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Sebastião de Portugal

Article · January 2012

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José Pinto Casquilho


Universidade Nacional Timor Lorosa'e
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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

Nova Série | 2012 | Número 23-24

http://novaserie.revista.triplov.com/numero_23/jose_casquilho/index.html

Era El-Rei homem de bôa estatura de côrpo, não em demasía, de fórtes


membros, enxúto e bem dispôsto, sem defeito algúm. Éra alvo das carnes e os
cabêlos da cabêça e os que começávam a pungir da barba, louros.Tinha o rôsto
grave e sevéro, com o beiço de baixo um pouco derrubado, cuja composição lhe
dáva múita graça e formosúra.

Crónica de el-rei D. Sebastião, Amador Rebelo, capítulo 73º, intitulado


“Da pessôa de El-Rei Dom Sebastião” [*]

JOSÉ PINTO CASQUILHO

Sebastião de Portugal:

20 de janeiro de 1554 - ?

EDITOR | TRIPLOV

ISSN 2182-147X Contacto: revista@triplov.com Dir. Maria Estela Guedes Página


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Resumo

Sebastião, XVI rei de Portugal, sétimo da dinastia de Avis, reinou até 1578 e é referido
na grande maioria dos textos como tendo falecido em 4 de agosto desse ano, na batalha
de Alcácer-Quibir. Existem no entanto pelo menos quatro peças factuais, três breves
papais e um quadro, que apontam em sentido contrário: Sebastião sobreviveu, e
sobreviveu longamente, à batalha. Uma máquina probabilística cega funcionando em
condições de máxima incerteza concluiria na base de 15 contra 1 que o rei teria
escapado. O que foi a sua vida no exílio é um mistério, mas poderá ter sido o prisioneiro
de Veneza e por certo foi guerreiro sob a égide da cruz de Cristo de que se reclamava
capitão. A existência secreta de Sebastião rei de Portugal tornou-se uma forma
pregnante que engendrou vários sebastião, chispas salientes de uma forma profunda
que se impõe como verdade.
Abstract

Sebastião, XVI King of Portugal, seventh of the House of Aviz, reigned until 1578 and is
referred to as having died on 4 August of that year, at the battle of Ksar-el-Kebir. There
are however at least four factual pieces, three brief papal letters and a picture, pointing
in the opposite direction: Sebastian survived, and survived for a long time. A
probabilistic blind machine working in conditions of maximum uncertainty would
conclude in 15 against 1 that the King would have escaped. What was his life in exile is a
mystery, but he may have been the prisoner of Venice and certainly was warrior, under
the aegis of the cross of Christ that he claimed to be His captain. The secret existence of
Sebastian King of Portugal became a deep pregnancy that produces various fake
Sebastian, salient traits of a deep form that looms as truth.

Résumé

Sébastien, XVI roi du Portugal, septième de la dynastie d'Avis, a régné jusqu'à 1578 et
est rapporté dans la grande plupart des textes comme en ayant décédé le 4 août de
cette année, dans la bataille de Ksar el Quibir. Existent néanmoins au moins quatre
pièces factuelles : trois brefs du Vatican et un tableau, qui indiquent dans sens contraire
: Sébastien a survécu, et a survécu longuement, à la bataille. Une machine probabiliste
aveugle en fonctionnant dans des conditions d‟ incertitude maximale répond dans la base
de 15 contre 1 que le roi se serait échappé. Ce que a été sa vie en l'exil est un mystère,
mais pourra avoir été le prisonnier de Venise et probablement a été guerrier, sous
l'égide de la Croix de Christ dont il se nommait capitaine. L'existence secrète de
Sébastien roi du Portugal s'est rendue une forme pregnante qui a produit plusieurs
sebastião, traces saillantes d'une forme profonde qui s'impose comme vérité.

Introdução

Ao contrário do que se pode pensar só há relativamente poucos anos lido com a


história de Sebastião, rei de Portugal. Cedo ouvi dizer que ele era birrento e
obstinado, teimoso que sei lá, megalómano e infeliz, e portanto não me seduzia tal
personagem. Além que na sua birra de vã glória levou o país ao desastre de Alcácer-
Quibir, a que se seguiu a perda de independência durante sessenta anos. No entanto
o assunto regressava periodicamente e comecei a dar cada vez mais atenção. A
última chamada veio com o Tango Sebastião que a Estela escreveu e o José Augusto
prefaciou. O principal objectivo do texto que agora publico é remover escolhos sobre
outros que escrevi há uns anos, e que se centravam num trajecto que terminava na
apropriação simbólica por Sebastião da coroa imperial, movimento comum aos
príncipes da Europa do seu tempo, onde reafirmei a tradicional evocação de que o
rei morrera pelejando em Alcácer Quibir, naquele fatal 4 de agosto de 1578 [v. 1].

