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04/10/2018 “Selva de pedra”?

A floresta e a cidade – partes sem um todo

“Selva de pedra”? A
floresta e a cidade
Publicado em 9 de julho de 2015 por Alexandre Nodari

Abaixo, as notas um tanto soltas (e sobre um tema que não domino) que apresentei na mesa “A
cidade e a biopolítica” do Seminário Direito, Espaço e Território: A disputa da Cidade, realizado
pelo PET-DIREITO-UFSC em outubro do ano passado (2014).

“Selva de pedra”? A floresta e a cidade

“Os urbanistas revolucionários não se preocuparão apenas com a circulação de coisas, nem
apenas com homens paralisados num mundo de coisas. Tentarão romper essas cadeias
topológicas por meio da experimentação de terrenos, para que os homens transitem pela
vida autêntica” (Guy Debord)

1. Estamos acostumados a pensar a topologia político-econômica dos Estados-Nação por meio do


binômio campo (lavoura) e cidade. Giorgio Agamben, provavelmente jogando com esse par,
sugeriu que, na Modernidade, não é a cidade que ocupa a posição de paradigma político, nem o
campo enquanto lavoura, mas outro tipo de campo, o campo de concentração: o estado de exceção
e não o estado de direito, a captura do fora e não a contraposição dentro e fora caracteriza nossa
contemporaneidade política. Não discordo em absoluto desse diagnóstico, e acredito que a
repressão ainda em curso às manifestações de junho de 2013 e suas repercussões é uma prova
cabal de que, hoje em dia, a exceção se tornou a regra. Todavia, gostaria aqui de falar de uma outra
contraposição, que a meu ver se sobrepõe a essas duas: aquela entre cidade e campo, de um lado,
e, de outro, floresta e sertão, entendidos enquanto wilderness, terra entrelaçada, etc.. Não vou
apresentar aqui exatamente um relato coerente ou teórico sobre essa contraposição, mas invocar
três “imagens” que sugerem que estamos diante não só de espaços distintos, mas de topologias
políticas diferentes.

2. Pra começar, então, gostaria de partir de uma figura que é central para a formulação
agambeniana de biopolítica: o homem lobo do homem, homo homini lupus, de Hobbes. Na carta-
dedicatória que abre o livro sobre o cidadão, Hobbes afirma que, enquanto dentro dos muros da
cidade, o homem é como um Deus para o homem (Sêneca) e o cidadão reconhece a si mesmo no
outro, fora deles, na relação entre cidades (que seria a mesma que entre indivíduos no estado de
natureza), o homem é o lobo do homem (homo homini lupus) – e o que está fora dos muros da
cidade é justamente a floresta (foris – o que está fora dos portões). É preciso levar em conta que
esse padrão duplo (homem-Deus na cidade, por um lado, e homem-lobo na floresta, por outro)
remete invariavelmente à “conquista” do Novo Mundo, e à formação daquilo que Carl Schmitt
chamou de o primeiro Nomos da Terra, a primeira tomada do mundo em sua totalidade: para que
se desse a mitigação da guerra em solo europeu, era preciso uma “linha divisória”, para além da
qual não havia nenhum limite – os mares e as terras da América, que os europeus, pela sua
“superioridade espiritual” (Schmitt), poderiam simplesmente tomar. E até hoje é esse duplo
padrão que guia a lógica ocidental da guerra: para citar um diplomata inglês atual (2002), Robert
Cooper: “O desafio do mundo pós-moderno é se acostumar à idéia de padrões duplos [double
standards: dois pesos, duas medidas]. Entre nós, operamos sobre a base de leis e segurança aberta
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e cooperativa. Mas ao lidarmos com estados à moda antiga fora do continente pós-moderno da
Europa, precisamos voltar à métodos mais brutais [roughers] de uma era mais antiga – força,
ataque preventivo, fraude[deception], o que for necessário para lidar com aqueles que vivem no
mundo (…) de cada estado por si. Entre nós, mantemos a lei, mas quando estamos agindo na
selva, devemos também usar as leis da selva”.

