o caminho que avistamos diante dos nossos pés. Por favor, chéri...!
Muito tempo depois é que Arlequim veio ao nosso encontro. Ele estava
tranqüilo agora, raso e vazio como um lago na Lua. Agradeceu-nos a ambos,
por si mesmo e por Juliette. Já tomara as primeiras decisões necessárias:
— Vamos enterrá-la aqui mesmo. Paul, você poderia por gentileza
providenciar os melhores arranjos possíveis? Ela deve ter uma missa.
Devemos informar ao embaixador suíço, a José Luis, a Pedro Galvez e sua
família e aos funcionários do banco. Suzy, por favor, telegrafe a todos os
nossos escritórios e determine que fechem por um dia. Peça aos gerentes
locais que mandem inserir um aviso fúnebre nos jornais. Já telefonei para os
pais dela. Depois...
— Vamos falar sobre isso mais tarde, George.
— Como preferir, Paul.
— Vou chamar um táxi — disse Suzanne.
— Voltarei para o hotel a pé.
— Nós iremos com você.
— Não, Paul, obrigado. Prefiro ficar sozinho por algum tempo.
— George, você quer realmente que Galvez seja convidado para o
enterro?
— Quero. Ele é amigo nosso. Pediu ao cardeal que mandasse rezar
missas pela recuperação de Julie.
Se lhe for possível fazer a escolha — o que está ficando cada vez mais
difícil no ano dos assassinos —, suplico que não opte por morrer
violentamente numa cidade latina. Os documentos exigidos para consigná-lo
fora desta existência são horrendos e terá que esperar no limbo até que todos
eles estejam preenchidos. Fui obrigado a abdicar da tarefa de providenciar o
funeral de Julie, deixando-a ao encargo de José Luis Miramón de Velasco, que
a aceitou como um dever sagrado e como a menor das penas por seus
pecados. Precisaria somente da assinatura de Arlequim. Quanto ao resto,
providenciaria para madame uma cerimônia digna e um lugar tranqüilo para
repousar, perto do jazigo de sua própria família...
E então o mundo voltou a invadir-nos uma vez mais. Havia uma pilha
de telegramas e uma lista de telefonemas com um metro de comprimento.
Nossos gerentes locais estavam em pânico. O mercado estava em estado de
choque. A imprensa queria comentários e esclarecimentos. Todo mundo
queria saber se George Arlequim era um gênio ou se era um louco rematado e
sem mãe. Enquanto Suzanne cuidava dos telegramas, batalhei com telefonistas
e diferenças de horário, para responder aos telefonemas mais importantes. Em
Nova York, era o fim da tarde. Em Londres, era a hora do jantar. Na Europa
continental, era a hora do café e do conhaque, das notícias do dia na televisão
em cores, enquanto o custo de vida continuava a subir e as possibilidades de
uma sobrevivência decente continuavam a diminuir. Acabara de desligar o
telefone pela décima vez quando Suzanne entrou, com um telegrama na mão.
— Acho que deve tomar conhecimento deste telegrama. É de Milo
Frohm.
Liguei para Aaron Bogdanovich e li o telegrama para ele. Seu
comentário foi seco como folhas mortas:
— Se precisar dele, chame-o. O problema é saber o quanto deverá
contar-lhe.
— Não tem mais nada a dizer?
— Vou voltar amanhã para Nova York.
— Há ainda negócios inacabados por aqui.
— Poderão ser concluídos em Nova York. Telefone-me assim que
chegar lá.
O que deixava o problema de Milo Frohm ainda em aberto. Meu
primeiro pensamento foi adiá-lo até que o próprio Arlequim estivesse
preparado para resolvê-lo pessoalmente. O segundo foi telefonar para
Washington e verificar quais as bases em que Milo Frohm estava disposto a
atuar. Se fossem flexíveis, poderíamos perfeitamente cooperar. Se ele quisesse
apenas bancar o policial cordial da vizinhança, não haveria a menor condição.
Eu não tinha o menor ressentimento contra os policiais, especialmente contra
os que se mostrassem amigáveis. O único problema era que eles cuidavam de
bem poucas coisas: a lei e a ordem e um sono tranqüilo à noite, deixando de
lado muitas causas em disputa e toda uma fossa de injustiça cheirando mal aos
raios do sol.
Milo Frohm ficou na maior satisfação ao receber meu telefonema.
Agradeci-lhe o telegrama e ressaltei que era muito difícil falarmos de negócios
numa linha aberta. Ele achava que, pelo que andara lendo nos jornais, eu
exagerava a dificuldade. Não poderíamos ter sido mais abertos se tivéssemos
anunciado na televisão. Rumores de fontes de confiança diziam que
estávamos prestes a ser processados. Eu lhe afirmei que já esperávamos isso,
até mesmo queríamos que acontecesse. Contei-lhe então sobre a morte de
Julie'.
Por um longo momento ficou em silêncio, depois disse:
— Como o Sr. Arlequim está aceitando o fato?
— Biblicamente.
— O Velho ou o Novo Testamento?
— O Velho...
— E quais são seus sentimentos, Sr. Desmond?
— Eu gostaria de continuar a agir de acordo com as regras. Mas receio
que, se o fizermos, os corvos poderão devorar-nos.
— Suponhamos que as regras fossem ligeiramente contornadas...
— Tem que ser mais do que um simples suponhamos...
— Então asseguro que vamos contorná-las.
— Estamos sendo gravados?
— Desde o início...
— Então aqui vai a história. Valerie Hallstrom foi morta por um
matador profissional chamado Tony Tesoriero, que agora também está morto.
Ele foi pago por um homem chamado Pedro Galvez, uma figura muito
importante aqui no México, ligado à nossa organização e a Basil Yanko. Como
prova, temos uma declaração assinada por Tony Tesoriero. Não serve para
um tribunal, mas acho que poderá servir-lhe. Estamos imaginando, sem
provas, que Galvez foi também o responsável pelo assassinato de Madame
Arlequim. As fraudes em nosso banco na Cidade do México foram cometidas
por uma mulher, Maria Guzmán, paga por um certo Alexander Duggan, que
trabalha para a Creative Systems em Los Angeles, Califórnia. Sobre isto temos
depoimentos com testemunhas e fotografias que o identificam, também
assinadas por testemunhas. Galvez foi informado de que conhecíamos a
existência de Duggan. Saul Wells está neste momento vigiando Duggan. Seu
endereço é o seguinte...
Quando acabei, Milo Frohm indagou:
— Contou toda essa história às autoridades mexicanas?
— Não.
— Por que não?
— Oferecemos imunidade a Maria Guzmán. Duggan está fora da
jurisdição mexicana e o resto é confidencia de um homem morto.
— Obrigado pelas informações, Sr. Desmond. Quando pretende voltar
aos Estados Unidos?
— Isso vai depender de Arlequim. Provavelmente logo depois do
enterro...
— Gostaria de ser informado do vôo assim que fizerem a reserva. São
pessoas por demais perigosas para se estar junto num avião e terei que tomar
providências para proteger os outros passageiros.
Pensei que ele estivesse brincando e dei-lhe uma resposta irreverente.
Mas estava profundamente sério.
— Política e dinheiro fazem uma mistura explosiva, Sr. Desmond.
Acrescente-lhes petróleo e terá uma fogueira de grandes proporções. Por
favor, atenda meu pedido.
Pelo menos ele estava sendo franco. Podia contornar as regras, mas não
podia alterar os fatos fundamentais da vida naquele ano da graça duvidosa, em
que nenhuma fortaleza era à prova de dinheiro, em que um pouco de
explosivo plástico podia estourar um avião nos céus, em que uns poucos
homens desesperados podiam manter uma nação como refém. O que nos
levava em rápidas passadas de volta à era do obscurantismo, da justiça sumária
e da lei de talião, do privilégio real do carrasco particular...
Como se lesse meus pensamentos, Suzanne aproximou-se nesse
momento e passou os braços ao redor do meu pescoço, encostando o rosto
no meu.
— Já chega, Paul...Você também precisa de um pouco de tempo para
dar vazão à sua dor.
— É engraçado, mas não sei como fazê-lo. Existe dentro de mim
apenas um espaço em branco, como se alguém tivesse tirado um quadro da
parede...George já voltou?
— Já. Acabou de chegar. Liguei para o quarto dele. Está descansando e
não quer ninguém junto de si por enquanto. Mandei transferirem para cá
todas as ligações para ele.
— Ele em breve vai estourar, Suzy.
— Não, Paul.
Ela sacudiu a cabeça, enfaticamente.
— Lembrei-me de uma coisa que meu pai costumava dizer-me: Der
grõsste Hass ist still...O maior ódio é o silencioso. George é agora um homem
que odeia. Ele está perdido para nós, foi-se para sempre.
— Relaxe, amor. As pessoas ficam cansadas de odiar.
— O ódio dura mais tempo que o amor, Paul.
— Um uísque a ajudaria agora?
— É bem possível. Oh, chéri! Não me deixe. Estou muito assustada.
Enquanto servia o uísque, o pensamento ocorreu-me como um malho a
cair com toda a força sobre minha cabeça.
Outrora, num ontem já distante, sentíramos medo do mago poderoso,
Basil Yanko. Agora sentíamos mais medo ainda de George Arlequim, que
sucumbira ao seu encantamento e estava num quarto escuro com um estilhaço
de gelo enterrado no coração. E porque eu não podia enfrentar a verdade,
procurei refúgio nas banalidades. Estávamos no meio de um desses diálogos
tolos e consoladores sobre amor e misericórdia e de como, se se compreender
tudo, se pode perdoar quase tudo, quando o telefone tocou e a recepção
anunciou que o Senor Pedro Galvez desejava ver o Sr. George Arlequim.
Suzanne — que Deus abençoe suas sóbrias maneiras suíças! — pediu-lhe que
esperasse um momento, enquanto eu me comunicava com Arlequim pelo
telefone do quarto. Esperava a raiva ou um desespero vago. Em vez disso,
porém, foi-me dada ordem de receber o nosso hóspede com toda a cortesia,
oferecer-lhe um drinque e suplicar-lhe a fineza de esperar alguns momentos,
enquanto Arlequim se preparava para recebê-lo. Transmiti o recado. Suzanne
desceu para o saguão. Arrumei a escrivaninha e providenciei copos limpos,
imaginando o que diabo se podia dizer a um assassino, quando o corpo de sua
vítima ainda nem estava frio. Eu não precisaria ter-me preocupado.
George Arlequim já estava pronto e esperando quando Suzanne
introduziu Pedro Galvez. A recepção que ofereceu ao mexicano foi aparatosa
e emocional.
— Meu caro Pedro! Foi muita bondade sua ter vindo! Não era
necessário, mas estou profundamente comovido!
— George, meu amigo, o que posso dizer? O que posso fazer?
— Nada, Pedro! Sua presença já é o suficiente! Aceita um drinque?
Café? Não é estranho como voltamos aos velhos costumes? Servimos comida
e bebida aos pranteadores. Por favor, por favor, sente-se...Suzanne! Café para
o Senor Galvez!
Pedro Galvez ajeitou-se numa poltrona, um rochedo de conforto num
oceano de dor.
— Meu caro George! Estava plenamente convencido de que isso jamais
poderia acontecer!
— Era o que todos nós pensávamos, Pedro.
— E os arranjos? Talvez eu possa...
— Já está tudo providenciado. De qualquer forma, obrigado. Ela será
enterrada aqui mesmo, nesta sua linda cidade. Ela sempre a amou.
— George, isso é assassinato. Temos que fazer alguma coisa!
— O quê, Pedro? Não posso sair pelas ruas, gritando por sangue e
vingança. Prefiro antes deixá-la dormir em paz.
— Entendo, mas isso não é o bastante.
— Deixe-me enterrá-la primeiro.
— Claro, claro. Mas deve haver uma cerimônia, George, a coisa
apropriada. Tem aqui amigos e clientes. Eles vão querer apresentar-lhe seus
votos de pesar. Posso trazê-los?
— Se quiserem vir...
— Continuará por aqui depois do enterro?
— Acho que não muito. Solicitam minha presença em outros lugares.
Há pessoas que dependem de mim. Ainda estou sendo atacado e tenho que
prosseguir na luta. Agora, até a luta é alguma coisa.
— Tem alguma idéia, George, uma suspeita que seja, de quem possa ter
feito essa coisa terrível? Se tem, diga-me. Prometo, por minha alma imortal,
que o encontrarei.
— Aprecio sua boa vontade, Pedro, mas já sei quem é o responsável.
— E já contou à polícia?
— Não.
— Mas deve contar! É essencial que eles saibam.
— Eu queria dizer-lhe primeiro, Pedro.
— Por que logo a mim?
— Você tem amigos entre as altas autoridades. Não deixaria que uma
coisa destas ficasse enterrada nos arquivos.
— Nunca!
— Pedro, você tem que saber como me estou sentindo. Você ama sua
esposa, seu filho, suas filhas...
— Amo muito todos eles.
— Um dia eu terei que contar a meu filho que sua mãe morreu,
alvejada por um assassino na Cidade do México. Ele é agora um bebê, mas um
dia terá que saber. E então perguntará o que fiz com o homem que matou sua
mãe. E o que lhe direi, Pedro?
— Por enquanto ainda não tem nada para dizer.
— Por enquanto.
Arlequim meteu a mão no bolso do paletó e tirou o envelope que
continha o bilhete de Tony Tesoriero, entregando-o a Pedro Galvez.
— Leia isto, meu amigo, e depois diga-me o que devo fazer a respeito.
— Está colado, George.
— Foi um equívoco. Abra, por favor.
Pedro Galvez enfiou o dedo sob a aba do envelope e rasgou-a.
Desdobrou o bilhete e leu-o. Não houve o menor indício de emoção no rosto
enrugado. Dobrou cuidadosamente o bilhete, colocou-o novamente dentro do
envelope e devolveu-o a George Arlequim. Levantou-se, ajeitou o colete e
abotoou o paletó. Depois, sem o menor tremor, apresentou suas despedidas:
— Senor Desmond, senorita, com licença...George, compreendo sua dor.
Eu mesmo já a experimentei. Por isso, perdôo-lhe esta brincadeira de mau
gosto.
— Espere um momento antes de partir!
George Arlequim estava parado diante da porta, uma das mãos na
maçaneta e a outra erguida para detê-lo.
— A brincadeira ainda não terminou. Aonde quer que vá, a partir de
agora, haverá um homem a vigiá-lo. Aonde quer que sua esposa vá, seu filho
ou suas filhas, haverá também alguém a vigiá-los. Um dia, um deles será
morto. Mais algum tempo e chegará a vez de outro. Mas nunca você, Pedro
Galvez, nunca você...Você é intocável. Sabe perfeitamente que posso fazê-lo,
porque você mesmo o fez e porque, hoje, assisti à morte de Tony Tesoriero.
E sabe que o farei, porque você mesmo me ensinou que não há outro jeito. A
menos que se mate a fera, não haverá carne para o jantar...E da próxima vez
em que telefonar para Basil Yanko, conte-lhe tudo o que acabei de dizer.
Adias, amigo!
Pedro Galvez estava rígido, vigoroso e firme como um velho carvalho
resistindo ao vento da tempestade.
— Posso oferecer-lhe um negócio melhor, George.
— Sei que pode. Sente-se e escreva. Suzanne, ligue para a portaria e
peça que providenciem um tabelião.

É do conhecimento público que Pedro Galvez morreu em sua cama,


entre a meia-noite e a madrugada do dia seguinte. É fato sabido também,
sendo confirmado por seu médico, que ele há muito tempo sofria de sintomas
cardíacos agudos, agravados pelas tensões de uma vida ativa e produtiva. Foi
sepultado, com uma pompa muito maior, no mesmo cemitério e no mesmo
dia que Juliette Arlequim.
A nossa foi uma pequena e triste cerimônia, conduzida numa língua
estrangeira por um jovem e nervoso pastor da Igreja Luterana, o evangelho
mais próximo do nosso que pudemos encontrar na cidade da Virgem de
Guadalupe. Havia poucas pessoas presentes ao enterro. E todas elas, com
exceção de nós mesmos, ali estavam por obrigação, intranqüilas com o serviço
fúnebre, sentindo-se ligeiramente culpadas por participarem da encomenda de
uma mulher a um Deus protestante. O elogio fúnebre foi
misericordiosamente breve, uma migalha insossa para aqueles que a amavam,
um pálido panegírico para aqueles que nunca a tinham conhecido.
Arlequim ficou em pé a um dos lados do túmulo, com José Luis,
Suzanne e eu no outro. Arlequim estava extremamente pálido, mas sereno, os
olhos ocultos por trás de óculos escuros. Suzanne chorava baixinho. Quando
o caixão foi baixado, fechei os olhos, tentando conter as lágrimas. Ouvi os
baques da terra caindo sobre a tampa do caixão, os passos dos presentes se
afastando, o rangido das pás enquanto os coveiros enchiam a sepultura.
Depois, de mãos dadas com Suzanne, virei-me. Arlequim já se fora.
Estava parado junto aos carros, apertando as mãos dos que haviam
comparecido, expressando seus agradecimentos ao pastor luterano. Do
cemitério, seguimos direto para o aeroporto, onde um jato fretado estava
esperando para levar-nos a Los Angeles. Milo Frohm fizera questão de que
fossem tomadas todas as medidas de segurança. Arlequim aceitara, sem
levantar a menor objeção. Não éramos mais pessoas comuns, o sinal da morte
estava impresso nas palmas de nossas mãos.
Arlequim ficou trabalhando sozinho durante toda a viagem,
incessantemente, cobrindo página após página de anotações à mão. Ele estava
agora totalmente distante de nós, misterioso e lacônico. Não mais discutia
suas decisões, limitava-se a dar ordens. Recebia as informações e recusava-se a
comentá-las ou sequer indicar como tencionava usá-las. No dia anterior ao
enterro, eu o acusara de falta de cortesia para comigo, como colega, e para
com Suzanne, como uma funcionária dedicada. Respondera, com frieza, que
lamentava a descortesia, mas não podia mais continuar a envolver-nos em atos
pelos quais somente ele devia ser responsável. Eu já estava sujeito a ser
acusado de conspirar para obstruir a ação da justiça e de ser um acessório no
assassinato de Tony Tesoriero. Ele não queria expor-me ainda mais. Para o
futuro — se é que eu me importava agora em prever algum futuro — deveria
limitar-me às transações comerciais normais da companhia.
Argumentei que eu já era o intermediário com Aaron Bogdanovich,
Saul Wells e Milo Frohm. Ele determinou então que, dali por diante, trataria
pessoalmente com Bogdanovich. Saul Wells fora contratado abertamente e
Milo Frohm era um agente do governo: eu continuaria a tratar com ambos,
sob sua orientação...Muito bem! Se era assim que ele queria...Era. Glória ao
Senhor! Amém! Comecei a sonhar, ansiosamente, com as águas azuis e as
velas brancas a se enfunarem enquanto velejávamos por mar aberto na direção
do inferno.
Suzanne achou-o mais fácil de tratar do que eu. Ela nada tinha para
argumentar. Refugiou-se em formalismos europeus e renunciou até mesmo ao
privilégio há muito adquirido de tratá-lo por seu nome cristão de batismo.
Arlequim não fez o menor comentário sobre a mudança, embora eu notasse
que se tornou um pouco menos autoritário e mais delicado com relação a
Suzanne. Forçosamente lançados para a companhia um do outro, eu e
Suzanne ficamos cada vez mais íntimos e unidos, mais receosos do desespero
frio que implacavelmente consumia nosso ex-amigo.
Já estava escuro quando aterrissamos em Los Angeles. Fomos
recebidos na própria pista por dois funcionários da Imigração e da Alfândega,
que rapidamente registraram nossa entrada no país com o mínimo de
formalidades e depois entregaram-nos nas mãos de Milo Frohm. Ele
conduziu-nos em seu próprio carro até o Bel-Air Hotel e instalou-nos em
bangalôs contíguos, que afirmou estarem seguros, livres de quaisquer
mecanismos eletrônicos.
Estava grato por termos decidido cooperar. Seria tão franco conosco
quanto o permitiam as circunstâncias peculiares do caso. Se não tivéssemos
nenhuma objeção, ele viria jantar conosco. Sugeriu também que seria uma boa
política atrasar por algum tempo nossa reunião com Saul Wells. Talvez,
enquanto tomássemos um banho e mudássemos de roupa, ele pudesse
examinar os documentos que trouxéramos do México. Franziu o cenho
primeiro e depois sorriu quando George Arlequim lhe entregou diversas
cópias fotos-táticas e disse que preferia guardar os originais em seu poder. Ele
achou também que era melhor excluir Suzanne de nossas discussões. Mais
tarde, enquanto tomávamos café e comíamos alguns sanduíches, ele fez-nos
uma pequena preleção:
— Em nosso primeiro encontro, falamos sobre um conflito de
interesses: os nossos como uma agência doméstica e os dos senhores como
uma corporação estrangeira. Creio que todos chegamos à conclusão de que
nossos interesses convergem, mesmo que não sejam e jamais venham a ser
idênticos. É uma avaliação justa da situação?
Concordamos em que era. Arlequim acrescentou que estava menos
convencido do que eu. Milo Frohm anotou a observação e continuou:
— Nosso Departamento de Estado está em atrito com os europeus
porque eles estão fazendo acordos de petróleo em separado com os árabes.
Os israelenses estão irritados com os europeus porque os franceses e os
noruegueses liquidaram com sua rede de espionagem e com o sistema de aviso
prévio contra os terroristas. Estão irritados também conosco, por acharem
que cedemos demais nas negociações de cessar-fogo. E é dentro desse
panorama que devem encarar a situação de vocês com relação a Basil Yanko.
Politicamente, ele tem-nos sido útil. Proporcionou-nos alguns pontos de
apoio na Europa. Foi bem sucedido em atrair o dinheiro e a boa vontade dos
árabes para nosso país, ao invés da Europa. Isso é alta política e comércio
implacável. Significa também que uma certa quantidade de sujeira tem que ser
varrida para debaixo do tapete. Sabemos disso. Lamentavelmente, aceitamos
tudo se der certo e gritamos que é um crime se não funcionar. Em termos
políticos, ficaríamos felizes se Yanko conseguisse assumir o controle de
Arlequim et Cie. Na realidade, estamos terrivelmente chocados porque ele
jogou duro demais e porque vocês estão agindo com muita habilidade e a cada
dia que passa há uma nova peça de roupa suja no varal. Em suma, Sr.
Arlequim, criou-nos um escândalo de primeira grandeza, no exato momento
em que precisávamos disso como que de um buraco de bala na cabeça...
— Está por acaso tentando dizer, Sr. Frohm, que querem enterrar o
assunto?
— É o que gostaríamos de fazer, porém não é possível. Basil Yanko
tem agora duas alternativas: lutar contra o senhor até o fim ou cortar a própria
garganta. Pelas cotações de hoje, as ações dele já sofreram uma queda de vinte
e oito por cento. E cairão ainda mais. Ele vai processá-lo por perdas e danos
acima de vinte milhões de dólares, exigindo ainda pagamentos punitivos. O
senhor apresentará esses documentos que trouxe do México nos tribunais e a
seus acionistas, além de outros fatos que tenha descoberto e dos quais não me
falou...E então a administração terá outro mar de lama pela frente, antes
mesmo que esteja esquecido o escândalo Watergate. E isso é algo que todos
nós queremos evitar.
— E pode fazê-lo, Sr. Frohm.
— Como? — indagou Milo, ansiosamente.
— Devolva-me minha esposa.
— Desejaria poder fazê-lo, Sr. Arlequim. Juro por Deus que desejaria...
— Como alternativa, Sr. Frohm, já que não pode fazer o impossível,
prenda Basil Yanko por conspiração para homicídio e deixe-o trancado atrás
das grades.
— Com base na confissão de Pedro Galvez? Não há a menor
possibilidade.
— É um documento autêntico.
— O homem que o assinou está morto. Era seu amigo, um acionista de
sua companhia. Pode-se alegar que ele conspirou com o senhor para oferecer-
lhe essa confissão como um último gesto de amizade. Pode-se alegar também
que fez essa confissão sob ameaça. Aliás, Sr. Arlequim, é exatamente isso o
que penso que aconteceu, embora não tenha os meios nem o desejo de prová-
lo. Mas possui também um bilhete hológrafo de Tony Tesoriero, o qual
também está morto. Estamos felizes por nos vermos livres dele, por isso não
estamos perguntando quem o matou. Contudo, sabemos já há algum tempo
que Valerie Hallstrom era uma agente israelense trabalhando para uma rede
cuja existência toleramos, tendo em vista nossos próprios propósitos...O que
me lembra de uma coisa, Sr. Desmond. Mandou seu criado passar umas férias
em San Francisco. Determinamos que um de nossos homens fosse conversar
com ele. Takeshi declarou que o patrão gosta muito de flores, que lhe são
normalmente enviadas por uma loja da Third Avenue...
Ele suspirou e abriu os braços, num desespero momentâneo, logo
acrescentando:
— Como dizem meus colegas ingleses, é uma confusão majestática.
Mas, de alguma forma e com o máximo de brevidade, teremos que resolver
tudo.
— Há uma maneira segura de fazê-lo, Sr. Frohm. E pode perfeitamente
usá-la. Não há a menor dúvida quanto aos documentos que vinculam Alex
Duggan às fraudes ocorridas no México. Precisa apenas de mais um: a
confissão dele de que agiu por sugestão ou determinação de Basil Yanko.
— Infelizmente também teremos um problema quanto a isso. Alex
Duggan saiu de casa na manhã de terça-feira para visitar um cliente em San
Diego. Não chegou lá e desde então ninguém sabe de seu paradeiro. A
companhia onde trabalha e sua esposa já o incluíram na relação de pessoas
desaparecidas.
— Você me disse que Saul Wells estava vigiando-o, Paul!
— E estava.
— Então como diabo isso pôde acontecer?
— Foi muito simples — explicou Milo Frohm, a voz cansada. —
Houve uma batida de vários carros na estrada e Saul Wells meteu-se nela. É o
azar do jogo. Pobre Saul! Seu orgulho está mais amassado que seus pára-
lamas.
Eu teria ficado feliz se pudesse largar tudo naquele momento, encerrar
o caso para sempre e voltar para casa. Arlequim, porém, era obstinado como
uma mula numa trilha de montanha.
— Mandou-nos um telegrama, Sr. Frohm, com uma frase que posso
citar de memória: "Creio que precisa de mim". Por sua insistência e pela do Sr.
Desmond, consenti em encontrar-me com o senhor. Se julgasse seus
conselhos apropriados, iria segui-los. Mas o que me está aconselhando? A
esquecer o assassinato de minha esposa? Não o farei em hipótese alguma. A
deixar que Basil Yanko me compre, integralmente, vendendo tudo em seguida
para os xeques do petróleo? Não! A cessar de hostilizá-lo pela imprensa, com
medo de que ele ganhe os processos de perdas e danos movidos contra mim?
Se não puder provar a validade desses documentos nos tribunais, então eu os
levarei ao julgamento da opinião pública. Não cometi crime algum. Meus
crimes morais são problemas que só a mim dizem respeito!
Arlequim desferiu um soco violento na mesa antes de continuar.
— Não serei dissuadido de jeito nenhum, Sr. Frohm! Se o senhor ou
seu governo querem mover um processo contra Basil Yanko, ajudarei de
todas as formas possíveis. Mas se querem protegê-lo, eu os enfrentarei
ferozmente e morrerei lutando, se necessário for. Agora, pelo amor de Deus,
exponha sua proposta...ou vá embora!
— Minha proposta começa com um dilema, Sr. Arlequim. Nosso
governo efetua contratos com Yanko porque ele é um gênio e oferece os
melhores serviços do mercado. Nossa agência está convencida de que Basil
Yanko é culpado de conspiração em muitas fraudes, homicídios e
gangsterismo em alta escala. Há uma loucura em nosso sistema pela qual
permitimos os vícios de um homem. Não podemos provar sua culpabilidade
porque não podemos contornar todas as leis. Se infringíssemos as leis,
estaríamos derrotando nossas próprias finalidades. Queremos informações. Se
o senhor puder fornecê-las, não perguntaremos onde nem como as conseguiu.
Não queremos inibir seu acesso a fontes que não podemos alcançar. Não nos
preocuparemos com o que fizer fora de nossa jurisdição. Mas, se infringir a lei
nos Estados Unidos, será por sua própria conta e risco. Estou sendo bastante
claro?
— Até agora, sim.
— Há também outros riscos, Sr. Arlequim.
— Gostaria de saber quais são.
— Avisei-o de que seria perigoso ligar-se a interesses guerrilheiros. Mas
preferiu ignorar o conselho e aliou-se a Aaron Bogdanovich, um agente
israelense, e a Leah Klein, uma conhecida, para não dizer notória, jornalista
com simpatias sionistas. Está agora incluído, juntamente com o Sr. Desmond,
entre os alvos dos ataques terroristas. Não abra nenhuma correspondência
suspeita. Não receba visitantes não-identificados. Não ande sozinho à noite.
— Uma pergunta, Sr. Frohm.
— Qual?
— Como fomos incluídos nessa lista de alvos?
— Foram computados, Sr. Arlequim, como simpatizantes sionistas. É
esse o tipo de informação que o Sr. Yanko fornece, a custos elevados, a
assinantes selecionados. Não é maravilhoso o que se pode fazer com um
banco de memória de computador? Pode-se até programar um genocídio...E
agora, o que me diz: podem cooperar?
— Podemos. Vamos discutir os detalhes.
Meia hora depois, assim que ele partiu, George Arlequim expôs-me sua
avaliação pessoal da situação:
— Milo Frohm é como você, Paul. Quer uma solução, mas prefere a
segurança. É capaz de tolerar o crime, mas não de cometê-lo. Esquecerá tudo,
se eu perdoar. Yanko vitorioso é Yanko inocente. Ele não pode devolver-me
minha esposa, mas quer que eu lhe forneça um remédio doce e cômodo para
um inconveniente público. Encontra falhas em documentos embaraçosos,
mas recusa-se a levá-los diante de um tribunal. O que tudo isso lhe diz?
— O mesmo que alguém já disse muito melhor que eu, George: ele é
dotado de uma versatilidade prudente.
— Ao diabo com a versatilidade!
— Certo.
— Qual é sua resposta então?
— Não tenho nenhuma, George. Você está decidido a fazer o que
quer. Pois então faça-o.
— Quero ver Yanko morto.
— Pois então mate-o. Ou ponha um contrato em cima dele. Sabe agora
como se faz isso.
— Eu mesmo o farei, Paul.
Poderia tê-lo matado naquele momento. Era maior do que ele, mais
corpulento e estava sentindo uma raiva como nunca experimentara antes em
toda a minha vida. Empurrei-o e encostei-o na parede, com os dedos em sua
garganta, lançando-lhe todas as maldições que conhecia.
— Agora ouça, seu miserável! Eu amava Julie tanto quanto você.
Poderia tê-la feito mais feliz do que você. Seu filho poderia ter sido meu filho.
Mas, pelo menos, agora sou responsável também por ele neste mundo
nojento! A mãe dele está morta. Quer que o menino tenha também a desgraça
de ter por pai um assassino? Quer? Você está inteiramente podre, George!
Não é mais um homem! É apenas um miserável charlatão! Tire a máscara e
nada encontrará por baixo! Não tem rosto, não tem coração, apenas ódio, e
isso é menos que...
Menos do que eu podia lembrar. Houve um intervalo de escuridão e
depois acordei em minha cama, com um saco de gelo na cabeça e Suzanne a
me esfregar as mãos. George Arlequim estava parado ao pé da cama, como
Mefistófeles vindo reclamar o pagamento de sua conta. Eu perdera minha voz
e, ao reencontrá-la, descobri que estava reduzida a um sussurro rouco:
— Saia daqui!
Ele não se mexeu. Talvez não me tivesse ouvido. Aproximou-se e
sentou-se na beira da cama.
— Lamento, Paul. Mas você poderia ter-me matado. Desejei tê-lo feito
e tentei dizer-lhe isso, mas minha voz estava presa na garganta como uma
espinha de peixe. Tossi e engasguei, terminando por cuspir um pequeno
coágulo de sangue. Suzanne ficou pálida. Arlequim sacudiu a cabeça.
— Ele sobreviverá, Suzy. Ainda lhe restam uma ou duas vidas.
— Lamento ter desperdiçado esta com um canalha como você, George.
Inclinou a cabeça de lado e fitou-me como a um espécime sob o
microscópio, dizendo com um humor ácido:
— Saul Wells estará aqui às nove horas da manhã. A essa altura já
deverá ter-se recuperado. Trate-o bem, Suzy. Ele ainda está um pouco fraco...

