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O conceito “Intersetorialidade”: contribuições

ao debate a partir do Programa Lazer e Saúde


da Prefeitura de Santo André/SP1
The concept of “Intersectoriality”: contributions to the
debate from the Leisure and Health Program of the
Prefecture of Santo André/SP

Marcos Warschauer Resumo


Doutorando em Saúde Pública na Universidade de São Paulo.
Endereço: Rua Francisco Bayardo, 551, Apto. 142, CEP 05020-010, Com base em pesquisa desenvolvida a partir do
Pompéia, São Paulo, SP, Brasil. Programa Lazer e Saúde, planejado e implementado
E-mail: marcoswar@usp.br pelas Secretarias de Saúde e Esporte e Lazer da Pre-
Yara Maria de Carvalho feitura de Santo André entre 2007 e 2009, problema-
Doutora em Saúde Coletiva. Professora Associada da Universidade tizamos o conceito “intersetorialidade”. Entendemos
de São Paulo. que o recorte sobre este tema é determinante na
Endereço: Av. Prof. Mello Moraes, 65, Cidade Universitária, CEP
05508-030, São Paulo, SP, Brasil.
discussão e qualificação das iniciativas voltadas,
E-mail: yaramc@usp.br neste caso, para as práticas corporais, haja vista a
literatura apresentar, a cada dia, novos elementos
1 Este artigo é parte da dissertação de mestrado: “Lazer e Saú- para o debate visando garantir estratégias que efe-
de: as práticas corporais no sistema público de Santo André”, tivamente respondam às necessidades de saúde da
aprovada no Programa de Pós-Graduação em Pedagogia do
Movimento da Faculdade de Educação Física e Esporte da USP,
população. Entrevistas com gestores do Lazer e da
com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Saúde foram realizadas com intuito de subsidiar a
e Tecnológico (CNPq). discussão. Os temas discutidos neste artigo apon-
tam para a fragilidade da ação intersetorial no Pro-
grama e evidenciam que as dificuldades são também
objeto de discussão e enfrentamento ressaltados na
literatura acadêmica. Nesse sentido, o estudo chama
a atenção para cinco dificuldades da ação interse-
torial que devem ser levadas em consideração na
elaboração de projetos e programas intersetoriais:
complementaridade entre setorialidade e interseto-
rialidade; necessidade de caracterizar o contexto;
pactuação e alinhamento em relação a conceitos,
objetivos, diretrizes, metas e avaliação dos proje-
tos, programas e políticas; constituição de redes de
trabalho e comunicação entre os diversos atores.
Palavras-chave: Intersetorialidade; Políticas pú-
blicas de saúde; Práticas corporais; Saúde e lazer.

DOI 10.1590/S0104-12902014000100015 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.191-203, 2014 191
Abstract Introdução
On the basis of research carried out from the “Leisu- Os avanços tecnológicos e o processo de globaliza-
re and Health” program, planned and implemented ção, orientado por um mercado que é o principal
by the Health and Sport and Leisure Departments regulador dos conflitos, geraram fortes mudanças
of the Prefecture of Santo André between 2007 and na vida das pessoas e na resolubilidade dos sistemas
2009, we discuss the concept of “intersectoriality”. de saúde. O processo saúde-adoecimento é resultado
We understand that the setting of this theme is de- dos modos de organização da produção, do trabalho
terminant in the discussion and qualification of the e da sociedade em determinado contexto histórico
initiatives targeting, in this case, bodily practices e a racionalidade biomédica, atrelada ao modo de
considering that the literature constantly presents pensar capitalista, não consegue modificar os de-
new elements for the debate aiming to guarantee terminantes sociais de saúde.
strategies that effectively meet the health needs Procurar outros caminhos para a saúde no Brasil
of the population. Interviews with the managers of tem significado pensar na participação comunitária,
Leisure and Health were conducted with the purpose no desenvolvimento de coalizões entre setor público
of aiding the discussion. The topics discussed in this e setor privado e na constituição de um sistema de
article point out the fragility of the intersectorial saúde inclusivo (Westphal, 2000; Brasil, 2006). Um
action in the program and give evidence that the marco desse processo foi a 8a Conferência Nacional
difficulty of intesectorial action is also the subject of de Saúde (CNS) – “Democracia é Saúde” – em 1986,
discussion and confrontation in the academic litera- cujo relatório final apresentou os fundamentos
ture. From this perspective, the study calls attention da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS): “o
to five difficulties of the intersectorial action, which conceito ampliado de saúde, a necessidade de criar
should be considered in the preparation of inter- políticas públicas para promovê-la, o imperativo
sectorial projects and programs: the complement da participação social na construção do sistema e
between sectoriality and intersectoriality; the need das políticas de saúde e a impossibilidade do setor
to regard the context; agreement and alignment in sanitário responder sozinho à transformação dos de-
relation to concepts, objectives, guidelines, goals terminantes e condicionantes para garantir opções
and evaluation of projects, programs and policies; saudáveis para a população” (Brasil, 2006, p. 10).
setting up working networks and communication A partir de então, a estratégia de atenção à saúde
between those involved. recupera a perspectiva de promoção da saúde defi-
Keywords: Intersectoriality; Public Health Policies; nida nas conferências internacionais (Brasil, 1996)
Corporal Practices; Leisure and Health. que enfocam os aspectos determinantes do processo
saúde-adoecimento como a violência, o desemprego,
a falta de saneamento básico, a habitação inadequa-
da, a fome, a baixa qualidade do ar e da água, dando
ênfase nas possibilidades de os sujeitos e coletivi-
dades optarem por determinados modos de vida, de
forma a criar novos caminhos para a satisfação de
seus interesses, desejos e necessidades de saúde da
população brasileira.
Propõe-se, então, maior abrangência nas inter-
venções em saúde, de modo que a organização da
atenção e do cuidado opere para além dos muros das
Unidades Básicas de Saúde (UBS) e do sistema de
saúde, favorecendo a ampliação de escolhas saudá-
veis por parte dos sujeitos e das coletividades. Esta
perspectiva democrática de organização de saúde