É preciso sublinhar aqui que a relação entre a teoria hobbesiana e a conquista da América não é
apenas contextual. Hobbes, de fato, fornecia, no Leviatã, como exemplo mais próximo do estado
de natureza “os povos selvagens de muitos lugares da América”, em que “a vida do homem é
solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”. Mas, além disso, se a fórmula homo homini
lupus provém de Plauto, em que ela aparece de forma gramaticalmente distinta (Lupus est homo
homini), ou seja, da antiguidade, há uma ocorrência muito mais próxima de Hobbes, e
textualmente idêntica. Em 1643, o jesuíta Barthélemy Vimont publica um relatório do que
presenciara no ano anterior na Nova França, o que incluía uma cena de canibalismo ritual
praticado pelos iroqueses. Ao descrevê-la, o padre ressalta não só a “crueldade” dos devoradores,
como também o “estoicismo” do devorado – traços que estamos acostumados a ver comparecer
nos relatos sobre a antropofagia ritual tupi –, para concluir com uma fórmula que pouco tempo
depois entraria para sempre na teoria do Estado moderno: “eles lhes cozinham e os fervem e
depois os comem com uma raiva deliciosa. Homo homini lupus; o homem se torna um lobo
perante o homem quando se deixa governar pelos Demônios”. O homem lobo do homem
hobbesiano é, antes de tudo, o índio canibal, aquele que vive na floresta, fora das cidades – o que
quer dizer também fora da civilização, fora da humanidade: o que o canibal americano não
reconheceria naquele que devora é o comum pertencimento à espécie humana, o estatuto de
Homem do outro, ignorando a semelhança, devorando até mesmo um integrante da própria
espécie, algo que, supostamente, nem os demais animais fariam, exceto, justamente, o lobo, que,
ademais, ainda comeria humanos. O canibal é um inimigo do gênero humano – termo do Direito
Internacional que indica o estatuto dos piratas, e, mais modernamente, dos terroristas (e essa
associação entre selva e terrorismo não é apenas uma associação livre, como se pode ver pela
citação que fiz do diplomata inglês).

Assim talvez se compreenda melhor porque Hobbes sublinha a “sabedoria” de uma afirmação de
Pôncio Telesino, segundo a qual a cidade estaria sempre ameaçada por lobos e depredadores de
sua liberdade, a menos que as florestas em que estes se alojam fossem “arrancadas pela raiz”. A
floresta apresenta-se, portanto, como exterioridade à cidade (Estado), habitat do silvaticus, do
selvagem (o Fora da floresta é também um fora da condição civilizada), o qual só pode ser
eliminado completa e eficazmente com a modificação ou aniquilamento do espaço geográfico-
político (e mesmo ontológico) que ocupa – ou seja, por meio de uma retopologização. Enquanto
existirem florestas, há espaços para a deserção, para a fuga, para a desobediência civil de Thoreau.
A eliminação de fato das florestas, desse modo, aparece como um projeto ontológico-político de
colonização do fora, a eliminação do que é topograficamente externo ao Estado, a expansão dos
muros da cidade – ou, em termos atuais, da fronteira agrícola. Portanto, se levarmos adiante o
raciocínio e a imagem de Hobbes (o que os Estados parecem fazer com gosto), o estado de
natureza só seria superado com uma cidade universal, um grande império cosmopolítico, com a
domesticação ou destruição do que (de quem) está lá (aqui) fora. Por essa razão, a proposta de
José de Acosta, em meio à “conquista” do Novo Mundo, de levar os selvagens, os homines
sylvestres, “de sylvis ad urbes” deve ser compreendida em todos os sentidos possíveis, inclusive o
extremo de erradicar tanto o sylvestre quanto a sylvis, convertendo-a em urbes. Dito de outro
modo: tratava-se de converter os lobos em ovelhas. É preciso insistir nesse ponto, pois quando
Ildefonso Cerdá, em 1867, cunha o conceito de “urbanismo” na sua Teoria geral da urbanização, é
justamente um processo civilizatório que ele tem em mente: “[no homem,] o instinto de
socialização produziu a urbanização e, na urbanização, a inteligência e os nobres sentimentos
encontraram o impulso necessário para criar os elementos civilizatórios”. (Eu não vou ter tempo
aqui de falar do Robinson Crusoe, que talvez seja o verdadeiro paradigma da urbanização
enquanto colonização, de civilização da floresta, mas fica a menção)