Conhecendo bem Saul Wells, eu não esperava que fosse muito longa a
sessão do Muro das Lamentações. Ele tinha o bolso cheio de provérbios para
todos os eventos de morte e desastre. Madame Arlequim estava morta, ele
lamentava mas não ficaria permanentemente marcado. Alex Duggan
desaparecera, mas terminaria aparecendo assim que precisasse de dinheiro ou
algo mais. Enquanto isso, Saul Wells, o superdetetive, prosseguia em suas
incansáveis investigações.
— Alex Duggan, é claro, pode estar morto. Eu digo que não está,
porque Yanko não se pode dar ao luxo de ter outro cadáver em seus
estábulos. Portanto, está vivo. Então, onde se meteu? Quando o perdi de
vista, ele seguia para o sul, em direção a San Diego. O México ele nunca mais
vai querer ver. Ter-se-ia metido em algum lugar do interior? O diabo que foi!
Nosso Alex é um garoto da cidade, adora os confortos domésticos e um
drinquezinho ocasional com as garotas, antes de voltar para casa, para os
braços da mamãezinha. A qual, diga-se de passagem, é um maravilhoso
ornamento doméstico. Minha impressão é que ele se meteu em algum lugar da
costa, junto com uma coelhinha das praias. Contudo, ele tem que comer,
dormir e comprar gasolina, talvez mesmo alugar outro carro, porque sabe que
conhecemos a placa do que está dirigindo...Temos também fotografias suas e
cópias de uma descrição, além da relação de todos os cartões de crédito que
lhe foram entregues através da companhia. Tudo o que precisamos agora é de
um pouco de sorte...
— Gostaria de conversar com a esposa dele — disse George Arlequim.
— Pessoalmente, Sr. Arlequim?
— Por que não? Sabe qual é o telefone dela?
— Sei de tudo a respeito dela, Sr. Arlequim, exceto o que usa na cama.
— E onde está seu marido — acrescentou Arlequim secamente. — Dê-
me o número do telefone. Vou ligar agora mesmo para ela.
— Por que não vamos direto até a casa dela?
— Por favor, Sr. Wells! Sei o que estou fazendo!...Sra. Duggan? Meu
nome é George Arlequim. Não me conhece, mas minha companhia usa os
serviços da Creative Systems. Seu marido fez alguns trabalhos para nós na
Cidade do México. Soube no escritório dele que está desaparecido há dois
dias. Tenho algumas informações que talvez possam ajudá-la...Se preferir,
posso transmiti-las à polícia ou à companhia onde ele trabalha...Estou
hospedado no Bel-Air. Posso mandar um carro ir buscá-la? Esplêndido.
Digamos, dentro de meia hora...
Saul Wells ainda estava em dúvida e foi o que expressou em palavras
rudes:
— Disse que sabia o que estava fazendo, Sr. Arlequim. Espero que
esteja certo. Se errar agora, talvez perca Alex Duggan definitivamente.
— Eu assumo o risco, Sr. Wells.
— Ele é uma testemunha sua. Quer que eu esteja presente ao conversar
com a esposa dele?
— Prefiro que não esteja. Seu trabalho é descobrir Alex Duggan, e o
mais depressa possível.
Saul Wells partiu com uma expressão de infelicidade, mastigando seu
charuto. Arlequim folheou seu caderninho de anotações e verificou um
telefone. Pediu a ligação. Poucos momentos depois, ouvi-o dizer:
— É George Arlequim quem está falando. Gostaria de falar com o Sr.
Basil Yanko...É mesmo? Obrigado. Telefonarei para lá.
— Que diabo você está fazendo, George?
Ele fitou-me, com um sorriso onde não havia o menor indício de
humor:
— Estou ligando para Basil Yanko. Ele está aqui na costa do Pacífico.
— E o que pretende dizer a ele?
— Vou convidá-lo para uma reunião.
— Acho que você perdeu completamente o juízo.
— Quando eu telefonar, pegue a extensão e ouça nossa conversa.
Como sempre, demorou um longo tempo para se chegar ao grande
homem. Foi quase um choque ouvir novamente aquela voz seca e áspera, na
qual havia um tom ligeiro de desprezo.
— Ora, ora, Sr. Arlequim! É uma surpresa e tanto. Por favor, aceite
meus pêsames pelo falecimento prematuro de sua esposa.
— Obrigado. Estou hospedado no Bel-Air, juntamente com o Sr.
Desmond. Chegamos ontem à noite. Creio que seria oportuno que nos
encontrássemos agora.
— Pelo contrário, Sr. Arlequim. Creio que seria bastante inoportuno... a
menos que seja na presença de meus advogados.
— Não faço a menor objeção a isso. Se eles desejam apresentar-me
alguma citação — e creio que o desejam —, talvez seja este também o
momento oportuno. Contudo, se prefere não realizar a reunião, não há
problema.
— Dá-me algum tempo para pensar no assunto?
— Claro. Estarei em Los Angeles até amanhã à noite. Pode procurar-
me no hotel a qualquer hora. Se eu por acaso tiver que sair, deixarei instruções
com minha secretária para marcar a reunião, a qual acho que deve realizar-se
em território neutro.
— Eu preferia, Sr. Arlequim, que fosse em meu escritório.
— É mais seguro aqui. Meu bangalô foi verificado pelo FBI. Eles
asseguram que não existe nenhum tipo de dispositivo eletrônico. Depois de
Washington, passamos a tomar certas precauções. Deixo a decisão a seu
critério, Sr. Yanko.
— Voltarei a procurá-lo, Sr. Arlequim. Obrigado por telefonar-me.
Foi um diálogo breve e estéril, não vi nele a menor vantagem. Pelo
contrário, vi sérios riscos numa confrontação com advogados, antes mesmo
que chegássemos aos tribunais.
Arlequim afastou as objeções com um sacudir de ombros e um
comentário sibilino:
— Se não esperamos justiça, os advogados não podem ajudar-nos nem
prejudicar-nos.
— Este é um país de litígios legais, George. Qualquer coisa serve de
arma nos tribunais. Pelo amor de Deus, você já tem problemas demais. Não
comece a comprar mais barulho.
— Não estou comprando, Paul, estou criando...Avise-me assim que a
Sra. Duggan chegar. Vou dar uma volta pelos jardins.
Foi então que mencionei a Suzanne a idéia de que provavelmente iria
deixar minha diretoria no banco, assim que voltássemos a Nova York. Não
era apenas por vaidade e ressentimento. Se ele não podia enterrar seus mortos,
eu certamente queria enterrar os meus e deixar as margaridas desabrocharem
sobre o túmulo. Se ele queria guardar segredo do que pretendia fazer, era um
direito que lhe assistia. Eu estava velho demais para lutas corporais, muito
desgastado para batalhas verbais. Suzanne revelou-me que também estava
muito perto de uma decisão semelhante. Não pedia para ser amada, mas não
podia trabalhar para o estranho que vivia agora sob a pele de Arlequim. Ele
não ficaria sem ajuda. Tinha incontáveis funcionários à sua disposição. E
talvez fosse exatamente disso que estivesse precisando: novos
relacionamentos, não manchados pelas antigas recordações. Concordamos em
que eu deveria discutir o assunto com ele, explicar-lhe como nos sentíamos e
dar-lhe bastante tempo para tomar as providências necessárias. Ao final, a
cirurgia da amputação poderia ser muito melhor que as constantes ventosas e
sangrias.

A Sra. Alexander Duggan parecia-se com todas as moças que aparecem


nos comerciais de cozinha: bronzeada, ansiosa e apaixonada pelo mundo
maravilhoso que a cercava, o qual, sem nenhum motivo, subitamente virará de
pernas para o ar. Até mesmo sua aflição tinha uma qualidade de admiração
arregalada, como Cinderela depois da meia-noite, esperando pelo retorno da
boa fada madrinha. Arlequim foi gentil com ela, mas os documentos, os fatos
e as fotografias constituíram uma revelação brutal. Ela dissolveu-se em
lágrimas e gritos impotentes de surpresa. Suzanne teve que levá-la para o
quarto, a fim de acalmá-la. Assim que ela voltou, começou uma inquisição fria
e impiedosa, com Arlequim inteiramente à vontade no papel de Torquemada.
— Sra. Duggan, minha esposa está morta. Foi assassinada. Quatro
outras pessoas envolvidas neste caso também morreram. Seu marido será a
próxima vítima, a menos que o encontremos o mais depressa possível.
— Mas eu não sei onde ele está! Tem que acreditar em mim!
— Sra. Duggan, deixe-me explicar-lhe uma coisa. A fraude foi cometida
no México. Seu marido não pode ser julgado por ela aqui. Não farei acusações
contra ele no México, contanto que obtenha dele uma declaração, dizendo
quem lhe determinou que organizasse a fraude. Estou sendo claro?
— Está.
— Acredita em mim?
— Quero acreditar.
— Se não acredita, nada posso fazer. Essa visita ao cliente de San
Diego foi rotina ou algo especial?
— Rotina. Ele tem uma relação de visitas mensais. San Diego era uma
das regulares.
— Ótimo. Ele estava fazendo algo normal. Antes de partir, aconteceu
algo anormal? Ele estava aborrecido? Tirou dinheiro do banco? Qualquer
coisa assim pode ser útil...
— Não houve nada de anormal.
— Ele levou alguma muda de roupa?
— Saiu apenas com a roupa do corpo. Era uma viagem de um dia.
Levou apenas um calção de banho e uma toalha. Sempre gostou de dar um
mergulho na volta para casa.
— Onde costumava tomar banho de mar?
— Em La Tolla. Há um motel lá chamado Golfinho Azul. Tem uma
piscina e uma praia. Mas a polícia já verificou. Ele não esteve lá.
— E o que me diz de dinheiro?
— Pedi algum antes de ele partir. Tinha consigo cerca de cento e
cinqüenta dólares. Deu-me oitenta e ficou com o resto.
— E a conta no banco?
— Tem apenas as retiradas normais. Mas eu já contei tudo isso à
polícia.
— E o que me diz de outras mulheres, Sra. Duggan?
— Oh, isso...
Ela conseguiu dar um sorriso débil e choroso.
— Ele não precisaria fugir para encontrar-se com outras mulheres.
Somos pessoas muito liberais.
— E se ficasse assustado, ele fugiria?
— Fugiria.
— Ele estava assustado, Sra. Duggan?
— Se estava, não o percebi.
— Já vasculhou os papéis dele?
— Nunca guardava nenhum documento em casa. Era supersticioso em
relação a isso. Dizia que sua casa era um lugar para espairecer. Ficava furioso
se tinha que trabalhar em casa.
— E o que me diz de cartas, cartões-postais, contas...esse tipo de
coisas?
— Nós as líamos, respondíamos e depois destruíamos. As contas eu
guardo numa pasta que tenho na cozinha.
— E o que me diz de documentos como títulos de propriedade, ações
ou bônus?
— Guardamos tudo isso num cofre que temos no banco.
— E quem tem acesso a esse cofre?
— Nós dois.
— Quem ficava com a chave?
— Eu tenho uma e Alex guardava a outra em seu chaveiro.
— Ele levava o chaveiro quando saiu de casa?
— Claro. Ele o usa preso numa corrente de ouro que lhe dei de
presente de aniversário.
— Sra. Duggan, como Alex estava indo nos negócios?
— Maravilhosamente. No próximo mês deveria ser promovido a
superintendente de área. A promoção foi determinada por um memorando
assinado pelo próprio Sr. Yanko.
— Tem algum problema financeiro?
— Nenhum. Vivemos muito bem, temos inclusive dinheiro guardado
no banco e não devemos nada a ninguém.
— Então não têm problemas financeiros, não existem problemas
conjugais e ele está indo muito bem no emprego. Mas seu marido cometeu
um ato criminoso no México. Por que haveria de fazê-lo?
— Alguém deve ter-lhe pedido que o fizesse.
— O que isso significa?
— Bem, alguém na companhia...
— Quem?
— Não sei. Essa era outra das superstições de Alex. Ele dizia que falar
de negócios em casa provocava úlceras e enfarte.
— O que aconteceu com os dez mil dólares que ele recebeu de Maria
Guzmán?
— Nunca soube da existência desse dinheiro.
— Ele começou a gastar mais dinheiro do que o normal depois que
voltou do México?
— Não.
— Há quanto tempo não abre o cofre que têm no banco, Sra. Duggan?
— Eu? Há um ano ou mais. Se precisamos de alguma coisa, é Alex
quem normalmente vai buscar.
— Sra. Duggan, não tenho o direito de pedir-lhe isso. Se quiser, tem
todo o direito de recusar. Mas não concordaria em abrir o cofre agora,
comigo?
— O que está esperando encontrar?
— Não sei, Sra. Duggan. Neste momento, tudo o que posso fazer são
conjeturas. Mas aposto que ambos estamos tentando adivinhar a mesma coisa:
se seu marido está vivo ou morto.
— Não sei...Suponho que não haja problemas...
— O cofre é seu, tem acesso legal a ele. Se acha que precisa de
proteção, posso pedir a um agente do FBI que nos acompanhe.
— Não! Isso não é necessário. Eu o levarei até o banco agora mesmo.
— Obrigado, Sra. Duggan...Suzanne, se Yanko telefonar, marque a
hora que ele sugerir, contanto que nos encontremos aqui. Paul, entre em
contato com Milo Frohm e peça-lhe para encontrar-se comigo, para
almoçarmos, no Verita's, em Santa Mônica. Diga-lhe que é muito importante.
Liguei para Milo Frohm, que ficou feliz com o convite para almoçar.
Basil Yanko telefonou para informar que estaria no hotel, juntamente com
seus advogados, às seis horas da tarde. Era um triste desperdício da hora dos
coquetéis de antes do jantar, mas tivemos que concordar. Depois Suzy e eu
bancamos os ociosos. Fomos para a piscina, nadamos, tomamos Bloody Marys
e comemos sanduíches, cochilando sob as flores vermelhas das buganvílias.
Antes que o percebêssemos, já eram quatro horas da tarde. Fomos correndo
mudar de roupa. George Arlequim ainda não voltara. Eram cinco horas da
tarde quando ele telefonou para dizer que já estava de volta. Às cinco e meia
Suzy foi convocada para preparar a reunião, providenciando canetas e blocos
e pedindo drinques e canapés. Cinco minutos depois das seis horas, barbeado,
sóbrio e razoavelmente equilibrado, apresentei-me para a reunião com Basil
Yanko e seus advogados.
Formavam um trio curioso: Basil Yanko, um sábio de cabelos grisalhos
e terno de seda e um advogado júnior de cabelos cacheados, com o rosto
magro e um ar de misteriosa malícia. Suzanne estava sentada à parte, o lápis
suspenso sobre um bloco de anotações e uma pasta de documentos no chão, a
seus pés. George Arlequim, vestindo uma camisa de seda e calça esporte,
presidia a reunião como se fosse um diretor de uma casa de modas
extremamente elegante. Basil Yanko abriu a reunião com uma exigência
impertinente:
— E então, Sr. Arlequim, qual é a ordem dos negócios?
— Primeiro, Sr. Yanko, não quer apresentar-me nenhuma citação?
— Neste momento, não. Preferimos fazê-lo em Nova York, se lhe for
mais conveniente.
— Não há problema. Se eu não estiver presente, o Sr. Desmond poderá
aceitar a citação, pois ele tem uma procuração minha. A procuração ainda é
válida, não é, Paul?
— Ainda tem dois meses de validade, George.
— Ótimo. É um arranjo satisfatório, senhores? Cabelos-grisalhos e
júnior concordaram em que era. Hesitante, George Arlequim perguntou:
— Prejuízos e indenizações? Está somando as duas coisas, Sr. Yanko?
— Não. Mas o faremos, Sr. Arlequim, se for necessário. Agora poderia
informar-nos qual o propósito desta reunião?
— Presumo que vai querer um registro dela, não é mesmo?
— Se não for incômodo.
— Suzanne vai taquigrafar tudo o que acertarmos e passará à máquina
antes de partirem. Podemos então concordar com todos os termos e assinar.
Isso é aceitável?
Era aceitável para Basil Yanko, e seus sequazes compulsoriamente
concordaram.
George Arlequim recostou-se na cadeira, esticou as pernas, construiu
uma pirâmide com as mãos e sorriu por cima de seu cume.
— Sr. Yanko, declaro diante de testemunhas e subscrevo por escrito o
seguinte: o senhor conspirou para lesar minha organização em quinze milhões
de dólares e, ao assim agir, desacreditar-me e assumir o controle da mesma
organização; conspirou também para assassinar Frank Lemmitz em Londres,
Valerie Hallstrom em Nova York e minha esposa na Cidade do México.
Proponho, nos próximos dias, tornar públicas essas acusações e apresentá-las
diante de um tribunal. Compreendo que, se não puder provar as acusações,
terei cometido o mais flagrante crime de calúnia e estou pronto para aceitar
todas as penalidades em que possa incorrer. Este é o fim de minha declaração.
Ficarei satisfeito em ouvir seus comentários, oficiais ou não.
— Falarei oficialmente, para ser registrado — disse Basil Yanko
friamente. — Acho que é um louco criminoso.
— Também para ser registrado. — O advogado mais velho avaliou
suas palavras cuidadosamente. — Poderia dizer-nos por que escolheu fazer
essa declaração extraordinária neste momento e desta maneira?
— Fui informado hoje, pelo FBI, de que o Sr. Desmond e eu podemos
ser alvo de ataques terroristas, como simpatizantes sionistas. Fomos assim
classificados num documento emanado dos serviços de computação do Sr.
Yanko. Meu filho foi colocado sob a proteção da polícia, em Genebra. Queria
que o Sr. Yanko soubesse, caso alguma coisa venha a nos acontecer, que ele
não ficará imune à ação da lei, pois eu já tenho provas que apóiam essas
acusações.
O advogado júnior agitou-se de súbito e disse suavemente:
— É claro que as provas são insuficientes, caso contrário o Sr. Yanko
estaria agora preso, como em breve deverá acontecer-lhe, Sr. Arlequim. Com
toda a deferência a meu colega, sugiro que, à luz das recentes informações
passadas para a imprensa, estamos assistindo aqui a uma tentativa um tanto
tosca de chantagem e coação.
— Concordo com a parte referente à coação — disse George Arlequim
tranqüilamente. — Estou tentando impedir o assassinato de Alex Duggan.
Encontrei-me com a esposa dele esta manhã. Ela foi bastante prestativa...De
nada lhe adiantaria matá-lo agora, Sr. Yanko.
Yanko fez um gesto de repúdio.
— Repito: perdeu inteiramente o juízo. Vamos embora, senhores.
— Com todo o respeito, Sr. Yanko...
O advogado mais velho hesitou por um momento, mas logo
acrescentou:
— ...por que não esperamos que a declaração seja datilografada e
assinada? Não é sempre que um homem oferece a própria corda com que será
enforcado.
— Então esperem vocês — disse Basil Yanko. — Eu tenho mais o que
fazer!
Ele partiu intempestivamente, deixando os dois advogados,
constrangidos, a esperarem durante dez minutos, enquanto Suzanne
datilografava suas anotações taquigráficas.
Arlequim sorriu.
— Por favor, senhores, permitam que lhes ofereça um drinque. É uma
pena que seu cliente esteja com tanta pressa. Tenho um documento para
mostrar-lhes...somente para demonstrar que não sou tão tolo quanto posso
parecer.
Ele abriu sua maleta e entregou a cada um uma cópia fotostática da
confissão de Pedro Galvez.
Eles a leram com os rostos impassíveis. O advogado mais velho
finalmente perguntou:
— Podemos ficar com isto?
— Infelizmente não.
Relutantes, devolveram as cópias fotostáticas. Ficaram subitamente
mais ansiosos pelos drinques e singularmente ansiosos pelo que classificaram
de uma "serena troca de opiniões". Estavam num terrível dilema e sabiam
disso. Tinham que insistir na total inocência de seu cliente. Mas estavam
também perturbados pelos aspectos agora sinistros do desaparecimento de
Alex Duggan, sobre os quais tinham sido avisados, na presença de
testemunhas. Começaram a falar em "mediação e acerto amigável das disputas
pendentes".
Arlequim deixou-os falar e depois perguntou o irrespondível:
— E como se pode chegar a uma mediação com o assassinato,
senhores? Como se pode oferecer uma reparação aos mortos?
Eles partiram às sete horas, dois homens perplexos, cada um com uma
cópia datilografada e assinada da declaração de Arlequim e com idéias muito
confusas sobre o que fazer com aquele documento. Assim que eles saíram,
Arlequim pediu a Suzanne que arrumasse sua mala. Milo Frohm ia telefonar-
lhe às oito e meia e os dois voariam juntos para Londres. Aquela notícia era
surpreendente e ele tratou de explicá-la:
— Frohm estava certo, Paul. Basil Yanko providenciou muitas cercas
ao seu redor, para proteger-se. Todas as investigações vão terminar num
intermediário: Galvez, To-ny Tesoriero, Alex Duggan e quem quer que tenha
matado Frank Lemmitz em Londres. É essa a maneira pela qual Yanko
sempre trabalha. Ele delega poder e ab-roga a responsabilidade, sempre que
isso lhe convém. Contudo, Alex Duggan não estava preocupado com
homicídios, apenas com sua carreira. Recebeu ordens para efetuar a fraude na
Cidade do México, mas foi esperto o bastante para tomar algumas precauções.
Deixou um relato assinado do caso em seu cofre no banco, demonstrando
que estava trabalhando sob as ordens da Creative Systems. Isso não o ajudaria
num tribunal, mas protegeria sua carreira na companhia. Tinha também no
cofre uma grande reserva de dinheiro, provavelmente o mesmo que recebeu
para pagar a cooperação de Maria Guzmán e que ela lhe entregou. Os
registros do banco mostram que, pouco antes de seu desaparecimento, ele
abriu o cofre, evidentemente para pegar um dinheiro cuja origem não poderia
ser identificada. Achamos que, depois que Galvez telefonou para Yanko,
Duggan foi aconselhado a esconder-se. Foi o que ele fez, sabendo que o
documento que deixara no banco iria garantir sua segurança. Sua esposa não
poderia entregá-lo, porque ignorava sua existência. Também não pode fazê-lo
agora, porque temos o documento em nosso poder. Há um guarda
protegendo permanentemente a Sra. Duggan e seu filho e Yanko recebeu a
advertência que acaba de ouvir. Saul Wells continua procurando por Duggan.
Milo Frohm e eu vamos para Londres, a fim de pegarmos o homem que
serviu de intermediário entre Duggan e Yanko. Se ele falar, teremos as provas
de que precisamos.
— As provas da fraude, não dos assassinatos. O que significa que você
acaba de apor seu nome ao crime de calúnia do século. Concordo com Yanko.
Você perdeu completamente o juízo, George. Mas quem é esse tal camarada
de Londres?
— O mesmo que se casou com Beverly Manners, nossa antiga
operadora do computador. Ela está esperando um bebê — lembra-se? — e o
marido joga golfe em Surrey com nosso gerente de Londres.
— Vamos torcer para que ele não decida tirar umas férias antes de
vocês chegarem lá.
— Não poderá fazê-lo. Frohm entrou em contato com a Scotland Yard e
eles o detiveram para interrogatório sobre a morte de Frank Lemmitz. Isso o
manterá ocupado até nossa chegada.
— O que você quer que nós façamos?
— Os dois podem ir para Nova York. Tirem dois ou três dias de folga
no caminho, se assim o desejarem. Fiquem lá até eu voltar.
— Nada mais?
— Nada mais, Paul. Procure divertir-se um pouco. Proporcione a
Suzanne umas pequenas férias. Nada mudará até eu voltar. E é melhor que
você não se envolva nas intrigas.
Parecia tudo muito simples, mas eu sabia que não era bem assim. Era
uma solução por demais fácil para tudo aquilo que ele estava arriscando. Ele
ainda não revogara seu voto de matar Basil Yanko. Estava simplesmente
preparando o cenário para a execução.
8