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ultrapassa as sistemáticas institucionalizadas de exige compromisso e vontade política dos dirigentes
controle social e se compromete com a criação de para mudar suas práticas e oferecer aos cidadãos
mecanismos de mobilização e participação da socie- uma vida com qualidade (Junqueira, 1997).
dade – usuário, movimentos sociais, trabalhadores Nesse sentido, o compromisso do setor saúde é
de saúde, gestores de diversos setores – exigindo a tornar cada vez mais visível que o processo saúde-
captação de recursos políticos, humanos e financei- -adoecimento é composto por múltiplos aspectos,
ros que extrapolam o âmbito da saúde. pertinente aos diversos setores governamentais,
Assim, coloca-se à saúde o desafio da interseto- privados e não governamentais, que devem compor
rialidade como nova forma de organização diante da suas agendas quando forem constituir suas ações e
maioria das estruturas municipais que se apresen- políticas específicas para garantir a saúde como di-
tam em formato piramidal, arranjadas por vários es- reito humano e questão de cidadania (Brasil, 2006).
calões hierárquicos e departamentos, que dificultam São muitos os desafios da intersetorialidade,
a participação popular no exercício dos seus direitos não há receita de como praticá-la ou com quem
sociais (Westphal e Mendes, 2000; Junqueira, 1997). compor as agendas. Entretanto, existem, na litera-
A intersetorialidade é a articulação entre sujeitos de tura, experiências que podem nos dar pistas para a
setores diversos, com diferentes saberes e poderes resolução de alguns dos problemas da saúde. Este
com vistas a enfrentar problemas complexos. No artigo pretende contribuir com o debate, a partir
campo da saúde, pode ser entendida como uma da pesquisa-intervenção junto ao Programa Lazer
forma articulada de trabalho que pretende superar e Saúde, implementado pelas Secretarias de Saúde
a fragmentação do conhecimento e das estruturas e de Cultura, Esporte e Lazer de Santo André, privi-
sociais para produzir efeitos mais significativos legiando seus limites e possibilidades.
na saúde da população. Mais do que um conceito,
é uma prática social que vem sendo construída a
partir da insatisfação com as respostas do setor
O Programa Lazer e Saúde
saúde perante os problemas complexos do mundo O Lazer e Saúde foi um Programa realizado pelas
moderno (Feuerwerker e Costa, 2000). Secretarias de Saúde e de Cultura, Esporte e Lazer de
Nessa perspectiva, as ações intersetoriais têm se Santo André/SP a partir da identificação da grande
mostrado como uma estratégia importante na busca demanda da população por práticas corporais, para
de novos modelos organizacionais e pode ser enten- as quais o mercado privado havia se organizado
dida como uma articulação de saberes e experiências e o poder público não. Inicialmente, em 1998, o
no planejamento, realização e avaliação de políticas, Departamento de Lazer introduziu, de maneira
programas e projetos dirigidos a comunidades e a experimental, a prática do Liang Gong nos Centros
grupos populacionais específicos, num dado espaço Comunitários e devido à grande procura, em 2001
geográfico, com o objetivo de atender as suas neces- a ação foi ampliada com o Tai Chi Chuan e o Yoga.
sidades e expectativas de forma sinérgica e integral A gestão municipal de Santo André, nesse pe-
(Junqueira, R., 2000; Junqueira e col., 1997). É um ríodo, dava ênfase à participação popular por in-
processo de aprendizagem e de determinação dos termédio de plenárias do Orçamento Participativo
sujeitos, que resulta também na gestão integrada (OP) nas regiões da cidade e as práticas corporais
das políticas sociais e que procura responder com apareceram como demanda eleita pela população
eficácia aos problemas da população de um determi- em uma das plenárias. A partir de então, a ação ga-
nado território. Para tanto, é necessário considerar nhou força com a realização das práticas orientais
os interesses em jogo e os processos que privilegiam em parques, Centros de Educação de Santo André
determinada política setorial (Nascimento, 2010) e (CESAS) e em algumas Unidades de Saúde (US2)
permear as organizações por uma nova lógica, que com o surgimento do Projeto “Caminhando para

2 Em Santo André, adotou-se Unidade de Saúde (US) em detrimento de Unidade Básica de Saúde (UBS), pois se entende que na US trabalham
outros profissionais de saúde além da equipe básica.

