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MERLIN, Bella.

‘An Actor’s Work is finally done’ - A response to the new Jean


Benedetti translation of Stanislavski’s An Actor’s Work. London/New York:
Routledge, 2008. Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins.
Julho/2009. Disponível em:
http://cw.routledge.com/textbooks/stanislavski/downloads/bella-article.pdf

‘O Trabalho do Ator está finalmente terminado'


Uma resposta à nova tradução de Jean Benedetti de ‘O Trabalho do Ator
[Sobre Si Mesmo]’ de Stanislávski
Bella Merlin, Janeiro de 2008.

Muitas luas atrás, em 1946, o premiado ator Britânico Michael Redgrave


escreveu sobre An Actor Prepares (A Preparação do Ator), de Stanislávski:

Muito poucos atores têm, eu sei, lido [o livro] e o achado imensamente estimulante.
Outros atores o leram, e o acharam bastante frustrante. Alguns outros ainda dizem
que o leram quando o que eles gostariam de dizer é que sempre o quiseram ler.
Alguns o leram e desejam, francamente, não tê-lo lido. Alguns antes preferem ser
vistos mortos a lê-lo. Por tudo que sei alguns podem até mesmo ter morrido ao tê-
lo lido. Muito poucos o leram de novo. (Redgrave, M., 1958: 172).

Michael Redgrave escreveu isto a mais de sessenta anos atrás, mas eu


tenho a sensação [de que] pouco mudou. Embora eu realmente não saiba de
ninguém que tenha morrido segurando o livro em suas mãos, a maioria dos meus
amigos-atores, provavelmente têm uma cópia de An Actor Prepares (A
Preparação do Ator) guardada em algum lugar de suas prateleiras (a coluna
inquebrantável...). A maioria dos alunos com quem entrei em contato afirmam que
o leram e certamente ruborizam se eu sugerir que seria uma razoável
demonstração de pobreza chegar ao final de um programa de teatro de três anos
sem tê-lo lido. (Afinal de contas, é um dos livros mais significativos na história do
treinamento do ator moderno.) E ainda assim parece que poucos deles tiraram
verdadeiro prazer da experiência.
Não há dúvida, An Actor Prepares (A Preparação do Ator) pode ser
relativamente obscuro às vezes: foi pesadamente editado – muitas vezes
desajeitadamente – por sua tradutora e editores nos anos 1930, para não
mencionar o marido da tradutora. O artifício da narrativa semi-ficcional pode ser
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enjoativo às vezes. A linguagem é por vezes arcaica e alienada. E não temos uma
imagem completa do que o ‘sistema’ implica.
Agora a ajuda já está à mão. Depois de uma década de trabalho duro e
dedicação, o estudioso de Stanislávski, Jean Benedetti, trouxe ao mercado uma
nova tradução de An Actor Prepares (A Preparação do Ator). Ele teve ainda que
se encarregar de ‘um certo grau de edição, simplificando o texto, reduzindo o
número de palavras, a fim de tornar o livro legível para o aluno mediano’, como ele
explica em seu muitíssimo útil Prefácio. Contudo, ao iniciar com o rascunho
original do Prefácio do próprio Stanislávski, que nunca tinha aparecido antes na
tradução, Benedetti produziu um volume substancial – de dimensões bíblicas –
intitulado An Actor’s Work (O Trabalho do Ator). As dimensões são robustas
porque não só estamos sendo presenteados com An Actor Prepares (A
Preparação do Ator) (inicialmente chamado de An Actor’s Work on Himself in the
Creative Process of Experience (O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo no Processo
Criador da Vivência), mas também com Building a Character (A Construção da
Personagem) (inicialmente chamado de An Actor’s Work on Himself in the
Creative Process of Physical Characterisation (O Trabalho do Ator Sobre Si
Mesmo no Processo Criador da Caracterização Física/Encarnação).
A publicação dos dois livros em um único volume sempre foi a intenção de
Stanislávski. Ao passo que as editoras [Norte] Americanas na década de 1930 não
podiam tolerar a impressão de tal possante tomo, [a Editora] Routledge colheu a
urtiga quase um século mais tarde e aceitou o desafio. E acredito – como uma
atriz, uma treinadora de atores e eu mesma uma escritora sobre Stanislávski –
esta nova tradução tem o potencial para radicalmente refocar o modo como
usamos, ensinamos e falamos sobre os fundamentos do ‘sistema’ de Stanislávski
nos domínios dos falantes da Língua Inglesa.

Por que os dois livros juntos?