Era fácil dispensar-nos da amizade e do dever. Não era possível


remover a memória de acontecimentos recentes e o medo constante do
desastre iminente. Era um insulto sacudir um bastão de palhaço e declarar:
— Muito bem, muito bem...O mundo está transformado. Por que não
vão se divertir entre as flores?
O que iríamos fazer? Comer, beber, ver as lojas, assistir aos espetáculos,
pegar um ônibus de turistas para conhecer as mansões das estrelas?
Nós víramos a parte de baixo do tapete, com toda a sujeira do mundo
presa aos fios emaranhados. Agora éramos convidados a admirar a beleza do
padrão, ajoelhar-nos nele para rezar, deitar-nos sobre ele para fazer amor.
Estava tão furioso com George Arlequim que mal pude suportar acenar-lhe
em despedida. Suzanne estava também ressentida com ele e muito triste, o que
me deixou mais furioso ainda e estragou um excelente jantar que poderíamos
ter apreciado. Ao final, ela estava decidida a não pôr os pés em Nova York.
Sentir-se-ia mais feliz em voar de volta a Genebra, arrumar sua mesa, pedir
demissão e passar o verão descalça, na Sardenha.
Sentados ali, sombrios e infelizes, tomando café, pensei em Francis
Xavier Mendoza e, antes que a graça me fosse retirada, tratei de telefonar-lhe.
Ele lera as notícias publicadas pelos jornais. Toda a história era um prato
pútrido. Como sempre, seu coração e sua casa estavam à minha disposição.
Pela manhã voaria até seus vinhedos. Por que não íamos juntos, passando um
dia e uma noite na fazenda, bebendo um bom vinho e conversando sobre
banalidades? Cumulei-o de bênçãos e disse que ficaríamos deliciados. Suzanne
sentiu-se feliz como se tivesse sido convidada a visitar um cemitério. Meus
amigos eram meus. Sua vida dizia respeito apenas a si mesma. Ela preferia
passar sozinha o resto da noite. Não se mostrou áspera, apenas polida e
determinada. Deu-me um leve beijo na testa e partiu, deixando-me sozinho
para ir reunir-me aos outros rejeitados masculinos que estavam no bar.
Por volta da meia-noite Saul Wells apareceu à minha procura. Disse que
estava exausto e realmente o aparentava. Instalou-se num tamborete no bar,
pediu uma dose dupla de vodca com gelo e esvaziou a metade num único
gole. Contou-me então as notícias que tinha. Encontrara Alex Duggan.
— Onde, pelo amor de Deus?
— Você acreditaria se eu lhe dissesse que foi num hospital? Ele estava
internado numa luxuosa clínica particular de San Diego.
— O que há com ele?
— Nada.
— Não estou entendendo.
— Ele próprio pediu para ser internado. Disse que queria fazer um
checkup médico completo e ter duas semanas de repouso, após uma exaustiva
viagem de vendas. Está num quarto particular, cercado de livros e de
enfermeiras maravilhadas.
— E como diabo conseguiu descobri-lo?
— Rotina e um pouco de sorte. Normalmente procuramos apenas os
hospitais que cuidam de acidentados. Mas depois me lembrei de um caso que
tive no ano passado, quando um cara conseguiu manter-se escondido durante
seis meses, passando de uma clínica particular para outra. Elas oferecem as
camas, se a pessoa tem o dinheiro. Proporcionam exames primários,
secundários e terciários, exames do cólon, dietas especiais, testes de
esterilidade, tudo enfim que o cliente quiser e puder pagar. Conheço uma
romancista que costuma internar-se num hospital para escrever seus livros.
Ela diz que é a melhor coisa do mundo. Não tem que cuidar da casa, não
precisa preocupar-se com as criadas, pode usar todas as suas camisolas e eles
até penduram na porta um cartaz de "Visitas proibidas" quando seu namorado
vai vê-la. De qualquer maneira, encurtando a história, comecei a ligar para
todas as clínicas particulares e encontrei-o na quarta tentativa.
— Já falou com ele?
— Não. Quero primeiro receber instruções a respeito. O Sr. Arlequim
deixou-me com uma pulga atrás da orelha essa manhã. A partir de agora, só
vou agir de acordo com o que me mandarem. Deixei três agentes vigiando a
clínica... Acho que pode imaginar o quanto isso lhes está custando, não é?
Quando lhe contei o que acontecera durante sua ausência, deixou
escapar um assovio da mais pura alegria.
— Que diabo! Aquele rapaz está quente como molho de chili e não sabe
disso. Agora, vamos analisar a situação de acordo com a lei. Não podemos
tirá-lo lá de dentro, pois isso seria seqüestro. Se ele partir por sua própria
iniciativa, poderemos segui-lo...e podemos perder-lhe a pista novamente.
Creio que só temos uma coisa a fazer: ligar para o FBI e descobrir quem está
substituindo Milo Frohm, passando-lhe então o problema. Peça-me outra
vodca enquanto vou dar o telefonema. Se Duggan escapar desta vez, eu é que
vou me internar, mas numa clínica psiquiátrica!
Ele voltou esfregando as mãos de contentamento e com um sorriso
amplo estampado em seu rosto.
— Grande, grande! É prioridade número um. Eles assumiram plena
responsabilidade pelo caso e vão mandar um aviso a Frohm no avião. Os
agentes do FBI vão tomar o lugar de meus homens o mais breve possível. E
agora, Sr. Desmond, nós dois podemos entregar-nos tranqüilamente ao feio
vício da bebida.
— E o que me diz da esposa de Duggan?
— O que há com ela?
— Alguém não deveria informá-la?
— Alguém deve mesmo. E acredito que, ao final, alguém se lembrará
de fazê-lo. Mas não seremos nós. Não, senhor! O que ela não sabe, não pode
prejudicá-la e também não pode prejudicar-nos...Mas posso dizer-lhe uma
coisa: na Califórnia já encerrei meu trabalho, no México não tenho mais nada
a fazer...
— Mas ainda tem que descobrir respostas sobre o caso Ella Deane, em
Nova York.
— É um beco sem saída, Sr. Desmond. Com Lemmitz morto, duvido
muito que consigamos descobrir alguma coisa.
— Já pensou em Bernie Koonig?
— O que lhe dá essa idéia?
— Minhas costelas ainda estão doendo. E todo mundo fala em
Lemmitz-Koonig-Lemmitz. O que tem a perder, exceto nosso dinheiro?
— Como acabou de dizer, o que tenho a perder? Talvez agora
estejamos na trilha da vitória, não é mesmo?
Comece logo a beber, Sr. Desmond, pois já estou na sua frente.
Já era muito tarde quando fui deitar-me. De manhã bem cedo Suzanne
subiu em minha cama para dizer-me que o sol já raiara, os passarinhos
estavam cantando e não havia nada que ela mais gostaria de fazer agora do
que passar um dia inteiro entre fabricantes de vinho. Bem, quase nada...