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a Saúde”, implementado inicialmente em dez US e Método
depois, no ano seguinte, ampliado para vinte e duas
US concomitantemente à criação de três Centros de Na pesquisa-intervenção realizada em Santo André
Fortalecimento Muscular (CFM) localizados em dois junto ao Programa Lazer e Saúde optamos pela me-
parques e em um CESA. O conjunto desses projetos todologia qualitativa a fim de nos aproximarmos
foi nomeado Lazer e Saúde e passou também a fazer da realidade do grupo de gestores que direta ou
parte da agenda da Secretaria de Saúde, sobretudo indiretamente eram responsáveis pelo Programa.
com as ações do programa Caminhando para a Saúde Foi realizada observação sistemática das ativida-
que acontecia nas US do município e do CFM cujo des e realizadas entrevistas semiestruturadas com
foco estava no atendimento aos adultos e idosos, gestores do Departamento de Lazer e da Secretaria
preferencialmente SUS dependentes3. de Saúde e com gerentes de US. Para facilitar a
No programa do Departamento de Lazer de 2006, abertura e orientar a “conversa” (Minayo, 2006),
o Lazer e Saúde apareceu com o seguinte objetivo: foi elaborado roteiro com sete itens que abordavam
questões como políticas públicas, práticas corpo-
Proporcionar à população uma melhor qualidade de rais, problemas, possibilidades e limites da relação
vida, promovendo atividades corporais voltadas à entre os setores lazer e saúde. Ao longo do percurso
promoção da saúde. O Departamento de Lazer/SCEL das entrevistas, foi necessário aprimorar o roteiro,
e a Secretaria de Saúde desenvolvem três ações corrigir expressões que permitiam dúbio sentido e
conjuntas: 1) Programa de práticas orientais – Lian suprimir perguntas inadequadas (Oliveira, 1999).
Gong, Tai Chi Chuan, Yoga, Chi Kung, Massagens As entrevistas foram gravadas e posteriormente
Terapêuticas e Danças Circulares – em Parques e transcritas com consentimento dos entrevistados,
Centros Educacionais; 2) Programa de caminhada após serem informados sobre a pesquisa, seus ob-
monitorada nas Unidades de Saúde, que consiste na jetivos, instrumentos e garantias com relação a sua
realização de cursos permanentes, encontros, semi- adesão ou não.
nários e eventos; 3) Os Centros de Fortalecimento Após identificar que o Lazer e Saúde atendia
Muscular que funcionam nos equipamentos: CESA grande parte da região urbana de Santo André,
Palmares, CESA Cata Preta e Chácara Pignatari. por intermédio de práticas corporais orientais, do
Estes centros trabalham com exercícios resistidos Programa “Caminhando para a Saúde” e dos CFM,
que buscam proporcionar ao idoso uma melhor foi necessário estabelecer um recorte no estudo
condição de saúde. de campo de maneira a não perder o contexto do
Apesar de a agenda ser pactuada conjuntamente Programa nem suas peculiaridades, tendo em vista
entre os setores Lazer e Saúde, as ações foram cla- que as ações aconteciam em regiões econômica e
ramente fragmentadas, compartimentadas, ou seja, socialmente diferentes.
a maior parte do planejamento, o desenvolvimento, Dessa forma, o caminho metodológico adotado
as avaliações sistemáticas e a seleção dos profissio- para identificar as pessoas a serem entrevistadas
nais que conduziram as práticas foram feitas pelo teve início nos dois departamentos que gerenciavam
Departamento de Lazer enquanto o Departamento o Lazer e Saúde: o Departamento de Lazer (sujeitos
de Assistência à Saúde (DAS) responsabilizou-se 1 e 2) e o Departamento de Assistência à Saúde (su-
pelo pagamento dos profissionais e participou dos jeitos 3 a 8). No primeiro, foram entrevistadas as
momentos de avaliações pontuais. Mesmo assim, pessoas responsáveis pela decisão, organização e
podemos afirmar que a lógica intersetorial estava execução do Programa. No DAS, embora a orientação
presente na construção de objetivos comuns e na fosse a mesma, a complexidade foi maior, visto que a
“divisão de tarefas”. organização e execução das práticas estavam direta-

3 O termo SUS dependente fazia referência aos munícipes que eram cadastrados e utilizavam as US.

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mente vinculadas aos gerentes das 32 US do municí- de pessoas; 4) O programa Lazer e Saúde ou as prá-
pio. Assim, a opção de recorte foi fundamentada na ticas corporais; 5) Dono, parceiro ou colaborador; e,
organização territorial do setor saúde, estruturada 6) Comunicar é costurar. Cabe destacar que o tema
em quatro gerências, de modo que as entrevistas intersetorialidade, objeto de interesse central neste
foram realizadas com um sujeito integrante de cada artigo, esteve presente em todas as categorias de
gerência. A gerência IV não foi incluída porque se análise: apareceu nas dificuldades, nos aspectos
referia à subprefeitura de Paranapiacaba e Parque positivos, nas falas específicas sobre o programa
Andreense, local não abrangido pelo Lazer e Saúde. Lazer e Saúde e nas questões relativas à PNPS, o
O agendamento e as entrevistas com os gesto- que evidenciou o pressuposto inicial de que o Lazer
res dos dois departamentos aconteceram de forma e Saúde traria importantes elementos para a discus-
tranquila, sem constrangimentos e com interesse são dessa temática.
por parte dos entrevistados. Já com os gerentes das
Ação conjunta
US tivemos dificuldade para realizar as entrevistas e
adotamos o critério “disponibilidade” para a escolha O primeiro subtema que identificamos nas falas dos
dos gerentes. sujeitos entrevistados diz respeito ao problema da
Depois de cuidadosa leitura das entrevistas, ação conjunta.
temas4 foram identificados e organizados nas se- ...acontece que na medida em que esses projetos
guintes categorias: dificuldades, aspectos positivos vão sendo desenvolvidos, existem diferentes inten-
e Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). sidades de trabalho conjunto. [...] Mas o principal
Os dados foram organizados em uma matriz pla- problema é a operação conjunta desse projeto. Em
nificada que continha nas linhas as categorias e alguns casos, por exemplo, como o caso da cami-
subcategorias empíricas e nas colunas os sujeitos nhada, toda a parte administrativa da contratação
entrevistados. Quando a matriz era lida na hori- de pessoal é [feita] via Secretaria de Saúde, mas se
zontal, as categorias se destacavam do contexto eu posso dizer, a parte pedagógica é desenvolvida
e ganhavam relevância atravessando as falas dos pelo Departamento de Lazer e em alguns momen-
entrevistados. Quando lida na vertical, os sujeitos tos essas partes têm dificuldade de conversar. No
falantes eram os que ganhavam destaque com as caso do CFM é a mesma coisa, no modelo que a
suas falas atravessando os diferentes temas. Essa gente adotou aqui, a Secretaria de Saúde adquiriu
metodologia permitiu visão ampla e relacional entre os equipamentos e nós tivemos, além da Saúde
as categorias empírica e sujeitos entrevistados e, e do Lazer envolvidas a Secretaria de Educação.
ao mesmo tempo, uma análise aprofundada com o Fizemos a implementação conjunta, mas também
aporte da literatura específica. vivemos momentos de dificuldades para criar maior
organicidade naquilo que foi contratado no início
Resultados e discussões do projeto. (Sujeito 1)