O ‘sistema’ de Stanislávski é inteiramente ‘natural’, tudo o que ele fez foi


colocar o comportamento humano sob o microscópio. Ele olhou para como
perseguimos nossas vontades; como nossos pensamentos, sensações e ações

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[estão] interconectadas, e como geralmente só nos falam uma pequena
porcentagem do monólogo interior que vibra interminavelmente em nossas
cabeças. Ele também provou o modo como nossas emoções são a consequência
de nossas interações com os outros, causadas pela realização ou o bloqueio dos
nossos desejos mais profundos.
Tendo desta forma dissecado o comportamento humano, ele então se
perguntou como podemos juntá-lo/remendá-lo/reuní-lo de volta [por completo]
dentro dos limites artificiais de uma performance dramática. Ele colocou as
principais questões sobre porque é que tudo o que fazemos tão facilmente na vida
cotidiana, de repente se torna tão afetado e tenso quando sabemos que estamos
sendo observados. Porque tudo que ele fez foi tão ‘natural’, tenho certeza de que
se Stanislávski não tivesse aparecido com seu ‘sistema’, alguém mais teria [feito]
as mesmas perguntas mais cedo ou mais tarde, especialmente à luz das
descobertas como as que estavam sendo feitas na ciência, arte e literatura na
transição do século XIX ao XX.
Dito isto, a principal preocupação de Stanislávski colocada no coração do
seu ‘sistema’ foi o diálogo constante entre os nossos corpos físicos (visível) e
nossas psicologias internas (invisível). Os humanos são seres psico-físicos: os
nossos corpos fornecem uma imensa quantidade de informações para nossas
vidas interiores (ou seja, nossa imaginação e nossas emoções), e ao mesmo
tempo, nossa vida interior só pode ser transmitida ao mundo exterior através de
nossos corpos. Se não tivéssemos um corpo, então nós poderíamos ter as mais
incríveis idéias e experiências emocionais, mas ninguém jamais saberia. Quanto
mais expressivo e suscetível/sensível possam ser nossos corpos, mais detalhada
e nuançada poderá ser nossa caracterização dos personagens. E isso é o que faz
o programa de treinamento do ator de Stanislávski, de modo particular e preciso:
dirige-se ao corpo e à psicologia do ator ao mesmo tempo.
E é isso que torna a publicação de An Actor’s Work (O Trabalho do Ator)
tão significativa – e há muito atrasada.
Parte do motivo [de] Stanislávski ter sido tão insistente [para] que as
primeiras editoras [Norte] Americanas devessem publicar os conteúdos do

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trabalho psicológico (An Actor Prepares [A Preparação do Ator]) no mesmo
volume que os conteúdos do trabalho físico (Building a Character [A Construção
da Personagem]) se deu por um grande medo. Ele estava aterrorizado que os
atores e diretores iriam ler um livro sem o outro, e assim fazendo, desenvolveriam
uma imagem desequilibrada do ‘sistema’. Eles iriam vê-lo mais como um método
interior, emocionalmente dirigido (se só lessem An Actor Prepares (A Preparação
do Ator), ou como um método técnico, externalizado com pouca referência à vida
interior (se lessem apenas Building a Character (A Construção da Personagem).
Ele finalmente concordou com a separação destes dois aspectos sob a condição
de que ele escrevesse um apanhado geral do ‘sistema’ como um todo para ser
incluído na primeira publicação. Infelizmente, ele nunca escreveu tal apanhado, e
a coisa que muito ele temia de fato aconteceu. Até agora, muitos de nós que
somos incapazes de ler os textos Russos originais, tivemos a impressão de que
An Actor Prepares (A Preparação do Ator) é o coração do ‘sistema’, de modo que
nem todos nós seguimos adiante lendo a parte associada, Building a Character (A
Construção da Personagem). Mesmo aqueles de nós que leram a ambos não têm,
provavelmente uma acepção completamente clara de quão intricadamente eles se
interconectam.
Portanto, a publicação dos dois livros em um único volume é um
desenvolvimento importante, mas é claro que há detalhes de tradução que
também estão evoluídos.

As nuances de tradução

Desde a primeira frase, temos uma noção das sutilezas envolvidas nestas
novas traduções. An Actor Prepares (A Preparação do Ator) começa [com]:

Estávamos animados hoje, enquanto esperávamos para a nossa primeira aula com
o Diretor, Tortsov. Mas ele veio a nossa sala de aula só para fazer o anúncio
inesperado de que, a fim de melhor se familiarizar conosco, ele quis nos possibilitar
uma apresentação (performance) na qual devemos representar fragmentos de
peças escolhidas por nós. (Stanislávski, trad. Hapgood, 1937: 1).

An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) começa [com]:

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Hoje nós esperamos por nossa primeira aula com Arkadi Tortsov, não pouco
assustados. Mas tudo que ele fez foi entrar e fazer um anúncio surpreendente. Ele
nos organizou uma demonstração na qual iremos apresentar extratos de peças de
nossa própria escolha. (Stanislávski, trad. Benedetti, 2008: 5).