Sebastião nasceu no dia do santo de seu nome, em 20 de janeiro de 1554, e não é


fácil entender que tal era sui generis - o único rei do nome do mártir -, e que o
menino foi reclamado logo de „o Desejado‟, por ter nos seus ombros o peso de
salvar o país já que todos os nove filhos de João III e Catarina da Aústria tinham
sucumbido, no tempo dizia-se da maldição de Aviz - hoje diríamos efeitos deletérios
da consanguinidade -, muitos por epilepsia. O pai de Sebastião, o príncipe do Brasil
João Manuel, falecera poucas semanas antes do nascimento do filho, provavelmente
de diabetes juvenil, com dezassete anos. Joana de Aústria, infeliz com o desamparo
da morte do príncipe, regressa a Espanha para governar em lugar do seu pai
ausente e de seu irmão Filipe que ia viajar aos países baixos, e assim abandona o
filho com meses, aos cuidados dos avós e da corte.

Sebastião vê-se criado orfão e rei de Portugal com o encargo de salvar o país,
transportando o peso da história do santo, soldado romano supliciado. Com tal
entalão é natural que o jovem rei se fizésse guerreiro e quisésse prová-lo primus
inter pares, como capitão de Cristo na sua autonomeação, numa incursão contra os
infiéis por Marrocos, onde legitimaria o título de imperador em Fez. O jovem
Sebastião matou o seu primeiro javali com onze anos, a idade de Alexandre no
mesmo feito, e é possível que tentasse mimetizá-lo, na versão de cruzado, a que
estava conforme o espartilho católico, inquisitorial, em que cresceu. Saiu-lhe gorada
a intempestiva e nas planuras ardentes de Agosto, em Alcácer Quibir, conheceu a
derrota. Conheço o sítio, lá está uma placa com três coroas, uma superior de Allah e
as duas outras dos reis marroquinos mortos no desfecho: um envenenado ao que se
diz, outro afogado na fuga. A batalha dos três reis, assim ficou designada, porque
três reis ali teriam morrido, pensava eu, mas não: três reis ali combateram mas só
dois pereceram, é a conclusão deste escrito.

Também eu andei muito tempo fabricado na idéia de que Sebastião teria morrido em
Alcácer Quibir, afinal todos os historiadores de renome o diziam, talvez haja uma ou
outra excepção, desde a escola que tal me era dito e ainda hoje essa é a versão
corrente [v. 2, 3], a que acrescia aquela menção de que o rei fora por ali fora a
espadeirar no seu lema: morrer sim, mas devagar. Ora parece que foi mesmo isso
que aconteceu à letra, num sentido bem mais lato do que se normalmente se pensa.
É verdade que pode dizer-se que o regresso mítico de Sebastião é mais uma versão
do Paráclito ou paracleto anunciado, o redentor, um messianismo, uma reinvenção
sucessiva da esperança ou da fé no amparo do regresso do outro. Mas também por
isso essa recorrência tem pertinência no caso.

Não dispunha eu nesse tempo do dispositivo conceptual, ou conceitual, que permite


esquissar uma interpretação que reclamo satisfatória, ou mesmo elucidativa. Esse
dispositivo é o par pregnância/saliência que foi sucessivamente elaborado por René
Thom [4] e Jean Petitot [5], entre outros, e enraíza na distinção aristotélica das
dualidades que já têm aspectos discutidos em Platão: substância/forma e
potencial/atual, a última fortemente retomada no determinismo laplaciano. Em
síntese, existe uma forma pregnante, profunda, potencial, que está num domínio
invisível, implícito, num espaço inacessível à observação directa, que pode ter várias
dimensões, a que se associam saliências, emergências de sentido, essas sim visíveis
e tangíveis, derivadas da pregnância que as sustenta ou alimenta. Das saliências
pode-se inferir a pregnância, pois não há efeito sem causa, enunciado conhecido
como princípio de causalidade científica, utilizado ao reverso, por meio de abdução,
formando uma hipótese explicativa. Essa forma pregnante pode ser entendida como
a verdade dessa história, o domínio de existência na sua multidimensionalidade
secreta.