Francis Xavier Mendoza declarou ao ver-me que eu estava inapto para


o convívio humano. Admirava-se de como alguma mulher, em seu juízo
perfeito, podia sequer admitir a idéia de ser vista em companhia daquele
equívoco genético, em cujo rosto estavam gravados todos os males do
mundo. Eu precisava de sol, ar fresco, uma absolvição ampla e geral, antes de
chegar a um quilômetro de seus preciosos vinhedos. A Suzanne ele receberia
com tapetes vermelhos e flores. A mim...Ah, se ele não acalentasse uma débil
esperança pela minha salvação, iria consignar-me, impenitente, às trevas
exteriores!
Era bom estar com ele. Ele conseguia extrair o que de bom havia na
gente, assim como extraía a fertilidade do solo e o buquê dos vinhos, com
amor e muita paciência. As videiras já estavam com muitas folhas e as
primeiras uvas começavam a intumescer lentamente. Ele conduziu-nos pelos
terraços plantados e através das adegas, mostrou-me os laboratórios assépticos
e reluzentes, falando durante o tempo todo sobre o ritual que levava
finalmente ao momento sacramentai em que se obtinha um excelente vinho.
Recitou seus nomes como uma litania: Cabernet, Chardonnay e Chenin
Blanc, Sauvignon, Semillon e Zinfandel, que o Coronel Agoston Haraszthy
trouxera da Hungria em 1857 e que continuava ainda único na Califórnia.
Falou de Robert Louis Stevenson, que bebera Souverain e Schamsberg e fizera o
elogio de ambos, para vergonha dos esnobes da Europa. Como uma
repreensão a mim, citou Tom Jefferson:
— Nenhuma nação se embriaga quando o vinho é barato; nenhuma
nação é sóbria quando um vinho caro faz com que seja substituído como
bebida comum por outras mais ardentes.
Arrancou uma risada de Suzanne ao recitar o brinde do velho Matthias
Claudius:
— Wer liebt nicht Weiben, Wein und Gesang...
Quem não ama as mulheres, o vinho e as canções, permanece um tolo
ao longo de toda a sua vida.
Antes que se passasse metade do dia, ele a encantara mais do que se
possa imaginar e me arrancara da depressão que há muito me envolvia, como
um nevoeiro fétido. Depois do almoço, deixando Suzanne a cochilar no pátio,
levou-me a um passeio sob um dossel de árvores, ao fim do qual havia uma
pequena imagem jovial do Povenelli, conversando com um par de pombos
empoleirados em suas mãos estendidas. Contei a Mendoza tudo o que
acontecera em Nova York e no México. Nada daquilo deixou-o chocado, tudo
o entristeceu.
— Paul, meu amigo, somos como camponeses vivendo numa zona
conflagrada. A morte está ao nosso redor e nossos sentimentos se
endureceram por sua presença constante. Nem mesmo procuramos ignorá-la.
Pelo contrário, fazemos dela nosso divertimento principal. Achamos que os
romanos eram selvagens, porque encenavam jogos mortais na arena. Agora
nós os simulamos para nossos filhos na televisão e nos filmes...Milhões de
pessoas entram em fila para assistir a uma criança se masturbar com um
crucifixo...Uma grande companhia mandou assassinar pessoas? Mas claro que
isso acontece...Acredito em tudo o que me contou. Estou apenas surpreso por
não ter ocorrido mais violência...
— Mas poderá haver mais. George Arlequim jurou matar Basil Yanko.
— Depois de todo o resto, será que isso ainda o surpreende? Não
deveria...O assassinato, como a peste, é epidêmico. O freio legal está mais
fraco do que nunca. E como poderia ser de outra maneira? Depois de cada
revolução, da direita ou da esquerda, os assassinos fazem as leis e os
torturadores obrigam ao seu cumprimento. Somente as peias morais é que
ainda nos seguram, que ainda resistem, o conceito de coisa sagrada que tem a
vida, o homem. Se abdicarmos disso, se o abandonarmos em desespero, como
Arlequim o fez, então o assassinato é o recurso natural...Mas você não pode
permitir que isso aconteça, Paul.
— Não posso detê-lo. Ele isolou-se de mim. Como não quero
participar, vou deixá-lo. E Suzanne vai fazer a mesma coisa.
Francis Xavier Mendoza estacou bruscamente. Pôs as mãos em meus
ombros e fez-me virar para encará-lo. Estava sombrio como o velho Moisés a
despedaçar as tábuas.
— Paul, eu mal conheço esse homem. Ele é seu amigo, não meu. Mas
eu juro que, se você o deixar agora, se não ficar com ele até o último
momento e tentar evitar essa coisa terrível, você nunca mais porá os pés em
minha casa...Jamais! Você tem um dever a cumprir! Você tem que ter amor
dentro de seu peito! Se ele estivesse morrendo de fome, você lhe recusaria
uma migalha de pão? Agora ele está mergulhado no mais profundo desespero.
Vai repeli-lo e deixar que se afunde em sua loucura suprema? Não pode fazê-
lo! Você não o fará!
— O que devo fazer, Francis? O que posso dizer-lhe?
— Qualquer coisa, tudo, nada! Mas fique com ele! Não permita que ele
o afaste de si. Engula todos os insultos, mas fique com ele. Se isso algum dia
acontecesse comigo — e sei que é possível, pois sou um homem passional e
meu avô matou muitos homens nessas colinas —, desejaria que algum amigo
me impedisse de cometer esse terrível ato final.
Ele segurou meu braço e recomeçamos a andar, lentamente.
— Fale-me sobre Suzanne, Paul. Gostei muito dela.
— Não há muito o que contar. Houve um tempo em que fomos
amantes. Permanecemos sempre amigos. Agora, por causa de tudo o que está
acontecendo, voltamos a ser amantes. Não sei por quanto tempo isso vai
durar.
— E por que não deveria durar?
— O dia já está chegando ao fim, meu querido amigo Francis.
— Mais razão ainda para ser cuidadoso e procurar preservar as coisas
boas. Apaixonar-se é coisa de crianças. Mas amar é como saborear o melhor
vinho...deixá-lo decantar lentamente, segurá-lo gentilmente, saborear gole por
gole. Não se cultiva uma grande vindima. É preciso criá-la...Vejo a maneira
como ela olha para você. Vejo como você se apóia nela. Daria um bom
casamento.
— Meu primeiro casamento foi um desastre. Não quero ter de
enfrentar outro fracasso.
— E por que tem de ser um fracasso? Vocês dois tiveram tempo para
aprender. O que quer que os antigos teólogos tenham ensinado, não se faz um
sacramento com a simples pronúncia de palavras. Fazemo-lo pelo exercício do
sacramento e pelo amor. Você é meu amigo e detesto vê-lo solitário nos
melhores anos de sua vida. Pense nisso...E pare de pensar em Arlequim. Isso
está acertado, não é?
— Se acha que é o melhor, amigo.
— Ótimo. Agora vamos desejar um bom dia ao Poverello e eu lhe
servirei um vinho que o faria descer de seu pedestal, se ao menos pudesse
persuadi-lo a experimentar.
À noite, quando o frio do deserto avançou pela terra, jantamos à luz de
velas, contemplando a face escura do vale, os picos negros e a lua se erguendo
acima deles. Ouvimos Segóvia e Casais e depois Mendoza leu-nos algumas de
suas traduções. Era uma noite de sereno encantamento, e Suzanne expressou
o que ambos estávamos sentindo:
— É uma pena que George não esteja aqui. Ele teria apreciado
intensamente este dia maravilhoso.
— Mas ele está aqui — disse Mendoza gravemente. — Ele está no
coração de vocês e agora também no meu. O que estamos fazendo é um ato
de amor e ninguém está excluído dele. Antes que se vá, Suzanne, eu lhe darei
um vinho ao qual dou imenso valor. Só restam seis garrafas dele. Eu lhe darei
uma, mas só poderá bebê-la quando vocês três estiverem juntos para partilhá-
la. Paul prometeu que ficará com Arlequim. Acho que você também deveria
ficar. E quando essa praga acabar, creio que você e Paul deveriam casar-se.
— Sei que se preocupa com os outros — disse Suzanne gentilmente. —
Mas por que demonstra tanto interesse por estranhos como George e eu?
— Vou explicar. Sou o mais afortunado dos homens. Deus fez as
videiras. Eu faço o vinho. Você o bebe e ele se transforma em você. É uma
verdade maravilhosa. Quando eu a analiso em todo o esplendor de seu
significado, fico tão feliz que tenho vontade de chorar...Esta é a comunhão
que nos mantém sãos e humanos. Rejeite-a e seremos apenas solitários e
acossados. Derrame o vinho da vida e para sempre estará condenada como
Caim à solidão...Mas estou falando demais. Já chega! Durmam bem, meus
amigos. Eu não deveria aprovar, mas o faço. Espero que se amem em plena
felicidade sob meu teto...
No dia seguinte estávamos em outro mundo. Havia um boato de
bomba no aeroporto de San Francisco e todos os vôos foram atrasados em
uma hora. Fomos revistados, engaiolados, exigiram que identificássemos
nossa bagagem antes de ser embarcada. O ambiente era de tensão e
hostilidade. As vozes se alteavam com facilidade, quando funcionários
atormentados tentavam controlar os passageiros cujos nervos estavam tensos
a ponto de uma explosão.
Quando finalmente levantamos vôo, Suzanne enterrou-se numa revista
de modas, enquanto eu tentava pôr-me em dia com as notícias. Nenhuma
delas era boa: havia crise na Inglaterra, com uma greve dos mineiros de carvão
e eleições gerais; os japoneses estavam trocando terroristas pelas vidas do
pessoal de sua embaixada no Kuwait; os italianos tinham cercado o Quirinal
de tanques e os vietnamitas tentavam reclamar seus direitos à exploração do
petróleo das ilhas Paracel, de que ninguém tinha ouvido falar até o momento
em que os chineses afundaram uma canhoneira em suas águas. O presidente
estava cinco passos mais próximo do impeachment. O mercado de ações
estava em baixa. A queda das ações da Creative Systems já era de trinta por
cento. Não havia a menor menção ao nosso caso. A ameaça de um processo
de calúnia tornara os editores cautelosos. Além disso, com tal excesso de
desastres, o público estava saciado e precisava de novos estímulos a cada dia.
Estava se praticando agora um novo jogo em San Francisco. Dizia-se bom-dia
a um desconhecido, disparava-se um tiro em seu coração e saía-se andando
tranqüilamente, assoviando.
Eu estava folheando as páginas de notícias financeiras, para verificar o
quanto estava mais pobre, quando deparei com uma pequena notícia que
atraiu minha atenção. O Sr. Karl Kruger, da Kruger & Co. AG, estava em
Nova York, hospedado no Regency. Mostrei a notícia a Suzanne, que
concordou em que deveríamos convidá-lo para jantar. Ela gostava daquele
urso velho e podia também tolerar Hilde — a menos, é claro, que Karl tivesse
decidido experimentar os talentos de Nova York. Eu só esperava que ele não
resolvesse divertir-se pela Broadway afora e acabasse por se meter na mesma
trapalhada que seu compatriota famoso.
Takeshi estava em casa e de bom humor, embora ligeiramente
deprimido por ter falado demais em San Francisco. Contudo, depois que lhe
assegurei que seu prestígio e minha situação legal não tinham sido afetadas,
tornou-se extremamente animado e pairou em torno de nosso jantar como
um espírito guardião.
Suzanne esticou-se voluptuosamente no sofá, oferecendo-me um
sorriso suave e demorado.
— Você não pode renunciar a tudo isto, não é?
— Renunciar a quê?
— A ter tudo isto e a liberdade também!
— Isso é por acaso uma proposta?
— Não, chéri, apenas uma questão acadêmica.
— Gostaria de debatê-la agora?
— Esta noite não. Estou confortável demais.
— E poderia responder-me a uma pergunta?
— Se não for muito difícil.
— Quer casar-se comigo, Suzy?
O sorriso desapareceu imediatamente. Ela ficou imóvel, olhando além
de mim, para as sombras lá fora.
— Eu nunca fixei um preço, Paul.
— Sei disso.
— Desde mocinha que sou apaixonada por George Arlequim.
— Sei disso também.
— Portanto, você não fará um grande negócio.
— E foi o que eu pedi?
— Não...Mas por quê, Paul? Por que eu? Por que agora? Estou aqui e
feliz por estar aqui. Você não tem rivais, embora eu desejasse que tivesse pelo
menos um...Não, por favor, fique onde está! Poderia derreter-me em seus
braços e dizer sim, arrependendo-me de manhã...Diga-me, Paul, por quê?
— Por vinte razões diferentes, Suzy. Mas só uma realmente válida: não
há nada nem ninguém no mundo que eu ame tanto quanto você...Pode não
ser suficiente. Como lhe posso explicar? Vivi muito tempo e aprendi muito
pouco. De qualquer forma, como se diz no mercado, é uma oferta firme.
— E normalmente não se acrescenta também para pegar ou largar?
— Acrescenta-se, mas não é o que estou fazendo. Quando tudo isto
acabar, Suzy querida, sairei para sempre do mercado, sacudindo a mão, na
despedida do marinheiro que vai para muito longe. Não há pressa. Pense
bastante.
— Tenho pensado muito sobre isso, Paul. Tenho pensado quando
estou sozinha e quando estou em seus braços, feliz por assim estar. E sei
apenas de uma coisa: gosto muito de você para oferecer-lhe um coração
dividido. Quero esperar até que tudo isto acabe, não para ganhar George, pois
estou certa de que isto jamais acontecerá, mas para ter certeza de que estou
curada dele, de que estou curada de meus sonhos de adolescente, pronta para
ser uma mulher adulta para um homem adulto...Você é muito melhor do que
se imagina, Paul. Gostaria que sentisse o maior orgulho da mulher com quem
se casar. Por favor, vamos esperar mais um pouco.
Ela sorriu, um pouco radiante demais, estendendo-me os braços.
— E, quem sabe, você pode-se cansar de mim muito antes de chegar a
hora da decisão...
Bom, não era a Lua, mas pelo menos eu tinha os seis vinténs em meu
bolso. Estava aprendendo a sentir-me agradecido pelas pequenas dádivas — e,
talvez, estivesse tão aliviado quanto ela por adiar o momento da decisão final.
Dessa forma não havia fantasmas com que lutar, apenas um homem possuído
por um demônio sombrio, frio, sem amor e implacável.
Pela manhã fomos comprar flores na Third Avenue. Desta vez não
fomos mal recebidos. Compramos alguns botões e um verdadeiro jardim num
vaso imenso, para ser entregue no apartamento. Não vimos Aaron
Bogdanovich. Ele tirara a manhã de folga. Algumas vezes — a senhora sorriu
por trás dos óculos de aros de ouro — ele gosta de sentar-se nos jardins do
Museu de Arte Moderna e admirar as esculturas, passando horas a pensar
simplesmente. Se não o encontrássemos lá, ela de qualquer forma daria nosso
recado.
Ele não estava lá, por isto saímos a passear pelas lojas, seguindo depois
para o Buccellati, na Fifth Avenue, onde, para meu gosto, ainda se podem
comprar os melhores trabalhos de ourivesaria do mundo, peças maravilhosas
como as que os velhos mestres costumam fazer na Ponte Vecchio e em suas
cavernas de Aladim, no Lungarno. Uma hora depois, curvei-me aos protestos
de Suzanne e saí de mãos vazias, mas com um anel, brincos e um bracelete
guardados em segurança no cofre-forte, às minhas ordens.
Ao sairmos para a rua, Aaron Bogdanovich começou a caminhar ao
nosso lado e disse:
— Suíte 66 do Saint Regis. Estão sendo esperados para o almoço. A
anfitriã é a Sra. Larkin. Telefonem do saguão.
Um momento depois ele desapareceu no meio da multidão.
Continuamos em frente e fomos até a Madison. Depois fizemos a volta e
seguimos direto para o Saint Regis. Quando liguei para a suíte 66, do saguão,
uma voz de mulher atendeu:
— Suíte da Sra. Larkin.
— O Sr. Weizman e uma amiga. Fomos convidados para almoçar.
— Subam, por favor.
Fomos recebidos na porta por uma matrona de cabelos grisalhos, que
nos levou à pequena sala de estar onde estava Aaron Bogdanovich sentado
numa poltrona, alerta e sério. Quando comecei a apresentar-lhe Suzanne, ele
interrompeu-me bruscamente:
— Sei quem ela é. A Sra. Larkin a levará para almoçar no restaurante.
Ensaiou um arremedo de sorriso e acrescentou:
— Não fique ofendida, mademoiselle. Isto é necessário. Além disso, o
almoço é por minha conta. Aprecie-o devidamente. O Sr. Desmond irá
encontrá-la lá embaixo assim que tivermos acabado.
O nosso almoço, meu e dele, foi café e sanduíches, a conversa girando
exclusivamente sobre negócios.
— Primeira pergunta, Sr. Desmond: o quanto exatamente contou a
Milo Frohm a meu respeito?
— Nada. Ele é que me contou.
— O que precisamente?
— Que eu tinha comprado flores na Third Avenue.
— E como foi que soube disso?
— Mandou um homem conversar com Takeshi em San Francisco.
— Mais alguma coisa?
— Que nós, Arlequim e eu, nos aliáramos a um agente israelense e a
Leah Klein. Que sabia que Valerie Hallstrom era uma agente israelense. Que
Arlequim e eu somos agora alvos terroristas.
— E o que foi que vocês lhe disseram?
— Nem que sim, nem que não. Nada.
— E ele aceitou isso?
— Era o trato. Sua agência quer agarrar Yanko. Se pudermos fornecer-
lhes as provas necessárias, ele não perguntará como nem onde as obtivemos.
Neste momento está viajando para Londres, com George Arlequim. E o FBI
já pegou Alex Duggan, em San Diego.
— Eu já sabia.
— E sabe do resto também?
— Quero ouvi-lo do senhor. Com um pouco de sorte, poderão agora
incriminar Yanko por conspiração.
— Conspiração nas fraudes, mas não cumplicidade nos assassinatos.
— Não seja muito ganancioso, Sr. Desmond.
— Eu não estou sendo. George Arlequim é que quer matá-lo.
— Para isso, ele precisa permanecer vivo. Ambos são homens
marcados. Não sabemos qual dos dois eles atacarão primeiro.
— E quem são "eles"?
— Uma combinação formidável, Sr. Desmond: a Frente Popular para a
Libertação da Palestina e o Exército Vermelho do Japão. O primeiro creio que
conhece bastante. O segundo talvez não lhe seja tão familiar. É chamado de
Rengo Sekigun. Se está lembrado, foram eles que mataram vinte e sete pessoas
no Aeroporto de Lod. Seqüestraram um avião de passageiros que voava de
Tóquio e o levaram para a Coréia do Norte. Torturaram e mataram doze de
seus próprios dissidentes, no Japão. São totalmente dedicados ao niilismo e à
violência...Tem um criado japonês, Sr. Desmond...
— Takeshi? Ora, faça-me o favor...
— Eu lhe disse que iríamos verificar. Foi o que fizemos. O FBI
também o fez, pois eles não estão na verdade interessados no lugar onde
comprou flores. Takeshi tem um sobrinho que voltou recentemente do Japão,
onde manteve contatos com membros conhecidos do Rengo Sekigun...Será
que isso não lhe sugere nada, Sr. Desmond?
— Que devo sair correndo?
— Tem agora uma mulher vivendo em sua companhia. Alguém muito
íntimo do senhor e de George Arlequim.
— Espere um instante! Mostre-me a lógica de seu raciocínio.
— Está certo. Yanko está relacionado com os xeques do petróleo e
com a Líbia. A Líbia financia o terror. Vocês atacam Yanko e estão a um
passo de derrotá-lo. Subitamente ambos aparecem numa lista de alvos para
ataques terroristas. Pode ter certeza de que a lógica é irrefutável, Sr. Desmond.
— E o que devemos fazer então?
— Sirva-se de mais um pouco de café, pois isso pode demorar algum
tempo...O terror é uma forma de cirurgia social, na qual se utiliza uma ampla
variedade de técnicas. Neste caso, há duas que podem ser consideradas:
poderão ser assassinados, para provocar o medo e o pânico, ou poderão ser
seqüestrados, para se arrancar um resgate. Não creio que sejam assassinados
pura e simplesmente. Não são judeus e, portanto, não têm muita utilidade
como propaganda. Contudo, são muito ricos e proeminentes, bastante
apropriados para uma tentativa de resgate: suas vidas contra um monte de
dinheiro e a libertação de prisioneiros políticos neste ou em outros países. Se
o resgate não for pago, evidentemente serão mortos.
— Evidentemente...
— Agora vamos examinar como devemos agir. Vou ser bastante claro:
estou metido nesse jogo e sou bom nele, muito bom mesmo. Não há sistema
no mundo que não possa ser batido por um grupo de homens e mulheres
determinados, que não se importam em viver ou morrer. Posso colocar
homens para vigiá-lo vinte e quatro horas por dia. Neste momento, é o que
está acontecendo. Posso trancá-lo em completo isolamento. Posso fornecer-
lhe uma pistola e uma caneta-tinteiro cheia de um gás letal. Posso treiná-lo em
judô e caratê. Tudo isso ajuda, mas não constitui uma apólice infalível para
garantir sua vida. Minhas possibilidades são muito maiores do que as suas,
porque não tenho quaisquer códigos que me possam frear. Sou condicionado
para matar e sobreviver. Minhas reações são totalmente diferentes. Mesmo
assim, nunca estou seguro. Sua melhor proteção é reconhecer o risco, aceitá-lo
calmamente e adotar algumas medidas simples de precaução. Se for
seqüestrado, não resista, fique calmo e espere que as negociações cheguem a
bom termo. Não tente escapar, pois isso seria suicídio...Não tenho dúvida de
que Milo Frohm deu as mesmas instruções a George Arlequim.
— E o que me diz de Suzanne?
— Uma pergunta apenas, Sr. Desmond: se ela fosse vítima de um
seqüestro, os senhores iriam pagar resgate por ela?
— Claro que sim.
— Eis sua resposta. Ela corre os mesmos riscos que ambos. Explique a
ela. Deixe-a tomar sua própria decisão. Ela pode sentir-se mais confortável em
Genebra ou em Elba, mas não estará mais segura, em nenhum lugar.
— Vamos falar sobre Takeshi.
— Não há o que falar. Ele é um bom criado, continue com ele. É o
sobrinho que nos incomoda. Continuaremos examinando essa situação.
Deu-me seu habitual sorriso frio e sem humor e acrescentou:
— Temos outro quarto de milhão de dólares para receber dos
senhores, em prazo indeterminado...Estamos fazendo o melhor possível por
merecê-lo. Outra coisa: já pensaram no que Yanko fará enquanto estão se
preparando para incriminá-lo, com base nos testemunhos de Alex Duggan e
do cúmplice lá de Londres?
— Tenho pensado nisso. É difícil ver o que ele pode fazer, exceto
livrar-se das testemunhas, o que tornaria excessiva a enxurrada de cadáveres.
E, mesmo assim, ainda teríamos os documentos.
— O que faria no lugar dele?
— Deixe-me pensar...Primeiro, eu venderia o máximo de bens que
pudesse, no mais curto prazo possível. Depositaria o dinheiro, com toda a
segurança, num banco suíço. Depois descobriria um refúgio qualquer, numa
praia maravilhosa, que não tivesse tratado de extradição, investiria algum
dinheiro junto às autoridades locais e riria na cara de Tio Sam...Nos últimos
anos, algumas figuras bastante conhecidas no mundo do crime fizeram
exatamente isso.
— Não é má idéia. Mas não posso ver Basil Yanko como um fugitivo
sorrateiro. Não é seu estilo. Além disso, a lei é um animal arisco e ele sabe,
melhor do que ninguém, como cavalgá-la. Minha suposição é que ele tentará
livrar-se das dificuldades na base do suborno.
— E a quem ele poderá subornar?
— Se George Arlequim retirar as acusações, o governo e o mercado
ficarão felizes em esquecer todo o assunto. Yanko conhece segredos demais.
— Essa não! Ele deve saber que Arlequim quer vê-lo morto, quaisquer
que sejam as conseqüências que possam advir para si próprio.
— Ele deve pensar que é possível negociar. Sabe que Arlequim está no
limite máximo de suas forças. Sabe também que possuem documentos
perigosos. Foi por isso que ele pediu a Karl Kruger que viesse a Nova York,
para mediar um acordo.
— Ele está completamente louco!
— Não. Ele computou todas as possibilidades e verificou que elas o
favorecem. Se algo acontecer ao senhor, ou a Arlequim, ou àquela sua linda
mulher, as chances dele numa negociação ficam ainda maiores...Nesse sentido,
Arlequim está absolutamente certo. Se não querem negociar, a única
alternativa é matar Basil Yanko. Pense nisso, Sr. Desmond. Converse com
Karl Kruger e converse também com Arlequim, se ele voltar são e salvo...
Karl Kruger estava dando uma festa. Era uma festa grande, uma festa
importante. Começaria às sete horas e se prolongaria até às dez ou onze horas.
Depois de termos embriagado todos os convidados, poderíamos conversar
em seu quarto. Mas claro que eu deveria levar Suzanne. Que espécie de festa
estava pensando que era? Não, Hilde não estaria presente, ela não era feita
para esse tipo de coisa. Ele tinha alguém para conhecermos, uma inglesa dessa
vez, muito elegante, que acabara de se divorciar de um lorde, que era muito
rico mas não podia saldar suas dívidas conjugais. E continuou falando
incessantemente durante mais cinco minutos, até obter minha rendição.
Depois resmungou à sua maneira áspera:
— Não é suficiente estar com a razão, Paul. No mercado, é preciso
também ser popular...o que não acontece neste momento com Arlequim et
Cie. Por isso, vista suas melhores roupas e sorria sem parar...E, se Basil Yanko
estiver presente também, não lhe vá cuspir no rosto. Faça isso por mim, pelo
amor de Deus! E não tome qualquer decisão enquanto não tivermos
conversado...
Parecia odioso. Mas, como meu bisavô me aconselhava, se tiver que
comer corvo, certifique-se de que seja cozido num bom molho de vinho...Por
isso, telefonei para a Buccellati e mandei que entregassem as jóias, ordenando
depois a Suzanne, sob pena de punição, que comprasse o melhor vestido que
combinasse com elas. Fui então a um salão de barbeiro. O tratamento custou-
me vinte dólares, mas disseram-me que era garantido para fazer-me parecer
dez anos mais moço. Eles estavam mentindo, o que não era nenhuma
surpresa, mas pelo menos fizeram com que me sentisse mais apto para a
companhia de meus semelhantes, tirando-me um pouco a sensação de um
conspirador de terceira classe com o machado do carrasco suspenso sobre a
cabeça. Pedi que uma limusine da Colby fosse apanhar-nos e depois liguei
para George Arlequim em Londres. Era meia-noite lá, e ele estava se
preparando para ir para a cama. Fiz-lhe um resumo cauteloso de minha
conversa com Bogdanovich e depois falei-lhe sobre a festa de Karl Kruger.
Para minha surpresa, disse:
— Deixe todas as opções em aberto, Paul. Talvez precisemos delas.
— Problemas, George?
— Sim. O rapaz é muito esperto. Nós lhe apresentamos os
documentos, mas ele recebeu bons conselhos legais e recusou-se a admitir o
que quer que fosse. Não temos nada para ligá-lo às fraudes em Londres,
exceto sua esposa, mas ela está coberta por um memorando forjado. A
declaração de Alex Duggan liga-o apenas a uma conspiração na Califórnia
para cometer uma fraude no México — e não existe, é claro, nenhuma queixa
na polícia mexicana. A polícia de Londres está cooperando ao máximo e eles
estão examinando com Milo Frohm todas as possibilidades. Nossos
advogados em Londres avisaram que podemos ter muito trabalho para obter
uma ordem de extradição. O FBI prendeu Alex Duggan e ele está sendo
mantido em custódia, a seu próprio pedido. Mas ele pode descobrir que é uma
proteção muito duvidosa. É tudo muito incômodo, Paul. Temos uma série de
provas, mas podemos ser derrotados por artifícios técnicos legais, no que diz
respeito a Yanko. Amanhã vou conversar novamente com Frohm, os
advogados e a polícia. Depois de amanhã voarei para Genebra, a fim de ver o
bebê e encontrar-me com a polícia e com os diretores do banco. Eu lhe
telefonarei de lá. Dê lembranças a Suzanne. Au revoir!
As notícias eram desencorajadoras, outra amostra da fragilidade da lei e
do poder daqueles que tinham dinheiro e conhecimento bastante para
manipulá-la a fim de atingir seus próprios objetivos. Cinco pessoas tinham
morrido. Havia documentos que ligavam Basil Yanko a cada uma das mortes,
mas que não serviam como provas para os tribunais. E assim Yanko iria a
uma festa no Regency, muitos homens lhe apertariam a mão, as mulheres iriam
cortejá-lo. E ele sairia de lá desprezando a todos.
Por outro lado, havia em tudo aquilo um mínimo de consolo. Se
George Arlequim resolvesse negociar e abdicasse de sua ameaça, todos nós
poderíamos voltar a viver em paz...talvez. Existiam agora outras ameaças. E,
ao sairmos para a rua e entrarmos na limusine, descobri que fungava e
cheirava o ar, como uma raposa a procurar os sinais de perigo trazidos pelo
vento.
Quando chegamos, a festa estava animada e Karl Kruger dominava-a,
como um antigo caudilho. Suas boas-vindas foram afetuosas e vociferantes.
Ele contemplou Suzanne e deixou escapar um rugido de aprovação,
arrancando-a de mim e levando-a a circular em sua companhia, como um
novo troféu de batalha. Providenciei um drinque e comecei a circular também,
lenta e cautelosamente. Logo encontrei Herbert Bachmann, que me apertou a
mão cordialmente e expressou sua simpatia sincera.
— Pobre George...Fiquei chocado com o acontecimento. Diga-lhe que
sentimos muito. Você também deve ter tido momentos muito difíceis.
— Tive mesmo, Herbert.
— E a situação agora ainda está pior. A venda maciça das ações
prejudicou uma porção de gente. O dinheiro é como uma rosa, não se pode
machucar as pétalas. Mas até agora conseguimos manter nosso grupo unido.
Os recursos estão à disposição de George, para quando ele precisar. Diga-
me...
Ele arrastou-me para longe da multidão.
— O que há de verdade nessa história que os jornais estão falando a
respeito de homicídios?
— É tudo verdade, Herbert. Temos documentos para provar.
— O que então Yanko está fazendo na lista de convidados?
— É que os documentos ainda não são suficientes para incriminá-lo,
Herbert.
— Então a situação pode se deteriorar ainda mais?
— É possível. Kruger veio a Nova York para servir como mediador, a
pedido de Yanko. Isso ainda é segredo.
— Obrigado por contar-me. Seria uma boa coisa. Não a melhor, mas
necessária...
— Yanko já chegou?
— Eu ainda não o vi. E, Paul, quando ele chegar, tenha calma, está
bem?
— Claro...Falarei com você mais tarde.
Nem todos os cumprimentos foram cordiais como o de Herbert
Bachmann e alguns foram gelados como os martinis que os haviam induzido.
— Pelo amor de Deus, Paul, você poderia pelo menos ter-nos dado um
aviso, até mesmo uma simples insinuação...Olhe, companheiro, uma guerrinha
particular não tem problema algum, mas não desse modo!...Sabe o quanto
baixamos naquela quarta-feira?...As páginas financeiras, está certo, são o nosso
fórum, mas as colunas policiais são coisa para a Máfia...Francamente, meu
caro, gostamos muito de George e não simpatizamos com Yanko, mas...
De alguma forma, consegui avançar, passar por cima, contornar, até
que Suzanne veio em minha salvação, com palavras gentis e um cumprimento
para cada um. Foi então, no momento preciso em que as conversas atingiam o
auge e o álcool jorrava copiosamente, que Basil Yanko chegou. Entrou
sozinho, sem a menor pompa. Apertou a mão de Karl Kruger e conversou
com ele por um momento, logo desaparecendo no meio da multidão,
sorrateiro como um gato. Lentamente, Suzanne e eu fomos abrindo caminho
por entre a multidão, em direção a ele. Até que finalmente o encontramos,
conversando em voz baixa com Herbert Bach-mann.
Herbert viu-nos primeiro e acenou para que nos aproximássemos.
— Sr. Yanko, creio que já conhece esses dois...
— Conheço de fato. Mademoiselle, Sr. Desmond...Ele fez uma
pequena mesura, mas não nos estendeu a mão.
— O Sr. Arlequim não veio?
Foi Suzanne quem respondeu, cerimoniosamente:
— Não. Ele está em Londres, Sr. Yanko.
Ela pôs a mão no braço de Herbert e pediu-lhe:
— Acha que poderia arrumar-me um outro drinque, Sr. Bachmann?
— Com prazer. Com licença, senhores.
Assim que os dois se afastaram, Basil Yanko ergueu seu copo.
— É uma mulher muito bonita, Sr. Desmond. Meus parabéns.
— De nada, Sr. Yanko...como dizem no México.
— Está uma festa muito animada.
— Karl é um excelente anfitrião.
— E também um banqueiro muito esperto.
— Tem razão.
— Sr. Desmond, gostaria de dar-lhe uma opinião oportuna. Em
negócios, ganha-se alguma coisa e espera-se perder um pouco menos do que
se ganhou. Neste momento, todos nós estamos perdendo demais. Está na
hora de transformarmos os prejuízos em lucro.
— Lucro é sempre uma palavra bem-vinda.
— Eu ficaria agradecido se transmitisse essa opinião a George
Arlequim.
— Eu o farei.
— Outra boa palavra é compromisso.
— Também direi a ele.
— A vida é de uma variedade infinita. Pode-se substituir qualquer coisa,
menos a si mesmo.
— Tudo menos a si mesmo...Gosto disso.
— Algumas vezes as personalidades se chocam, as ambições também.
Um mediador pode ser muito útil. Karl Kruger é um homem que eu respeito.
— Nós também o respeitamos.
— Então vamos parar por aqui, está certo?...Com licença, Sr.
Desmond...
Ele se afastou, desgracioso como sempre. Suzanne voltou com Herbert
Bachmann. Ele fitou-me longamente com uma expressão inquisitiva.
— Espero que tenha sido delicado com ele, Paul.
— Acima e além do estritamente necessário. Alguém deveria dar-me
uma medalha.
— Em vez disso, eu lhe darei um beijo — disse Suzanne. — Posso
dizer-lhe uma coisa? Acho que já tivemos o bastante desta festa.
— Mas Karl disse...
— Alterei a combinação. Vocês vão se encontrar aqui amanhã, às onze
horas. Vamos embora, chéri.
— Ela é a mais sensata de todos nós — comentou Herbert Bachmann.
— Faça o que ela está dizendo, Paul.
Às onze horas da manhã, Karl Kruger estava de olhos avermelhados,
com dor de cabeça e era um autocrata. Arrotou e resmungou, ficou andando
para um lado e outro da sala, vociferando para mim como se fosse o
Chanceler de Ferro.
— Realidades, Paul! É sobre isso o que temos de falar: realidades! Na
guerra, perdi uma esposa durante os bombardeios e um filho na frente russa.
Agora faço negócios com as pessoas que os mataram. Realidade! Se não
chegarmos a um meio-termo e não cooperarmos, o mundo se acaba numa
grande exibição de fogos de artifício. Ponha todos os assassinos no cadafalso
e não haverá no mundo corda suficiente para enforcá-los. Realidade
novamente! Arlequim tem que compreender. E você deve ajudá-lo a
compreender...
— Karl! A esposa dele ainda nem esfriou no túmulo!
— Por isso ele não pode raciocinar e não vai fazê-lo. Mas você pode!
— Posso raciocinar até ficar roxo de tanto pensar que isso não irá
alterar absolutamente nada.
— Então trate de agir.
— Acho que você não entendeu o que eu disse, Karl.
— Ouça, Dummkopf! Pelo amor de Deus, ouça!...Se você, Paul
Desmond, pudesse assumir agora o controle da situação, o que faria? Pense
nisso. Você ouviu o que disseram na festa onde à noite. Eles não dão a menor
importância a princípios morais, só querem saber de dinheiro. E havia muito
poder lá...Você conversou com Yanko. Ele está abalado e vocês poderão
abalá-lo ainda mais, mas não conseguirão destruí-lo. E ele está disposto a um
acordo. Agora me diga: se pudesse, qual seria o acordo que iria propor?
— Se pudesse...Primeiro ponto: ele teria que retirar sua oferta para nos
comprar. Segundo ponto: teria que cobrir os quinze milhões e todas as
despesas decorrentes. Terceiro ponto: pagaria o custo de instalar um novo
sistema de computadores e de treinar os operadores, mas não ficaria com o
contrato. Quarto ponto: retiraríamos as queixas contra seus funcionários e
esqueceríamos os documentos que temos, mas somente depois que os outros
itens fossem cumpridos. Isso é o mínimo. Dê-me algum tempo e poderia
pensar em mais alguma coisa.
— Agora, meu amigo, está começando a ser sensato.
— Mas de nada adianta, sem o consentimento de Arlequim.
— Nem tanto. Você tem uma procuração dele que ainda é válida.
Yanko sabe disso, eu também. Disse-me que Arlequim deseja que mantenha
todas as opções em aberto. E essa é a melhor maneira de fazê-lo. Feche as
saídas para o problema e teremos apenas uma carnificina, com prejuízos para
todo mundo.
— Eu sei disso, Karl. Mas dê-me um só argumento para convencer um
homem cuja esposa foi assassinada.
— Você me disse que também a amava.
— E amava mesmo.
— E o que está fazendo agora? Um escultor mexicano ainda está
fazendo a lápide e você já está na cama com Suzanne. O que é a melhor coisa
que já fez na vida. Não estou zombando, Paul. Pelo contrário, estou na maior
satisfação. Arlequim também acabará fazendo o mesmo. E é melhor que não
demore muito. E então, Paul, o que me diz?
— Você é um velho schlem, Karl...mas tentarei.
— Ótimo. Finalmente alguém está sendo um pouco sensato. Eu o
procurarei assim que tiver sondado Yanko sobre os termos. Ó Deus, minha
cabeça parece que vai estourar!
Telefonou-me às três horas da tarde. Yanko estava pronto para iniciar
as conversações. Convidava-me para jantar em sua casa. Eu também estava
disposto a conversar, mas não via motivo para comer o pão e beber a água do
desgraçado.
Karl Kruger resmungou, furioso:
— Se você é mineiro de carvão, é inevitável que entre poeira na sua
marmita. Que importância isso pode ter? Por falar nisso, é black-tie.
Nesse momento Suzanne arrancou-me o telefone das mãos e disse
calmamente:
— Ele estará presente, Karl. Cuidarei disso. Ela desligou e virou-se para
mim.
— Paul, chéri, se você não for e tudo sair errado, nunca mais se
perdoará a si mesmo. Por favor...
E assim, às oito horas em ponto, com meu orgulho no bolso e a raiva
reduzida a umas poucas brasas ainda fumegantes, fui jantar com Basil Yanko.
Não sei muito bem o que esperava encontrar: profusão, certamente, o
mesmo ar de grandiosidade que caracterizava seu escritório, talvez algumas
engenhocas, inevitavelmente tudo em excesso. Confesso que tive uma das
maiores surpresas de minha vida. O apartamento era muito bonito, mas
sobriamente bonito, com uma espécie de perfeição matemática que era ao
mesmo tempo austera e repousante. Basil Yanko não era um colecionador.
Escolhia as coisas e colocava-as no lugar em que falassem por si mesmas; um
catálogo não traria a menor referência, a não ser para dizer que havia dinheiro
nas paredes e nenhuma mancha de sangue. Não podia compreender como um
homem tão inquieto e sinistro como Basil Yanko tinha conseguido uma
atmosfera de tanta serenidade.
Fui recebido por uma criada negra. Um mordomo filipino serviu-me
um drinque e logo me deixou sozinho. Basil Yanko apareceu logo depois. O
dinner jacket fazia-o parecer mais anguloso e cadavérico do que nunca, mas seu
aperto de mão era menos frouxo e sorriu-me sem esforço aparente. Fiz-lhe
um elogio pela casa e ele recebeu-o com uma farpa de ironia.
— Surpreso, Sr. Desmond?
— Fascinado, Sr. Yanko.
— Colecionar pode ser uma mania. Mas a verdadeira arte da apreciação
está na seleção...o que implica, é claro, julgamento, erro e rejeição, até se
chegar a um relacionamento estável. Está interessado nos quadros, Sr.
Desmond?
Eu estava interessado em qualquer coisa que pudesse ajudar-me a
atravessar a abertura e ir direto à ópera, por isso falei-lhe do meu gosto por
artefatos e peças de ourivesaria, a mística das pedras coloridas. Era um bom
ouvinte e mais cortês do que eu jamais acreditaria que fosse possível, embora,
quando lhe chamava a atenção para algo, suas perguntas continuassem a ter
um tom firme e peremptório. Ao jantar, ele comeu parcimoniosamente e
bebeu apenas um copo de vinho, mas mostrou-se orgulhoso de seu
cozinheiro e exigiu um serviço meticuloso. Só então pôs-se a falar sobre
política:
— Há um sonho no exterior, Sr. Desmond, de que podemos voltar ao
tempo do barril de bolachas e da bomba paroquial, das pequenas
comunidades auto-suficientes. É uma linda ilusão, mas não há maneira de
convertê-la em realidade. Somos agora, compulsoriamente, um mundo só,
mutuamente dependente de complexos padrões comerciais e da distribuição
dos recursos naturais em rápido decréscimo. Portanto, temos que racionalizar
e controlar uma multidão de variáveis. O computador pode fazê-lo. O
homem, sem ajuda alguma, não pode...
O que nos levou, por etapas e sutilezas, ao café e ao problema em
questão, que ele expôs com a maior simplicidade :
— Cometi um erro, Sr. Desmond. Escolhi o alvo errado. Usei os meios
errados. As premissas sendo erradas, os erros se acumularam. Por isso temos
que apagar todo o sistema e começar tudo de novo, sendo esse o propósito
deste nosso encontro. Mais café?
— Não, obrigado.
— Um conhaque?
— Não...
— Bem, então...Karl Kruger sugeriu uma estrutura dentro da qual
podemos negociar. Serei franco: não pretendo discutir os detalhes financeiros,
insignificantes. Uma avaliação dos prejuízos e dos custos é coisa bastante
simples. Para mim, o ponto fundamental é saber o que me podem oferecer
como garantia de imunidade para o futuro. Diria que é uma enunciação justa
de nossa posição?
— Creio que precisa ser esclarecida, Sr. Yanko. Está querendo
imunidade contra o quê?
— Contra qualquer acusação no tribunal.
— Acusação contra o quê?
— Por fraude e conspiração para assassinato. É o que estão neste
momento tentando provar contra mim, embora eu tenha ouvido dizer que
estão encontrando certas dificuldades.
A desfaçatez dele deixou-me, por um momento, sem fala.
Ele sacudiu a cabeça, pesaroso.
— Sr. Desmond, estamos sozinhos. Não há testemunhas, ninguém nos
está escutando. Aqui posso admitir tudo e o faço. Está chocado, eu sei. Como
é possível que eu, um respeitável homem de negócios, conspire e consinta em
assassinatos? Sr. Desmond, os contribuintes deste país financiaram um
gigantesco e desnecessário holocausto no Vietnam. Alguns protestaram.
Muitos aprovaram, ainda o aprovam e continuarão a fazê-lo. Calley foi para a
cadeia, mas os generais continuam em liberdade. Não tenho o menor respeito
pelas pessoas, Sr. Desmond. Elas simplesmente vivem e morrem. Algumas
vezes, para fazer uma equação social funcionar, precisam ser removidas. Nós
dois poderíamos debater o problema até o dia do Juízo Final e não conseguiria
convencer-me. Portanto, concordemos na divergência e voltemos à questão
que nos interessa: o que podem oferecer como garantia?
— Podemos concordar em não indiciá-lo nem a seus funcionários por
fraude e conspiração para fraudar. Quanto à questão dos assassinatos, não
podemos negociar. O problema está fora de nossas mãos. O FBI já está de
posse de todos os documentos.
— Que são altamente prejudiciais, mas não conclusivos.
— Mas que permanecerão num arquivo em aberto, já que não existe
proscrição legal para o crime de homicídio.
— Certo, Sr. Desmond. Mas vamos analisar a situação caso por caso.
Valerie Hallstrom é uma batata quente política e ninguém vai querer segurá-la.
— Ella Deane?
— Assunto encerrado. Não há problema.
— E Frank Lemmitz?
— O caso é da jurisdição inglesa e provavelmente não se irá estender
por muito tempo... O que nos deixa apenas com o problema de Madame
Arlequim, que morreu no México. Vamos então examinar esse caso e verificar
onde podemos concordar. Meus advogados viram, embora eu pessoalmente
não tenha visto, uma confissão de Pedro Galvez, incriminando-me. Poderiam
levar-me a ser julgado tendo por base esse documento, mas certamente não
obteriam uma condenação. Eu inegavelmente iria sofrer, mas acabaria
recuperando-me. O Sr. Arlequim não ficaria em melhor situação do que está
agora, com um imenso ônus financeiro e um mercado a se retrair para ele.
Mas, se se abstiverem de qualquer ação legal, divulgação de fatos e rumores e
investigações adicionais, poderão recuperar tudo, sem nenhuma discussão
quanto aos detalhes. Pode garantir-me isso, Sr. Desmond?
— Arlequim pode, eu não.
— Por que não?
— Ele pode retirar-me a procuração a qualquer momento.
— E...?
— Posso e tentarei persuadi-lo a concordar. Contudo, mesmo que
Arlequim consinta, isso não lhe garantirá imunidade diante da polícia e do
FBI...
— Ora, Sr. Desmond!
Estava sendo paciente e bondoso diante de minha ignorância.
— Se há alguma coisa que conheço a fundo é o que a imprensa gosta
de chamar de "a consciência da América". Posso resolver esses problemas e
garantir-me toda a segurança necessária.
— O que nos leva a outro item das negociações, Sr. Yanko.
Isso arranhou um pouco seu verniz. O sorriso desapareceu
instantaneamente e ele sacudiu a cabeça como um lagarto surpreendido.
— Creio que já falamos de todos os itens mencionados por Karl
Kruger.
— E falamos. Mas esse último eu preferi deixar para debater em
particular. Num documento oriundo de seus computadores, George Arlequim
e eu fomos relacionados como alvos em perspectiva de ataques terroristas.
— O documento em questão, Sr. Desmond, é um relatório particular
de informações confidenciais, preparado por técnicos, que circula
exclusivamente entre uns poucos assinantes.
— Mas, como todos os relatórios, contém especulações destinadas a
provocar ações, as quais, quando ocorrem, o senhor certamente alega que as
tinha previsto. Em termos objetivos, o senhor disse que os mais novos alvos
dos ataques terroristas são Paul Desmond e George Arlequim. A FPLP e o
Rengo Sekigun nunca ouviram falar em nós. Então perguntam: "Quem são
eles?" E lá estamos nós, embrulhados em papel de seda, prontos para
entrega...É por isso, Sr. Yanko, que também precisamos de uma cláusula de
imunidade no contrato. Pode garantir-nos isso?
— Posso transmitir uma solicitação à direção executiva da FPLP.
Através de amigos, é claro.
— E teria uma resposta?
— Normalmente, sim.
— E quanto tempo demoraria até recebê-la?
— Cerca de três dias.
— Então deixemos as respostas para daqui a três dias.
— Ótimo! E, se até lá tiver algum ponto sobre o qual deseje
esclarecimentos, telefone por favor para meu escritório ou para este número.
Se estiver em casa, atenderei.
Foi até a escrivaninha, escreveu um número de telefone num cartão e
entregou-me. Levantei-me para partir.
— Sr. Yanko, obrigado por um excelente jantar e por uma conversa
construtiva.
— O prazer foi meu, Sr. Desmond. Meu motorista irá levá-lo para casa.
Não se sinta ofendido se ele não lhe dirigir a palavra. O pobre rapaz é mudo.'
Estamos cooperando com o programa de emprego dos deficientes físicos.
Boa noite, Sr. Desmond.
Eu levava ao sair um lindo ramo de oliveira, envolto em celofane e
amarrado com uma fita rosa, entregue por pombos a arrulharem. Se não o
aceitássemos, ele o empunharia como uma lança e o cravaria em nossas
entranhas, enterrando-nos sob sete palmos do asfalto de Wall Street. Que Deus
os tenha em paz, alegres cavalheiros — e que os mantenha em segurança
através das horas sombrias!
Não voltei para casa. Pedi ao motorista que me deixasse no Regency,
onde Suzanne estava jantando com Karl Kruger. Sua rosa inglesa provara ser
tão cheia de espinhos que ele a despachara de volta para Londres, embrulhada
num bracelete de diamantes, e agora suspirava por Hilde. Ficou feliz ao saber
que o acordo era possível. Ficou infeliz ao saber, pela primeira vez, que nós
fôramos apontados como alvos para ataques terroristas. Consentira em efetuar
uma diplomacia pessoal, não em se imiscuir numa situação política que tanto
afetava seu próprio país. Viu também um mérito na decisão de Arlequim de
eliminar Yanko. Sugeriu mesmo, gravemente, que talvez Aaron Bogdanovich
estivesse disposto a assassiná-lo. Mas eu tinha certeza de que Bogdanovich
não poria em risco sua organização com o ataque a um preeminente industrial
americano.
Suzanne ficou ouvindo em silêncio, chocada. Depois atacou-nos a
ambos, furiosamente.
— Chega! Não quero ouvir nem mais uma palavra! Estão falando como
se vocês próprios também fossem assassinos! Se o acordo puder ser feito,
façam-no logo de uma vez. Do contrário, não haverá um ponto final em toda
essa insanidade.
Karl Kruger murmurou um pedido de desculpas.
— Eu sei, eu sei...Não vai acontecer novamente, liebchen. Mas é uma
espinha atravessada em nossa garganta o fato de Yanko ficar sentado
tranqüilamente ditando termos para pessoas decentes. Mas o que temos que
nos perguntar agora é o que vai acontecer caso Arlequim recuse o acordo.
— Que horas são, Karl?
— Uma hora da madrugada. Já é tempo de pensarmos em ir para a
cama...
— Em Londres, são seis horas da manhã. Paul, telefone para George e
vamos acabar logo com isso.
— Suzy, querida, ele vai precisar de tempo para pensar...
— Neste caso, quanto mais tempo tiver, melhor será. Vamos, telefone
para ele!
Poucos momentos depois a ligação para Londres era concluída e
George Arlequim estava ao telefone. Parecia ter acabado de acordar. Pedi
desculpas por estar incomodando-o tão cedo. Perguntou-me então:
— Eles já entraram em contato com você também, Paul?
— Não sei do que você está falando, George. É uma hora da
madrugada aqui. Acabei de jantar com Basil Yanko e agora estou ceando com
Suzanne e Karl Kruger...
— Então quer dizer que você ainda não sabe...
— Não sei de nada, George. O que aconteceu?
— O pequeno Paul e a babá foram seqüestrados. Antes que eu tivesse
tempo de dizer qualquer coisa,
Milo Frohm entrou na linha.
— Sr. Desmond, ouça com atenção e faça exatamente o que eu disser.
A notícia ainda não foi divulgada. Não sabemos o que isso significa
exatamente, embora possamos imaginar. Estamos esperando as exigências que
serão feitas. Volte para seu apartamento e ligue para nosso escritório de Nova
York, mandando chamar Philip Lyndon. Ele lhe dará as instruções
necessárias. Quando soubermos de mais alguma coisa, voltaremos a lhe
telefonar, para sua casa. Agora, por favor, poderia desligar? Precisamos
manter a linha aberta.
Fizemos exatamente o que fora determinado. Uma hora depois,
estávamos em meu apartamento, com o Sr. Philip Lyndon gravando o relato
da intervenção de Karl Kruger e da minha conversa ao jantar com Basil
Yanko.
O relato que Lyndon fez do seqüestro foi rápido, pois havia muito
pouca coisa a contar. Às três horas da tarde a babá saiu com o menino para
um passeio no parque junto ao lago de Genebra. Como sempre, o detetive
acompanhava-os. Durante o passeio, duas mulheres e um homem haviam-nos
abordado, desarmando o detetive e obrigando a babá e o menino, sob a mira
de revólveres, a entrarem num carro que estava esperando. À meia-noite,
alguém em Londres telefonara para Arlequim e informara-o de que o menino
e a babá estavam em mãos da Frente Popular para a Libertação da Palestina.
Ele deveria aguardar em Londres que entrassem novamente em contato. A
intervenção da polícia seria inútil e perigosa para a criança e para a mulher.
Era simples, formal e ameaçador como uma espada desembainhada.
O que poderíamos fazer? Nada, disse o Sr. Lyndon firmemente; nada
senão esperar, permanecer em silêncio e fazer tudo o que fosse ordenado.
Pensei em telefonar para Yanko e transmitir-lhe a notícia. O Sr. Lyndon
debateu a idéia por um momento e depois sugeriu que eu esperasse até as sete
horas da manhã, quando traria um técnico para instalar um dispositivo para
gravar a conversa. Às quatro horas da madrugada ele ofereceu-se para levar
Karl Kruger de volta ao hotel em seu automóvel. Suzanne e eu ficamos
sozinhos, contemplando o amanhecer de um dia sem esperanças. O Sr. Philip
Lyndon voltou às seis horas, trazendo o técnico. Às sete eu estava ligando
para Basil Yanko.
Ele ficou surpreso ao ouvir-me tão cedo.
— É bastante diligente, Sr. Desmond. Já falou com o Sr. Arlequim?
— Já-
— E como ele reagiu às minhas sugestões?
— Não pude transmiti-las.
— Alguma razão em especial?
— Sim. O filho do Sr. Arlequim, juntamente com a babá, foi
seqüestrado a noite passada, em Genebra.
O ofego foi genuíno. Nenhum ator do mundo poderia ter representado
o choque ou veemência da obscenidade:
— Oh, que merda!
— Os seqüestradores identificaram-se como sendo da FPLP. Arlequim
recebeu instruções para permanecer em Londres, até um contato posterior.
Isso é tudo o que sei.
— Por favor, transmita minha solidariedade ao Sr. Arlequim e
acrescente que estou pronto a ajudar por todos os meios ao meu alcance. Sabe
onde pode encontrar-me.
— Tendo em vista nossa conversa de ontem à noite, pensei...
— Pelo que eu me lembre, Sr. Desmond, discutimos negócios e não
política de terror.
— ...pensei que, com seu conhecimento do mundo árabe, poderia
sugerir um meio de se chegar a uma solução desse problema trágico.
— Pensarei imediatamente no assunto. Contudo, devo ressaltar que
mantenho relações tão somente com governos legalmente constituídos e com
empresas. Mas, de boa vontade, pedirei conselhos a meus amigos, nesta
emergência.
— Era o que eu esperava do senhor.
— Obrigado por telefonar. Entrarei em contato com o senhor
posteriormente.
O Sr. Philip Lyndon deixou escapar um esgar amargurado de
admiração.
— Ele não se deixou abalar! Parece feito de aço inoxidável!
— Acha que foi ele quem organizou o seqüestro?
— Não. Creio que ele armou uma situação para uso futuro e a FPLP
antecipou-se. Agora a situação está fora do controle de Yanko. Ele ajudará, se
isso lhe convier. Caso contrário, cruzará os braços e não fará absolutamente
nada.
— E o que me diz de meu testemunho e do de Karl Kruger?
— Karl Kruger conversou apenas sobre um acordo de negócios. Suas
declarações confirmam isso. A parte sobre assassinato e terror conta apenas
com sua palavra.
— É a mesma história de sempre!
— O senhor deveria fazer meu trabalho por algum tempo, Sr.
Desmond. Se não existe Deus e nenhum julgamento final, eu serei um homem
bastante desapontado. Se receber algum telefonema de Londres, avise-me
imediatamente. Farei o mesmo e lhe informarei tudo o que souber...Deixe o
gravador ligado ao telefone. Vou colocar agora uma fita nova...E por que não
aproveita para descansar um pouco?
Havia mais uma coisa que eu tinha de fazer antes de poder descansar.
Saí e fui até um telefone público, liguei para Aaron Bogdanovich e contei-lhe
toda a história.
Ele ficou apenas ligeiramente surpreso e nem um pouco comovido.
— Londres e Genebra...Interessante...
— Isso é tudo o que tem a dizer?
— No momento é. Se precisa de algo mais, ligue para Peça-Uma-
Oração-Pelo-Telefone. Algumas pessoas acham que isso ajuda bastante.
— Não há nada de divertido.
— Então experimente um velho provérbio chinês: quando estiver
esperando a visita do carrasco imperial, é aconselhável tomar grandes
quantidades de vinho de arroz...Relaxe, Sr. Desmond. Essa espécie de coisa
sempre leva tempo para ser resolvida.
Esperamos o dia inteiro, cochilando de vez em quando, assistindo à
televisão, aguardando que o telefone tocasse. Nada. Telefonamos para Philip
Lyndon meia dúzia de vezes. Ele também não sabia de nada e suplicou que
não ocupássemos sua linha. Karl Kruger apareceu às seis horas da tarde para
tomar um drinque e ficou para o jantar de Takeshi, sombrio como uma festa
fúnebre. Às dez horas — as notícias de última hora, em cima da hora! —
vimos o fato na televisão: um apartamento de quinto andar perto do
aeroporto de Genebra, com a babá segurando o bebê diante da janela, tendo a
seu lado um jovem árabe com uma metralhadora. O comentário foi uma
narrativa no estilo enfático e emocionado dos locutores americanos:
"Hoje, em Genebra, o menino Paul Arlequim, de três anos, e sua babá,
Hélène Huguet, de trinta anos, foram seqüestrados e estão sendo mantidos
como reféns por dois homens da Frente Popular para a Libertação da
Palestina e um casal de japoneses, membros do Rengo Sekigun, organização
terrorista japonesa. Os terroristas estão exigindo a libertação de dois
prisioneiros árabes, um na Inglaterra e outro na Itália, condenados
recentemente por acusações de seqüestro, posse ilegal de armas e outros
crimes. As exigências dos terroristas foram apresentadas esta tarde. Querem
também um avião para levá-los a um Estado árabe amigo, uma soma de dois
milhões de dólares e imunidade contra ataques ou prisão. Eles fixaram um
prazo de quarenta e oito horas. Se as exigências não forem atendidas, matarão
primeiro a babá e, vinte e quatro horas depois, a criança. Paul Arlequim é filho
do banqueiro George Arlequim, que recentemente figurou..."