O conhecimento de Jean Benedetti da atuação, bem como da Língua


Russa, lhe permitiu entrar no reino e nas cabeças dos atores estudantes.
Trabalhando com Katya Kamotskaia (uma atriz Russa nativa de maravilhosa
sensibilidade, além de ser uma extraordinária professora de atuação – atualmente
leciona na Royal Scottish Academy of Music and Drama [Academia Real
Escocesa de Música e Teatro]), Benedetti foi escolhido ‘não pouco assustado’ ao
invés de ‘animado’. Em outras palavras, somos instantaneamente mergulhados na
atmosfera e no mundo de atores estudantes e sua trepidação nervosa. Mas esta é
apenas uma nuance.
Tendo em mente a paixão de Stanislávski pelo ‘tempo-ritmo’, Benedetti
também nos deu um ritmo contemporâneo, longe de mal-humorado. Quando a
tradutora original, Elizabeth Reynolds Hapgood, fornece-nos uma segunda frase
com uma subseção mais desajeitada (começando [com] ‘a fim de melhor se
familiarizar’), Benedetti divide a frase em duas, tornando o conteúdo mais
acessível e a situação muito clara. É esse tipo de atualizações sutis que colocam
o leitor numa jornada mais nítida, mais acessível.
Adicionando que, é claro, a [certo] número de ferramentas específicas no kit
são dados novos nomes, a maioria dos quais as tornam imediatamente mais
aplicáveis e compreensíveis. Dito isto, há uma dupla com a qual tenho certas
reservas – e acho que é uma coisa boa: é importante que as novas traduções
provoquem discussão e debate. Além disso, seria louco pensar que da noite para
o dia vamos todos começar a usar a nova terminologia, quando estamos tão
habituados a outras palavras, pela maior parte de um século.
Antes de darmos uma olhada nos novos nomes para as ferramentas,
vamos ver como An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) determina a arquitetura do
‘sistema’, estabelecendo um Ano 1 e um Ano 2.

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Ano 1 do treinamento do ator de Stanislávski

An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) nos conduz muito claramente através


do currículo dos dois primeiros anos de um programa de quatro anos. Embora
Stanislávski seja um pouco inconsistente em sua marcação do que constitui o Ano
1 e o que constitui o Ano 2, em geral, temos um entendimento muito mais forte da
progressão do treinamento do ator.
Indiscutivelmente, um dos aspectos mais importantes dessa progressão é
que os alunos não são incentivados a fazer qualquer trabalho técnico sólido sobre
‘incorporação física/encarnação’ ou ‘Voz e Fala’ até o seu segundo ano [de curso].
E não é só o trabalho técnico: a ‘Memória Emotiva’ não é tocada explicitamente
até o Ano 2. Este é um desvio muito significativo de An Actor Prepares (A
Preparação do Ator) no qual o Capítulo 9 sobre a ‘Memória Emotiva’ aparece na
metade do livro como se fosse parte do primeiro ano de treinamento.
A ‘Memória Emotiva’ é uma das questões mais espinhosas no ‘sistema’ de
Stanislávski, em grande parte devido à ênfase ao apelo emocional do Método
Americano, que evoluiu nos EUA depois que o Teatro de Arte de Moscou visitou
os Estados [Unidos da América] na década de 1920. Pode haver uma tendência –
especialmente entre os jovens atores – por aproveitar a ‘Memória Emotiva’ como
uma das partes mais interessantes do ‘sistema’ de Stanislávski: afinal, há algo
maravilhosamente terapêutico e catártico em encontrar-se chorando e lamentando
num workshop, tendo passado grande parte de sua vida social mantendo
acobertadas as suas emoções mais fortes. Portanto, é intrigante ver em An Actor’s
Work (O Trabalho do Ator) que esta ferramenta faz parte de um segundo ano de
treinamento, a ser explorada apenas uma vez que os fundamentos tenham sido
estabelecidos no primeiro ano.

Os fundamentos da atuação

Esses fundamentos [que fazem parte] do primeiro ano estão muito


claramente definidos. Eles incluem: ‘Ação’, o ‘“Se” Mágico’, ‘Circunstâncias
Dadas’, ‘Imaginação’, ‘Concentração e Atenção’ e ‘Liberação Muscular’.