Serve isto para falar na sucessão de falsos sebastião que existiram, três ou quatro,
para dor de cabeça dos filipes de Espanha – com início em Filipe I de Portugal desde
as cortes de Tomar em 1581 -, que logo mandavam prender e até executar, do
último tem-se notícia de um italiano enforcado em 1619. Mas será que dessas
saliências recorrentes e factuais – os falsos sebastião – não se deve inferir algo?
Creio que sim, na lógica do índice que aponta que não há fumo sem fogo, uma
recorrência sucessiva ao longo de um largo intervalo de anos de vários simulacros é
sintoma de existência continuada - no caso da existência de Sebastião, rei de
Portugal, vivo, algures. Aliás poderia ter sido um dos falsos sebastião reportados.

Sucede que este enquadramento teórico abriga algo que só há pouco tempo conheci
enunciado como factos: são referidos vários breves emitidos por papas diferentes a
reconhecer Sebastião como legítimo rei de Portugal na presença de cardeais, ao
longo de cerca de três décadas, e no último declarando-se o rei casado e com
descendência [v. 6]. Ora junte-se a isto o retrato da galeria dos Azuis, a que se
atribui a data de c. 1600, e que falo mais à frente (figura 6) e de que há notícia
existirem cópias. No total faz pelo menos quatro factos (três breves e um quadro)
que provam que Sebastião sobreviveu a Alcácer Quibir, ou então são todos falsos, o
que parece absurdo. Na hipótese de qualquer desses quatro documentos ser
verdadeiro ou falso jogando com a máxima incerteza ou ignorância, supondo-os
acontecimentos independentes, a probabilidade de serem todos falsos é de cerca de
6 em 100, e ao invés a probabilidade de ser pelo menos um verdadeiro e Sebastião
ter sobrevivido a Alcácer Quibir é de cerca de 94 em 100. Quer isto dizer que a
balança cega inclina-se 15:1 para o lado de que Sebastião sobreviveu a Alcácer
Quibir. Mas ademais, no caso, poderá ver-se mais longe.

Retratos de Sebastião

Vamos incorrer no mundo dos retratos de Sebastião, onde por limitações de espaço
vou-me cingir a uns poucos. Existe vasta iconografia que mostra Sebastião desde
miúdo, ou mesmo no berço, carregado com os símbolos de Portugal, o escudo de
armas, a esfera armilar, a cruz de Cristo [v. 7]. Na figura 1 tem-se o retrato da
autoria de Cristovão de Morais, datado de 1571: o jovem rei, armado guerreiro,
teria dezassete anos, louro de olhos claros, sobrolho erguido, boca carnuda...Há
outras interpretações, e derivas interpretativas, do mesmo quadro [v. 8].
Fig. 1 – Sebastião de Portugal por
Cristovão de Morais, MNAA, 1571 (fonte:
Wikipedia).

Na figura 2 tem-se uma representação do rei


de que não consegui obter mais informações
a não ser que o quadro faz parte da colecção
da Fundação D. Manuel II. Mesmo que seja
uma representação posterior importa referir
que o Sebastião aparece coroado com a
coroa de oito arcos fechados, imperial, sendo
aliás o primeiro monarca português que a
ostenta expressamente, a que acresce a
barba ruiva ou ruça - esse será um traço
distintivo da imagem do rei em todos os
quadros posteriores. No caso deste retrato
saliente-se ainda que Sebastião traz no peito
o hábito da ordem de Cristo com a cruz
embutida naquilo que se virá a chamar o
diamante com as armas do rei de Portugal,
mais tarde o Sancy [v. 9].

Fig. 2 - D. Sebastião usando coroa imperial


(fonte: Portal da História).

