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O papel do Estado na chacina de Brumadinho

No dia 25 de janeiro, rompeu-se a barragem de rejeitos de minério de ferro pertencente a


VALE S.A., no município de Brumadinho, em Minas Gerais. Até o momento em que essas linhas são
escritas, já eram contabilizadas 325 pessoas entre mortos e desaparecidos. Já é, de longe, o maior
número de mortes em acidentes do trabalho na história do país, além do dano ambiental
incalculável. O fato, em si mesmo chocante, poderia passar por mero acidente, por mera
fatalidade, não fosse o caso de, três anos antes, outra barragem de rejeitos de grande porte ter se
rompido em Mariana. Já diz um ditado popular: um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. E
realmente. Este dito “acidente” é apenas a ponta do Iceberg de um longo processo que iremos
narrar alguns do principais episódios logo adiante.
Tudo acontece justamente quando as estatais, as poucas ainda não privatizadas, são o alvo
principal do discurso de Jair Bolsonaro e de seu “posto Ipiranga” para temas econômicos, Paulo
Guedes. As estatais seriam o grande vilão da economia nacional. Ineficientes, aparelhadas por
partidos políticos sua venda seria a solução para o atual deficit no orçamento federal. É inegável
que tais críticas tem sua razão de ser. As pessoas estão cansadas de serviços púbicos precários, dos
sucessivos escândalos de corrupção no seio das instituições estatais. Mas a segunda tragédia
consecutiva em uma empresa privada que por mais de uma década foi considerada o modelo
perfeito de privatização, não deixa de colocar a pergunta oposta. Em que sentido as empresas
privadas são eficientes? Eficientes para quem? E o que é pior. Sendo o Estado responsável pela
fiscalização, pela criação de barreiras ambientais e tudo o mais, perguntamos: qual seria a relação
entre Estado e iniciativa privada? Quais interesses representam? O caso da VALE S.A. é ilustrativo
para discutirmos essa questão.
A ineficiência, no caso da tragédia de Brumadinho, salta aos olhos. As técnicas para
monitoramento de barragens já estão consolidadas há décadas. Ainda assim, falharam
copiosamente. Não fosse o bastante, já existe tecnologia economicamente viável que permite o
tratamento de rejeitos a seco, sem criação de barragens; método que a VALE apenas utiliza, no
melhor dos casos, em novas minas, mantendo o arcaísmo das antigas. Além disso, construiu sua
sede administrativa e o refeitório dos trabalhadores que atuam na mina logo abaixo da barragem.
A situação beira o ridículo no caso dos alarmes, que não foram ativados porque, segundo o
presidente da VALE, em todas hipóteses de colapso testadas, a empresa não levou em conta o pior
cenário possível: o rompimento abrupto da barragem. Ora, o ABC de qualquer estratégia de
segurança é que sempre se começa pelo pior cenário possível. Mas a VALE, com toda sua
eficiência, não levou isto em conta.
Toda essa situação aberrante nos faz questionar sobre a conivência do Estado no processo
e, de fato, é o que acontece. A Agência Nacional de Mineração (ANM) informou que possui apenas
35 fiscais capacitados para atuar nas 790 barragens de rejeitos de minérios em todo território
nacional. Em média, é quase um fiscal por Estado. Como isto é possível? Muito simples. O governo
federal não fiscaliza diretamente as barragens, mas apenas os laudos produzidos pelas empresas
contratadas pelas próprias mineradoras. A falha no mecanismo salta aos olhos. É a VALE quem
contrata as empresas que irão fiscalizar a própria VALE. O contrato pode ser rompido se o serviço
de fiscalização “não for satisfatório”. É como se a análise do seu imposto de renda fosse atestada,
legalmente, por um contador que você mesmo contratou. Até mesmo licenciamento ambiental é
realizado a partir de laudos feitos por uma empresa contratada pela parte interessada.
Toda essa terra de ninguém não é por acaso. São as próprias mineradoras quem financiam
os governos e parlamentares responsáveis por definir as regras ambientais da mineração. Um caso
exemplar foi a aprovação, em 2013, do Novo Código da Mineração (PL 0037/2011). Os relatores
do projeto, os deputados Leonardo Quintão (PMDB-MG) e Gabriel Guimarães (PT-MG),
receberam, nas eleições de 2014, cerca de 5 milhões e 2,5 milhões de reais respectivamente de
doações de campanha. O primeiro teve 42% de seus recursos arrecadados com empresas ligadas a
mineração e o segundo 20%. E a lista é muito ampla. Dos 27 deputados que integraram Comissão
Especial do Novo Código de Mineração, 20 receberam doações de empresas ligadas à mineração
em suas campanhas eleitoras de 2014. Esses deputados integram partidos como o PTB, PT, PSDB,
DEM, PP, PSC, PC do B entre outros. Por vezes, a doação foi maquiada, ou seja, indireta. Feita ao
partido e apenas depois repassada ao candidato. Montantes expressivos de doação de
mineradoras também podem ser verificadas nas campanhas de Dilma Rousseff e também de Aécio
Neves, os dois principais nomes da disputa presidencial aquele ano.