3. Como dissemos, Hobbes situava o estado de natureza na América. Todavia, o estado de guerra
de todos contra todos em que viviam os ameríndios, segundo Hobbes, não era total: entre eles,

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parecia haver um “governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência


natural”, ou seja, a promiscuidade mitigava a guerra. Não vou fazer aqui uma desconstrução
ideológica dessa formulação, porque o que me interessa é contrapor perspectivas e ver a
“produtividade” de tal ideologia, pois, de fato, durante a colonização europeia da América um dos
grandes entraves foi a promiscuidade (sexual, de crença, etc.) não só dos índios, como dos
brancos com os índios: entrelaçamento, transformação, indistinção: promiscuidade social. Nos
primeiros livros publicados, ainda que em espanhol, sobre o Brasil – em 1551 e 1555 –,
compilações de cartas dos jesuítas divulgando a “missão”, descrevendo paisagens, aventuras,
comportamentos indígenas e cristãos, narrando fatos importantes e desprezíveis. aparece relatada
a “inconstância da alma selvagem” (o fato dos indígenas acolherem a catequese jesuíta
“alacremente por um ouvido” e ignorá-la “com displicência pelo outro”) que, já na História da
província Sancta Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil será retratada como uma constante,
por assim dizer, ameríndia. A “causa de todos os males”, incluindo este, residiria, segundo carta do
Padre Navarro, no fato de “que os gentios comumente não têm superior, (…) têm tal lei entre si
que recebendo o menor deles uma injúria dos cristãos se juntam todos a vingá-la. São
paupérrimos, não têm coisa própria nem particular, antes comem em comum o que cada dia
pescam e caçam”. Entretanto, o maior empecilho da missão jesuítica, ironicamente, não eram os
indígenas, mas os primeiros colonizadores cristãos – em sua maioria degredados e desterrados,
muitos com a morte civil decretada pelo Direito português, em suma, sem lei. Assim, por exemplo,
narra o mesmo Navarro em outra carta que, em três vilas próximas a São Vicente, todos os
habitantes “estavam em gravíssimos pecados, assim os casados como os solteiros, e muito mais os
sacerdotes”: haviam adquirido hábitos e comportamentos indígenas: “Aqui me disseram que, no
campo, a quatorze ou quinze léguas daqui, entre os índios, estava derramada alguma gente cristã,
e passava-se o ano sem ouvir missa e sem se confessarem, e andavam numa vida de selvagens”. Ao
lado da inconstância da alma selvagem, a inconstância da alma cristã, aquilo que Araripe Jr.
chamou de “obnubilação brasílica”: o devir-selvagem do branco. É sintomático que esse local
apontado por Navarro seja hoje um dos maiores polos urbanos do país, em São Paulo. De fato, a
urbanização, em diferentes formas, foi o modo privilegiado de estabelecer a colonização, de
civilizar o “selvagem”. E talvez o paradigma disso sejam as chamadas “reduções” jesuíticas, em que
índios de diversos povos e etnias eram retirados da “floresta” e de suas aldeias e reunidos, pela
Companhia de Jesus, em uma cidade totalmente planejada, de cabo a rabo. Aqui vale citar o que
diz a respeito delas Foucault em 1967, numa palestra ao Círculo de estudos arquiteturais de Paris:
“os jesuítas fundaram uma colônia maravilhosa onde a vida por inteiro era regulamentada, onde
reinava o regime mais perfeito do comunismo, pois as terras e os rebanhos pertenciam a todos.
Apenas um pequeno jardim era atribuído a cada família, as casas eram dispostas em fileiras ao
longo de duas ruas que se cruzavam em ângulo reto. Ao fundo da praça central do vilarejo havia
uma igreja; em um lado, o colégio; no outro, a prisão. Do entardecer ao amanhecer, do amanhecer
ao entardecer, os jesuítas regulamentavam meticulosamente toda a vida dos colonos. O toque
do angelus soava às cinco horas da manhã, para o despertar; depois, marcava-se o início do
trabalho; ao meio dia, o sino chamava as pessoas, homens e mulheres que trabalhavam no campo;
às seis horas, reunião para o jantar; e, à meia-noite, o sino soava de novo e era então o que se
denominava sino do ‘despertar conjugal’” (contra a promiscuidade, o regramento sexual para a
reprodução, visando aumentar a população indígena, monstruosamente diminuída justamente
pelo “mau encontro” com o branco). Uma cidade de deus, ou se quiserem, um verdadeiro inferno,
tanto faz. As reduções são, por um lado, uma expansão extra-muros da vida monacal, da vida
totalmente administrada dos monastérios medievais, e, por outro, uma forma concreta daquelas
utopias modernas que são consequência, tanto positiva quanto negativa do “descobrimento” do
Novo Mundo: positiva, na medida em que os homens totalmente diferentes da América, com suas
sociedades igualmente distintas daquelas europeias mostraram a contingência dos hábitos, da
socialidade, da economia, etc. ocidentais, abrindo caminho para a imaginação de novas formas de
vida; negativa porque as utopias também são tentativas de regular e domesticar ao máximo essa
diferença, nos mínimos detalhes.