Karl Kruger estendeu a mão e desligou a televisão.


— Pronto! Agora já sabemos. O dinheiro é fácil de conseguir. Dobrar
os governos não é tão fácil assim. Os ingleses são pescoços-duros. Os
italianos talvez demorem um pouco, mas acabarão concordando. Ó Deus
meu, mas que mundo!
Suzanne chorava baixinho. Ele envolveu-a num abraço de urso e
censurou-a gentilmente:
— Liebchen, liebchen! Eles não vão matar uma criança. São espertos
demais para isso. Também precisam de simpatia. 0 bebê é quem menos corre
perigo. Se eles lhe fizerem algo, a multidão enfurecida irá estraçalhá-los.
Ele ainda estava consolando-a quando o telefone tocou. Liguei o
gravador e atendi. Era Basil Yanko.
— Sr. Desmond, arranquei meus banqueiros da cama. Liguei para a
UPI, que transmitirá a notícia imediatamente. Haverá dois milhões de dólares
à disposição, no Union Bank de Genebra, amanhã de manhã. Um presente, um
presente sem qualquer compromisso. Estou fazendo todos os esforços
possíveis, no terreno diplomático, para evitar essa tragédia...
Enquanto eu ainda procurava decidir se devia amaldiçoá-lo ou
agradecer, ele desligou.
Karl Kruger começou a andar pela sala, explodindo de raiva.
— O filho de uma meretriz! Ele faz tudo, ele desfaz tudo! E ainda quer
se transformar em herói!
Suzanne gritou-lhe:
— Eu não me importo! Isso não tem nenhuma importância! Pelo
menos ele está fazendo alguma coisa, enquanto nós ficamos apenas sentados
aqui...
Novamente o telefone tocou. Era Milo Frohm, de Londres. A voz
soava exausta, mas polida como sempre.
— Desculpe não ter telefonado antes. Estivemos ocupados, como pode
perfeitamente imaginar. São três horas da madrugada aqui. Arlequim está em
Genebra. Seu gerente de Londres e eu passamos o dia inteiro em negociações
com o secretário do Interior. Achamos que ele vai terminar cedendo, mas o
negócio está duro. Os italianos vão concordar...pelo menos é o que
esperamos...
Eu lhe falei da oferta de Yanko. Sua risada foi como o chocalhar da
morte.
— Santo Deus! Mas que artista! Não posso esperar pelo momento de
pregar-lhe uma medalha no peito. No meio de tudo isso, só tenho uma notícia
boa: o amigo de Alex Duggan está começando a ceder. Sua esposa está
grávida e está apavorada com que algo possa acontecer ao filho de Arlequim.
Continuem rezando e de boca fechada.
— Sr. Frohm, recebeu o relatório sobre meu jantar?
— Recebi.
— E qual é a instrução a respeito?
— Mantenha o negócio em aberto e procure também manter o Sr.
Kruger em Nova York.
— Como está George?
— Não muito mal, considerando tudo.
—- Gostaria que eu fosse para aí ou mandasse Suzanne?
— Não. Fiquem ambos onde estão. Quanto mais difícil for, mais
Arlequim vai resistir. E espero também agüentar. Sabe o que me aconteceu
esta noite? O subsecretário convidou-me para jantar em seu clube, dizendo
que lá se fazia o melhor lombo de carneiro de Londres. Lombo de carneiro,
meu Deus! Mas, como diz a Bíblia, estamos todos trabalhando numa vindima.
Boa noite ou bom dia, conforme for o caso aí.
Pelo menos ele ainda conseguia rir. Tentei transmitir seu humor a
Suzanne e Karl. Não foi uma boa transmissão, mas pelo menos arrancou um
sorriso espectral de Suzanne e um resmungo de Karl.
— Lombo de carneiro! E o melhor clarete do clube, senhor! Como eu
me lembro disso! Por que ele quer que eu fique em Nova York?
— Ele não disse, Karl. Mas a decisão compete a você.
— Terei que mandar Hilde vir para cá. Tenho pesadelos se passar duas
noites sozinho na cama. Vou telefonar agora mesmo para Munique.
— Ora, Karl! Em Munique são agora quatro horas da madrugada!
— E daí? Se ela estiver sozinha, ficará contente em ouvir-me. Se não
estiver, então não merece estar dormindo. Vamos, passe-me o telefone!
Suzanne desatou numa risada frouxa.
— Não pode, Karl! Todas as conversas estão sendo gravadas.
— Em alemão vai soar maravilhosamente...Ei, tenho uma idéia! Por
que você não fala com ela primeiro? Diga-lhe que está na cama comigo e...
Era uma brincadeira tola, mas nós continuamos nela com um fervor
histérico e, depois que acabou, recordamo-la durante todo o jantar, até
extrairmos a última gota. Karl acabou desmaiando no quarto de hóspedes, e
Suzy e eu nos abraçamos num esquecimento misericordioso.

O drama do seqüestro transformou-se numa peça importante do teatro


político. Se você for um cínico, pode em uma hora ditar toda a seqüência. O
que não pode imaginar, a menos que esteja pessoalmente envolvido, é a
angústia insuportável da vítima e dos parentes, as tensões cruciantes tanto dos
negociadores como dos seqüestradores.
Os seqüestradores são os comandos de um grupo político, totalmente
comprometidos, cuidadosamente instruídos, plenamente conscientes dos
riscos pessoais. Se fracassarem, não podem esperar misericórdia. Serão
estraçalhados por uma turba enfurecida, metralhados pela polícia ou
encerrados numa prisão pelo resto da vida. A sanção sob a qual vivem, como
a ameaça que impõem, é absoluta. Se suas exigências forem recusadas, eles
matarão, porque a morte torna-se então inconseqüente para eles, mas
consideravelmente conseqüente para o movimento que representam. O
problema é que o ato de execução deve sempre ser levado a cabo a sangue-
frio, mas a tensão que o precede pode tornar-se insuportável...É por isso que a
presença de assassinos japoneses é um sinistro fenômeno. Os japoneses
possuem uma filosofia da vida muito confusa, mas possuem uma filosofia da
morte tradicional e extremamente objetiva.
Os negociadores estão sempre em desvantagem, já que não são, e nem
podem ser, absolutamente decididos ou resolutos. Todos concordam em que
a vítima ou as vítimas devem ser salvas. O dinheiro é uma consideração de
menor importância. Mas os dilemas envolvidos formam uma legião. Um
governo não pode ceder a gângsteres políticos, mas não pode também
concordar com a chacina de inocentes. Se os culpados forem escoltados para
fora do país como diplomatas, a lei torna-se objeto de escárnio e novos
ataques serão feitos. Se se impede a polícia de agir, destrói-se sua lealdade e,
ao final, acaba-se por corrompê-la. Se se fabricam mártires, estão-se semeando
dentes de dragão. Se se defendem os direitos das minorias oprimidas, não se
pode sufocar pela força bruta a expressão de suas queixas.
Para as vítimas propriamente ditas, não há recurso possível. Seus
captores podem ser delicados. Mas são também implacáveis. Os libertadores
parecem impotentes. A salvação depende exclusivamente de um sentimento
de decência, que eles viram ser abdicado. Aaron Bogdanovich não estava
brincando quando dissera que se podia ligar para pedir uma oração ou então
embriagar-se. Ele estava sendo piedoso ao ignorar a alternativa que restava:
ficar sentado quieto e esperar que o carrasco tivesse a mão firme.
Estávamos a mais de seis mil quilômetros de distância, mas Suzanne e
eu acompanhamos intensamente todos os atos do drama. A televisão ficava
ligada o dia inteiro e metade da noite. Compramos todos os jornais e lemos
todas as linhas das notícias que se escreveram a respeito, em alemão, inglês,
francês e italiano. Um de nós estava sempre no apartamento. Quando
Suzanne saía, Takeshi a acompanhava. Philip Lyndon telefonava quatro vezes
por dia, com um sumário das notícias que recebera pelo telex. Karl Kruger
entrava e saía a toda hora do apartamento. Hilde chegaria dentro em breve.
Milo Frohm estava ocupado e era impossível entrar em contato com ele. Tudo
o que soubemos de George Arlequim foram as palavras que ele disse aos
repórteres. Ele mais parecia um fantasma ambulante, mas comportava-se com
dignidade e falava quase sempre com moderação e extremo autocontrole.
Ofereceu-se como refém em lugar da criança e da babá. A oferta foi recusada.
À medida que se aproximava o término do primeiro prazo fatal, a
espera tornou-se uma angústia terrível. Novas personagens apareceram em
cena, delegados das embaixadas árabes, diplomatas japoneses, emissários da
Inglaterra e da Itália. Suplicaram mais algum tempo. Mostraram o dinheiro do
resgate e enviaram-no para o apartamento, o portador trajando apenas um
calção, a fim de que os seqüestradores pudessem ver que ele estava
desarmado. Enquanto subia, o japonês pendurou o menino para fora da
janela, ameaçando largá-lo ao primeiro sinal de traição.
No último momento, o prazo fatal foi estendido por mais vinte e
quatro horas. Foi entregue leite fresco para a criança. Uma tripulação suíça
apresentou-se como voluntária para o avião que levaria os seqüestradores a
lugar seguro. Os italianos atravessaram a fronteira com seu prisioneiro e
mostraram-no, sorridente e triunfante, para os seqüestradores. O prisioneiro
inglês ainda não chegara, e o secretário do Interior sempre se recusando a
fazer qualquer comentário. Finalmente ele chegou também. George Arlequim
e seu gerente suíço ofereceram-se novamente como reféns substitutos. Dessa
vez a oferta foi aceita. Eles desapareceram no interior do prédio. Houve cenas
histéricas quando, longos minutos depois, a babá e a criança saíram, sendo
apressadamente levadas para um carro da polícia e retiradas do local.
E então, finalmente, o ordálio terminou. Os seqüestradores e seus
reféns, sob a mira das armas, emergiram do prédio e seguiram para o
aeroporto. Entraram juntos no avião. Os prisioneiros foram trazidos para o pé
da escada. Riram e acenaram, fizeram sinais de vitória. E logo o avião decolou.
Os reféns seriam devolvidos quando o avião voltasse.
Suzanne finalmente desmoronou e chorou incontrolavelmente por mais
de uma hora. Liguei para um médico e pedi que lhe desse um sedativo.
Enquanto ela dormia, saí de casa e fui sentar-me no último banco da Catedral
de Saint Patrick. Não rezei. Parecia não ter o menor sentido dizer que eu
lamentava ou estava grato. Era apenas um lugar limpo e sossegado para estar,
num mundo sórdido e turbulento.
9

Dez dias depois George Arlequim voltou para Nova York. Veio com
uma comitiva: os pais de Julie, uma nova babá, o bebê e três jovens, todos
suíços, muito quietos, sempre vigilantes, nada comunicativos. O apartamento
no Salvador não podia acomodar todo mundo, por isso alugamos as suítes
adjacentes, e Saul Wells recrutou outra equipe de segurança, para guardar
todos os acessos e verificar os visitantes e os empregados do hotel. Suzanne
deixou meu apartamento e foi instalar-se junto da família. Arlequim queria
que eu me mudasse também. Disse-lhe que não havia necessidade e, além
disso, fazia questão de manter minha independência. Pediu-me que o
informasse do que acontecera durante sua ausência. Ouviu atentamente,
tomou anotações, elogiou meus atos e encerrou o assunto. Não era o
momento de pressioná-lo para decisões. Quando ele estivesse pronto, eu
estaria à sua disposição.
Ele estava profundamente mudado. As têmporas estavam grisalhas, a
pele do rosto repuxada por cima dos ossos. Os olhos tinham uma expressão
contemplativa. Falava pouco, serenamente, ponderadamente, como alguém
que tivesse passado muito tempo isolado de seus semelhantes. Seus
movimentos também estavam diferentes, não eram mais elásticos e
impacientes como nos velhos tempos, mas calculados, deliberados, quase
furtivos.
Recusava todos os contatos sociais. Durante o dia, trabalhava no
Salvador, pedindo que as pessoas fossem vê-lo. O que, é claro, todos faziam,
quando mais não fosse, em atenção a suas aflições recentes. À noite jantava
com os pais de Julie e brincava com o bebê. Eram as únicas ocasiões em que
eu o via sorrir, um sorriso terno, mas terrivelmente triste, como se ele sentisse
vergonha de ter trazido uma criança para um mundo tão brutal. Só ficava
zangado quando encontrava alguma falha nas complexas medidas de
segurança. Então punia o responsável com palavras frias e cortantes. Tratava
Suzanne com muita delicadeza, mas com cerimônia. Comigo ele não podia ser
formal, mas deixou patente que queria manter uma certa distância. Três dias
se passaram antes que ele me telefonasse e pedisse que fosse encontrá-lo, para
tratar do que classificou de "assuntos pessoais". Quando cheguei, implorou-
me que ouvisse sem nenhum comentário o que tinha a dizer.
— Paul, você já fez bastante por mim, mais do que qualquer homem
tem o direito de pedir a outro. Sei que você amava Julie e apoiou-a no
momento em que ela careceu de meu próprio apoio. Não sinto ciúmes por
isso. Pelo contrário, sou-lhe grato. Fico contente por meu filho ter o tio Paul.
E fico contente também por tê-lo como meu maior amigo. E quero manter
nossa amizade. Mas do jeito que as coisas estão atualmente, receio que possa
vir a perdê-la. Por isso, gostaria que renunciasse ao cargo de diretor da
Arlequim et Cie.
— A qualquer hora, George. Hoje mesmo, se você quiser.
— Hoje então. Mandarei Suzanne datilografar o pedido de demissão.
Poderá assiná-lo antes de ir embora. Vou também cancelar sua procuração.
Terá uma indenização integral pelo período em que exerceu o cargo de
diretor. Você e Karl Kruger cobriram-me em quinze milhões de dólares. Já
substituí essa cobertura e creditei-lhe o dinheiro, inclusive os juros
correspondentes.
— No meu caso, George, isso não era necessário.
— Mas era apropriado, Paul. Creditei-lhe também a soma
correspondente aos prejuízos que sofreu com a venda de suas ações na
Creative Systems. Assim que acabarmos nosso trabalho aqui em Nova York,
vou aposentar Suzanne, com o que penso ser um prêmio generoso por sua
dedicação. Acho que ela precisa ter liberdade, tem suas próprias decisões a
tomar...
— E aonde tudo isso o leva, George?
— Onde estou no momento, com um filho para criar e um negócio
para reconstruir.
— Posso perguntar-lhe como se propõe a fazê-lo?
— Claro. Vou entrar num acordo com Basil Yanko.
— Está querendo dizer que pretende vender-lhe Arlequim et Cie.?
— Não. Vou apenas fazer um acordo com ele. Você e Karl Kruger já
discutiram os termos fundamentais do acordo. Posso melhorá-los um pouco,
numa negociação pessoal. Tudo dependerá, em parte, do sucesso que Milo
Frohm obtiver em Londres e do compromisso que puder estabelecer entre a
administração e sua agência. Essa parte, porém, está fora de meu controle.
Ele estava sendo deliberadamente vago, mas eu não estava com
disposição para pressioná-lo. Queria afastar-me de qualquer maneira. Ele
estava me proporcionando a oportunidade de fazê-lo com dignidade.
Poderíamos continuar amigos, mas a amizade nunca mais seria a mesma,
porque ele mudara e eu não podia fazê-lo. O melhor era esperar que as coisas
se acomodassem. Eu lhe disse então:
— Já sabe que pedi a Suzy para casar-se comigo?
— Não, ainda não sabia. Mas fico contente. Acho que é uma excelente
idéia.
— Mas ela ainda não aceitou.
— Por que não?
— É que ainda está apaixonada por você. Sempre esteve.
Ele fitou-me com uma ligeira expressão de surpresa, como se eu
estivesse falando sobre o preço dos tomates.
— Mas não estou apaixonado por ela.
— Era tudo o que eu queria saber. Obrigado, George. Esperarei em
Nova York até que ela termine seu serviço e depois a levarei para longe...E
agora vamos tratar dos documentos, está certo?

Nos dias que se seguiram, senti-me estranhamente desamparado e sem


objetivo. Terminara toda uma era de minha vida. Eu não sabia como, nem por
onde iniciar outra. Fiquei longe do mercado financeiro e do clube, porque não
queria responder a perguntas sobre meus planos, nem participar de conversas
sobre Arlequim. Não lia os jornais, porque as notícias eram todas ruins e o
mercado estava em baixa. Quanto menos eu operasse, melhor seria.
Para preencher as horas vagas, fiz a ronda dos arquitetos navais e dos
estaleiros, conversando sobre um velho sonho: um veleiro a motor que
pudesse levar-me através do Pacífico. Percorria também as docas à procura de
barcos esquecidos ou negligenciados que me pudessem servir. À noite, ia para
o Salvador, tomava um drinque com Arlequim, brincava com meu afilhado e
depois levava Suzanne para o bar de Gully Gordon.
Ela também estava aturdida e constrangida. Seu trabalho agora era
temporário. Não podíamos partilhá-lo. A decência exigia que eu não me
imiscuísse em assuntos confidenciais dos quais fora formalmente excluído.
Nosso relacionamento tornou-se tenso e irritadiço. Houve algumas trocas de
palavras ásperas. Senti que ela estava se afastando de mim. Ela acusou-me de
pressioná-la, de não lhe dar tempo para tomar uma decisão livremente,
conforme prometera. Uma noite, depois de um jantar ligeiramente turbulento
com Karl Kruger, e Hilde, ela prorrompeu em lágrimas e disse que era melhor
passar alguns dias sem me ver. Entrei num turbilhão de festas com Mandy
Ducaine e seus amigos, que me deixaram exausto, com dor de cabeça e mais
solitário do que nunca. Ao chegar a casa às três horas de uma madrugada,
encontrei um bilhete enfiado debaixo da porta. "Chéri, desculpe-me. Preciso
vê-lo. Suzy." Telefonei-lhe na hora do café e conversamos durante meia hora,
marcando um jantar em minha casa para aquela noite.

