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A Toponimia Como Construcao Historico-Cu PDF
A Toponimia Como Construcao Historico-Cu PDF
Jörn Seemann
Professor do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri (URCA).
Resumo
A toponímia é definida como estudo etimológico dos nomes de
lugares. A análise dos topônimos, portanto, costuma se restringir
aos aspectos lingüísticos e históricos da sua origem sem levar em
conta que a denominação dos lugares é, de fato, um processo
político-cultural que merece uma abordagem além do nome
atribuído a uma localidade. Sob uma perspectiva histórica na
Geografia Cultural, sugerem-se diferentes focos de pesquisa para o
estudo da toponímia que serão ilustrados através de exemplos
concretos: 1) A análise dos nomes dos lugares, suas diferentes
origens (por exemplo, tupi, português) e sua distribuição espacial,
levando-se em conta as diferentes escalas de análise desde locais
isolados como fazendas, municípios, regiões ou estados; 2) A
pesquisa histórica contextualizada dos nomes dos lugares para
revelar a dinâmica da sua denominação e renominação no tempo e
no espaço e os motivos e agentes político-culturais atrás desse
processo (o exemplo da política territorial de Getúlio Vargas); 3) A
correlação entre a toponímia e o mapa como legitimador da
validade dos nomes; 4) A interpretação do significado dos nomes
dos lugares no processo de construir identidades e territorialidades
em face do simbolismo e da iconografia do lugar. A tarefa da
Geografia Cultural seria investigar, comparar e interpretar o
significado dos nomes dos lugares e as diferentes versões e visões
da sua topogênese para contribuir para uma melhor compreensão
da relação entre espaço e cultura no passado e no presente.
Abstract
Toponymy is defined as the etymological study of place names.
However, the analysis of toponyms used to be confined to
linguistical and historical aspects of their origin, without taking into
account that the denomination of places is, in fact, a political and
cultural process that deserves an approach beyond the names
given to a locale. Under a historical perspective in Cultural
Geography, different research lines for toponymy studies can be
proposed: 1) the analysis of place names, their different origins and
their spatial distribution in respect to the different scales of analysis,
from isolated places as farms to cities, counties, regions or states; 2)
the research within the historical context of place names in order to
reveal the dynamics of its naming and renaming in time and space
and the reasons as well as political and cultural agents behind this
process (the example of the territorial policies of the Vargas
government between 1930-1945); 3) the correlation between the
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toponymy and the map as a legitimizer of name validities; 4) the
interpretation of the meaning of place names in the process of
identity and territory shaping in respect to symbolism and place
iconography. The task for cultural geographers should be the
investigation, comparison and interpretation of the meanings of
place names and the different versions and visions of their
topogenesis in order to contribute to a better understanding of the
relation between space and culture in the past and in the present.
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Introdução
Paul Carter (apud Jackson, 1992, p.168) considera o batismo dos lugares
como “fazer história espacial” que começa e termina com a língua. Pelo ato de
nomear, o espaço é simbolicamente transformado em lugar, que, por sua vez, é um
espaço com história. Para ilustrar essas reflexões, Carter cita o exemplo da
colonização da Austrália:
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exploradores, gradualmente habitados por uma rede de
nomes; a faixa litorânea da Austrália [...] foi
progressivamente sulcada e marcada com limites, suas
planícies dos estuários e dos rios demarcadas para
cidades. Os descobridores, exploradores e colonizadores
[...] estavam fazendo história espacial. Eles estavam
escolhendo direções, empregando nomes, imaginando
destinos, habitando o país” (apud Jackson, 1992, p.168).
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divisão da toponímia em três seções: 1) lingüística toponímica, 2) gramática
toponímica e 3) proveniência. O primeiro campo trata dos nomes de lugares
classificados por línguas, levando-se em conta que “os nomes de lugar, por isso
que fazem parte do léxico português, se sujeitam às mesmas leis que as palavras
da língua comum” (p.82). No segundo campo, o da gramática toponímica, objetiva-
se uma análise dos modos de formação dos nomes de lugares. Enquanto essas
primeiras duas áreas se ocupam com os aspectos formais dos topônimos, o
terceiro campo, o estudo da proveniência toponímica, ganha um caráter mais
histórico (e geográfico) ao analisar os topônimos “segundo as causas que os
originaram, que é o aspecto sob que um topônimo tem interessado mais aos que os
pretendem explicar, desde o povo aos eruditos” (p.73).
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de ruas da antiga Alemanha Oriental, que antigamente tinham referências a datas
comemorativas e heróis socialistas, foram “neutralizados” e substituídos por outros
nomes de acordo com o sistema capitalista e inseridos no discurso de uma
identidade nacional alemã que é articulada em termos de uma “canonização de
uma herança histórico-democrática” (Azaryahu, 1997). Nesse sentido, os nomes
de ruas fazem parte de um processo de criar “novas paisagens públicas
iconográficas” (Light, 2004), e o estudo da sua dinâmica poderia revelar como os
países pós-socialistas estão redefinindo identidades e passados nacionais.