Pode-se argumentar que estamos longe dos séculos XVI e XVI e desse modelo de colonização.
Todavia, se tomarmos um paradigma do urbanismo brasileiro do século XX, Brasília, veremos que
há uma continuidade não só na simbologia urbanizadora. Assim, o próprio Lúcio Costa relata que
seu projeto urbanístico para a construção da capital, o Plano Piloto, “Nasceu do gesto primário de
quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o
próprio sinal da cruz (…) Trata-se de um ato deliberado de posse, de um gesto de sentido ainda
desbravador, nos moldes da tradição colonial.”. Na “Prece natalícia de Brasília”, composta por
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Guilherme de Almeida e lida por ele em 21 de abril de 1960, dia de inauguração da cidade, na
cerimônia que representou a transferência oficial da Capital, é justamente essa linha evolutiva,
mas contínua que é ressaltada:

Agora e aqui é a Encruzilhada Tempo-Espaço.


Caminho que vem do Passado e vai ao futuro;
caminho do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste:
caminho de ao longo dos séculos,
caminho de ao longo do mundo:
– agora e aqui todos se cruzam
pelo sinal da Santa Cruz.

A seguir, ele associa a cruz – “padrão de posse”, aos cruzados, à descoberta e, por fim, à luta contra
os índios: a cruz contra a flecha:

Crucifixo foi a arma que, nas selvas,


contra as flechas ervadas empunharam
Ad majorem Dei gloriam as missões [reduções].
Signo heróico daqueles que partiam
do cruzeiro dos adros aos sertões,
foi o gesto, na gesta das Bandeiras,
do que elevou a mão para benzer-se
e levou-a depois à cruz da espada.

É, portanto, essa sucessão, simbólica mas também material, na qual Brasília se inscreve:

…E, um dia augural,


num alvo papel pregado à prancheta
a cruz sempiterna pousou sua sombra
e – um traço, outro traço –
(…)
dois riscos cortando-se em ângulo reto, e, pois, de uma cruz
nasceste, BRASILIA!
(…)
Quadrilátero,
com suas quatro hastes que são quatro séculos,
e são quatro pontos cardeais,
e são quatro ciclos de ação:
o da Descoberta, o do Bandeirismo,
o da Independência e o da Integração.