Para discutirmos a intersetorialidade a partir dos ...inicialmente eu acho que nós tivemos problemas
dados retirados da matriz planificada, optamos com alguns profissionais porque entendem que
por criar subcategorias dentro do tema de modo a isso é coisa do Lazer... (Sujeito 8)
organizar o conjunto das falas e melhorar o enten- Os relatos acima explicitam que uma das razões
dimento, a discussão e o diálogo com a literatura. que interferem no agir em conjunto é a gestão indi-
Assim, o texto que se segue será apresentado tendo vidual e isolada de cada departamento. A concepção
como foco os seguintes subtemas: 1) Ação conjunta; parte de uma visão segmentada da organização
2) Setor do setor; 3) Pessoas, políticas ou políticas administrativa municipal, o que favorece um pen-

4 O “tema” é uma noção que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação e cuja presença ou frequência
significam alguma coisa para o objeto analítico visado (Minayo, 2006). Ou seja, o tema emerge a partir da unidade de significação que
se liberta naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura (Bardin, 1976).

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samento linear e dificulta as ações de cooperação intersetorial alinhavada nesse programa é percebi-
e parceria, desfavorecendo uma reflexão intuitiva. da como a soma das partes e não sob a perspectiva
...você tem várias pessoas olhando e não tem um flu- intersetorial, pois nenhuma das partes consegue, de
xo muito claro de como esse trabalho vai acontecer. fato, compor com o todo. Para que o Lazer e Saúde
Então, eu acho que o problema é esse: a gente não tem avançasse no aspecto da intersetorialidade, seria
dentro de nenhuma secretaria ou departamento ou preciso articular as partes que se fazem soltas,
dentro da prefeitura, que seja, alguém que pudesse pois “é das relações das partes que surgem novas
ter esse olhar, que pudesse organizar para poder potencialidades que também as retroalimentam,
otimizar. Você tem lá a sua limitação de recursos, estimulando-as a expressar sua individualidade”
por exemplo; então, você tenta otimizar; quando (Junqueira, L. A. P., 2000, p. 36-37).
você tem várias secretarias envolvidas, às vezes, Apesar dessa segmentação do setor saúde, a
você acaba se perdendo e não tendo uma otimização intersetorialidade vem ganhando força como estra-
tão positiva, então esse é um problema. (Sujeito 3) tégia fundamental para atuar sobre problemas es-
truturais da sociedade que incidem sobre o processo
O Lazer e Saúde mobiliza diferentes pessoas de saúde-doença. Movimentos internacionais como a
diversas secretarias que, de alguma forma, estão “Promoção da Saúde” e “Cidades Saudáveis”,5 cuja
envolvidas com a proposta como, por exemplo, lógica incorpora necessariamente ações interse-
gerentes, enfermeiros, agentes comunitários de toriais e vêm ganhando centralidade no âmbito do
saúde, profissionais de educação física e gestores. setor saúde no País (Monnerat e Souza, 2011).
Entretanto, os relatos apontam para a carência de
pessoas com olhar para o conjunto das ações – olhar Setor do setor
ampliado, desde a concepção até a avaliação – de Como decorrência da ausência de uma ação conjunta
modo a reafirmar a linearidade do pensar e agir entre os diferentes departamentos integrantes do
contribuindo, portanto, com a segmentação e indi- Lazer e Saúde, tem-se uma visão e uma ação seto-
vidualização dos trabalhos. rizada, mediante a qual cada sujeito reconhece-o
...eu acho que o que nós temos hoje para essas duas sob uma ótica fragmentada e particular, perdendo
atividades é o nosso relacionamento com o Lazer e a essência do programa:
com a Secretaria de Educação, que é quem fornece ...quando eu vim para essa unidade eu comecei
para a gente o local dos centros de fortalecimento. a questionar muito a postura dos profissionais,
A Educação [...] forneceu o local, ela ajuda de algu- tanto dos médicos, quanto da limpeza, quanto da
ma forma a organizar, porque os funcionários do enfermagem, quanto da recepção administrativa.
CESA é que vão nos ajudar de alguma forma; então, Eu via muito setorizado: eu sou da enfermagem...,
também tem a sua participação importante, mas eu eu sou da recepção... e não havia um envolvimen-
acho que fundamentalmente quem realmente dá o to maior. Eu acho que em uma unidade isso não
norte é o Departamento de Lazer, que é o que tem a funciona, você tem que ter envolvimento, você tem
possibilidade de estar contratando profissionais que ter a postura profissional de chegar para o mé-
no sentido de conhecer as pessoas especializadas... dico e dizer: olha doutor, isso não pode acontecer.
(Sujeito 3) (Sujeito 7)
A ação conjunta é entendida como a realização Para além da segmentação entre os diferentes
de tarefas que independem uns dos outros. A Edu- setores da gestão municipal, já destacada anterior-
cação empresta o local, as US são os espaços de mente, o relato acima identifica outro tipo de frag-
referência das práticas corporais/atividade física mentação: uma divisão interna do próprio setor. Em
para a população e o Lazer faz as contratações do outras palavras, nas US, por exemplo, a recepcionista
pessoal especializado. Fica explícito que a relação tem papel bem definido, assim como a enfermeira, o

5 O movimento Cidades Saudáveis, fomentado pela Organização Mundial de Saúde desde 1986, objetiva o estabelecimento de políticas
públicas urbanas, voltadas à melhoria da qualidade de vida, com ênfase na intersetorialidade e na participação social.