Naquela mesma manhã, por vontade de ter algo melhor para fazer,
caminhei até a loja de flores da Third Avenue e pedi para falar com Aaron
Bogdanovich. Dessa vez fui convidado a passar para uma sala nos fundos,
atravancada, onde o mestre do terror estava empenhado na tarefa prosaica de
calcular suas contas.
Ele acenou para que me sentasse, escreveu mais alguns números e
depois recostou-se na cadeira, contemplando-me com uma expressão
sardônica.
— E então, Sr. Desmond, qual é a sensação de estar desempregado?
— Estou começando a me acostumar. E como se sente, Sr.
Bogdanovich?
— Os agentes funerários e os floristas têm sempre trabalho. Além
disso, continuo na folha de pagamento de Arlequim et Cie.
— Isso é surpresa para mim.
— Imaginava que seria. Por que deixou a companhia?
— Pediram-me que me demitisse.
— Sabe por quê?
— Foram-me dadas algumas razões.
— E elas o satisfizeram?
— Não.
— Por que ainda continua em Nova York?
— Estou esperando para casar-me com Suzanne. Pelo menos, é o que
espero.
— Ela é uma ótima escolha.
— Obrigado.
— Por que veio até aqui?
— Gostaria de pagar-lhe um almoço.
— Obrigado, mas eu nunca almoço. Como está aqui, no entanto, vou
lhe dar alguns conselhos.
— Quais?
— Não tenho amigos, Sr. Desmond. Não posso dar-me ao luxo de tê-
los. Há poucas pessoas que respeito. Seu amigo Arlequim é uma delas. Ele é o
tipo de homem que eu gostaria de ter sido, se as circunstâncias fossem
diferentes. Por outro lado, não está preparado para ser o homem que eu sou...
— Continue.
— Ele pediu-lhe que renunciasse para que não fosse acusado de
cumplicidade em seu plano.
— Que é...?
— O que sempre foi: matar Basil Yanko!
— Não acredito! Não posso acreditar! Ele me disse...
— Que ia fazer um acordo com Yanko. E vai. Depois ele o matará.
Nenhuma outra coisa poderá satisfazê-lo. Depois, é claro, descobrirá que nada
foi resolvido. Pediu-me que o ajudasse. Eu o farei, porque minha gente quer
que Yanko seja eliminado. Posso agora imaginar, como não o conseguia antes,
um meio de fazê-lo. Não poderá impedi-lo. Seria inútil tentar. Mas sugiro que
fique por perto, para recolher os restos de George Arlequim ou pelo menos
cuidar de seu filho.
— Ter-me-ia contado tudo isso se eu não tivesse aparecido aqui esta
manhã?
— Teria. Só ontem à noite é que soube o que ele se propõe fazer.
— Isso é engraçado, realmente engraçado...
— O quê, Sr. Desmond?
— Arlequim me desobriga de qualquer compromisso, e agora o senhor
torna a me vincular, Sr. Bogdanovich.
— E é exatamente isso o que nunca desejou, Sr. Desmond! Quer
ambas as extremidades e o meio da salsicha. Quer a respeitabilidade sem a
virtude, a posse sem a ameaça, o prazer sem o pagamento. Quer mercenários
para executar suas mortes e cegos para enterrar seus mortos. Não é possível,
isso não é mais possível no mundo de hoje. Mártir ou matador, eis as únicas
alternativas! A menos que queira juntar-se à legião dos acorrentados, que se
arrastam do nascimento à morte, chorando pelo Messias que nunca vem!
Se ele não tivesse sido tão veemente, não o teria percebido. Se ele não
tivesse sido tão positivo, eu teria ignorado a dúvida importuna que há muito
se alojara no fundo de minha mente. Era uma dúvida tão tênue que tive de
procurar as palavras para expressá-la:
— Acho...acho, Sr. Bogdanovich, que o senhor está nos usando, a mim
e a Arlequim.
Não houve o menor indício de emoção em seu rosto taciturno. Os
olhos eram janelas vazias para uma alma vazia.
— O que está querendo dizer com isso, Sr. Desmond?
— Valerie Hallstrom...
— O que há com ela?
— Vamos voltar à seqüência dos acontecimentos. Revistou o
apartamento dela. Saiu. Viu um homem entrar. Viu-a chegar a casa. Viu o
homem sair. Voltou e encontrou-a morta. Foi isso o que me contou.
— Exatamente.
— Mas ela era sua agente. Enquanto ela estava sendo assassinada, o
senhor ficou esperando do lado de fora...
— E daí?
— Sabia o que estava acontecendo e deixou que acontecesse.
— Tem razão.
— Por quê, Sr. Bogdanovich?
— Valerie tinha chegado ao fim. Andava bebendo no bar de Gully
Gordon e falando demais, como fez com o senhor. Sua identidade tinha sido
descoberta. Yanko mandou matá-la. Deixei que acontecesse, como o disse.
Agora estou acertando as contas. Yanko morrerá muito em breve. Arlequim e
eu já acertamos todos os detalhes. Será uma solução perfeita para todos nós.
Creio que compreenderá que fizemos jus aos nossos honorários.
— Ainda acho que está nos usando...
— Está me insultando, Sr. Desmond. Além do mais, esquece nosso
contrato: se houver sangue no tapete, eu limpo depois; por outro lado, ambos
se comprometeram ao silêncio. Se não tem estômago para o que está
acontecendo, volte para casa. É um privilégio que ainda lhe resta.
— Vou falar com Arlequim.
— Pode fazê-lo. Mas não se esqueça de que não era sua a esposa
assassinada na Cidade do México, não é seu o filho que foi pendurado para
fora da janela de um quinto andar em Genebra.
Ele não estava zangado, nem mesmo estava enfático. Poderia estar
lendo uma cartilha de criança. Ao levantar-me para partir, fez um gesto para
que ficasse mais um instante e murmurou com uma ironia estranha e
condescendente:
— Eu estava falando a sério, Sr. Desmond. O menino vai precisar de
seu apoio. E talvez o senhor tenha que recolher o que restar de seu amigo.
Fique por perto. Não será tão ruim quanto está pensando. A morte é um
acontecimento muito banal.

Deixei-o calculando os custos e os lucros da loja de flores e caminhei


durante uma hora através do tumulto de Nova York na hora do almoço. Não
havia ninguém pedindo minha companhia, não havia lugar algum que ficasse
vazio sem minha presença. Olhei as vitrinas e vi apenas um amontoado de
objetos sem significado. Olhei para os rostos e vi apenas máscaras de atores.
Senti o cheiro de comida e não me apeteceu. Lambi os lábios e desejei beber,
mas sabia que engasgaria ao primeiro gole. Queria companhia, mas fugiria à
primeira palavra de cumprimento. Não estava com medo, não me sentia
envergonhado. Estava apenas vazio e descrente. Minha frágil filosofia estava
em frangalhos, meu código irracional estava tão cheio de buracos quanto um
queijo suíço. Aaron Bogdanovich abalara-me até a alma, mas eu não pudera
demovê-lo um centímetro sequer da firme convicção de que a vida era uma
inconseqüência, mais fácil terminada do que consertada.
Depois de algum tempo, minha cabeça latejava e os pés doíam, e por
isso voltei para casa. Takeshi preparou-me um café. Eu não queria pensar em
mais nada. Peguei um livro na estante ao acaso e, sem olhar para o título,
comecei a ler a primeira página que abri:
"... Não sei quem ou o que fez com que a pergunta fosse formulada.
Não sei quando ela se formulou. Nem mesmo me lembro de tê-la respondido.
Mas, em algum momento, respondi sim a alguém ou a alguma coisa. E a partir
desse momento tive certeza de que a vida tinha um sentido e que, em
conseqüência, minha vida em submissão.. . tinha um objetivo..."
Olhei para o título da página. O livro era Anotações, os apontamentos
pessoais do homem estranho e complexo que foi Dag Hammarskjõld.
Continuei a ler:
"... Daquele momento em diante, soube o que significa não olhar para
trás e não pensar no amanhã. Segui...através do labirinto da vida, chegando a
um tempo e um lugar em que compreendi que o caminho leva a um triunfo
que é uma catástrofe, que a única elevação possível ao homem encontra-se nas
profundezas da humilhação..."
Não compreendi muito bem, mas fiquei estranhamente comovido.
Senti a necessidade de copiá-la nas folhas de rascunho de minha agenda de
bolso, onde não poderia deixar de ver aquela idéia todos os dias. Tinha
acabado de fazê-lo quando Takeshi entrou, tossiu delicadamente, assoviou
baixinho, fez uma mesura e suplicou um momento de meu valioso tempo.
— Pois não, Takeshi. O que é?
— Tenho algo para dizer-lhe, senhor. Não é muito fácil.
— Sente-se então e disponha do tempo de que precisar.
— Não, senhor, obrigado. As coisas que aconteceram ao senhor e a
seus amigos...
— As coisas que aconteceram...sim?
— Na televisão. No dia em que eles penduraram o bebê pela janela...
— Continue, Takeshi.
— O homem que estava segurando o bebê era meu sobrinho, aquele
para quem sempre mando os selos de suas cartas.
— Você sabia antes que ele pertencia ao Rengo Sekigun?
— Só tive certeza quando o FBI veio fazer-me perguntas. Antes não
sabia.
— Por que não lhes disse?
— Tenho família na Califórnia e no Havaí. São todos boas pessoas.
Bons japoneses, bons americanos. Durante a guerra, foram colocados em
campos de prisioneiros, como se fossem inimigos.
— Por que não me contou?
— O senhor estava no México, na ocasião.
— Mas depois? Aqueles homens poderiam ter-me apanhado ou à Srta.
Suzanne. Fomos alertados de que isso era possível.
— Se meu sobrinho tivesse vindo aqui, eu o teria matado.
— Ele o teria matado primeiro, Takeshi.
— A gente sabe dessas coisas, senhor, mas não acredita nelas. Agora,
quando já é tarde demais, é que eu acredito que seja possível.
— Deveria ter-me contado antes.
— Tem razão, senhor, mas eu me sentia por demais envergonhado. Se
lhe for conveniente, senhor, partirei pela manhã.
— Takeshi...
— Senhor?
— Por que quer ir embora?
— Meu sobrinho me desonra, eu desonro o senhor.
— A honra é como um caniço, Takeshi, que se verga quando nos
apoiamos nele.
— Em que então nos podemos apoiar, senhor?
— Sente-se, Takeshi, pelo amor de Deus! Fico cansado de estar
olhando para cima para vê-lo...Lembra-se do homem que dorme num túmulo?
— Lembro-me, senhor.
— Ele me disse hoje que não há meio-termo para viver. A gente tem
que morrer por uma verdade ou matar por ela. Devo acreditar nele?
— É exatamente isso o que meu sobrinho diz.
— E o que você acha, Takeshi?
— Não se corta uma flor para fazê-la desabrochar. E de que adianta a
verdade para um homem morto...Por acaso, o senhor sente vergonha por não
dormir também num túmulo?
— Não...porque não tenho coragem para fazê-lo.
— Durante a guerra, quando líamos sobre as cargas banzai e os pilotos
kamikaze, meu pai costumava sacudir a cabeça e comentar que um sábio
covarde era melhor que um idiota herói. Acho que ele estava certo.
— Você precisa mesmo ir embora, Takeshi? Tem um emprego melhor
em vista?
— Não, senhor.
— Então fique mais um pouco e vamos nos apoiar um no outro.
Ele não se iria rebaixar a demonstrar prazer, mas fez três reverências e
assentiu. Depois indagou se me faltava fé em suas habilidades culinárias ou em
seus cuidados domésticos. Se tal não acontecia, por que a Srta. Suzanne não
ficava no apartamento, ao invés de se meter em algum hotel apinhado? Era
bom senso puro, se eu ao menos pudesse persuadi-la a percebê-lo.

Às cinco horas da tarde Saul Wells veio visitar-me. Ele estava


apresentando relatórios regularmente a George Arlequim. Tinha a impressão
de que seus serviços não eram mais de grande valia. Não fazia idéia dos
motivos que me tinham levado a renunciar. Estava ganhando um bom
dinheiro, mas estava se formando uma situação que ele simplesmente não
entendia. Não queria continuar na ignorância e esperava que eu pudesse
esclarecê-lo.
Contei-lhe metade da verdade. Arlequim era um homem cheio de
cicatrizes, tinha que se manter ocupado, precisava estar no controle absoluto
de tudo. Eu não queria que nossa amizade fosse prejudicada por conflitos de
orientação política. Saul aceitou com alguma reserva. E perguntei-lhe a
respeito de Bernie Koonig. Ele instantaneamente se animou.
— A história de Koonig é muito estranha. Ele é um malfeitor de pouca
monta e costuma alugar seus músculos para os rapazes dos jogos de azar e
para os agiotas. Frank Lemmitz costumava usá-lo, coisa que já sabíamos. Mas
o que não sabíamos, e levei todo este tempo para descobrir, é que ele antes
trabalhava na Califórnia para Basil Yanko, casado então com sua segunda
esposa, aquela que morreu quando sua lancha explodiu. Koonig tinha o
mesmo emprego que Lemmitz aqui em Nova York: era motorista, guarda-
costas, tudo o que imaginar. Depois do acidente, ele deixou a Califórnia e veio
para o leste. Tinha dinheiro então, muito dinheiro, mas esbanjou tudo e
começou a trabalhar para os gângsteres. Desde que Lemmitz morreu ele anda
apavorado.
— Falou com ele?
— Não, mas Bogdanovich falou.
— Estive com ele esta manhã. Não me disse nada. Saul Wells lançou-
me um olhar estranho, desembrulhou outro charuto, demorou bastante para
cortar a ponta e acendê-lo. Finalmente, um tanto embaraçado, disse-me:
— Sou um rapaz judeu muito simples, Sr. Desmond. Mando dinheiro
para Israel e freqüento a sinagoga. Aaron nada tem de simples e faz coisas
diferentes. Como ele as faz ou por que as faz são coisas que nunca lhe
perguntei. E, mesmo que ele me contasse, eu saberia que era apenas uma parte
da verdade. Ele é como um mágico, que põe uma bala de hortelã na boca e
tira limonada do cotovelo. É um truque. A gente fica esperando,encontrar
uma relação entre os dois fatos, mas não existe nenhuma. Com Aaron, porém,
sempre há uma relação. Como a que existe entre uma moça que vai para a
cama com um sujeito em Paris, o homem que compra uma passagem de avião
em Lima, Peru, e o cadáver que aparece flutuando no rio Delaware quatro dias
depois...Então Bogdanovich conversou com Bernie Koonig e não lhe disse
nada. Pois bem: deixe por isso mesmo!
— O que mais pode dizer-me, Saul?
— Basil Yanko entrou em contato comigo.
— Mas que diabo! O que ele quer?
— Ele quer que a Lichtman Wells trate dos problemas de segurança da
Creative Systems. É um contrato muito grande.
— Você seria um tolo se o recusasse, Saul.
— Não é mesmo? Ele também me ofereceu uma gratificação pessoal de
cem mil dólares.
— Para quê?
— Para receber cópias de todos os meus relatórios para Arlequim et
Cie. e todos os demais documentos de que eu me puder apossar. Disse-lhe
que iria pensar a respeito e depois falei com Aaron.
— E o que foi que ele disse?
— Achou que era uma boa idéia, contanto que pudesse adulterar os
documentos antes de eu entregá-los a Yanko.
— Arlequim já sabe disso?
— Claro. E parece que não se importou. Se Aaron o aconselhava, ele
concordava.
— Por que então veio contar-me, Saul?
— Porque acho que estamos no mesmo barco, Sr. Desmond, subindo
contra a correnteza e sem nenhum remo. Arlequim assumiu seu lugar, Aaron
assumiu o meu. Eles formam uma dupla terrível. Não gostaria de ser
apanhado nas garras de ambos. Quando conversei com Aaron, ele me disse:
"Receba seu dinheiro em espécie, Saul. Não se pode assinar cheques na cadeia
e, quando a pessoa morre, o banco suspende os pagamentos".
— Perguntou-lhe o que isso significava?
— Acho que não me entendeu, Sr. Desmond. Com Aaron, se não se
compreende as palavras, simplesmente não se merece sabê-las.
Eu ainda estava tentando engolir essa espinha atravessada em minha
garganta quando Karl Kruger e Hilde chegaram, ofegantes, de uma surtida às
lojas da Fifth Avenue. Hilde tinha os pés doendo, três vestidos novos e um
broche de diamantes. Karl tinha um rombo na carteira e uma sede violenta.
Saul Wells esbugalhou os olhos diante dos fartos encantos de Hilde. Quando
ela se acomodou no sofá, ele sentou-se o mais perto que pôde e começou a
falar pelos cotovelos, enquanto Hilde tomava seu drinque e sorria sonhadora
ao longo do monólogo. Sou mico de circo se ela entendeu uma palavra em
cada dez, mas Saul era um homem, e Hilde não pediria mais nada até o
momento em que ele o fizesse — e então Saul precisaria recorrer até ao
último cent de seus cem mil dólares.
Karl Kruger espalhou seu vasto corpo numa poltrona, engoliu uma
garrafa de cerveja em tempo recorde, arrotou alegremente e depois exigiu um
uísque para acalmar os nervos. Declarou solenemente que as mulheres eram
as mais esplêndidas criaturas de Deus, contanto que não se tivesse nada a
fazer com elas senão depois do escurecer. Fazer compras era um passatempo
para cretinos, entre os quais ele era o menos inteligente. Quando lhe perguntei
como iam as coisas entre Arlequim e Basil Yanko, ele resmungou, irritado.
— E por que tem que perguntar a mim, hem? Eu disse a George que
ele era um idiota por deixá-lo ir...As coisas estão progredindo. Os dois já
elaboraram um esboço de acordo e recomendaram a seus advogados que
preparassem o contrato formal. Falo com George, falo com Yanko. Durante
todo o tempo fico me perguntando por que a polícia e o FBI não intervém. O
homem, afinal, é um criminoso.
— Não é, não, Karl, enquanto eles não o provarem.
— E será que eles querem mesmo prová-lo, hem? Eu nunca tinha
ouvido falar, em toda a minha vida, em leis tão "complicadas. Se a gente é rica
o suficiente neste país, pode praticamente reescrever o código com a ajuda das
autoridades.
— Somente quando isso lhes convém, Karl...que é precisamente o que
acontece nas atuais circunstâncias. Como está George?
— Eu lhe disse um dia que havia uma fraqueza nele. Pois não existe
mais! Ele está duro como granito. Ouve. Medita. Decide. Depois disso, nada
mais consegue demovê-lo. 'Yanko está arrependido de sequer tê-lo conhecido.
— Mas eles vão chegar a um acordo?
— Vão. Mas devem fazê-lo com decoro. Arlequim precisa disso, se é
que deseja recuperar seu lugar no mercado. Não é suficiente ganhar, precisa
também ganhar com generosidade. Foi o que lhe disse. Herbert Bachmann
também.
— E Arlequim concordou?
— Concordou. Ele me disse: "Karl, sou um excelente ator. As pessoas
acreditarão no que pensarem que estão vendo. Todo mundo ficará satisfeito,
exceto eu mesmo".
Hilde saiu do sofá, atravessou a sala de pés descalços, enlaçou-me pelo
pescoço e sussurrou:
— Pelo amor de Deus, Paul, salve-me daquele Klumpen!
Saul Wells seguiu-a, apenas para ser agarrado por Karl Kruger, que lhe
segurou o pulso com a mão imensa e lhe disse:
— Quero falar-lhe, Sr. Wells! Ouvi dizer que é um homem muito
esperto em questões de segurança. O que significa isso, meu amigo?
Segurança para quê e contra quem?
Hilde encurralou-me a um canto do bar, segurou minha mão e exigiu
que eu lhe contasse tudo.
— Paul, o que está pensando em fazer com relação a Suzanne? Ela está
encarcerada como uma freira naquele maldito hotel. Martela o dia inteiro na
máquina de escrever. Olha para George Arlequim com aqueles seus olhos de
corça mansa e diz: Sim, senhor! Não, senhor! Ele não perceberia se ela
estivesse falando sânscrito! Deus do céu, que desperdício! Não gosto de
mulheres, mas ela é uma das boas. Ouça, schatz! Todos nós ficamos azedos e
cheios de rugas. Não desperdice os melhores anos de sua vida. E também não
desperdice os dela!
— Hilde, querida, eu já a pedi em casamento. Ela disse que precisa de
tempo para pensar.
— Paul, você é um Klumpen maior do que aquele ali! Nenhuma
mulher precisa de tempo. Sem um homem, ela não sabe o que fazer com o
tempo de que dispõe. Olhe só para Karl. É gordo, muito velho e um dia cairá
morto a caminho do escritório...mas eu o amo! Quando ele se for, irei
definhar como uma macieira no inverno!
— Hilde, eu a amo, mas você está completamente embriagada.
— Eu o amo, schatz, mas você está sóbrio demais para seu próprio
bem. Quando você verá Suzy de novo?
— Esta noite... se conseguir tirar todos vocês daqui a tempo.
— Então diga a ela! Não pergunte, apenas diga: "agora ou nunca". E, se
ela quiser argumentar, mande-a para casa e chame-me. Karl! Vamos, de pé!
Paul tem visitas. Levante-se também, Sr. Wells. Fora...fora...E quanto a você,
meu Paul, assim que tudo estiver resolvido, telefone-me imediatamente, dê-me
sua carteira e eu lhe trarei de volta a mais linda noiva que já viu em toda a sua
vida...Ó Deus, como os homens são estúpidos! Sr. Wells, traga meus sapatos.
Karl, seu grande tolo, vamos indo. Agora!
Eles saíram, numa agitação de despedidas, numa nuvem de fumaça de
charuto e exalações de uísque. Rapidamente tomei um banho, barbeei-me e
vesti-me, enquanto Takeshi, murmurando irritado, arejava e arrumava a sala.
Quarenta minutos depois ela estava fresca e tranqüila como o jardim de um
templo. A mesa estava posta, os coquetéis misturados, as velas acesas e
Oistrakh tocava Beethoven, mas Suzanne ainda não chegara.
Chegou atrasada uma hora, nervosa e à beira das lágrimas. Não mudara
de roupa. O cabelo estava desarrumado. Trouxera roupas e objetos de
maquilagem numa valise. Precisava de outra hora para tomar banho e mudar
de roupa. Takeshi, nobre filho dos samurais, assegurou-lhe que o jantar
poderia ser servido à meia-noite, se assim o desejasse. Servi-lhe dois drinques,
exultando secretamente enquanto ela se livrava das atribulações de um dia
horrível.
A manhã fora preenchida por negócios do banco: o afastamento de
Larry Oliver, uma longa conferência com Standish, telegramas de Genebra e
das filiais estrangeiras, informações do mercado, problemas dos clientes,
movimentos financeiros, telefonemas frenéticos para colocar ordens e aceitar
comissões na Europa. À tarde chegara Milo Frohm, vindo de Londres, o que
queria dizer que ela ficara na ociosidade enquanto George Arlequim e ele se
trancavam, incomunicáveis, durante duas horas. O bebê estava com eólicas, o
que implicava caçar um médico e acalmar dois avós franceses extremamente
preocupados. E então, às cinco e meia — certamente não havia outro país tão
pouco civilizado no mundo inteiro! — houvera uma conferência entre
Arlequim e Yanko, com a presença dos advogados de ambos, e ela tivera que
esperar até que chegassem às conclusões, para anotá-las em taquigrafia, depois
passar o esboço à máquina, tornando a datilografá-lo depois de meia hora de
emendas e correções...E, ao final de tudo, George se fora sem uma palavra
sequer de agradecimento ou desculpas. Era demais. Ela mal podia esperar
até...até...
Não perguntei o que aconteceria então. Tranquei-a no quarto e deixei
que reparasse os estragos do dia, enquanto lia mais algumas anotações de Dag
Hammarskjõld e Takeshi cantava, desafinado, junto às suas panelas e
frigideiras.
O jantar foi fácil. Comer, beber, ouvir música, fazer um elogio a
Takeshi sempre que ele metia a cabeça pela porta. Não conversamos muito,
porque as palavras se interpunham no caminho da harmonia. Era mais
simples sorrir, tocar as mãos e olhar um para o outro, sorrir novamente,
erguer o copo e beber o vinho seco, num contentamento fugaz. Depois,
quando Takeshi se retirou, acomodados confortavelmente, como gatos em
semi-escuridão, perguntei:
— Vai passar a noite aqui?
— Vim preparada para isso...se não se importa.
— É esse o problema, querida: não tem que ir para casa.
— Eu o magoei, chéri. Sinto muito.
— E eu perdi a cabeça. Desculpe-me também.
— Paul, você costuma pensar em Julie?
— Durante o dia, não. Mas, à noite, algumas vezes tenho pesadelos,
vejo-a caída no chão, no hospital, eu amarrado, sem conseguir chegar até ela.
Por que pergunta?
— Na noite que passamos na casa de Francis Mendoza fizemos amor e
depois você adormeceu. Fiquei acordada durante muito tempo. Você falou no
sono, chamando o nome dela, não o meu. Fiquei assustada...Quando George
me pediu para ficar no Salvador, exultei. Tive uma porção de fantasias
infantis: ele iria acordar durante a noite, solitário, e viria à minha procura; eu o
ouviria, inquieto e murmurando desesperado, depois iria para ele...Nas
primeiras noites fiquei acordada durante horas, esperando, cheia de
esperanças...Nada aconteceu. Foi por isso que discuti com você. Na noite
seguinte sonhei com ele, como você deve ter sonhado com Julie. Ele estava lá,
mas eu não podia alcançá-lo. De repente eu estava livre, mas ele já se
fora...Quando acordei, estava tudo acabado — pata sempre. Vim aqui na noite
seguinte, bem tarde, mas você tinha saído. Deixei um bilhete debaixo de sua
porta. Isso é um absurdo, não acha?
Nós sonhamos com outras pessoas e não conseguimos ficar afastados
um do outro!
— Querida, já vivemos muitas experiências, eu mais do que você. Não
podemos apagá-las. Nem mesmo devemos tentar. É precisamente isso o que
nos torna ricos para nós mesmos e para as outras pessoas. Quem está
interessado num livro cheio de páginas em branco? Todos temos amantes
fantasmas. Todos temos sonhos dourados — e tenebrosos também. Mas, nos
sonhos, somos sombras a perseguir sombras. Quando acordamos...
— É isso o que me preocupa, chéri. O que acontece quando
despertamos?
— Procuramos pelo rosto conhecido, pelo sorriso familiar. Tocamos o
corpo conhecido, cheiramo-lo, experimentamo-lo, confortamo-nos um ao
outro. O conhecimento é indispensável para o amor. Sem ele, não sabemos ao
certo nem se somos nós mesmos. Sonhamos com coisas que poderiam ter
sido, mas voltamos agradecidos ao que é e a quem é. Não nos podemos unir a
fantasmas. Não há substância neles e absolutamente nenhum calor...Mas que
diabo! Eu estou falando como um filósofo de algibeira!
— Como eu gostaria de que você tivesse dito tudo isso muito tempo
atrás!
— Eu não sabia antes...Ou talvez soubesse e fosse orgulhoso demais
para dizer. Suzy, querida, não vamos esperar mais. Diga-me sim e vamos
começar logo a ter uma vida própria, juntos. Estamos desperdiçando o tempo
e a nós também.
— Só mais uma pergunta, Paul. Prometo que será a última. Podemos
ficar junto de George até que tudo isso esteja terminado?
— Podemos e ficaremos.
— Então, sim, meu amor...Sim! Ó chéri, é tão bom estar em casa!
Foi estranho: não houve absolutamente o menor drama no momento.
Foi simples, calmo, fácil, como ficar em terra, ao abrigo do vento, do mar
tumultuado. Ainda podíamos ouvir a tempestade, ainda podíamos ver as
nuvens escuras amontoando-se no alto das colinas. Mas estávamos seguros
em nosso refúgio e capazes, finalmente, de dizer uma prece pelos outros
pobres marinheiros.
Pela manhã fomos juntos para o Salvador e contamos a George
Arlequim. Disse que se sentia feliz por nós dois e agradecido por Suzy esperar
até que todos os seus negócios em Nova York estivessem acertados.
Perguntou onde e quando nos íamos casar. Dissemos-lhe que esperaríamos
até que todos estivéssemos de volta a Genebra, a fim de podermos
comemorar juntos o acontecimento. Ele demonstrou alguma dúvida, pois
ainda não fizera planos. Deveríamos acertar tudo sem contar com ele. Se
pudesse estar conosco, ficaria encantado, é claro.
Ao lhe perguntar quando estava pensando em fechar o acordo com
Yanko, mostrou-se deliberadamente vago. Muito breve, dentro de uma
semana, talvez mais. Ainda tinha assuntos a acertar com Milo Frohm. Não
disse quais eram, também não perguntei. Mas decidi que eu tinha o direito de
perguntar a Milo Frohm. Liguei para ele do telefone público do saguão. Disse
que poderia dispor de uma hora inteira, antes do almoço, e estaria preparado,
se não feliz, para encontrar-se comigo em meu apartamento. O preâmbulo foi
mais constrangedor do que eu imaginava.
— Sr. Frohm, encontro-me numa situação muito difícil. Como já sabe,
não tenho mais nenhuma posição legal em Arlequim et Cie. Minha posição
pessoal também se alterou. Arlequim deixou claro que não deseja que eu me
envolva ainda mais. Contudo, continuo seu amigo e estou preocupado com
ele. Gostaria de falar-lhe, portanto, em particular. Tem alguma objeção?
— Nenhuma. Contanto que compreenda que tenho de reter certas
informações.
— Compreendo e aceito.
— Qual é seu problema, Sr. Desmond?
— Se eu tentar defini-lo, certamente não o farei com muita clareza.
Vamos começar pelo fato de que George perdeu a esposa e passou por uma
experiência brutal com o filho. Fechou-se dentro de si mesmo, numa espécie
de inferno particular...
— E o senhor gostaria de tirá-lo de lá.
— Tenho receio pelo que ele possa fazer enquanto estiver dentro desse
inferno.
— Continue, Sr. Desmond.
— Sei que está sendo discutido um acordo com Basil Yanko. Fui eu
que fixei os termos iniciais para as negociações.
— E...?
— Agora não vejo como poderá dar certo. Temo que possa ser o
prelúdio para uma tragédia pior do que qualquer uma a que já assistimos.
Milo Frohm analisou lentamente a sugestão, mas não a rejeitou.
Começou uma explicação cautelosa e indireta:
— Vamos conversar sobre o acordo, que na verdade não é um acordo e
sim um negócio delicado...A idéia não me agrada, mas estou sendo
pressionado a torná-la realidade. Arlequim também não se sente muito feliz,
mas está sob uma pressão muito maior...Nenhum de nós tem a menor dúvida
de que Yanko está por trás de tudo o que aconteceu. Algumas coisas podemos
provar, outras não. E o que podemos provar exigirá longas investigações e
provavelmente terminará em ações legais abortivas. Todas as coisas de que
sabemos têm conseqüências políticas agudas...A justiça é a menor de nossas
preocupações, porque simplesmente é impossível dispensá-la. Não podemos
trazer os mortos de volta. Portanto, o que tentamos é alcançar uma ilusão de
que a justiça foi feita, através de um compromisso mútuo, fora dos tribunais.
Mas eu acho que isso está errado, pois desacredita a lei. Enfraquece também a
ordem pública, que, neste momento, repousa num aparato muito frágil de
coação. Contudo, sou um homem que obedece a ordens. Investigo, relato,
aconselho. Não posso determinar uma ação. De fato, sou forçado a curvar-me
a opiniões contrárias, que dizem que, se não se pode fazer com que uma
acusação seja mantida, então o melhor é nem apresentá-la, que é melhor
tolerar um criminoso nas altas esferas do que demonstrar, publicamente, que
se é impotente contra ele. A teoria é de que é melhor desgastar seu poder do
que lançá-lo num confronto direto...A conseqüência é que isso completa o
divórcio entre a política e a moral — e ao final se pagará um preço infernal
por isso.
— Mas assim também não desvirtua a lei, Sr. Frohm?
— Não é bem assim, Sr. Desmond. Seria melhor dizer que se usa a lei
de forma incorreta. Um exemplo disso é a confissão de Pedro Galvez. É um
documento autêntico. Leve-o aos tribunais e a defesa irá atacar sua
credibilidade. Em nossa posição, tudo o que precisamos dizer é que achamos
que essa prova não resistirá nos tribunais. Não há nada de ilegal nisso.
Arlequim e a República são os autores da queixa. Eles têm liberdade de
escolha das provas que desejarem apresentar, mesmo num caso de homicídio.
Não estamos dizendo que Yanko ficará imune a um julgamento, agora ou
mais tarde. Estamos simplesmente negando o valor de nossas próprias
provas...
— Contra um vultoso acordo financeiro com Yanko, o que vem a ser
suborno.
— Seria mesmo, se fosse considerado como tal. Na realidade, está
sendo expresso como uma reparação voluntária dos danos...
— Causados por conspiração criminosa...
— ...por parte de empregados, os quais o Sr. Arlequim, generosamente,
declina de processar.
— E isso é o fim de tudo?
— Sabe perfeitamente que não, Sr. Desmond. Mas, para que seja viável,
tudo depende de uma combinação de atitudes políticas, pressões do mercado
e manobras legais. É preciso uma conspiração de silêncio para atingirmos os
objetivos desejados.
— Ou seja: um crime de omissão.
— O que é uma coisa muito difícil de provar. Tentei uma vez e nada
consegui...Não, Sr. Desmond, se o acordo for feito, terá que ser mantido.
— Mas não o será. Ficará em aberto de ambos os lados. Yanko
consegue uma suspensão da ameaça, mas não uma impunidade total. E
George Arlequim recebe dinheiro por uma esposa morta. Não acredito que
nenhum dos dois possa ou vá satisfazer-se com tal situação.
— Yanko está sob a mira de uma arma. Ele aceitará.
— E George Arlequim aceitará também, mas...
— Mas o quê, Sr. Desmond?
A partir desse ponto, eu estaria pisando em ovos, e ambos sabíamos
disso.
Cuidadosamente, disse:
— Estou sugerindo, sonhando ou inventando o próximo passo: outro
acordo, pelo qual Yanko seja eliminado e George Arlequim obtenha a
impunidade.
Novamente o pensamento era-lhe familiar. Foi mais direto:
— E isso o deixaria preocupado, Sr. Desmond?
— Destruiria o homem que é meu amigo há vinte anos.
— Mas, segundo sua invenção, ele ficaria impune.
— Não de si mesmo, Sr. Frohm...Agora estamos sozinhos e
conversando em particular. Acha que esse sonho pode transformar-se em
realidade?
— Pode.
— E, como agente da lei, concordaria com isso?
— Não. Eu disse apenas que poderia acontecer.
— Se Arlequim fosse seu amigo...
— Ele é, Sr. Desmond. Tornamo-nos muito ligados. Tenho a maior
admiração por ele.
— Já tentou dissuadi-lo desse próximo passo?
— Apontei-lhe os riscos existentes.
— E...?
— Concordamos num princípio. Foi enunciado por um certo George
Mason, delegado da Virgínia na elaboração da Constituição dos Estados
Unidos: "Deve algum homem ficar acima da justiça? Deve algum homem ficar
de tal modo acima da justiça que possa cometer a mais ampla injustiça...?"
— George Arlequim falou em assassinato.
— Não para mim — disse Milo Frohm calmamente. — E se lhe falou,
como parece que aconteceu, foi em particular e num acesso de emoção... O
senhor foi muito franco comigo e aceito esse fato como um elogio. Irei
retribuir: transmitirei sua preocupação a George Arlequim.
— É preciso muito cuidado, Sr. Frohm.
— Sou um homem cuidadoso, Sr. Desmond. Tenho que ser, pois ando
numa corda bamba. Gosto de ser um instrumento de justiça. Sou pago como
agente da lei, o que não é absolutamente a mesma coisa...
Ele deixou-me desconcertado com esse enigma, procurando em vão
por alguma pista para resolvê-lo. Em Nova York era meio-dia, na Califórnia
deveriam ser nove horas da manhã. Liguei para Francis Xavier Mendoza e dei-
lhe a boa notícia de meu próximo casamento com Suzanne. Ele ficou na
maior alegria. Estaria em Nova York no sábado e promoveria um jantar para
celebrar nossos esponsais. Ri diante daquela palavra antiquada. Ele disse que
talvez até fizesse uma canção a propósito, para ser cantada durante o jantar.
Telefonaria para seu distribuidor em Nova York, a fim de que reservasse os
vinhos imediatamente. O cardápio ele escolheria pessoalmente, com o maior
prazer.
...E como estava o meu amigo? Ele vira todo o horror do seqüestro.
Rezara todas as noites para que houvesse uma solução misericordiosa.
Compreendia meus atuais temores. Talvez, quando viesse a Nova York,
pudesse encontrar-se com George Arlequim. Achei que seria uma idéia
proveitosa...Já esgotara toda a minha estratégia e não restava graça nenhuma
para emprestar ou gastar. Mendoza censurou-me, dizendo que eu era o mais
abençoado dos homens. Deveria ficar perto de Arlequim e continuar a fazer-
lhe perguntas. Deveria guardar Suzanne como uma jóia preciosa e não fazer
absolutamente pergunta alguma...Ele estava certo de que, em breve, iríamos
partilhar aquela preciosa garrafa de vinho que dera de presente a Suzanne.
Desejei ter um pouco que fosse de sua fé. Estava plenamente
convencido de que George Arlequim estava condenado ao inferno e à
autodestruição.