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Ao colocar a ‘Ação’, no começo, imediatamente entendemos que a atuação
diz respeito a fazer coisas, ao invés de ser ou relembrar. A menos que você tenha
uma noção clara do que você está fazendo no palco, então tudo mais será formal
e tedioso.
Então tem a ver com uma noção de jogo, e dizendo a si mesmo – assim
como uma criança faria – ‘o que eu faria se... Houvesse um louco atrás da porta?
O que eu faria se... Meu irmão simplesmente jogasse todo o meu dinheiro no
fogo? O que eu faria se... Virasse as costas ao meu bebê e ele se afogasse na
banheira?’ (Todas estas perguntas são provocadas pelo ‘“Se” Mágico’.) Anatoly
Smeliansky aponta em seu posfácio ao fantástico livro que algumas das
referências para jóias e propriedades nos exercícios de atuação propostos por
Stanislávski foram problemáticos para os atores Soviéticos, e com certeza, eles
podem fazer o livro parecer um tanto desatualizado. Mas eu diria que, para a
criança interior do ator começar a jogar, [quanto] maiores os riscos, então o mais
divertido está para ser alcançado. E para um falante [de Língua] Inglesa,
praticante de atuação do vigésimo primeiro século, cujos pontos de referência são
muito provavelmente Pirates of the Caribbean (Piratas do Caribe) ou The Golden
Compass (A Bússola de Ouro), acho que os exemplos fornecidos pelos Russos do
início do século XX ainda podem ser imaginativamente lucrativos.
Tendo [os alunos] trabalhado com a ‘Ação’ e ‘o “Se” Mágico’, o primeiro ano
de treinamento é, portanto, sobre alimentar seu senso de jogo com as
‘Circunstâncias Dadas’ da situação, tanto as fornecidas pelo escritor como aquelas
fornecidas por nossa própria ‘Imaginação’.
Então seu primeiro ano de formação diz respeito à negociação com seus
próprios bloqueios internos, compreendendo o que é que o está impedindo de ser
criativamente bem sucedido. Estes bloqueios podem se originar do medo de estar
sendo observado e, portanto, você precisa ‘Concentrar sua Atenção’ na tarefa
adequada no palco para evitar ser desnudado por seu público. Ou esses bloqueios
podem vir de certas tensões físicas e, portanto, você precisa encontrar um modo
de ‘Liberar seus Músculos’ e relaxar.

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Portanto, trata-se de entender a estrutura de uma cena dramática – suas
‘partículas [de ação]’ (‘Bits’) – a fim de que você possa penetrar a arquitetura da
peça e [seu] ritmo. Trata-se então, da identificação de sua ‘tarefa’ (‘task’) em cada
‘partícula’ (‘bit’), para que você tenha um objetivo muito claro e exequível para
cada momento que você está no palco.
Todos estes componentes – que são em última instância sobre moldar seu
barro criativo, ou seja, a sua imaginação e seu corpo – formam o núcleo de
treinamento do Ano 1 num percurso lógico e acessível. Combinados em conjunto,
eles podem dotá-lo com um absoluto senso de ‘verdade’ sobre o que você está
fazendo, que por direito próprio irá preenchê-lo com uma sensação de ‘crença’.
A lógica e a abrangência desses fundamentos básicos, de alguma forma
aparecem muito mais claramente em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) do que
fora realmente tangível em An Actor Prepares (A Preparação do Ator). E todo este
primeiro ano é intitulado ‘Experienciação/Vivência’ – que o Prefácio de Benedetti
descreve como ‘o processo pelo qual um ator se envolve ativamente com a
situação em cada performance’. Gostaria de levar essa interpretação mais
adiante, sugerindo que diz respeito também à ‘fazer-se disponível para si mesmo’,
para conhecer a sua imaginação, a anatomia de seu corpo, e sua sensação de
ação genuina e direção no palco, de modo que você nunca precise cair em clichês
e [no] (que Stanislávski chama) ‘barganha’ (‘stock-in-trade’).

Ano 2 do treinamento do ator de Stanislávski

Como já havia sugerido, Stanislávski nem sempre é inteiramente


consistente sobre quando termina o Ano 1 e começa o Ano 2. Benedetti nos
oferece ‘Ano 2: Rascunhos e Fragmentos: Uma Reconstrução’, mas de vez em
quando, há referências as quais não se encaixam completamente. No meio do
Capítulo 16, intitulado ‘O subconsciente e o estado criativo do ator’, Tortsov
repentinamente diz:

Agora, depois de quase um ano de trabalho, cada um de vocês tem alguma ideia
formada do que seja o processo criativo. (Stanislávski, 2008: 343)

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Por um momento, como leitora, me vi arremessada para fora da narrativa,
perguntando: ‘Você quer dizer ano civil ou ano letivo? Este é o primeiro ano de
treinamento ou o segundo?’ No entanto, são essas inconsistências que dão uma
maior sensação de autenticação para as novas traduções. Benedetti não eliminou
todos os defeitos ou editou esmagadoramente da forma como fizeram tanto
Elizabeth Hapgood, como a Editora-Chefe original, Edith Isaacs. Portanto,
Benedetti não está apenas nos dando uma tradução prática, de valor inestimável,
mas também um documento histórico, para que nós, os leitores possamos juntar
as partes ou dar o sentido das inconsistências à nossa própria maneira.