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profissional de limpeza, de educação física e o mé- Contudo, não podemos cair no engano de que
dico, mas com pouca ou nenhuma articulação entre para se construir programas ou projetos com forte
eles. Há pouca ação conjunta e corresponsabilidade intersetorialidade devemos nos posicionar contrá-
entre esses profissionais na organização do processo rios à setorialidade, pois intersetorialidade não é
de trabalho, o que evidencia a formação de pequenos antagônica ou substitutiva da setorialidade, elas
setores dentro do setor saúde. são complementares. É imperativo para a eficácia
Todavia, é preciso destacar que a articulação de projetos ou programas que se complementem as
entre os profissionais e sujeitos envolvidos deverá políticas setoriais com a intersetorialidade (Sposati,
acontecer no local de atuação, pois o território é o 2006).
local privilegiado para as articulações políticas de
desenvolvimento urbano e social, haja vista que é lá Pessoas, políticas ou política das pessoas
que estão os sujeitos-alvos dessas políticas (Sposati, A implementação de programas ou projetos focados
2006; Nascimento, 2010). nas ideias e desejos específicos de pessoas que estão
em determinado momento à frente da ação e não nos
...inclusive porque o que acontece tem sempre uma
objetivos e diretrizes das políticas públicas do setor
fragmentação, não existe uma conexão entre o pen-
é uma das causas da circularidade ou do desmonte
sar do trabalhador da Saúde e o pensar do usuário
de muitos projetos que são desenvolvidos.
do serviço de Saúde, não existe isso. Esses pensa-
mentos eles não se cruzam em nenhum momento ...tem determinada pessoa que naquele departa-
e eles diferem da água para o vinho. É difícil para mento é a pessoa de cabeça aberta, que tem mais
a gente que tem bastante tempo na cidade, quando condição de escuta, de discutir um projeto, que não
os dois grupos conseguem concordar com a mesma olha só o seu próprio umbigo; então sai um traba-
questão... (Sujeito 4) lho legal, mas a gente que trabalha na Prefeitura é
Além da divisão dentro de um setor específico assim: a gente está aqui e amanhã a gente está lá.
que alicerça uma fragmentação nos modos de pensar A gestão é muito enfocada nas pessoas aqui em
entre os profissionais de saúde que atuam nas US Santo André, eu acho; não é uma política. Então,
– principal porta de entrada para o usuário no SUS – essa questão da intersetorialidade acaba sendo
existe outro fragmento, uma incoerência entre o pen- prejudicada aí, porque não existe a política, existe
sar do trabalhador de saúde e o usuário do serviço, a pessoa. Se a pessoa não está, não acontece e é
como aponta o relato acima. Essa desconexão afeta ruim isso... (Sujeito 4)
diretamente a implementação de programas e ações O enfoque nas pessoas e não no projeto político,
pensadas pela gestão e/ou pelos atores do serviço, apontado pelo sujeito 4, elucida uma dificuldade de
pois, na maioria das vezes, não fazem sentido para continuidade e apropriação do Projeto pelos profis-
os profissionais e usuários envolvidos. sionais que estão engajados naquele momento e nos
Esse agir desconectado não se refere somente que os substituirão futuramente. Essa dificuldade
aos setores ou atores, está impregnado na própria tende a ser mais acentuada na esfera pública, local
US, arraigado nos cargos e profissões (como coloca no qual as pessoas são deslocadas de setores ou
o sujeito sete) regidos por órgãos reguladores espe- mesmo afastadas do governo, independentemente
cíficos (conselhos e administração verticalizada, da sua competência ou envolvimento com o proje-
por exemplo). Essa divisão dentro do setor vai ao en- to, pois as estruturas organizacionais municipais
contro do apresentado por Campos e Dimitti (2007) ainda estão organizadas num formato piramidal
que descrevem a segmentação para além dos cargos (Westphal e Mendes, 2000) e são centralizadas, o
e profissões, ou seja, está no desenho arquitetônico que dificulta a intersetorialidade, pois as “caracte-
da maioria dos ambulatórios, com uma sucessão de rísticas e as demandas de um território (dinâmica,
pequenas salas para consultórios ou procedimentos cidadão, natureza) é que determinam a extensão e
que, de tão desconectados, poderiam funcionar em a intensidade da intersetorialidade face ao objetivo
espaços geográficos distintos. a ser atingido” (Sposati, 2006, p. 135). Apesar de