Não é de se espantar, portanto, a existência de situações tão absurdas como aquela de
Brumadinho, validadas pelo Novo Código da Mineração de Dilma Rousseff. Mas existe outras
peças importantes no tabuleiro. Apenas 20 dias após a ruptura da barragem em Mariana, o
governo de Minas, Fernando Pimentel do PT, flexibilizou ainda mais as regras de licenciamento
ambiental no Estado. Não sem razão, entre fevereiro de 2017 e janeiro de 2019 apenas um projeto
minerário foi barrado na câmara técnica do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas
Gerais (Copam) em 40 avaliações realizadas. Esse licenciamento foi utilizado pela VALE para
ampliar a produção em Brumadinho, incluindo a reutilização dos rejeitos da barragem que se
rompeu. O argumento de Pimentel foi o de desburocratizar e simplificar os trâmites na mineração.
Familiar, não?
Pois bem, este discurso – desburocratizar, facilitar os licenciamentos etc… – foi mil vezes
repetido por Jair Bolsonaro em toda sua campanha eleitoral. Segundo ele, em seu discurso no
Fórum Econômico Mundial em Davos, "somos o país que mais preserva o meio ambiente". Ao
mesmo tempo, o secretário-geral de privatizações de Bolsonaro, Salim Mattar, afirmou que a “Vale
não fez mal a ninguém”. O que vemos é o exato oposto. A quase inexistência de fiscais do governo,
segurança controlada pela própria empresa, licenciamentos fáceis, ágeis e sem qualquer critério.
Os danos desse processo salta aos olhos.
As tragédias de Mariana e Brumadinho mostram a olhos vistos o que significa meio
ambiente e quem sofre os danos dessa aliança espúria entre iniciativa privada e seus agentes
estatais. A defesa do meio ambiente não tem nada que ver com tomada de posição a favor de
animalzinhos e plantinhas, de uma natureza externa e intocável; como que nos fazer acreditar
certos ambientalistas. Meio ambiente é onde vivemos, no interior da qual extraímos nossa
sobrevivência por meio da atividade de milhões de trabalhadores. Os rejeitos de minério lançados
em bacias fundamentais como a do rio Doce e do rio São Francisco atingiram com um só golpe
dezenas de milhares de agricultores, pescadores dentre muitas outras atividades delas
dependentes. A questão, então, não é homem versus natureza, mas que homens se beneficiam
desse processo e que outros homens são condenados ao verem atingidos com um só golpe os
meios de seu sustento, seu trabalho, sua vida. A questão não é o fim da mineração, mas que tipo
de mineração almejamos, para tender quais interesses.
No caso da VALE a resposta é muito clara. Como sabemos, ela foi privatizada faz 20 anos,
por míseros 3 bilhões de dólares. Sim, míseros. Para se ter uma ideia, desde 2000, a VALE teve
mais de 86 bilhões de dólares em lucro líquido. O lucro líquido é o que sobra após descontar todas
as despesas, tanto produtivas, como financeiras. Desse montante, 41,6 bilhões foram entregues
aos acionistas na forma de dividendos. Isto é 13 vezes mais que o valor pelo qual a VALE foi
vendida. Mas isto não é tudo.
Justamente quando foi privatizada, em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardozo do
PSDB, entrou em vigor a Lei Kandir, isentando de imposto a exportação de produtos
semielaborados (ou não industrializados). Associado a isso temos os mais baixos índices de
royalties de minério do mundo: o CFEM. Os royalties não são impostos, trata-se de uma
compensação que as mineradoras pagam pelo minério que elas extraem do subsolo. Para se ter
uma ideia, o que o Estado de Minas Gerais recebeu de royalties em todos os últimos 15 anos
jamais atingiu 0,5% de sua arrecadação anual. Segundo, estudo do Fundo Monetário Internacional
(2007), o Brasil foi o país que apresentou a menor parcela do Estado nos benefícios totais relativos
a projeto de minério de ferro. Estudo esse que incluiu países como Austrália, Canadá e África do
Sul. A exploração da mineração no Brasil é, portanto, para os acionistas e empresários, a
verdadeira galinha dos ovos de ouro. Um negócio muito eficiente.