Na quarta-feira daquela semana Basil Yanko emitiu uma declaração que


foi publicada integralmente pela imprensa financeira.
"... A oferta feita pela Creative Systems Incorporated para a compra de
Arlequim et Cie. foi agora retirada. Recentes comentários da imprensa e uma
série de acontecimentos trágicos, envolvendo o Sr. George Arlequim e sua
família, criaram um clima desfavorável para a proposta fusão, afetando os
interesses de ambas as partes. Investigações realizadas, em diversos países,
revelaram graves falhas na segurança dos serviços de computadores
fornecidos pela Creative Systems a Arlequim et Cie. Essas falhas foram agora
remediadas e a Creative Systems aceitou a responsabilidade pelas perdas e danos
sofridos por seus estimados clientes. Um acordo para reparar essa
responsabilidade, mediante um substancial pagamento em dinheiro, será
assinado ao final desta semana pelos senhores Basil Yanko e George
Arlequim. O acordo encerrará todos os litígios pendentes entre as duas
partes."

A declaração era seguida por um cauteloso comentário editorial.


Elogiava o bom senso dos dois homens e a moderação com que haviam
conduzido uma negociação difícil. Ressaltava a "franqueza com que os erros
tinham sido reconhecidos e a presteza com que reclamações legítimas tinham
chegado a bom termo". Acentuava o valor da "cooperação entre os
organismos encarregados do cumprimento das leis e todos aqueles
preocupados com a integridade da prática dos negócios". Previa "uma alta
imediata na cotação das ações da Creative Systems e um novo respeito por
Arlequim et Cie. no campo dos investimentos internacionais". Nas
entrelinhas, a declaração representava um profundo suspiro de alívio e uma
súplica para não se abalar ainda mais o mercado.
Naquela noite fiz uma rápida visita ao clube e fui recebido como um
irmão há muito desaparecido. Todo mundo tinha lido a declaração. A maioria
reconheceu que era uma hábil peça de confissão. Ninguém lamentava que
terminasse assim, inocuamente, um episódio sórdido. Era bom ver Basil
Yanko humilhar-se um pouco para variar. Seria melhor ainda para quem
tivesse comprado ações da Creative Systems no fechamento do mercado, pois
teria um lucro substancial na tarde seguinte. Ninguém queria falar em
assassinatos, seqüestros ou fraudes. Naqueles dias, havia uma opinião corrente
de que a melhor coisa era baixar a cabeça e guardar para si as opiniões
políticas. Arlequim saíra-se muito bem. Aquele rapaz tinha muita classe! O
toque europeu, hem? Por que não o trazia para tomar alguns drinques no
clube uma noite qualquer? Parti uma hora depois, banhado na glória refletida
de um operador esperto que conseguira bater o mercado.
Na volta para casa, passei pelo Salvador, a fim de apanhar Suzanne. Ela
ainda estava trabalhando e George Arlequim queria falar comigo.
— Amanhã será o fim de tudo, Paul. Yanko já reservou o dinheiro no
banco. Ele nos será entregue assim que os documentos forem assinados, às
cinco horas da tarde. Eu ficaria agradecido se você pudesse vir. Karl Kruger e
Herbert Bachmann também estarão presentes.
— E Basil Yanko?
— Claro que sim.
— Por que a festa?
— Não é uma festa. É uma condição do acordo. Yanko concordou em
emitir a declaração para a imprensa. Nós prometemos providenciar a
documentação fotográfica da reconciliação. Karl Kruger representa os
europeus. Herbert representa Wall Street. Você é o mundo flutuante. Já
contratei o fotógrafo. Sei que é uma concessão lamentável, mas era o mínimo
que Yanko podia exigir e o máximo que eu podia tolerar.
— Está certo, estarei presente. Quanto Yanko está pagando?
— Somando tudo, vinte e cinco milhões de dólares.
— E quanto estamos lucrando?
— Depois de cobertos os prejuízos da venda de ações, ainda nos
sobram cerca de dois milhões.
— Então o assunto está encerrado e podemos todos ir para casa.
— Exatamente. Eu sigo na segunda-feira, de navio. Os pais de Julie
têm medo de avião. Eu também tenho um pouco, depois de tudo o que
aconteceu...Seu amigo Mendoza telefonou-me, convidando-me para jantar
com você e Suzanne no sábado, comemorando o noivado. Eu lhe disse que
ficaria imensamente feliz em poder comparecer. Eu próprio gostaria de poder
oferecer o jantar, mas isso agora não é possível.
— E poderá comparecer ao casamento em Genebra?
— Espero que sim.
— George, Milo Frohm relatou-lhe a conversa que teve comigo?
— Contou, Paul. Agradeço sua preocupação, mas não há motivo para
ela.
— Fico satisfeito em ouvi-lo dizer isso, George. Mas há outra coisa que
me está perturbando. Aaron Bogdanovich disse...
— ...que nós lhe estamos devendo mais dinheiro. Isso já está
providenciado. Também não tem que se preocupar.
— Eu não estava pensando no dinheiro, George. Ele me disse que
vocês dois combinaram matar Basil Yanko.
— E combinamos mesmo, Paul.
Fitei-o, olhos arregalados, a boca aberta. Ele sorriu, tolerantemente.
— Não estava pensando que eu tinha esquecido, não é mesmo?
— Mas George, isso é loucura! Não lhe trará Julie de volta, não irá
mudar nada do que aconteceu. É apenas uma insanidade sangrenta!
— É mais do que isso, muito mais...
— Pelo amor de Deus, ouça-me! Fui eu que o iniciei nessa estrada. Sou
responsável por tudo o que aconteceu. Viverei com esse conhecimento até
meu último alento. Mas estou lhe dizendo, implorando para que compreenda
que isso é uma horrível inutilidade: uma vida por uma vida por uma vida...E
para quê? Há vinte anos, George, que o admiro e o amo como a um irmão. Se
minha vida pudesse trazer Julie de volta, eu a daria alegremente. Mas não pode
— nem cem ou um milhão de vidas! O único pagamento que lhe posso
fazer...
— Eu sou o credor — disse George Arlequim friamente. — Eu
estipulo os termos. Esteja aqui amanhã, às cinco horas da tarde. Depois, todas
as dívidas estarão liquidadas!
Eu estava batido e ambos o sabíamos. Não podia acusá-lo, porque não
tinha testemunhas. Não podia impedi-lo, porque seria sutil demais e Aaron
Bogdanovich conhecia a fundo seu ofício. Não podia persuadi-lo, porque ele
se afastara do sistema humano e ingressara na anarquia dos destruidores. Sua
própria vida ou a de um outro qualquer não tinha agora mais valor algum.
Deixei-o de pé no meio da sala, surdo e cego, destituído do último vestígio de
piedade.
Naquela noite discuti durante uma hora com Suzanne. Eu não queria
ter mais nada a ver com George Arlequim. Ela também não, tinha que pedir
demissão imediatamente. Não precisava de salário ou pensão, não precisava
do dinheiro manchado de sangue dele. Arlequim estava além de qualquer
compaixão, além de argumentos, além da razão. Realizara sua própria
profecia, como sabia e prometera que aconteceria, desde o primeiro
momento. Adorava a conspiração, estava feliz por se juntar às hostes dos
assassinos. Pois que fosse!
Suzanne enfrentou-me passo a passo. Está certo, ele jurara matar. Mas
poderia voltar atrás. Podia ser impedido, até o último momento. Era um
homem complexo demais para ser repudiado como alguém privado da razão.
Ela trabalhara com ele durante muitos anos. É verdade que ele podia
conspirar, mas será que meu julgamento não estava sendo rigoroso em
demasia? O que quer que ele próprio acreditasse, ela não julgava que ele fosse
capaz de cometer um assassinato. De qualquer forma e apesar de tudo, ela
trabalharia para ele até o último dia do contrato. Eu tinha a obrigação de
atender ao pagamento que ele me exigira, comparecendo à reunião. Achava
que ele estava tentando envolver-me? Não, nunca dissera isso. Então eu
deveria comparecer. Se não fosse, ela nunca mais poderia confiar em qualquer
coisa que eu prometesse. Disse que tinha feito tudo o que prometera. Não,
não fizera. Ambos havíamos jurado acompanhar George até o último passo
do último quilômetro. E esse último passo ainda estava para ser dado...E
assim por diante, até que todas as nossas palavras se esgotaram e ficamos
sentados em silêncio, teimosos e hostis, cada um esperando que o outro se
rendesse. Como sempre, Suzanne deu a última palavra:
— Nada pode acontecer na reunião, Paul. A sala estará cheia de
testemunhas. Você será uma delas. Quando a reunião terminar, pedirá a
Yanko para esperar em minha sala. Depois conversará em particular com
George. Dirá a ele que, a menos que lhe prometa solenemente que Yanko
nada sofrerá, irá alertá-lo antes que saia do hotel. Você se verá então eximido
de toda e qualquer responsabilidade. E eu também. Isso lhe parece razoável?
— Há uma falha em seu raciocínio: se George está preparado para
matar, então está também preparado para mentir.
— Nesse caso, se você tiver a menor dúvida, alertará a Yanko e dirá a
George que vai fazê-lo.
— Se eu alguma vez for levado a julgamento, querida, espero tê-la em
minha defesa.
— Depois que me apanhar, chéri, terá que me aturar para sempre. Se
quer escapar, a ocasião é esta.
Fomos pacificamente para a cama. Mas eu acordei num momento
qualquer entre a meia-noite e a madrugada, assaltado por um novo e
aterrorizante pensamento. E se a reunião não se realizasse? Os documentos
estavam prontos, a intenção era clara, pela declaração distribuída aos jornais, o
dinheiro já estava reservado. Se Yanko não chegasse, se a morte o
surpreendesse no caminho, o acordo podia e provavelmente seria assinado
pelo novo presidente da Creative Systems. Nesse caso, o triunfo seria completo,
com Yanko morto e o dinheiro seguro no bolso de Arlequim. Aaron
Bogdanovich e George Arlequim tinham ambos uma inclinação pelas ironias.
E essa era tentadora demais para seus paladares sensíveis.
10

Cheguei ao Salvador às dez para as cinco. Fiquei alguns momentos com


Suzanne e depois fui juntar-me a Arlequim, que estava conferindo alguns
documentos com seus advogados. Pontualmente às cinco horas, chegaram
Karl Kruger e Herbert Bachmann. Logo atrás deles apareceu um jovem
moreno e barbado, com duas máquinas fotográficas penduradas no pescoço.
Cinco minutos depois chegaram os advogados de Yanko e começaram a
conferir os documentos com seus colegas.
Passaram-se dez minutos e Yanko ainda não aparecera. George
Arlequim fez um comentário ácido sobre os hábitos impontuais dos gênios.
Às cinco e quinze, ele ainda não tendo aparecido, seus advogados começaram
a ficar embaraçados. Um deles telefonou para o escritório de Yanko, onde lhe
informaram que ele já partira. Murmurou um pedido de desculpas e voltou a
mergulhar nos documentos.
Às cinco e vinte Arlequim estava andando de um lado para outro da
sala, vermelho e irritado. Karl Kruger ansiava desesperadamente por um
drinque. Herbert Bachmann e eu tentávamos conversar sobre assuntos
superficiais, numa das janelas. Às cinco e vinte e cinco Basil Yanko entrou na
sala, improvisando uma desculpa sobre o tráfego congestionado do centro da
cidade.
Arlequim retrucou:
— Nosso tempo é valioso também, Sr. Yanko. Yanko mostrou-se
imperturbável.
— Esta visitinha está me custando vinte e cinco milhões de dólares.
Agora, por favor, posso ver os documentos?
Ele já os vira uma dezena de vezes antes, mas aprazia-lhe analisá-los
novamente, o que fez durante uns dez minutos, antes de anunciar que estava
pronto para assiná-los. George Arlequim insistiu então para que os advogados
de Yanko enunciassem verbalmente os principais itens do acordo.
"As duas partes se comprometem a não estabelecer qualquer condição
que seja uma infração à lei...
"Nos itens em que as duas partes se abstenham de ação legal não se
inclui nenhuma omissão criminosa...
"Nenhuma das partes fica imune ou garante imunidade à outra de ação
legal por parte de terceiros...
"A responsabilidade admitida pela Creative Systems Incorporated fica
estritamente limitada aos termos do presente acordo. Os prejuízos
concordados e ora pagos são aceitos como tendo ressarcimento total...
"Arlequim et Cie. e o Sr. George Arlequim pessoalmente concordam
em não formular acusações de fraude ou conspiração para fraudar contra
qualquer funcionário da Creative Systems Incorporated. As acusações já
apresentadas serão retiradas...
"As investigações determinadas por Arlequim et Cie. e realizadas sob
sua conta serão imediatamente encerradas...
"As partes concordam em não divulgar, sob qualquer forma,
comentários, especulativos ou não, que possam ser considerados prejudiciais
ou controversos pela outra..."