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as diretrizes das políticas serem elaboradas por ção da grande demanda da população por práticas
pessoas, sua implementação ainda está refém dos corporais, começou a fazer parte da agenda do setor
interesses individuais (políticas das pessoas) ou de saúde após virar demanda no Orçamento Participa-
grupos políticos que fazem a gestão durante deter- tivo, mas ao longo da sua implementação a maior
minado período. parte do planejamento, desenvolvimento, avaliações
sistemáticas e seleção dos profissionais que condu-
O Programa Lazer e Saúde ou as práticas corporais
ziram as práticas foi realizada pelo Departamento
Outra questão importante com relação à interseto- de Lazer, enquanto que o DAS responsabilizou-se
rialidade identificada a partir das entrevistas gira pelo pagamento dos profissionais e participou dos
em torno da fragmentação do Programa, ou seja, ao momentos de avaliações pontuais.
mesmo tempo em que ele pode ser visto como uma De acordo com Westphal e Mendes (2000), os
iniciativa integrada, também pode ser entendido modelos de gerenciamento de projetos intersetoriais
como um conjunto de práticas corporais isoladas: podem ser divididos em três tipos de formato. O pri-
...Eu acho que o que nós temos hoje [de bom], para meiro pressupõe que as secretarias e outros órgãos
essas duas atividades, [Caminhando para a Saúde segmentados por áreas de conhecimento sejam
e CFM] é o nosso relacionamento com o Lazer e com substituídos por um corte territorial, seguindo a
a Secretaria de Educação... (Sujeito 3) lógica da descentralização e da intersetorialidade.
Com esse novo entendimento, caberia às secretarias
...então, talvez a potencialidade é criar situações de
regionais – não mais setoriais – a missão de identifi-
sociabilidade, criar situações de lazer mesmo, de
car os problemas de seu território geograficamente
lazer no grupo, de maneira a fortalecer os vínculos,
delimitado e planejar de forma integrada as ações
fortalecer os laços, de modo que a pessoa pratique
para a melhoria de qualidade de vida da população
atividade física com frequência, com prazer, enfim,
de sua jurisdição.
nos seus grupos. Isso eu acho que vale tanto para o
O segundo formato está baseado em mudanças
Caminhando quanto para o CFM... (Sujeito 1)
graduais e processuais, de modo que a sua essência
Essa desarticulação, acompanhada pela ausência não se fundamenta nem em mudanças de estrutura,
de uma unidade à qual Morin (1996) se refere, pode nem de legislação e sim em mudanças inovadoras,
ser entendida como uma dificuldade significativa na permanentes e graduais no aparato administrativo.
construção da ação intersetorial no Lazer e Saúde. Como no caso de Curitiba, exposto pelos autores,
Podemos perceber que os gestores envolvidos com o no qual a administração transformou todas as pro-
Programa se posicionam de maneira a segmentá-lo; postas de campanha em 24 projetos estratégicos e
suas referências são, na verdade, as práticas corpo- intersetoriais que permeavam por todos os setores
rais como o “Caminhando para a Saúde”, o CFM e o da estrutura organizacional, mantendo inclusive os
Lian Gong e não o Lazer e Saúde. cargos e funções gratificados. Cada um dos órgãos
Esse modo de compreender e intervir vai ao en- manteve sua função específica, porém agregou sua
contro da lógica que predomina no mundo do traba- especificidade na construção dos projetos interse-
lho, uma lógica dicotômica, em que as ações são seto- toriais que se desenvolveram através da lógica de
riais e muitos dos trabalhos chamados intersetoriais problemas e territórios.
são, na verdade, desenvolvidos integradamente, ou Inojosa6 (1999), apud Westphal e Mendes (2000),
seja, a integração acontece por projetos específicos aponta para um terceiro formato, que seria a articu-
que são definidos por determinado setor (Westphal lação dos setores em redes de parcerias entre órgãos
e Mendes, 2000), como no caso do Lazer e Saúde. O governamentais, não governamentais e a comunida-
Programa originou-se de uma ação experimental de para a resolução de problemas de uma população
do Departamento de Lazer, a partir da identifica- que vive em determinado território.

6 INOJOSA, R. M. Movimento municípios saudáveis: aspectos legais relacionados à operacionalização e implementação do planejamento
intersetorial. In: SEMINÁRIO NACIONAL MOVIMENTOS SAUDÁVEIS: ASPECTOS CONCEITUAIS, LEGAIS E OPERACIONAIS, 1999, São
Paulo. Anais... São Paulo: Faculdade de Saúde Pública/USP, 1999.

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Dono, parceiro ou colaborador explícita, com destaque para o conflito que envolve o
Outro ponto de destaque é o entendimento do que poder econômico, operacionalização e gerenciamen-
é uma parceria e quais as suas implicações no ge- to das atividades. No primeiro relato, que destaca o
renciamento de projetos intersetoriais. A interseto- pertencimento do programa, o entrevistado (sujeito
rialidade pode ocorrer em diferentes níveis e entre que atua no Departamento de Lazer) manifesta
diferentes esferas. A retórica da colaboração defende descontentamento com o desequilíbrio na parceria,
que os atores são iguais, isto é, têm igual poder de pois apesar de gerenciar o programa e fazer todo
colaborar entre si. No entanto, a questão da parceria o acompanhamento, o entendimento das pessoas
envolve a ideia de conflito, considerando que atores não muito envolvidas na gestão do programa é que
têm graus bastante variados de condições e de poder, eles (Saúde) é que são os donos. O trecho também
devido às iniquidades estruturais subjacentes, tais destaca a operacionalização, então o desequilíbrio
como o acesso ao dinheiro, informação ou poder da parceria parece não importar mais, ao contrário,
(Westphal e Mendes, 2000). aparece como algo positivo, como forma de liberdade
Assim, as questões relativas às parcerias encer- para agir sem “interferência”. O termo interferência
ram conflitos constantes que devem ser identifica- utilizado pelo entrevistado é bem interessante, pois
dos, debatidos e resolvidos para o aprimoramento está acompanhado da liberdade de gerenciar e defi-
da intersetorialidade e não podem ser entendidos nir, passando a ideia de que o parceiro atrapalha o
e simplificados como um simples trabalho em con- andamento dos trabalhos.
junto ou através de uma relação de posse. ...aqueles gerentes que ficam responsáveis pela
...parceria é complicado [...] eu sempre achei que a ação cotidiana têm interesse, têm um movimento
Saúde eram os nossos parceiros, mas eu ouvi ao muito interessante, agora as pessoas que se colo-
contrário, que nós é que somos parceiros da Saúde, cam como parceiros nem sempre se posicionam
apesar de gerenciarmos o programa e fazer todo o da maneira esperada, atuam ou se comprometem
acompanhamento.Os entendimentos sobre parceria da maneira esperada [...]. Além disso, como a gente
são complicados porque parceria é trabalhar em presta serviço em locais que não necessariamente
partes iguais, mas o que eu vejo hoje, o que preva- são da nossa gerência [...] e a gente encontra resis-
lece é o seguinte: quem mantém financeiramente o tências de outras ordens. Então, se você vai levar
programa é o dono dele e os demais são parceiros, um serviço novo, Caminhando para Saúde, por
mesmo que a participação seja só no financiamen- exemplo, ele acontece em Unidades de Saúde e essas
to. No caso da Saúde, tendo uma conversa com o Unidades têm responsáveis; muitas vezes esses
pessoal da comunicação, [...] ele usou exatamente responsáveis acham que a chegada desse programa
essa expressão “Ah! eu pensei que era ao contrário, trata-se de uma inovação, trata-se de um benefício
eu sempre ouvi dizer que vocês é que são parceiros para a Unidade e outras vezes ao contrário, as pes-
deles, porque lá na Saúde eles dizem... que o pro- soas acham que isso vai atrapalhar o andamento
grama é deles e vocês é que são parceiros”. Então da Unidade e me parece que a questão de fundo é
acho meio desconexa essa relação de parcerias, o um entendimento da política de saúde... (Sujeito 1)
entendimento que as pessoas têm sobre isso [...] A O entrevistado propõe uma classificação de in-
gente faz uma troca de verbas, até porque eles não teresse/eficácia a partir do envolvimento cotidiano
podem estar contratando para esse tipo de ativida- (cotidiano x esporádico). Quanto mais próximo do
de, para atender a terceira idade e aí a gente tem a cotidiano da ação, mais eficaz é o envolvimento
total liberdade de gerenciar, definir; sabe, eles não e quanto mais afastado, menor. Nesse sentido, a
interferem em nada... (Sujeito 2) gerente ou profissional de saúde que atua no local
O relato acima evidencia a confusão conceitual e aonde acontecem as práticas está mais envolvido
operacional na atuação conjunta no Lazer e Saúde. A com o programa que o gestor municipal. Na mesma
disputa de poder pela propriedade do programa está medida faz distinção entre a gerente da US e o parcei-