O discurso, portanto, de que a VALE passou a pagar mais recursos ao Estado depois que foi
privatizada, esconde que não foi a eficiência do processo produtivo a chave desse processo, mas a
verdadeira escalada na demanda internacional do produto na esteira do crescimento Chinês. Logo
após ser privatizada, o preço da tonelada bruta de minério de ferro saltou de pouco mais de 30
dólares para quase 200. Esse processo desencadeou uma produção minerária em massa, com
recordes de produção sendo quebrados a cada ano, de forma descontrolada. Alguma relação com
a situação das barragens de rejeitos? Toda. Com a escalada nos preços todo tipo de fiscalização,
licenciamento e demais medidas de segurança são quebradas uma após a outra. Ao mesmo
tempo, quando o preço do minério declinou a partir de 2013, cerca de 10 mil trabalhadores foram
colocados na rua nos dois anos seguintes, apesar disso, os recordes de produção continuaram a ser
quebrados, anos após ano, desde então. Menos trabalhadores, mais produção.
Finalmente, toda essa enorme quantidade de riqueza e produção, extraída sob as custas do
suor e da vida de milhares de trabalhadores, jogados na rua na primeira oportunidade, escoam,
predominantemente, para fora do país. Com um agravante bastante recente, ocorrida ainda no
governo de Michel Temer. Os acionistas estrangeiros passaram não apenas receber a maior parte
dos lucros da VALE, o que acontece faz muitos anos, mas também a controlar as decisões da
empresa. A situação é a seguinte. As ações da VALE se dividem em ordinárias e preferenciais.
Ambas dão acesso por igual aos lucros da empresa, mas somente as ações ordinárias tem poder de
voto na assembleia da VALE. As ações preferenciais pertencem, em sua maior parte, a acionistas
estrangeiros. Com as ações ordinárias era diferente. O controle acionário da Vale ainda era,
indiretamente, feito por instituições estatais. Isto era assim porque as ações ordinárias da VALE
pertenciam em sua maior parte a uma empresa chamada VALEPAR, constituída, em sua maior
parte, por fundos de pensão e empresas ligadas ao estado.
Acontece que em 2017 as ações preferenciais da VALE, com anuência da VALEPAR, se
transformaram em ordinárias. Com isso, o capital estrangeiro passou a representar 51% das ações
ordinárias da empresa. Com essa nova situação, não apenas a riqueza produzida pela VALE escoa
para o capital internacional, como são eles que definem o futuro e as medidas tomadas pela
empresa. Não sem razão, o atual presidente da VALE Fabio Schvartsman declarou: “A partir desta
noite, a Vale será uma empresa sem controlador. Esse assunto de interferência do governo eu
considero resolvido. Esse assunto é página virada. O governo agora, como acionista minoritário, é
tão bom, tão correto e tem que ser tratado como qualquer outro acionista.”
Quem controla a VALE, portanto, como diz Fábio Schvartsman, é o mercado, sobretudo o
mercado internacional. Nem é preciso perguntar o quão interessado este mercado está no
desenvolvimento nacional, no atendimento das necessidades dos trabalhadores brasileiros e na
manutenção do ambiente no interior do qual eles produzem e reproduzem as condições de sua
sobrevivência. Este mercado está interessado, obviamente, unicamente no montante de dinheiro
que irá escoar para suas contas bancárias ao fim de cada ano.
Por tudo isso, vemos que a tragédia foi sim um assassinato, com cumplicidade dos governos
federais e estaduais envolvidos em todo o processo desde sua privatização em fins dos anos de
1990. Os diretores da VALE devem sim ser punidos de forma exemplar, mas não é suficiente. Deve-
se exigir a suspensão imediata da remessa de lucro da VALE para o pagamento das vítimas e
limpeza do meio ambiente, não importa quantos anos sejam necessários para realizar esse
processo. Importante lembrar que as vítimas não são apenas aqueles que perderam sua vida em
Brumadinho, envolve também todos atingidos pelos rejeitos de minério no curso do córrego do
feijão e do rio Paraopeba. Este processo também acentua a necessidade de reestatização da
empresa, mas sob novos critérios. A VALE deve ser controlada pelos seus trabalhadores, bem como
pelos habitantes das cidades e regiões impactadas pela atividade da mineração. É isto ou o Brasil
continuará a ser usado para alimentar as contas bancárias de um pequeno montante de
empresários estrangeiros e, também, usado como descarga dos empreendimentos destes no país.

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