Na figura 3 tem-se a representação de Sebastião que


se pode tomar como modelo do ideal de capitão de
Cristo, como ele se autonomeava, com armadura,
hábito de Cristo, faixa, bastão de comando, barba, e
as armas do rei de Portugal: coroa imperial sobre o
escudo apresentado na versão mais frequente desde
João II, assente na asa de dragão, animal mitológico
símbolo de Portugal. Enquanto em cima o tempo corre
no fio do fuso. Não conheço a cronologia absoluta das
referências das figuras 2 e 3, mas não parece
deslocado dizer que o rei estará representado cerca
dos seus vinte anos.
Fig. 3 – Sebastião, XVI rei de Portugal,
capitão de Cristo

Em 1578 Sebastião tem 24 anos e creio que a


figura 4 representa a face do rei por essa idade.
Trata-se de um pormenor de um quadro de entre
um conjunto, executados vários na escola de
Alonso Sanchez Coello, cópias de um retrato
original eventualmente desaparecido, de que
existem exemplares no Kunsthistorisches Museum
de Viena ou no Prado, representando Sebastião,
rei de Portugal. Existe quem se incline por atribuir
o personagem representado a António prior do
Crato [v. 10], depois também autonomeado rei de
Portugal por breve período. Discordo, trata-se de
Sebastião, numa de suas últimas poses antes de
rumar a Marrocos. A coloração da barba e do
cabelo, o traçado dos olhos claros, a boca, queixo
e nariz, sobrancelhas, não vejo como ter dúvidas.

E além disso D. António era


fisionomicamente bem diferente e Fig. 4 – Sebastião de Portugal, 1578?
cerca de 23 anos mais velho que
Sebastião [v. 11]. Na minha
interpretação, o rei está representado
em pose soberana anunciando a sua
partida, com o hábito da ordem de
Cristo que abriga o diamante com as
armas do rei de Portugal, referido a
propósito da figura 2 e representado
na figura 5: a cruz de Cristo está
engastada sobre o diamante, tendo
quatro rubis na continuidade das
pontas, formando no conjunto as cinco
quinas, amparado por duas figuras
antropomórficas ligadas, porventura
simbolizando dois rios ou oceanos, já
que não parecem ser anjos.
Fig. 5 – O diamante com as armas do
rei de Portugal .

A imagem da figura 6 está referenciada


como pertença da Câmara dos Azuis nesta
data, e é datável da transição entre os
séculos XVI e XVII (c. 1600), com
proveniência na colecção dos condes Cao Di
San Marco, uma família da Sardenha, da
província de Cagliari, e mostra-nos o rei de
cabelo e barba arruivados, olhos claros,
mais maduro. Costuma levantar-se uma
objeção estílistica de que a terminação da
cruz de Cristo embutida na armadura é
bifurcada, o que não seria conforme, mas
devo dizer que já encontrei elementos de
bronze datados do reinado do rei que
lembram essa modalidade de estilo de cruz.

Fig. 6 – Sebastião de Portugal

(fonte: Wikipedia), c. 1600.

Neste retrato Sebastião teria


então cerca de quarenta anos de
idade. Este quadro, que eu saiba,
só teve divulgação pública há
poucos anos e introduz a prova
icônica - a outra dimensão
simbólica que acresce aos breves
papais -, sobre a vida do rei pós
Alcácer-Quibir.
Discussão

É fascinante que se constate que quase 5 séculos depois a historiografia portuguesa


dominante continue a afirmar que Sebastião faleceu na batalha, quando se dispõe
de uma deixis, um sistema de indicadores, apontadores, a dizer o contrário. Mesmo
a máquina probabilística cega que utilizei atrás inclina-se brutalmente para dizer que
o rei sobreviveu à batalha.

A história que se me afigura mais provável é a seguinte: Sebastião viveu,


porventura só, ou junto com alguns amigos, vai por ali fora e faz-se à vida como
cavaleiro cristão, talvez mercenário. Mesmo vivo era um rei derrotado, e um rei
derrotado é abandonado pelos poderosos, talvez com umas excepções, poderá ter
recebido apoios secretos. É sabido que Filipe II de Espanha comprou os votos de
nobres e clérigos de Portugal, a troco de mercês e de benfeitorias, o que se veio a
expressar nas cortes de Tomar, em 1581, de onde saiu Filipe I de Portugal.

Sebastião pode ter sido o prisioneiro de Veneza, é uma história que parece bater
certo com a descoberta do quadro da figura 6 em terras italianas, havendo notícia
de réplicas, memória local dessa presença. O último breve papal é bem tardio,
poucos anos antes da restauração da independência do reino, e há quem especule
se Sebastião, também chamado o Encoberto, não terá estado o tempo todo a fazer
esforços para restaurar a soberania do país - perdida pela sua temeridade ou por
desígnio de Deus, conforme as interpretações -, que teriam sido bem sucedidos no
final, afinal.