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ro, sugerindo que parceria é somente a relação que a gente se conversa pouco, sabe pouco dos outros
se estabelece na gestão do projeto e que os sujeitos departamentos... (Sujeito 5)
que se envolvem localmente não fazem parte dessa Verifica-se que a falta de comunicação não im-
parceria. pede apenas o conhecimento de ações implemen-
Em conclusão, podemos inferir, segundo a ló- tadas por outros departamentos da Prefeitura, mas
gica da eficácia adotada a partir do envolvimento dificulta o conhecimento do próprio Lazer e Saúde.
cotidiano, que os sujeitos que definem estratégias e A comunicação é a costura da ação intersetorial, à
recursos para o Lazer e Saúde têm baixo interesse/ medida que articula as partes, expõe os conflitos e
eficácia se comparados com os sujeitos ligados à
pode viabilizar soluções.
ação cotidiana, o que vai de encontro com a políti-
Campos e Dimitti (2007) vão mais além ao apon-
ca de promoção da saúde. A saúde como produção
tar não somente a importância de se facilitar a co-
social de determinação múltipla e complexa exige
municação entre os diferentes atores, mas também
a participação ativa de todos os sujeitos envolvidos
para a necessidade de se montar um sistema que
em sua produção – usuários, movimentos sociais,
produza compartilhamento sincrônico e diacrônico
trabalhadores e gestores do setor saúde e outros se-
das responsabilidades de acordo com cada projeto.
tores – na análise e na formulação de ações que visem
O papel de cada instância, de cada profissional,
a melhoria da qualidade de vida. Há necessidade de
deve ficar bem claro, é necessário que alguém se
que o processo de produção do conhecimento e das
responsabilize pelo segmento longitudinal e pela
práticas se faça por meio da construção de gestão
construção de uma lógica que procura integrar a
compartilhada (Brasil, 2006). Assim, fica explícito
contribuição dos vários serviços, departamentos
que o Programa Lazer e Saúde enfrenta dificuldades
e profissionais. Em geral, esse papel cabe aos inte-
na articulação das parcerias, seja nos variados graus
grantes da equipe de referência.
de poder, no envolvimento dos diferentes atores, seja
no entendimento sobre os conceitos básicos da ação De fato, o relato do sujeito seis aponta nessa
intersetorial. mesma direção quando se refere à falta de alguém
que assuma o papel da referência na comunicação
Comunicar é costurar entre os diversos departamentos da Prefeitura.
A dificuldade de comunicação também é outro ponto Apesar da importância da comunicação na costura
destacado nas falas dos entrevistados e se apresenta intersetorial das ações, ela não é ponto de destaque
como importante eixo na construção de ações inter- em muitas das definições de intersetorialidade que
setoriais eficazes. encontramos na literatura. A Rede Unida, por exem-
...hoje eu tenho dificuldade de falar com outros plo, define intersetorialidade como
departamentos. Lazer, por exemplo, eu não sei a articulação entre sujeitos de setores sociais di-
quem é a pessoa de referência, eu não sei quem é versos e, portanto, de saberes, poderes e vontades
a pessoa de referência no Serviço Social..., a gente diversos, para enfrentar problemas complexos. É
fica fechado na Saúde. Por exemplo, o Lazer faz uma nova forma de trabalhar, de governar e de cons-
atividades que poderiam ser passadas para nós truir políticas públicas que pretende possibilitar a
e que a gente poderia divulgar para esse grupo superação da fragmentação dos conhecimentos e
participar também. O Parque Escola tem cursos das estruturas sociais para produzir efeitos mais
gratuitos, coisas muito legais que a gente não tem significativos na saúde da população (Feuerwerker
como divulgar, porque a gente não sabe. A comuni- e Costa, 2000, p. 26).
cação não é muito bem feita. Acho que a gente tem Na mesma mão, Rodrigo Junqueira, Luciano
um problema de comunicação... (Sujeito 6) Junqueira, Rose Inojosa e Suely Komatsu nas suas
...que eu me lembre não [outras ações da rede bá- definições sobre intersetorialidade não incluem o
sica de saúde], porque é o que a gente sempre fala, aspecto da comunicação.