Memória Emotiva

Apesar destas inconsistências ocasionais, a introdução do Ano 2 é


extremamente útil.
Começando com a ‘Memória Emotiva’, Tortsov, o diretor semi-ficcional,
sugere que um ator deve preencher uma caracterização com sentimentos
genuínos, salientando, ao mesmo tempo, que não se pode simplesmente evocar
as emoções com um clique de seus dedos. Em vez disso, há chamarizes os quais
estimulam as Memórias Emotivas e as atrai para fora de nós. E, neste ponto, ele
liga muito sucintamente os Anos 1 e 2:

Cada estágio sucessivo em nossos estudos tem externado um novo chamariz (ou
estímulo) para a nossa memória emocional e sentimentos recorrentes. Na verdade,
o mágico “se”, as circunstâncias dadas, a nossa imaginação, as Partículas e
Tarefas, os objetos de atenção, a verdade e a crença/fé nas ações internas e
externas, nos abastece com os chamarizes apropriados (estímulos). Então todo o
trabalho que temos feito até agora na escola levou-nos a estes chamarizes que
precisamos para estimular nossa Memória Emotiva e armazenar
sensações/sentimentos. (Stanislávski, 2008: 225)

E de repente tudo se torna abundantemente claro. Naturalmente,


sentimentos humanos verdadeiros estão no centro da dinâmica de interação no
palco, mas você tem que passar um longo e sólido período de tempo construindo
as técnicas que servem como chamariz, antes que você possa realmente ter a
certeza da compreensão de como provocar esses sentimentos genuínos. É por
isso que faz sentido o [capítulo] ‘Memória Emotiva’ vir no início do Ano 2, ao invés

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de ser incluído no Ano 1 (que é a sensação que temos da leitura de An Actor
Prepares (A Preparação do Ator). Desta forma, o aluno-ator é totalmente
prevenido da quantidade de trabalho preparatório necessário, antes de o material
sedutor (sexy stuff) - as emoções – poderem ser tratadas com sensatez e de
forma saudável.

Todos os aspectos técnicos...

O conteúdo do Ano 2 torna-se a maior parte de An Actor’s Work (O


Trabalho do Ator). E o prazer de ter o conteúdo de Building a Character (A
Construção da Personagem) no [mesmo] volume é que você é lembrado de todas
as idéias maravilhosas e de valor inestimável de Stanislávski sobre a fala, dicção e
pontuação, bem como tempo-ritmo em movimento e texto, para não mencionar a
transformação física através do figurino, e a importância dos adereços/acessórios
para um personagem. Muito menos a tão importante conexão entre dois ou mais
atores em cena (chamada de ‘Comunhão’ em An Actor Prepares (A Preparação
do Ator), aqui chamada – pura e simplesmente – ‘Comunicação’). Bem como o
triunvirato vital ‘Pensamento/Razão’, ‘Sentimento’ e ‘Vontade’ (chamado de
‘Forças Motivas Interiores’ em An Actor Prepares [A Preparação do Ator], e aqui
chamado de ‘impulsos psicológicos internos’). Em outras palavras, muitos
elementos técnicos de dicção e figurino estão diretamente ligados aos aspectos
mais esotéricos de troca de energia ou motivações psicológicas – uma conexão
que é difícil de se esperar se você está lendo An Actor Prepares (A Preparação do
Ator) ou Building a Character (A Construção da Personagem) isoladamente.
De fato, somente na semana passada (a primeira semana do trimestre da
primavera na Exeter University, 2008), encontrei-me me referindo aos meus
alunos a respeito de ‘O Texto Falado em Performance’ módulo prático
[relacionado] diretamente a Stanislávski e An Actor’s Work (O Trabalho do Ator).
Muito do nosso módulo até àquela data tinha tomado Cecily Berry, Patsy
Rodenburg, Kristen Linklater como nossos pontos de referência. Para minha
vergonha (sendo uma estudiosa de Stanislávski), eu tinha esquecido
completamente a profundidade a que vai Stanislávski em sua análise da Voz e

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Fala, porque – confesso – eu estava mais propensa a utilizar An Actor Prepares (A
Preparação do Ator) como um ‘compêndio’ mais do que Building a Character (A
Construção da Personagem). Considerando que há muito pouco em An Actor
Prepares (A Preparação do Ator) sobre a Voz e Fala, An Actor’s Work (O Trabalho
do Ator) combina os três capítulos encontrados em Building a Character (A
Construção da Personagem) sobre ‘Dicção e Canto’, ‘Entonações e Pausas’ e
‘Acentuação: a Palavra Expressiva’ em um capítulo extremamente útil de 80
páginas.