Sendo um ápice desses quatro séculos de história, não é um acaso que a nova capital tenha
excluído do traçado da cruz justamente aqueles que a traçaram – os operários-construtores da
capital não ocuparam o Plano-Piloto, a especulação os empurrou para zonas afastadas, formando
as cidades satélites, produzindo, nas palavras de Geraldo Ferraz “o fenômeno mais virulento da
proliferação da favela”:

No cimento duro, de aço e de cimento


Brasília enxertou-se, e guarda vivo,
esse poroso quase carnal da alvenaria
da casa de fazenda do Brasil antigo. (João Cabral)

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A cidade utópica, a cidade planejada, associa-se, assim, ao projeto colonizador: não há um corte
entre cristianização e modernidade, entre a cruz e o avião que simbolizam Brasília: trata-se de um
mesmo processo de conversão dos lobos em ovelhas e das ovelhas em máquinas, em carros. Pois se
há uma coisa que caracteriza Brasília é a “falta vital de esquinas”, para citar uma conhecida crônica
de Clarice Lispector, que dizia preferir o “entrelaçamento carioca” e é uma espécie de resposta a
Guilherme de Almeida: ela fala que Brasília fica em “lugar nenhum”, “um futuro que aconteceu no
passado”. Mas é também uma crítica às vanguardas, como a poesia concreta, que celebraram a sua
construção: “Brasília é uma cidade abstrata. E não há como concretizá-la. É uma cidade redonda e
sem esquinas (…). Em Brasília não se vive: se mora. (…) Brasília é um mistério classificado em
arquivos de aço. Tudo lá se classifica”. Construída durante o governo desenvolvimentista
conhecido pela indução à indústria automobilística, Brasília constituiu-se como uma cidade em
que não só em é preciso carro para se locomover; parece mesmo uma cidade projetada para o
movimento automotivo, instanciação simbólica e urbanística da modernização: cruz, carro, avião.
“Em Brasília não existe cotidiano”, afirma Clarice: “Brasília é um aeroporto”, puro trânsito, pura
ordenação do trânsito. E aqui é interessante sublinhar as críticas da vanguarda situacionista a esse
modelo urbanístico, críticas emitidas à mesma época da construção de nossa capital:

“O desenvolvimento do meio urbano é a educação capitalista do espaço. Ele representa a


escolha de certa materialização do possível, com a exclusão de outras (…) O trânsito é a
organização do isolamento de todos. Constitui o problema preponderante das cidades
modernas. É o avesso do encontro: um sugador de energias disponíveis para eventuais
encontros ou para qualquer espécie de participação”.

“O erro de todos os urbanistas é considerar o automóvel individual essencialmente como um


meio de transporte. A rigor, ele é a principal materialização de um conceito de felicidade que o
capitalismo desenvolvido tende a divulgar para toda a sociedade. (…) O tempo gasto nos
transportes, como bem observou Le Corbusier, é um sobretrabalho que reduz a jornada de
vida chamada livre. Precisamos passar do trânsito como suplemento do trabalho ao trânsito
como prazer”. (Guy Debord)

(Vou deixar essas citações sem comentário, por falta de tempo e competência para esmiuçá-los,
apenas para apontar que não precisamos apenas pensar formas mais eficazes e justas de
mobilidade urbana, mas repensar a própria noção de mobilidade e de encontro: o trânsito não
como meio, mas como desvio, como mecanismo de entrelaçamento e não de engarrafamento).

4. Pra terminar, então, a última imagem que eu gostaria de evocar é a perspectiva inversa à que
vínhamos trabalhando: não a do projeto civilizador que se apossa das florestas e dos sertões, os
espaços “vazios”, mas a dos povos da floresta diante das cidades. Duas versões dessa imagem: a
primeira, da época da Conquista da América, e que é a célebre paráfrase feita por Montaigne do
que disseram os índios americanos que foram a Rouen durante o reinado de Carlos IX (1550-
1574): “Disseram que em primeiro lugar achavam muito estranho que tantos homens adultos,
portando barba, fortes e armados, que estavam ao redor do rei (é provável que estivessem falando
dos suíços de sua guarda), se sujeitassem a obedecer a uma criança, e que ao invés não se
escolhesse algum deles para comandar; em segundo lugar (eles têm um tal jeito de linguagem que
chamam os homens de ‘metade’ uns dos outros) que haviam percebido que existiam entre nós
homens repletos e empanturrados de toda espécie de regalias, e que suas metades estavam
mendigando-lhes nas portas, descarnados de fome e pobreza; e achavam estranho como essas
metades aqui necessitadas podiam suportar tal injustiça sem agarrar os outros pelo pescoço ou
atear fogo em suas casas”.