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Considerações finais de maneira que a sua gestão e execução não fique
restrita aos entendimentos individuais e, portanto,
A análise do processo de implementação do Pro- vulnerável às mudanças de cargos e setores comuns
grama Lazer e Saúde no município de Santo André na administração pública. Essa pactuação deve
revelou questões importantes para refletirmos sobre envolver não só os trabalhadores do serviço, mas, so-
os modos de organização da atenção e do cuidado bretudo, a comunidade atendida pois, dessa maneira
em saúde, tanto na dimensão positiva quanto na do os programas e projetos ficarão menos vulneráveis
enfrentamento das dificuldades relativas à opera- às mudanças na administração e possibilidade de
cionalização de iniciativas que associam práticas sustentabilidade da ação.
corporais e promoção da saúde no SUS. O aprofun- O quarto ponto diz respeito à necessidade da
damento na questão da intersetorialidade permitiu construção de redes de trabalho e o entendimento
compreender a complexidade e a importância dos de que essa forma de atuação coletiva envolve a
diversos atores e setores. Esse campo de forças – na ideia de parceria, ou seja, de conflito contínuo, pois
dimensão dos saberes e das práticas – é fundamen- a rede contempla diferentes atores com graus bas-
tal na identificação de novas potencialidades, de tante variados de condições de trabalho e de poder.
envolvimentos corresponsáveis e de uma perspec- Uma “socialização ativa”, como denomina Venturini
tiva integrada nos processos de implementação de (2010), uma intervenção de elevado profissionalismo
programas, projetos e políticas públicas. tanto do ponto de vista técnico quanto de custos,
Os seis subtemas discutidos neste artigo apon- que se baseia em um critério temporal de funções
taram fragilidade da ação intersetorial no Lazer e e que procura ativar a integração das redes sociais
Saúde e evidenciaram que essas barreiras são tam- e instituições envolvidas. Para tanto, dois são os
bém objeto de discussão e enfrentamento apontados passos importantes na construção dessa rede: o
na literatura acadêmica. Nesse sentido, destacamos reconhecimento do não conhecimento, ou seja, da
alguns pontos indicados nesta análise que devem ser insuficiência do que já é sabido e da necessidade de
levados em consideração no pensar e na construção se criar novas alternativas que dependam da influên-
de ações intersetoriais. cia e articulação de outros saberes; e a predisposição
O primeiro diz respeito à complementaridade dos vários segmentos em abrir mão de parcelas de
entre a intersetorialidade e a setorialidade, ou seja, a poder para viabilizar a ação intersetorial, o que,
intersetorialidade não é antagônica ou substitutiva como já dito, não pressupõe ausência de conflito ou
da setorialidade, ao contrário, para a eficácia de pro- de contradições, ao contrário, eles estão presentes
jetos ou programas é imperativo que as políticas se- o tempo todo e aprender a desenvolver tolerância,
toriais se complementem com a intersetorialidade. capacidade de escuta e de negociação faz parte do
O segundo diz respeito à necessidade de olhar o processo (Feuerwerker e Costa, 2000).
todo como unidade, preservando, contudo, a indivi- O quinto ponto, a comunicação, é a amarra de
dualidade das partes e permitindo que cada parte todas essas questões, uma das peças-chave para
elabore seu próprio desenho organizativo e arquite- montar o “quebra-cabeça” da intersetorialidade. A
tônico da ação, pois há especificidade nos diferentes comunicação eficiente entre os diversos atores e
lugares e nas equipes que irão atuar. Para tanto, é setores é a costura da ação intersetorial, ou seja, é ela
fundamental que a equipe de gestão e execução dos que estabelece a ligação entre os erros e os acertos,
projetos seja formada por alguns sujeitos com olhar os problemas e as soluções, o todo com as partes
atento ao contexto, o que possibilitará identificar, e, ao mesmo tempo, possibilita a ação conjunta, o
adequar e agregar tarefas de maneira a aproximar os reconhecimento do não conhecimento e explicita os
modos de pensar e agir dos trabalhadores e usuários, conflitos gerados pelos diferentes graus de poder e
dando significado e sentido à ação. de condições de trabalho.
Outro ponto, diz respeito à pactuação entre os Nesse sentido, podemos acrescentar às defini-
envolvidos com relação aos conceitos, objetivos ções de intersetorialidade novos elementos a partir
e diretrizes dos projetos, programas ou políticas, da análise dos resultados obtidos com esse estudo.

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A construção de linguagens e conceitos específicos JUNQUEIRA, L. A. P. Intersetorialidade,
para cada situação se mostraram relevantes na com- transetorialidade e redes sociais na saúde. Revista
posição da definição de intersetorialidade que não de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n.
foram destacados anteriormente ou encontrados na 6, p. 35-45, 2000.
literatura específica. Assim, poderíamos conceber a JUNQUEIRA, R. Agendas sociais: desafio
intersetorialidade como uma articulação entre sujei- da intersetorialidade na construção do
tos com diferentes poderes, saberes e experiências desenvolvimento local sustentável. Revista de
no planejamento, realização e avaliação de políticas, Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 6,
programas e projetos com o objetivo de construir p. 117-130, 2000.
novos conceitos e linguagens, sincrônicas e diacrô-
nicas7, para atender às necessidades e expectativas JUNQUEIRA, L. A. P.; INOJOSA, R. M.; KOMATSU,
das comunidades e grupos populacionais específicos S. Descentralização e intersetorialidade na
em determinado tempo e espaço geográfico de forma gestão pública municipal no Brasil: a experiência
a superar a fragmentação, de um lado, dos saberes e de Fortaleza. In: CONCURSO DE ENSAYOS
práticas e, de outro, das estruturas sociais. DEL CLAD “EL TRANSITO DE LA CULTURA
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7 O termo sincrônico refere-se à comunicação estabelecida pelo uso da palavra articulada ou escrita entre pessoas que ocorre ao mesmo
tempo. O termo diacrônico também se refere a esta comunicação, porém ao longo do tempo.

202 Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.191-203, 2014


VENTURINI, E. O caminho dos cantos: morar
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Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, p. 47-61, 2000.

Recebido em: 26/04/2012


Reapresentado em: 17/06/2013
Aprovado em: 21/06/2013

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