Estar-se-ia então no caso de que a promessa do regresso foi cumprida secretamente


recordando que no quadrado da veridicção o secreto é o lugar daquilo que é e não
parece, Sebastião era rei de Portugal e não parecia, será uma aplicação. Ao alijar a
coroa para outra dinastia Sebastião libertaria os seus filhos desse peso, dessa cruz,
passava a bola do reino por assim dizer - os novos destinatários seriam os duques
de Bragança, recordando que havia quem dissesse que Catarina, duquesa de
Bragança, era quem detinha a candidatura mais legítima, embora pesasse contra ela
o lastro da lei sálica e os interesses de Filipe. Porventura terá havido um acordo
também secreto, multissecular, para manter a história secreta de Sebastião e assim
alimentar o mito? Ou teria sido desejo de reserva expresso pelo rei?

Pode dizer-se que o cardeal-rei Henrique no seu testamento [v. 12] deixa a questão
de tal modo aberta - para ser decidida na Justiça entre seus sobrinhos -, que
contempla tacitamente a possibilidade de Sebastião estar vivo, aí incluído. Noutro
lugar referi que podia ser essa a interpretação da ausência de castelos no escudo de
armas do rei de Portugal nos Calafates, em Lisboa [13], onde zero castelos pode ser
convertida em índice da presença de uma ausência: a do legítimo rei.

O mito sebastianista tornou-se elemento essencial da identidade lusitana de então


para cá, na opinião de tantos, tratando-se de um messianismo que tem
correspondência noutras culturas e povos, cada um em seu estilo, com o seu código
de representação - em qualquer caso um código é um sistema de significados que se
relaciona com um sistema de significantes [14] - mas que, entre nós, tomou
ressonância singular, havendo quem afirme reportando-se à política de Salazar e à
sua durabilidade: o mito do sebastianismo desenvolveu-se ao longo da História e
serviu, politicamente, para fixar a ideologia dominante, espoliando o povo da
liberdade de escolha de seu destino e tornando-o preso a uma imagem irreal de
lusitanidade [v. 15]. O mito é o nada que é tudo, dizia Pessoa, e no século XVII o
padre António Vieira empenhava-se em demonstrar a necessidade lógica da
ressureição de João IV, o primeiro rei da dinastia de Bragança, numa deriva
messiânica [v. 16]. Também João VI foi revisto como figura sebastianista em
Portugal quando da sua estadia no Brasil [17], e no Brasil, ainda no século XIX, os
camponeses esperavam um enviado sebastiânico, réplicas sucessivas da idéia do
regresso do redentor. Essa figura também se pode enquadrar no tema universal do
eterno retorno, com tantas manifestações diferenciadas [v. 18] - e que recorre
sobretudo em períodos de crise, recordando no entanto que, no sentido original, o
termo crise, gerado da palavra grega krísis, significa escolha, decisão [19].

Coda

Esta reflexão que ora deixo visa em primeiro lugar corrigir escritos meus que
referenciei em [1] e [9], onde repetia a notícia da morte de Sebastião em Alcácer-
Quibir. Sou daqueles que acha que não é preciso fazer testes de DNA aos restos
mortais que constam nos Jerónimos. Filipe II de Espanha além de prudente era
calculado e manipulador, como convinha aliás, e bem pode ter tomado providências
adicionais. O seu filho Carlos falecera em 1568, mandado prender pelo pai, e, dizem
as más línguas, envenenar, embora haja outras versões. A tese de que Sebastião
não só sobreviveu à batalha como esteve décadas a urdir a restauração da
independência, discreto ou secreto, é tão sóbria e possante que o rei bem pode
quedar-se numa aura mítica merecida. Sebastião é ainda hoje o mais das vezes
referido de forma pejorativa: autoritário, doente, birrento, homossexual, incapaz. A
crónica de Amador Rebelo, escrita provavelmente no final do século XVI, dá outra
visão, bem como as palavras do padre Luís Alvares nas exéquias funebres nos
Jerónimos [v. 20]. Em suma poderá dizer-se que o povo lhe tinha amor, e assim
terá resguardado a memória da sua não-morte. Que outra força, senão o amor, para
ser da morte vencedor? Ao que me dizem, hoje conta-se aos miúdos nas escolas em
Portugal a versão de que o rei desapareceu na batalha, assim libertando a data do
decesso num domínio indeterminado. A ode de Pessoa terá então ainda outra leitura
[v. 21], e acabei de ver que já foi defendido em livro, recentemente, por uma
historiadora portuguesa, que Sebastião reapareceu em Itália em 1598 e por lá
continuou...

