Convém que façamos aqui uma reflexão sobre esse personagem
presente nos dois primeiros capítulos de Jó. Satanás (Satã em hebraico) tem uma origem nos tribunais que se reuniam nas portas das aldeias. A palavra significa “promotor”, ou seja, aquele membro do tribunal encarregado de acusar o réu. Posteriormente passou a significar adversário, acusador, inimigo. É nesse sentido que ele aparece diante de Deus par acusar Jó e fazer-lhe mal. Sua figura é semelhante à de um promotor público ou à de um procurador na corte de Deus. Desde as origens de Israel até o exílio babilônico, a teologia israelita não era dualista, isto é, que atribuía o bem a Deus e o mal ao demônio. Para Israel, tudo vinha de Deus, tanto o bem quanto o mal. A doutrina da retribuição o confirma, como nós vimos. Podemos perceber isso em muitos textos bíblicos, como em Is 45,7 e Am 3,6! Também em 1Sm 16, 14-23; 2Sm 24, 15-16; 1Rs 22,22, entre outros... Aos poucos, porém, Israel vai incorporando em sua teologia crenças de outros povos. É o caso do dualismo persa, para quem os males vinham dos demônios e as coisas boas procediam das divindades. O dualismo entrou em Israel e também em todo o Antigo Oriente de cultura semita a partir da dominação persa, quando foi amplamente difundida a crença dos persas em demônios. A cultura grega e todas as culturas indoeuropéias sempre foram dualistas. Na Pérsia, havia uma demonologia bem desenvolvida. Segundo essa crença, todos os maleféticios, desde males psíquicos e mentais até as doenças, as tentações e as desgraças, eram atribuídas a demônios. Era uma infinidade de demônios ou espíritos maus. Acreditava- se, inclusive, que havia um chefe desse exército demoníaco. Este chefe era uma figura suprema do mal como a divindade suprema persa, Ahura Mazda, era a figura suprema do bem. Um exemplo que deixa bem claro que a crença em demônio em Israel foi introduzida tardiamente é o relato a respeito do recenseamento feito por rei Davi. 2Sm 24,1, um texto mais antigo, diz que foi YHWH quem mandou que o rei fizesse o censo. Quando a mesma história foi escrita novamente na OHC, durante o século 4 a.C., o censo, considerado pelo povo um mal que visava à tributação. Foi atribuído a uma ordem de Satanás (1Cr 21,1). Desse modo, YHWH foi substituído por Satanás no texto. Em outras palavras, o mal começa a ser atribuído a Satanás. Adotar essas categorias dualistas ajudava Israel resolver contradições contidas em sua maneira de conceber e formular a fé. Como compreender que Deus pudesse ser, ao mesmo tempo, o princípio do bem e do mal? Ficava mais fácil imaginar que responsabilidade pelo mal era de outro princípio, “adversário” de Deus, embora, no final das contas, submetido a seu poder e a seus propósitos de salvação.
BIBLIOGRAFIA:
Uma Introdução à Bíblia: Exílio Babilônico e Dominação Persa, Ildo Bohn Gass, Paulus, págs 171-172