Todas as disciplinas físicas...

Ao ler An Actor’s Work (O Trabalho do Ator), eu estava lembrando também


– de novo, depois de ter esquecido isto de Building a Character (A Construção da
Personagem) – da gama de diferentes disciplinas físicas envolvidas no programa
de treinamento do ator de Stanislávski. No capítulo 18, ‘Educação física’, Kostya
refere-se à ginástica Sueca, acrobacias, dança e ‘rítmica’ (como na Euritmia de
Emile Dalcroze). Ele também se refere a aulas sobre ‘a flexibilidade do movimento’
(que poderia muito bem incluir as aulas de Yoga que Leopold Sulerjitski – o
modelo para o assistente de direção Rachmanov – certamente ensinou a mando
de Stanislávski nos estúdios ligados ao Teatro de Arte de Moscou). Sabemos,
também a partir de referências por todo [livro] An Actor’s Work (O Trabalho do
Ator), que os alunos estavam aprendendo tanto esgrima como balé.
Enquanto referências semelhantes estão espalhadas por todo [o livro] An
Actor Prepares (A Preparação do Ator), o acúmulo delas ao longo deste livro
extendido é um lembrete de boas-vindas da interdependência do físico, as aulas
técnicas e os exercícios de atuação mais psicologicamente orientados.
Tendo olhado a estrutura geral do livro, vamos agora voltar nossa atenção
para um punhado de ferramentas específicas. Esta nova tradução acessa
algumas novas ideias, bem como oferece algumas provocações interessantes nos
termos da velha terminologia. Escolhi quatro capítulos do Ano 1: ‘Concentração e
atenção’, ‘Partículas [de ação] (Bits) e Tarefas’ (Tasks), ‘Impulsos Psicológicos
Internos’ e ‘Comunicação’. Estes são todos termos e ferramentas que eu uso

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frequentemente, como atriz e como professora, e todos dos quais eu me encontro
estimulada em sua mudança de vocabulário na nova tradução bem como a
problemática na sua implementação. Não há dúvida de que An Actor’s Work (O
Trabalho do Ator) vai agitar o debate e a discussão, e eu gostaria de sugerir que
não só o debate é saudável, mas também nos permite simultaneamente abarcar
os novos aspectos enquanto defendemos nossos próprios kits de ferramentas (our
own toolkits). Afinal, Stanislávski nunca pretendeu que seu ‘sistema’ fosse um
evangelho, e não tenho dúvida de que Benedetti não pretende esta nova tradução
como sendo uma bíblia. Com algo tão prático como uma técnica de atuação,
haverá tantas maneiras diferentes de construir um personagem como há atores no
negócio. Temos que estar certos de que a nossa atitude seja apenas tão aberta e
criativa com relação aos sistemas e terminologias como Stanislávski nos desafiou
a ser nos termos do jogo [de cena] na criação de um papel.

Capítulo 5: Concentração e atenção


As dificuldades de ‘concentração’

No muito útil (embora sem dúvida bastante curto) ‘Glossário de Termos-


Chave: Uma Comparação de Traduções’ na parte de trás do livro, a palavra Russa
para ‘atenção’ está listada como ‘vnimanie’. ‘Vnimanie’ é a palavra que se pode
gritar com alguém que atravessa a rua sem olhar devidamente, ou você pode ouvi-
la no sistema de anúncios do metrô numa situação ‘Aproveite a brecha’ (‘Mind the
gap’). Eu sei, a partir de conversas iniciais com Katya Kamotskaia, que encontrar a
tradução absoluta para esta palavra é complicado. ‘Concentração’ é muito escolar
(schoolish), e é certamente uma palavra que coloca David Mamet em um cavalo
de batalha pessoal de ataques contra Stanislávski em True or False: Heresy and
Common Sense for the Actor (Verdadeiro ou Falso: Heresia e Senso Comum para
o Ator). Ele escreve:

Atuar não tem nada a ver com a capacidade de se concentrar. Tem a ver com a
capacidade de imaginar. Pois a concentração, como a emoção, como a crença,
não pode ser forçada. Ela não pode ser controlada. [...] A capacidade de se
concentrar flui naturalmente da capacidade de escolher algo interessante. Escolha
algo legitimamente interessante para fazer e a concentração não será um

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problema. Escolha algo menos do que interessante e a concentração será
impossível. (Mamet, 1999: 94-5)

Você pode ver os problemas envolvidos: ‘Atenção’ implica o brado de um


soldado num desfile. ‘Concentração’ implica um serviço pesado, exames escolares
mentais. Hapgood optou por misturar os termos em uma frase no capítulo 5 de An
Actor Prepares (A Preparação do Ator): ‘Concentração da atenção’, ao passo que
– em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) - lemos como Kostya chega na sala
um dia para ver um grande aviso pendurado no auditório:

CONCENTRAÇÃO CRIATIVA E ATENÇÃO (Stanislávski, 2008: 90)

A inclusão da palavra ‘criativa’ é muito significativa, visto que na verdade,


equaliza o peso dos dois substantivos, ‘concentração’ e ‘atenção’.