Havia muitos outros itens. Depois da leitura interminável, os dois


homens finalmente sentaram-se à mesa, tendo seus advogados ao lado. O
fotógrafo indagou se poderiam mudar de posição. Yanko recusou, irritado.
Não era a assinatura do acordo que era importante e sim o grupo, a ser
fotografado depois: cinco respeitáveis homens de negócios, com drinques nas
mãos, parecendo felizes por seu dinheiro. A assinatura resolvia um conflito.
Os drinques e os sorrisos diziam tudo o que o mercado precisava saber que
existia agora: confiança, segurança, amor fraternal, respeito mútuo. Arlequim
sacudiu os ombros, concordando. Karl Kruger observou que era uma maneira
muito elegante de dispor de tanto Geld. Herbert Bachmann comentou,
gravemente, que o Geld era muito menos importante que a boa vontade.
Quando a desprezível cerimônia acabou, os advogados de Yanko
entregaram um cheque visado no valor de vinte e cinco milhões de dólares.
Arlequim dobrou-o e meteu-o na carteira, com a mesma indiferença que teria
para com um cartão de estacionamento. O que levou Yanko a fazer o
comentário azedo de que era melhor não perdê-lo, pois não receberia outro.
Os advogados arrumaram suas pastas e saíram juntos. Arlequim
acompanhou-os até o elevador e voltou com um de seus agentes de segurança
suíços, que iria recolher os pedidos de drinques. Todos nós pedimos uísque, à
exceção de Yanko, irritante como sempre, que exigiu um suco de tomate, com
uma pitada de Tabasco, uma gota de limão, nenhum sal e um raminho de
hortelã. O suíço saiu da sala. O fotógrafo começou a se movimentar de um
lado para outro, verificando a luz e os diversos ângulos.
Houve um intervalo constrangedor e logo a babá apareceu com o
pequeno Paul, que acabara de tomar banho e estava pronto para jantar.
Arlequim pegou o menino nos braços, beijou-o, brincou um pouco e depois
levou-o para dizer boa-noite a todos os presentes. Quando chegou a vez de
Basil Yanko, ele perguntou:
— Tem algum filho, Sr. Yanko?
— Não, Sr. Arlequim. Nunca fui tão afortunado. É uma linda criança.
— Ele é bem parecido com a mãe.
— Nunca tive o prazer de conhecer Madame Arlequim.
— E meu filho também não o terá, Sr. Yanko...Pronto, babá, pode
levá-lo. Boa noite, querido. Depois vou até seu quarto para contar uma
história.
Karl Kruger resmungou, infeliz. Herbert Bachmann assoou o nariz
ruidosamente. Virei-me para ocultar o ódio expresso em meus olhos.
Arlequim virou-se para o fotógrafo.
— Pode começar assim que os drinques forem servidos. De quanto
tempo vai precisar?
— Dez minutos. Basta que o senhor e seus amigos ignorem minha
presença e ajam normalmente. Eu ficarei batendo as fotos.
Poucos momentos depois que o agente suíço entrou com uma bandeja
de drinques e uns pratos de canapés, Arlequim ordenou-lhe:
— Não recebo telefonemas nem visitantes, até terminarmos aqui.
Herbert Bachmann levantou seu copo num brinde:
— Ao fim de uma dissensão, senhores! Arlequim fez a segunda
saudação.
— Meus agradecimentos, Karl, por seus esforços.
— Eu também beberei a isso — disse Basil Yanko.
— E a você também, Herbert. Obrigado por terem vindo aqui hoje.
— Eu vim por George — disse Herbert Bachmann secamente. —
Além disso, porque tenho também algumas obrigações para com meus
colegas do mercado.
Basil Yanko mostrou-se tolerante, mas magoado.
— Meu caro Herbert, sou o único homem do mundo a quem você não
pode fazer cara feia. A minha será sempre mais feia que a sua. Sou feio
demais, desde criança. Mas já me acostumei a isso. Quanto ao resto, sei o que
sou e o que faço. Quantos de seus respeitáveis colegas podem dizer o mesmo?
— Pensei — disse George Arlequim mansamente — que deveríamos
parecer felizes.
Basil Yanko fitou-o com desprezo.
— Receio que eu seja o pesadelo de sua festa, Sr. Arlequim. Se me der
licença, eu me retirarei.
O fotógrafo protestou:
— Por favor, senhor, só mais algumas chapas!
— Dispensarei alegremente as fotografias — disse George Arlequim.
— A idéia foi sua, não minha.
Basil Yanko tornou a levantar o copo.
— Esperarei...Diga-me, Sr. Desmond, quanto tempo ainda pretende
demorar-se em Nova York?
— Talvez mais uma semana. Não mais do que isso.
— Ouvi dizer que está para se casar.
— É verdade.
— Você é um homem de sorte, Paul — comentou Herbert Bachmann.
— Espero que saiba disso.
— Eu sei, Herbert.
— Quando o conheci — disse Karl Kruger —, ele não tinha juízo
suficiente sequer para sair da chuva.
— E agora está se retirando de Arlequim et Cie. — disse Basil Yanko,
quase cordialmente. — Gostaria de lembrar-lhe que minha oferta ainda está
de pé.
— Eu a recuso, Sr. Yanko.
George Arlequim fez um comentário áspero.
— Creio que está sendo sensato, Paul. É um emprego perigoso.
Yanko ficou vermelho de raiva.
— Suas palavras são controversas, Sr. Arlequim. Devo recordar-lhe que
constituem uma infração ao acordo que acabamos de assinar?
— Não ouvi nada — disse Karl Kruger. — Você ouviu, Herbert?
— Não, Karl. Na verdade, minha audição anda meio deficiente.
Basil Yanko esvaziou o resto do suco de tomate de um só gole e pôs o
copo em cima de uma mesinha.
— Estou muito velho para brincadeiras de crianças, senhores. Devo ir
agora.
— Se se mexer — disse o fotógrafo jovialmente —, é um homem
morto.
Ele estava apontando a maior das duas máquinas fotográficas para a
cabeça de Yanko.
— Esta é uma arma letal. Dispara seis balas de cianureto.
— Que diabo isso significa? — indagou-lhe George Arlequim.
— Por favor!
O fotógrafo acenou-lhe a mão, impaciente.
— Sentem-se todos à mesa e ponham as mãos em cima dela.
— Um andar cheio de agentes de segurança e isso tinha que acontecer
— murmurou Yanko, irritado. — O que você está querendo? Dinheiro?
— Sente-se!
Sentamo-nos num semicírculo ao redor da mesa, com as mãos sobre a
superfície envernizada. O fotógrafo sentou-se à nossa frente, a máquina sobre
a mesa, seu dedo sempre no disparador. Ele explicou descaradamente:
— Se alguém se mexer ou gritar, leva imediatamente um tiro. Se formos
interrompidos, Sr. Arlequim, dispensará o visitante. Estamos em conferência e
não podemos ser interrompidos.
— Eu já dei essa ordem.
— Talvez tenha que repeti-la. E agora querem saber quem sou eu? O
Senhor Ninguém. Querem saber o que estou fazendo aqui?
Ele tirou do bolso um papel datilografado e dobrado, juntamente com
uma caneta, colocando-os sobre a mesa, à sua frente.
— Estou aqui para esperar, como todos estão também...Sr. Yanko,
acaba de beber um simples copo de suco de tomate. Lamento informá-lo de
que estava envenenado.
Houve um momento em que todos ficaram paralisados de surpresa,
seguida por um suspiro geral de horror.
Somente Basil Yanko ficou indiferente, uma expressão de desprezo no
rosto.
— Não acredito em você.
— Não estou pedindo que acredite — disse o fotógrafo calmamente.
— Estou simplesmente enunciando um fato. Muito em breve irá sentir-se
dormente e sonolento. Depois perderá todo o controle muscular. Vai então
dormir e em seguida morrerá. Não vai demorar muito. Mais quinze minutos e
estará inconsciente.
— Não pode fazer isso! — disse George Arlequim. — Você não pode
ficar sentado aí, vendo um homem morrer!
— Correção, Sr. Arlequim: nós todos vamos ficar vendo-o morrer!
— Não ficaremos!
Karl Kruger ergueu o punho imenso. O fotógrafo apontou-lhe a
máquina. O punho baixou.
— Mas por que Yanko? Por que não um de nós?
— Por isto...
O fotógrafo levantou o papel dobrado que estava sobre a mesa.
— Isto aqui é a lista dos mortos. Há seis nomes nela, com um relato de
como morreu cada um. Lerei os nomes: Sra. Basil Yanko, morta na explosão
de uma lancha; Srta. Ella Deane, atropelada por um carro; Srta. Valerie
Hallstrom, morta por um tiro; Sr. Frank Lemmitz, também alvejado; Srta.
Audrey Levy, seqüestrada em Londres, presumivelmente morta; Sra. George
Arlequim, alvejada...Todas essas mortes foram planejadas e financiadas por
Basil Yanko.
Basil Yanko ficou rígido na cadeira. Soltou uma risada estridente e sem
humor, sacudindo a cabeça.
— Oh, não! O mais velho dos truques! Organizou tudo isso, Sr.
Arlequim? Ou terá sido o Sr. Desmond?
— Nunca antes vi esse homem — declarou George Arlequim. —
Nunca troquei uma palavra sequer com ele, até esta noite.
— É verdade, Sr. Yanko. Valerie Hallstrom era uma colega minha.
Audrey Levy, incumbida de vigiar Frank Lemmitz em Londres, também...Faz
uma política implacável, Sr. Yanko. Nós também.
— Não pode provar absolutamente nada e sabe disso!
— Somente a polícia precisa provar as coisas. Nós não.
Como se sente? Um pouco dormente? Isto é normal...Não, Sr. Yanko!
Se tentar levantar-se, eu atirarei e isso será bastante doloroso...Até agora está
sendo mais privilegiado do que qualquer uma das pessoas que matou. Está
morrendo, mas está morrendo serenamente, sem dor, sem tumulto...Está
suando, Sr. Yanko. Isso significa que está procurando resistir. Não vai adiantar
coisa alguma. Relaxe.
— Que diabo está querendo de mim?
— Nada. Foi interessante o que aconteceu com sua esposa. Bernie
Koonig contou-nos tudo. O senhor estava em Nova York. Ele derramou
gasolina no arranque da lancha. Quando ela apertou o botão...BUM! Ficamos
admirados de não tê-lo liquidado, como fez com Frank Lemmitz.
Provavelmente era mais frouxo naquele tempo...ou menos experiente. Como
se sente? Flexione os dedos. As reações são um pouco lentas. Está resistindo
muito bem...
Ele empurrou o papel e a caneta por cima da mesa.
— Deveria ler isso, enquanto ainda pode focalizar...O veneno que
usamos é bastante curioso, senhores. Poderíamos extraí-lo a qualquer
momento dos próximos quinze minutos e ele se restabeleceria
completamente. Se não o fizermos, ele está liquidado. Como está vendo, Sr.
Yanko, o documento é em forma de confissão. Não gostaria de assiná-lo?
— Prefiro vê-lo no inferno!
— Isso não acontecerá, Sr. Yanko. Nós é que ficaremos aqui a assistir à
sua ida para lá.
— Pelo amor de Deus, homem! — disse Herbert Bach-mann, a voz
trêmula. — Isso é tortura!
— Eu sei, senhor.
O fotógrafo estava sendo o mais razoável possível.
— Mas o Sr. Yanko é impermeável ao sofrimento. Madame Arlequim
morreu com uma bala no ventre. O filho dela foi pendurado para fora de uma
janela do quinto andar...a mesma criança que viram aqui esta noite. Audrey
Levy provavelmente foi torturada antes de morrer...Contudo, se o Sr. Yanko
deseja acabar com o sofrimento para os senhores e para si mesmo, precisa
apenas assinar a confissão. Eu partirei então e ainda terão tempo de chamar-
lhe um médico.
Yanko ainda tinha forças para lutar. A voz estava en-grolada, mas a
zombaria era objetiva:
— Eu não lhe disse que era uma armadilha?
— E se não assinar, Sr. Yanko, a armadilha será fechada. Cairá por um
buraco sem fundo para lugar nenhum
— e não me importo qual seja a direção que tome. Sua voz está ficando
engrolada. Provavelmente está começando também a perder a sensibilidade
nas pontas dos dedos.
— Assine, homem! — disse Herbert Bachmann, já desesperado. — É
sua única chance!
— É sua vida — disse Karl Kruger. — Deixe-o fazer o que lhe
aprouver com o documento.
Sem a menor malícia, George Arlequim comentou:
— O que quer que eu diga, não me acreditará.
Houve um longo momento de silêncio, enquanto observávamos Basil
Yanko tentar controlar os músculos frouxos, segurar a caneta e assinar seu
nome ao pé da página.
— Devolva-me o documento, por favor — pediu o fotógrafo.
Ele dobrou-o cuidadosamente e guardou-o no bolso. Depois, disse:
— Sr. Yanko, poderá alegar que assinou essa confissão sob coação.
Portanto, não é ainda o suficiente para salvar-lhe a vida. Em torno desta mesa
estão quatro testemunhas. Excluo a mim mesmo, porque irei desaparecer
assim como apareci. Responda a uma pergunta com uma única palavra.
Planejou as mortes dessas pessoas? Sim ou não?
— Mas você disse...prometeu...
— Desta vez, manterei a promessa. Sim ou não?
— Sim.
— Obrigado, Sr. Yanko...Não! Não se mexam, senhores! Ele estará
morto dentro de cinco minutos!
— Mas você prometeu...
Eu não podia agüentar mais. Empurrei minha cadeira para trás,
levantei-me e caminhei na direção de Yanko. Ouvi o clique do disparador da
máquina fotográfica sendo puxado para trás e a voz do fotógrafo, cortante e
fria:
— Sente-se, Sr. Desmond.
A câmara estava apontada para meu peito. Voltei lentamente para a
cadeira e sentei-me. Basil Yanko estava afundando na cadeira, de língua para
fora, murmurando como um homem embriagado. Ficamos observando, num
silêncio impotente, até que ele desmaiou, caindo de cara no tampo da mesa.
— Pelo amor de Deus! — gritou Herbert Bachmann.
— Já tem o que queria! Agora deixe-nos chamar um médico!
O fotógrafo sorriu e sacudiu a cabeça.
— Ele não precisa de um médico. Basta que durma e tudo passará. Ele
tomou apenas uma variante moderna do velho Mickey Finn...um narcótico
misturado na bebida para dormir. A propósito, senhores, é melhor darem uma
olhada nisso, caso sejam chamados a testemunhar. Ele abriu a máquina
fotográfica e entregou-nos.
— Como podem ver, é uma câmara fotográfica comum. Nada tem de
letal. Podem querer dizê-lo a Yanko, quando ele acordar.
Herbert Bachmann olhou de um para outro, chocado e furioso.
— Quem foi que organizou esse...esse horror?
— Eu — disse o fotógrafo. — Não é nada agradável de se assistir, não
acha? Mas é um método bastante normal, se bem que um pouco tosco, de
interrogatório. Ensinam-no nas escolas de polícia e nas forças armadas. Paga
por isso, Sr. Bachmann. E também subvenciona as pessoas que o ensinam a
seus aliados, alguns dos quais nem precisam de lições.
Ele tirou a confissão assinada do bolso e entregou-a a George
Arlequim.
— Isto deve ir para as mãos de Milo Frohm.
— Obrigado. Eu a entregarei. Diga a Aaron que entrarei em contato
com ele.
— Quem é Aaron? — indagou Herbert Bachmann.
— Ninguém de quem jamais tenha ouvido falar, senhor — disse o
fotógrafo. — Shalom!
Karl Kruger pegou a mão flácida de Yanko, sentiu o pulso e depois
tornou a deixá-la cair em cima da mesa, com um baque surdo.
— O que vão fazer com ele?
— Meus rapazes irão levá-lo lá para baixo. O motorista dele o levará
para casa e o porá na cama. Gostaria de poder estar presente quando ele
acordasse, a fim de conversar com ele.
Todo mundo estava fazendo perguntas, mas eu senti que era meu o
direito de fazer a última:
— Já tem o dinheiro dele, George. Tem uma confissão, que não
resistirá como prova nos tribunais, mas irá desacreditá-lo para sempre. O que
lhe resta para dizer a ele?
— Ele morreu esta noite — disse George Arlequim sombriamente. —
Sempre tive curiosidade de saber o que Lázaro deve ter sentido ao sair de seu
túmulo.
— Pois eu posso dizer-lhe o que ele sentiu, George. Olhou o que as
pessoas estavam fazendo umas às outras e implorou para voltar.
Foi um grito de desespero, uma expressão de extrema desolação. Muito
tempo depois de Herbert e Karl terem partido e de Yanko ter sido removido,
as palavras ainda pairavam na sala como a blasfêmia final, para a qual não há
perdão. O círculo de minha própria condenação estava completo. Eu insistira
na violência. Eu cooperara para a violência. Eu vira a vida sendo destruída. E
terminara por negar a tudo, como uma obscenidade.
Quando olhei para o relógio, esperava descobrir que o tempo tinha
parado. Fiquei chocado ao verificar que ainda eram sete horas da noite, que
Suzanne estava batendo à máquina, que George Arlequim estava contando
histórias de fadas a uma criança de olhos arregalados, que as pessoas estavam
voltando para casa para jantar. Eu não podia suportar a espera. Saí da sala,
passei pelos agentes de segurança e atravessei a cidade às cegas, para ir juntar-
me a outras almas penadas no bar de Gully Gordon.
Podia ter-se passado uma hora, talvez duas, era impossível dizer,
porque o bar se encontrava quase vazio, Gully estava jantando fora e eu me
achava isolado a um canto, mórbido, quando George Arlequim entrou,
acompanhado por Suzanne. Sentaram-se, um de cada lado, de forma que eu
não podia escapar.
Suzanne segurou minha mão frouxa e disse:
— George quer falar com você, chéri.
— O que há para dizer? Está tudo acabado. Vamos tratar de esquecer.
— Precisamos também de perdão, chéri.
— Não o merecemos, mulher. Somos tão assassinos quanto Basil
Yanko...Não você, mas George e eu. Não é verdade, George?
— Quanto a mim, sim. Mas não você, Paul. Você tentou impedir-me,
mas não poderia consegui-lo. E continuou tentando até o último momento.
— O que é você agora, George, um padre confessor? — Não. Estou
tentando ser um penitente. Não é tão fácil como parece.
— E esperava que fosse fácil?
— Possível, pelo menos.
— George, esgotei todas as minhas absolvições e indulgências. Não as
tenho nem mesmo para mim.
— Pois eu tenho — disse Suzanne gravemente. — Amo a ambos...Este
é o último passo, Paul. Dê-o por mim.
— E quanto mais você vai querer?
— Tudo, Paul. É isso o que significa o amor.
— Ó Deus...!
George Arlequim ficou sentado um longo tempo a olhar para o copo.
Depois, lentamente, penosamente, começou a fazer sua confissão.
— Eu queria vê-lo morto...Queria vê-lo despojado e trêmulo,
esperando pela execução. Falei com Aaron Bogdanovich. Ele ofereceu-me
uma dúzia de alternativas. Nunca tinha imaginado quantas maneiras simples e
engenhosas existiam para se matar um homem: uma baforada de fumaça no
rosto enquanto ele desce a escada, a picada de uma caneta envenenada, uma
bomba no carro, uma carta que lhe explodirá nas mãos, uma bala de um
atirador de tocaia, uma cultura de vírus no drinque...senti prazer em examiná-
las, em imaginar as seqüências, como num jogo de xadrez. Esse é o símbolo, é
claro: o jogo de xadrez. As peças são inanimadas, simples pedaços de madeira,
metal ou marfim. Possuem nomes, mas não têm vida, nem alma...Pode-se
analisar seu destino como um exercício intelectual. Os argumentos
apresentados tinham muito sentido, e Aaron Bogdanovich esmiuçou cada um.
A lei não pode reparar a injustiça; portanto, tem-se que trabalhar fora da lei. O
sistema político está além de qualquer reforma; portanto, é preciso destruí-lo
antes de se poder construir outro melhor. Não se pode alcançar o ideal;
portanto, é preciso contentar-se com o conveniente. O torturador é
triunfante; portanto, é preciso eliminá-lo. O assaltante ri sobre seus despojos;
portanto, deve-se sufocá-lo com o ouro que roubou. A democracia é uma
fraude, porque o povo é logrado em seu voto e enganado por políticas que
não compreende. Todos os homens são traidores e todas as mulheres são
prostitutas, contanto que se chegue ao preço certo...Não há respostas para
esses argumentos, exceto um ato de fé, que eu não mais podia fazer...É
estranho! Você, Suzy, e você, Paul, fizeram-no por mim. Vocês acreditaram
que eu era melhor do que eu desejava ser. Não puderam convencer-me, pois
há muito estavam na minha intimidade. Pude enganá-los e enganar a mim
mesmo, construir ilusões...Mas não pude enganar a Aaron Bogdanovich e ele
não permitiria que eu me enganasse a mim mesmo...Chegou o dia em que a
decisão tinha que ser tomada. Fui vê-lo na loja de flores. Ele estava brincando
com um gatinho desgarrado, que passava pela rua e resolvera entrar na loja.
Pediu-me que declarasse exatamente o que queria. Eu disse-lhe: meu dinheiro
de volta e a vida de Yanko pela vida de Julie. Ele não contestou a decisão.
Simplesmente quebrou o pescoço do gatinho e colocou o corpo sobre a mesa,
na minha frente. Depois disse: "É isto o que está querendo fazer, Sr.
Arlequim. É capaz?..." Eu soube que não era. Mal podia tocar no corpo...
— Mas pôde assistir a todas as agonias de um homem morrendo...
— Pude. E é a vergonha maior. Pude e o fiz, e pensei estar vendo a
justiça ser feita.
— Ainda acredita nisso?
— Não. Vi o terror sendo esmagado pelo terror...Bem, isso é tudo!
Nada mudou. Mas pensei que você tinha o direito de saber, Paul.
Ele tentou levantar-se, mas estava preso no reservado apinhado.
Segurei-lhe o braço e o retive.
— Fique, George...Peço desculpas. Eu também não me sinto
orgulhoso. Bogdanovich julgou-me também. Disse que eu queria a
respeitabilidade sem virtude, a posse sem a ameaça, o prazer sem
pagamento...Um cidadão comum, conivente com todos os horrores do
mundo, contanto que isso não lhe perturbe o descanso, nem o' jantar. Não
formamos uma bela dupla?
— Pois tenho algo a dizer para vocês dois — disse Suzanne
gravemente. — Tentam prescindir da lei e, no entanto, ficam sentados aqui,
humilhados pelo julgamento de um assassino. Acho que estão precisando de
uma mudança de companhia...
E paramos nesse comentário amargo, porque Gully Gordon voltou,
deu-nos as boas-vindas e indagou qual a música que desejaríamos ouvir.

As próximas quarenta e oito horas foram um limbo de não-


acontecimentos. Suzanne estava ocupada, pondo em ordem os negócios de
Arlequim antes de ele embarcar para a Europa. Eu vagueava pelo apartamento
esbarrando a todo momento em Takeshi, pegando livros e largando-os depois
de ler apenas uma página, atordoando-me com planos e projetos para um
futuro que era agora tão vago quanto o tempo que fizera no ano anterior. Lia
os jornais e admirava-me por não encontrar nenhuma notícia sobre a prisão
de Yanko. Tocava música e não ouvia um único acorde dela. Eu era como o
rapaz do conto de fadas, que perdera a alma e não podia viver feliz enquanto
não a encontrasse.
Eu perdera mais do que uma sombra. Perdera pequena parte de mim
mesmo que permanecera intacta ao longo de muitos anos de andanças e de
batalhas inconclusas. Perdera um amigo, um dos poucos a que eu me
entregara com uma confiança total. Encontrara uma mulher para amar, mas
liquidara o respeito, sem o qual o amor não pode durar. E agora eu tinha que
enfrentar o ordálio de um jantar oferecido por um homem a quem não
poderia magoar por nada neste mundo, para comemorar uma promessa que
eu duvidava de que algum dia viesse a se concretizar. Por três vezes peguei o
telefone para cancelar o jantar. Mas em todas elas perdi a coragem e outro
fragmento do respeito por mim mesmo. Suzanne mostrava-se amorosa e
solícita, mas, mesmo quando respondia, eu sentia que estava representando o
falso apaixonado, de mãos e coração vazios, receoso demais para confessá-lo.
Não era apenas meu mundo particular que desmoronara. O mundo lá
fora era também hostil. Nunca mais poderia enfrentá-lo inocente e
desarmado. Para sempre eu teria que carregar os grilhões do céptico, a adaga e
as pistolas do viajante cauteloso. Deveria morder cada moeda antes de aceitá-
la, obrigar cada homem a seu contrato com uma ameaça, não confiar em
mulher nenhuma e olhar duas vezes para o espelho para ter certeza de que
ainda era eu mesmo. E foi nesse estado de espírito adequado para um homem
de minha idade, mas impróprio para alguém que ia comparecer à sua festa de
esponsais — que parti com Suzanne para o jantar em companhia de Francis
Xavier Mendoza e George Arlequim.
Nossa reunião foi num desses velhos cantos de Nova York ainda
preservados da investida dos bárbaros — um porão da First Avenue, com
prateleiras do chão ao teto repletas de vinhos selecionados, com uma mesa
grande de refeições, servido por um único chef, dois garçons e um encarregado
dos vinhos, todos dedicados à proposição de que o comer e beber é um rito
sagrado, o primeiro e o último de nossa peregrinação mortal. Arlequim já
estava presente, ouvindo Mendoza, reverente como um discípulo com seu
guru.
Mendoza recebeu-nos como mártires salvos dos leões. Beijou Suzanne
nas duas faces, apertou-me a mão efusivamente, olhou-me de cima a baixo e
anunciou:
— Nada mau! Pelo menos você sobreviveu! Arlequim já me contou a
história. Admiro-me de que ambos ainda estejam inteiros. Agora deixe-me
mostrar-lhes o que preparamos ...Para começar, um canapé de roquefort e
castanhas, acompanhado de meu Palomino e por uma conversa tranqüila.
Suzanne, querida, eu sei que eles conseguiram levá-la à lona! Já abriu minha
garrafa?
— Ainda não, Francis. Eles ainda não estão preparados para ela.
— Ay de mi! E eu que pensava que eles fossem homens civilizados. Mas
não se preocupe. Eu e você iremos domá-los. George, eu sei que Paul é um
visigodo, mas esperava mais de você.
— Eu sou um tolo — disse George Arlequim. — E leva tempo para
desaprender.
— Tempo e vinho: temos as duas coisas em quantidade. Agora, vou
falar sobre a entrada: uma mousse de salmão com um Pinot, muito seco, uma
safra da qual muito me orgulho...George, você nunca pensou que o islamismo
é uma fé muito sábia? Suas promessas são as que compreendemos, águas
cristalinas, flores, vinho e mulheres generosas...Nós, cristãos, prometemos
harpas, que ninguém pode tocar, e uma visão de beatitude, que ninguém
consegue compreender.
— Mas ansiamos por isso, Francis. O conhecimento mais simples, o
prazer mais simples...
— Ah! Agora você está compreendendo, George! Simplicidade...
harmonia. Esse é o segredo que levamos a vida inteira para aprender.
— E sempre deixamos de compreender.
— Suzanne, por que as mulheres são mais simples que os homens?
— São mesmo, Francis?
— Em toda parte e em todos os tempos. Nós, homens, somos
estúpidos e complicados. Acordamos no seio de uma mulher. Morremos, se
temos sorte, num abraço semelhante. Caminhamos um milhão de quilômetros
para voltar ao ponto de partida. Paul, o que você me diz?
— É um excelente Palomino, Francis.
— Ótimo. Não há melhor, até você conseguir o Jerez de Ia Frontera —
e até lá é difícil encontrá-lo...Em seguida, meus amigos, teremos um filet de
beuf en croüte com um sauce Pérígueux, acompanhado pelo meu Cabernet de
65...um ano maravilhoso, sem geadas, a chuva certa, o sonho de um fabricante
de vinhos! Vamos bebê-lo agora, oito anos depois, um tempo certo para todos
nós. Meus amigos, não importa o que tenha acontecido, não importa o que
possa acontecer amanhã, somos felizes — felizes por sabermos, felizes por
apreciarmos, felizes por podermos agradecer. Gostariam de se juntar a mim
numa ação de graças?
Levantamo-nos, demo-nos as mãos, baixamos as cabeças, enquanto ele
dizia:
— Nós comemos enquanto outros estão famintos. Nós rimos
enquanto outros estão tristes. Por tudo o que temos, nós somos gratos.
Permita-nos sempre lembrar o que os outros não têm, para que procuremos
reparar isso sempre que nos for possível. Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Amém!
Ele indicou-nos a disposição certa que queria que tivéssemos à mesa:
Suzanne à sua direita, Arlequim à esquerda, eu à sua frente. Depois disse:
— Nunca sei qual a ação de graças que devo dizer. Jamais entendi por
que o Todo-Poderoso é tão desigual em suas dádivas.
— Talvez Ele seja cego — disse eu, irreverentemente.
— Ou talvez nós é que sejamos — disse Suzanne.
— Ou talvez estejamos usando as medidas erradas — disse George
Arlequim.
— É o mais provável — disse Mendoza. — Bom apetite, meus amigos!
Comemos, bebemos, falamos de frivolidades, felizes por um momento,
na presença de um homem bom, que era como a sombra de uma imensa
árvore numa terra crestada. Contamos piadas tolas, rimos como há muito nos
esquecêramos de rir. E então, cedo demais para mim, chegou o momento dos
brindes, os quais, declarou Francis Xavier Mendoza, deviam ser feitos não
com o vinho de um país novo e sim com o vinho de um país antigo, um Porto
velho, suave, a cor dos melhores rubis.
Éramos um pequeno grupo, mas ele se levantou para a cerimônia. Para
George Arlequim, o poliglota, ele falou primeiro em espanhol, depois em
francês para Suzanne e finalmente para mim em inglês:
— Caros amigos! Este é um momento de promessa, de compromisso,
o compromisso assumido entre Suzanne e Paul, que aprenderam tarde a amar-
se um ao outro, entre todos nós que tanto precisamos uns dos outros. Se eu
não pudesse partilhar este vinho com vocês, seria o homem mais solitário do
mundo e o vinho morreria, sem ser provado, dentro de sua garrafa. Se não
puderem partilhar uns com os outros a dor que sofreram e o perdão de que
todos necessitam, então também viverão solitários e o vinho da vida lhes será
para sempre amargo. Eu os abençoei quando chegaram. Peço que me
abençoem quando se forem, amigos, juntos...
— Que assim seja — disse Suzanne.
Eu não tinha palavras para dizer. George Arlequim ficou sentado em
silêncio por um longo tempo e então se levantou lentamente. Ele também
falou primeiro em espanhol e em seguida em inglês:
— Francis, fomos honrados à sua mesa e abençoados com sua
companhia. Nós lhe agradecemos, todos nós. Agradeço a meus amigos, que
ficaram comigo numa hora sombria e partilharam minha dor, viram-me
praticar o mal sob o sol e mesmo assim ainda continuaram a meu lado e me
perdoaram. Com sua permissão, gostaria de oferecer um presente a Paul e a
Suzanne. Ofereço-o com o lema de meu ancestral que era um bufão: "Se
vocês rirem, eu comerei. Se vocês chorarem, que Deus nos ajude a todos!"
Tirou um envelope do bolso e entregou-mo, por cima da mesa. Segurei-
o, avaliei-o, rezei para que não fosse o que parecia: um título de propriedade,
uma dotação financeira. Se ele tentasse comprar-me agora, eu o odiaria por
toda a eternidade.
— Abra-o, Paul!
Francis Xavier Mendoza entregou-me a faca de queijo. Cortei o
envelope e entreguei-o a Suzanne. Ela olhou-o por um momento e então
despejou o conteúdo em seu prato. Era um segundo envelope, cheio de
pedaços de papel, rasgados até parecerem quase confete. Olhamos para
Arlequim. E pela primeira vez, num milênio, reencontramos seu sorriso
zombeteiro. Alguém tinha que formular a pergunta. E esse alguém tinha que
ser Paul Desmond.
— O que é isso, George?
— Não é capaz de adivinhar?
— Eu adivinho — disse Suzanne.
Disse ao leitor, no começo, que era um pateta rematado. Esquecera por
completo que George Arlequim era um palhaço e ilusionista. Não entendi a
piada senão no momento em que Suzanne empilhou os pedaços de papel num
prato e Francis Xavier Mendoza despejou em cima seu melhor conhaque,
ateando fogo em seguida e transformando em cinzas a confissão de Basil
Yanko.
O AUTOR E SUA OBRA

Morris West é um profeta? A leitura de alguns de seus títulos mais


famosos faz crer que, se não o é, certamente possui certos poderes
premonitórios. Em 1963, publicou o romance "As sandálias do pescador" —
lançado pelo Círculo do Livro —, onde falava de um arcebispo de país
socialista que se tornava cardeal e depois papa. Anos mais tarde, João Paulo II
tornava realidade essa trama ficcional. Em 1965, escreveu "O embaixador",
onde descrevia o crescente envolvimento dos Estados Unidos no Vietnam —
e os fatos comprovaram mais uma vez o que West previra. Em "A Torre de
Babel", referia-se a uma guerra árabe-israelense, antes que ela tivesse
acontecido.
O próprio autor se curva à evidência: "É muito perigoso ser classificado
de profeta. Falo com conhecimento de causa. Há muito, apreensivo, venho
usando o rótulo, e eu e minha família temos nos exposto a riscos por causa
disso. Não estou assumindo uma atitude. Estou só anunciando um fato, que
provoca indagações das mais complexas". Mas para ele o poder da
premonição parte da intuição e se junta a outros fatores, como o passado
tribal e pessoal acumulado no subconsciente, até sua formulação final:
"Acostumei-me a responder às perguntas a esse respeito (sobre a
profecia), descrevendo-a como simples extensão do processo intuitivo.
Descoberta uma parte do mosaico, pode-se projetar o resto com relativa
precisão, pois o número de opções é limitado. Mas sempre tive certeza de que
no caso há algo mais do que lógica".
Profeta ou não, a verdade é que esse australiano de Melbourne, onde
nasceu em 26 de abril de 1916, tem construído, a exemplo de George
Bernanos e Graham Greene, seus melhores romances ao redor da temática
católica, dos conflitos íntimos de consciência e da problemática sacerdotal.
Preocupações de quem passou doze anos de sua vida num convento,
procurando abraçar o ideal religioso, Isso não aconteceu — ele afirmaria que
o tempo passado no convento foi o "suficiente para conhecer alguns dos
métodos usados na lavagem cerebral" —, e então ele se dedicou ao magistério,
como professor de línguas modernas e matemática na Nova Gales do Sul e na
Tasmânia.
Na Segunda Guerra Mundial, era soldado do exército australiano. Mas
não apenas nas armas pensava o soldado West, pensava também numa espécie
de catarse que publicaria sob pseudônimo e que posteriormente renegaria,
dada a sua concepção extraliterária. Moon in my pocket discorre sobre sua
experiência monástica, e a temática religiosa não mais se separaria de sua
carreira como escritor.
Após a guerra, Morris West foi publicitário, autor de novelas
radiofônicas, jornalista da BBC e correspondente do jornal London Daily Mail
no Vaticano. Essa última função teria reflexos em alguns de seus romances
mais bem-sucedidos, como "O advogado do Diabo", "As sandálias do
pescador" e o recente "Os fantoches de Deus", onde se preocupa com a
exacerbação dos sentimentos no mundo atual, com o sopro de fanatismo que
varre o Islã.
Morris West tornou-se escritor profissional depois dos quarenta anos,
quando seu inegável êxito literário, que gerou livros como "O navegante", "A
segunda vitória", "Proteu" — já publicados pelo Círculo do Livro —, "O
herege" e "Os palhaços de Deus", traduziu-se em milhares de dólares, o que
permitiu ao autor a realização de um de seus sonhos, viajar. De cada viagem,
West tira um novo livro, como "O embaixador" (Vietnam), "A Torre de
Babel" (Oriente Médio) e "O verão do lobo vermelho" (Irlanda).
Recentemente, depois de tantas viagens e livros, ele se confessou
cansado e pronto para retornar às origens, voltar à Austrália, onde espera
morrer bem velho.
Este livro é distribuído GRATUITAMENTE pela
equipe DIGITAL SOURCE e VICIADOS EM LIVROS
com a intenção de facilitar o acesso ao
conhecimento a quem não pode pagar e
também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de apreciar mais uma
manifestação do pensamento humano.

Se você tirar algum proveito desta obra,


considere seriamente a possibilidade de adquirir
o original.

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