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resenha

Alberto Nepomuceno e a canção brasileira


Mário Videira

D
urante muito tempo a figura do composi- maneira Nepomuceno “valeu-se da musicalidade
tor cearense Alberto Nepomuceno (1864- inerente ao idioma para flexionar a linguagem mu-
1920) foi considerada predominantemente sical europeia e, assim, criar música brasileira”.
sob o prisma de uma certa ideologia do que deve- O livro está dividido em três partes: a primeira
ria ser a música brasileira. Dessa forma, tal como explora as relações entre música e texto desde o
ocorrera com outros compositores do roman- Lied romântico, passando pela mélodie francesa
tismo musical brasileiro – como Carlos Gomes, até as origens da canção brasileira, com as modi-
Henrique Oswald e Alexandre Levy –, muito da nhas do final do século XVIII. Além disso, o autor
bibliografia tradicional sobre Nepomuceno foi realiza um estudo sobre a formação artística e in-
contaminada por essa perspectiva, segundo a qual telectual de Nepomuceno, fortemente marcada
o valor de determinadas obras seria diretamente pelo seu contato com a figura de Tobias Barreto e
Canto da língua: Alberto proporcional às preocupações nacionalistas de a Escola de Recife. A segunda parte do livro anali-
Nepomuceno e a invenção seu autor. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo definia sa a primeira canção publicada por Nepomuceno
da canção brasileira
Dante Pignatari
Nepomuceno como “artista de transição entre o em 1887, bem como aquelas produzidas durante
Edusp espírito do século XIX na música brasileira, que seus anos de estudo na Europa. Chama a aten-
464 páginas | R$ 64,00 era o da servidão à Europa, e o do século XX, que ção a análise de Oraison, sobre texto de Maurice
era o da libertação”; Vasco Mariz, por sua vez, Maeterlinck, que demonstra a modernidade de
em sua célebre História da música no Brasil, afir- Nepomuceno, que estava alinhado ao que havia
mava que Nepomuceno “não chegou a ser mo- de mais avançado nas vanguardas europeias da
derno, apesar de haver falecido em 1920”, e que época. Como bem ressaltou o compositor Ro-
grande parte de seu valor estava em “ter aberto dolfo Coelho de Souza, “a contribuição efetiva
o caminho para Villa-Lobos”, de modo que, sem de Nepomuceno foi ter incorporado organica-
ele, “talvez ficasse retardada a aceitação da cor- mente à música brasileira as novas linguagens
rente nacionalista”. da vanguarda europeia: o abundante cromatismo
Desde meados dos anos 1990, uma nova gera- pós-wagneriano, o gosto francês pelo modalismo
ção de musicólogos tem contribuído decisiva- exótico, a tonalidade suspensa ultrarromântica, as
mente para a revisão da figura de Nepomuceno escalas simétricas de tons inteiros e pentatônicas”.
como um mero “precursor” do nacionalismo Por fim, a terceira parte do livro dedica-se à
musical. Trabalhos como os de Luiz Guilherme análise minuciosa das canções brasileiras do au-
Goldberg, Avelino Romero Pereira e João Vidal, tor. Com escrita elegante e clara, Pignatari de-
dentre outros, são paradigmáticos nesse sentido. monstra que o estilo de Nepomuceno se cons-
É nessa nova leva de estudos que se insere o titui “mediante a incorporação e a mistura de
livro Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a ingredientes muito diversos oriundos da musi-
invenção da canção brasileira, de Dante Pignata- calidade da língua portuguesa falada e cantada
ri. Resultado de uma pesquisa de doutoramento no Brasil, da música folclórica tradicional, da
defendida em 2009 na Faculdade de Filosofia, música popular urbana e das práticas europeias
Letras e Ciências Humanas da Universidade de contemporâneas”. Corrigindo as visões tradicio-
São Paulo (FFLCH-USP), o autor se concentra nais sobre a música do autor, o livro Canto da lín-
no estudo das canções de Alberto Nepomuceno. gua constitui-se numa importante contribuição
Cabe lembrar que já em 2004 Pignatari publicou aos estudos sobre o compositor Alberto Nepo-
Canções para voz e piano (Edusp), de Nepomuce- muceno, mostrando que sua grandeza consiste
no, primeira edição moderna dessas partituras. “em ter fincado as raízes da música brasileira na
Gênero de destaque no conjunto das obras do vanguarda europeia, de um lado, e, de outro, na
artista cearense, que compôs cerca de 70 canções musicalidade da língua portuguesa”.
para canto e piano ao longo de toda a sua vida, es-
eduardo cesar

sas obras refletem de maneira privilegiada as trans- Mário Videira é professor de piano, estética musical e história
formações estilísticas do compositor. Ao longo de da ópera no Departamento de Música da USP. Publicou o livro
O romantismo e o belo musical (Editora Unesp, 2006). É coordenador
suas análises, Pignatari procura demonstrar de que do Programa de Pós-graduação em Música da ECA-USP.

96 | abril DE 2016

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