Da observação à ação

Como a maioria dos capítulos em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator), o


Capítulo 5: Concentração e Atenção é significativamente maior do que sua
contraparte em An Actor Prepares (A Preparação do Ator), resultando que a
jornada através do capítulo é muito mais coerente, conduzindo-nos através de
cinco passos simples. De muitas maneiras, Mamet crava as unhas na cabeça
quando diz que se você escolher algo legitimamente interessante para você, a
concentração não é um problema. Na verdade, Tortsov começa com exercícios
nos quais (Passo 1) os alunos observam os objetos que lhes interessam, dizendo:

[O] ator precisa de um objeto no qual concentrar a sua atenção, não só no


auditório, mas no palco, e quanto mais atraente (compelling) for o objeto, mais ele
pode comandar a atenção. (Stanislávski, 2008: 91)

Somente por concentrar a atenção em um objeto, algum tipo de interação


vibrante pode começar, e esse tipo de observação irá de fato (Passo 2) inspirar
sua imaginação, porque irá (Etapa 3) apelar para os seus sentidos. Como diz
Tortsov:

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[N]a nossa imaginação, nossa concentração não se aproxima do objeto
diretamente, mas indiretamente, via outro, por assim dizer objeto secundário. Isso
é o que acontece com os nossos cinco sentidos. [...] Você deve ser capaz de
revitalizar o objeto e além desse poder de concentração em si, transformá-lo de
algo frio, intelectual, racional, em algo quente, sensorial. (Stanislávski, 2008: 107,
111) (Grifo no original)

Uma vez que seus sentidos estão envolvidos, não leva muito tempo (Passo
4) para suas emoções serem atraídas no processo. Como diz Tortsov:

Primeiro você deve explicar para [as pessoas] como olhar e ver, escutar e ouvir
não só o que é ruim, mas acima de tudo que é belo. A beleza eleva a alma e agita
seus melhores sentimentos, deixando permanentes e profundos vestígios na
emoção e outros tipos de memória. (Stanislávski, 2008: 114)

Mas a atenção sobre o objeto não pára por aí. Se a sua concentração e
atenção são de substância criativa acertada, em seguida, muito rapidamente
(Passo 5) sua ânsia/seu desejo pela ação se desenha na imagem. Como diz
Tortsov:

[N]ão é o objeto em si [...] que produz em nós a concentração, mas uma idéia que
sua imaginação sugere. Essa idéia lhe dá vida nova e, ajudada pelas
circunstâncias dadas, torna o objeto interessante. Cria uma história maravilhosa e
emocionante em volta dele. [...] Como resultado sua imaginação é despertada. Ela
toma conta de você e o resultado é um impulso para a ação. E se você usar ações
que signifiquem que você aceitou o objeto, [que] você acredita nisso, você
estabeleceu um vínculo com ele. Ou seja, o seu objetivo tornou-se claro, e sua
atenção foi distraída de tudo o que não está no palco. (Stanislávski, 2008: 110)

Assim, a versão expandida deste capítulo em An Actor’s Work (O Trabalho


do Ator) nos leva facilmente do (1) objeto à (2) imaginação para a (3) estimulação
sensorial para a (4) memória emotiva para a (5) ação, tornando ambos os
conceitos de ‘concentração’ e ‘atenção’ muito práticos e totalmente físicos, em vez
de secos e intelectuais. Ele também mantém o foco do ator no palco, e não no
auditório.