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Topônimos e sua distribuição espacial: os municípios do Ceará
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Figura 1. Proveniência dos nomes atuais dos municípios do Ceará
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descobertas e objeto de numerosa afluência de pessoas de municípios vizinhos ou
de mais distância na esperança de cura para suas enfermidades” (Martins Filho e
Girão, 1966, p.285). Este último exemplo mostra que as prefeituras também
pensam em uma representação positiva do seu município, começando com o
próprio nome. Outros exemplos de como o nome pode transmitir uma imagem
positiva do lugar são Várzea Alegre e Irauçuba (=amizade, em tupi-guarani), sendo
este último um “nome muito bem aplicado por serem os habitantes da povoação
dotados de bons sentimentos, alheios a intrigas, progressistas e amigos da paz”
(p.308) - virtudes que quase todos os povoados reclamam ser as suas!
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Depois do golpe de 1937, Vargas adotou uma tática mais direta: em fins de
novembro de 1937, o ditador realizou uma cerimônia pública, na qual chegou a
mandar queimar as tradicionais bandeiras dos estados.
O caso brasileiro não é o único dessa época. Tort (2003), por exemplo,
analisou as mudanças dos nomes dos municípios e seu caráter transitório na
Catalunha durante a revolução e a guerra civil na Espanha (1936-1939), chegando
à conclusão de que 11,6 % dos nomes tradicionais tinham sido substituídos por
topônimos que refletiam, de algum modo, as “inquietudes reformadoras da nova
época”.
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nomes indígenas que deveriam pertencer à língua dos índios que habitavam a
região e “ter significação adequada, ligada a qualquer circunstância local, tal como
sabiam fazer excelentemente os ameríndios”. Ademais, os vocábulos novos
preferivelmente deveriam ser dissílabas, evitando-se “expressões chocantemente
cacofônicas” (Pompeu Sobrinho, 1944, p.30).
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designar um acidente geográfico ou uma comunidade.
Nesse particular, a impropriedade vem se constituindo em
tradição onde impera o mau gosto e a indiferença dos
toponimistas que não conseguiram superar o tempo de
renovação ético-social do setor” (Barbosa, p.152; grifo meu).
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Tabela 2: Topogênese do município cearense Santana do Cariri
DISTRITO TOPOGÊNESE
Araporanga O nome antigo do distrito era Boa Saúde, que foi tupinizado
para Araporanga na Era Getúlio Vargas. O nome popular é Estiva,
porque havia uma ponte de madeira e pau (= estiva) que servia de
passagem para as pessoas que vinham do Piauí e Maranhão em
direção a Crato (distrito desde 1951).
Pontal da Antes conhecido por Sítio Cancão, ponto mais alto do município.
Santa Cruz Segundo populares, uma capela foi construída e uma cruz
erguida no alto da serra para afugentar o demônio e outros
“mal-assombros” nas zonas limítrofes com Pernambuco.
Alguns dizem que uma espécie de vulcão vomitava chamas
do alto da serra (Cidrão, 2001) (distrito desde 1991).
Toponímia e mapas
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não era apenas mapear o país, mas também anglicizar os nomes dos lugares
(Friel, 1980). Nesse caso, a denominação de lugares tinha várias funções: além de
ser uma maneira de identificar e marcar, era um modo de compreender e uma ação
para “segurar” um local e prendê-lo firmemente no tempo e no espaço (Bullock,
2004).
Considerações finais
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explica esta última forma com o fato de ter sido encontrado, debaixo de um pau-
d'arco, uma caixa sem coisa alguma dentro” (Martins Filho e Girão, 1966, p.307).
Em 1890, talvez para evitar confusões, o lugar foi renomeado com o nome Iracema,
em homenagem ao escritor cearense José de Alencar.
Essa longa citação resume muito bem como poderia ser a “consciência
toponímica”. Os nomes de lugares nunca devem se restringir à sua função de mera
referência, porque há uma identidade ou identidades múltiplas amarradas a cada
topônimo. Dessa maneira, a análise da toponímia se aproxima dos valores
humanos (ou melhor, humanísticos), porque os nomes de tornam “um armazém
histórico, social e cultural através das suas associações e valores variados”, no
contexto do seu fundo ontológico (Bullock, 2004).
Esse artigo tinha como objetivo indicar caminhos para uma análise da
toponímia brasileira sob uma perspectiva histórica na Geografia Cultural. Vale
salientar que o tema mostra uma grande complexidade, já que “um verdadeiro
tapete de nomes recobre a terra que se torna assim objeto de discurso” (Claval,
2001, p.189). Os nomes se tornam quebra-cabeças, enigmas ou expressões de
posse, poder ou potência. Batizar um lugar não significa apenas posse (captação
mental/física), referência, orientação, mas também ideologia e visão do mundo, e a
Geografia Cultural encontra seu campo de pesquisa na dinâmica do processo da
nomeação e renomeação dos lugares, ligando o passado ao presente. Em resumo,
“topônimos são veículo e símbolo de ideologia cultural bem como artefatos por si
mesmos” (Fair, 1997, p.468). Ou em outras palavras, “os nomes dos lugares e das
categorias de paisagem permitem falar do mundo e discorrer sobre ele. Eles
transformam o universo físico em um universo socializado” (Claval, 2001, p.207).
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geógrafo cultural Wilbur Zelinsky, as pesquisas não devem se restringir aos
topônimos, mas também devem incluir a exploração dos nomes de todos os tipos
de atividades e artefatos humanas e, muito especialmente, de perscrutar atrás das
superfícies para pegar implicações e questionamentos mais amplos” (Zelinsky,
1997, p.466).
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