Referências

[*] O padre Amador Rebelo era companheiro do padre Luís Gonçalves da Câmara,
mestre de Sebastião; citação extraída de Aurora Gedra Ruiz Alvarez: O Mito nas Tramas
do Grotesco – El-rei D. Sebastião, AletriA, nº14, 2006, p: 186-197, Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit

[1] José Pinto Casquilho, A metamorfose das armas do rei de Portugal na dinastia de
Avis, Monografias.com, 2008, https://dx.doi.org/10.13140/RG.2.1.2996.9688
[2] Sebastião de Portugal, Wikipedia, acedido em Dezembro de
2011, http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal

[3] D. Sebastião, O Portal da História, acedido em Dezembro de 2011


http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/sebastiao.html

[4] René Thom, Modèles mathématiques de la morphogénèse (2 ème ed.). Paris :


Christian Bourgois Éditeur, 1980, 315 p.

[5] Jean Petitot-Cocorda, Physique du sens – da la théorie des singularités aux


structures sémio-narratives. Paris : Éditions du Centre National de la Recherche
Scientifique, 1992, 449 p.

[6] Antonio Villacorta Baños-García, D. Sebastião Rei de Portugal, A Esfera dos Livros
Editora, 2006, 389 p.

[7] Manuel Sousa, Reis e Rainhas de Portugal, Mem Martins: Sporpress, 2000, 201 p.

[8] Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id.

[9] José Casquilho, O Sancy – mais de cinco séculos de história, Triplov.com, 2008,
acedido em 13 de Dezembro de 2011, https://dx.doi.org/10.13140/RG.2.1.5148.3925

[10] Annemarie Jordan, Retrato de Corte em Portugal – o legado de António Moro


(1552-1572), Quetzal Editores, Lisboa, 1994, 199 p.

[11] Perfil biográfico de António, prior do Crato. Wikipedia, acedido em 13 de


Dezembro de 2011, http://en.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio,_Prior_of_Crato

[12] Mário Domingues, O Cardeal D. Henrique – o homem e o monarca. Lisboa:


Livraria Romano Torres, 1964, 402/XIV p.

[13] José Pinto Casquilho, Das armas de Portugal, Revista Triplov de Artes, Religiões e
Ciências (Nova Série), nº 8/9, 2010, acedido em 13 de Dezembro de 2011,
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_08/jose_casquilho/index.html

[14] José Augusto Mourão, Código in Dicionário Crítico de Arte, Linguagem,


Imagem e Cultura, Lisboa: CECL&IGESPAR, 2010, acedido em 13 de Dezembro de
2011,
http://194.65.130.227/index.php?Language=pt&Page=Saberes&SubPage=Comunicacao
ELinguagemLinguagem&
Filtro=23&Slide=57

[15] Aurora Gedra Ruiz Alvarez, id., p: 186.

[16] Padre António Vieira, Apologia das Coisas Profetizadas (org: Adma Fadul
Muhana). Cotovia, Lisboa, 1994, 315 p.

[17] José Tengarrinha, A crise no final do Antigo Regime, in Crises em Portugal nos
séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos), Lisboa: Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2002, p: 25-32.

[18] Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70, 1981, 191 p.
[19] Sérgio Campos Matos, A crise do final de oitocentos em Portugal: uma revisão, in
Crises em Portugal nos séculos XIX e XX (coord: Sérgio Campos Matos), Lisboa:
Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p: 99-115.

[20] José Casquilho (org.), O elmo de D. Sebastião,


Triplov, http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Elmo/index.htm

[21] Fernando Pessoa, D. Sebastião, Rei de Portugal,


Triplov, http://www.triplov.com/historia/D-Sebastiao/Fernando-Pessoa/index.htm

José Pinto Casquilho.


Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
(CECL/UNL).
josecasquilho@gmail.com

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