A segunda, dos nossos dias (1991), é de Davi Kopenawa, xamã e liderança Yanomami, e com ela
encerro minha fala: “Fui falar numa cidade ainda maior do que aquelas que eu já conhecia. Seus
habitantes o chamam de ‘Nova Iorque’. Eu queria ganhar seu apoio para convencer o governo do
Brasil a evitar que os garimpeiros devastassem nossa floresta e aniquilasse seus habitantes.
Quando cheguei a Nova Iorque, me surpreendi com o fato da cidade parecer um denso conjunto de
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penhascos rochosos nos quais pessoas brancas viviam empilhadas uma em cima da outra. Ao pé
dessas montanhas, multidões de pessoas se moviam muito rápido e em todas as direções, como
formigas. Elas começavam numa direção e viravam, e então iam na outra. Elas olhavam para o
chão o tempo todo e nunca viam o céu. Eu disse a mim mesmo que essas pessoas brancas devem
ter construído tais elevadas casas de pedra após desmatar todas suas florestas e começar a fazer
mercadorias em quantidades enormes pela primeira vez. Eles provavelmente pensaram: ‘Há
muitos de nós, somos valiosos na guerra, e temos muitas máquinas. Construamos casas gigantes
para enchê-las de bens que todos os outros povos irão cobiçar!’ Contudo, embora as casas no
centro dessa cidade sejam altas e belas, aquelas em suas periferias estão em ruínas. As pessoas que
moram nesses lugares não tem comida, e suas roupas são sujas e gastas. Quando caminhei entre
eles, me olharam com olhos tristes. Isso me deixou desconcertado. Esses brancos que criaram as
mercadorias pensam que são espertos e corajosos. Contudo, eles são gananciosos e não cuidam
daqueles entre eles que não tem nada. Como podem pensar que são grandes homens e se acharem
tão espertos? Eles nada querem saber dessas pessoas necessitadas, embora estes também sejam
seus pares. Eles os rejeitam e os deixam sofrer sozinhos. Eles sequer olham para eles e se
satisfazem em deixa-los à distância e chama-los de ‘os pobres’. Eles chegam a tomar-lhes as casas
em ruínas. Eles os forçam a acampar no descampado, na chuva, com seus filhos. Eles devem dizer
a si mesmos: ‘Eles vivem em nossa terra, mas são outros. Deixemos eles longe de nós, catando sua
comida do chão como cães! Já nós, acumularemos mais bens e mais armas, por e para nós
mesmos!’ Me assustou ver uma tal coisa”.

Post-scriptum (alheio)

“No estado selvagem, toda família possui um bom abrigo (…), mas acho que não é exagero dizer
que, se as aves do ar têm seus ninhos, as raposas suas tocas e os selvagens suas tendas, na
sociedade civilizada moderna só metade das famílias possui um abrigo. Nas vilas grandes e nas
cidades, onde predomina especialmente a civilização moderna, a quantidade dos que têm abrigo
próprio é uma parcela muito pequena do total. Os restantes pagam por essa roupa mais externa de
todas, que se tornou indispensável no verão e no inverno (…). Mas como é que este homem, que
dizem gozar dessas coisas, geralmente é um civilizado pobre, enquanto o selvagem, que não dispõe
delas, é rico em sua condição de selvagem?”

(Trecho do magnífico Walden, de Thoreau, que desejava ser apenas “um hóspede na natureza”).

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