A introdução de Rachmanov

A versão expandida do Capítulo 5 destaca também alguns outros fatores


sobre esta nova tradução, nada menos do que qual é o dispositivo de contar
histórias. Pela primeira vez no livro, o diretor assistente, Rachmanov (baseado em

14
Sulerjitski) conduz uma aula. Nenhum comentário em particular é feito sobre isso
em An Actor Prepares (A Preparação do Ator), mas em An Actor’s Work (O
Trabalho do Ator) somos levados mais profundamente ao reino ficcional dos
alunos:

Para nossa geral decepção, em vez de Tortsov, Rachmanov, sozinho, virou-se


para a turma e explicou que, por ordens de Tortsov, ele estaria trabalhando
conosco.
Então, hoje foi a primeira aula de Rachmanov.
Como ele é como um professor?
É claro que ele é bem diferente de Tortsov. Mas nenhum de nós poderia ter
previsto que ele se tornaria o homem que nós conhecemos hoje. Na vida, por
causa de sua admiração por Tortsov, ele é calmo, reservado e taciturno mas
quando Tortsov não está, ele é enérgico, decidido e rigoroso. (Stanislávski, 2008:
96)

Estes detalhes nos dizem três coisas: (1) eles mostram quanto o
imaginativo Stanislávski esforçou-se para ficar com esta descrição/narrativa do
treinamento do ator, na qual ele queria criar um mundo romancesco em que
poderiamos entrar com todos os seus vários personagens e personalidades, em
vez de simplesmente ir absorvendo dicas de atuação; (2) o caráter de Rachmanov
aparece ao longo do livro, e, apresentando-o assim, somos imediatamente
convidados a considerá-lo um indivíduo completo e uma influência significativa
sobre o treinamento do ator; (3) é pouco o reconhecimento de Stanislávski da
importância de Sulerjitski em sua própria vida e na do Teatro de Arte de Moscou.
Ele o apreciava imensamente e de fato Sulerjitski contribuiu enormemente para o
desenvolvimento dos [aspectos] mais esotéricos, [dos] aspectos ‘espirituais’ do
‘sistema’, nada menos que a noção de ‘irradiação’ de energia, como vamos
abordar em ‘Comunicação’ (ver abaixo).

Histórias de Kostya

A versão estendida do Capítulo 5 também inclui um par de anedotas nas


quais Kostya experimenta alguns dos exercícios longe da sala de ensaio. Por
exemplo, ele caminha a Arbat1 lotada de Moscou experimentando com diferentes

1
Rua comercial para pedestres, muito movimentada, bastante frequentada por turistas. (N. T.)

15
tamanhos de ‘círculos de atenção’. Essas referências cruzadas entre a sala de
ensaio e a ‘vida real’ humanizam os exercícios e refletem o que os atores
costumam fazer: nós testamos fora da sala de ensaio descobertas em situações
cotidianas. É divertido, e a inclusão dessas pequenas histórias torna o livro mais
divertido.
Não há dúvida de que An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) tem uma
leveza de toque que torna o conteúdo simpático, acessível e compreensível.
Somos atraídos para a vida dos personagens de forma vívida e empática,
sobretudo por (not least by) referir-se ao jogador-chave (key player) como
‘Tortsov’, (que significa ‘Criador’), em oposição a ‘o Diretor’, que é a sua
nomenclatura usual em An Actor Prepares (A Preparação do Ator). Em seu
Prefácio, Benedetti também nos alerta para os significados dos nomes dos vários
alunos: Brainy (Inteligente), Fatty (Gordinho), Prettyface (Rostinho Bonito), Big
Mouth (Boca Grande), Youngster (Rapazote), Happy (Feliz), Showy (Pretencioso)
– as nuances do que se perdeu para os que não falam Russo, mas que levantam
um sorriso irônico já que nós agora realmente compreendemos o ponto essencial
das histórias dos alunos ao longo do livro.

Capítulo 7: ‘Partículas [de ação] e Tarefas’ (‘Bits and Tasks’)


O desafio de mudar sua terminologia

O tom personalizado de An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) é refletido na


escolha da terminologia em geral. Stanislávski nunca pretendeu que seu ‘sistema’
fosse alienante ou elitista. É claro que ele foi influenciado pelas descobertas
científicas que estavam sendo feitas internacionalmente naquele tempo – pelo
menos nas áreas da evolução e psicologia (como veremos a seguir em
‘Comunicação’). No entanto, sua discussão das táticas de atuação estava longe
de ser científica: ele preferiu o que Benedetti traduz como vocabulário ‘cultivado
em casa’. Muitos atores hoje usam os termos ‘unidades’ (para descrever um
pedaço do texto) e ‘objectivos’ (para descrever o que cada personagem quer em
uma cena em particular), e estes dois termos vêm de An Actor Prepares (A
Preparação do Ator). Eu suspeito que esses dois termos serão os mais difíceis de

16
ajustar, dado o já amplo uso de ‘unidades’ e ‘objetivos’ através do globo/em todo o
mundo. Na verdade, eu mesma tenho sentimentos mistos: embora eu tenha usado
‘partículas [de ação]’ (‘Bits’) por cerca de 15 anos, desde o meu próprio
treinamento em Moscou, eu estou bastante ligada a ‘objetivos’ como uma
ferramenta. Embora, admitirei que há vários insights no Capítulo 7, que poderiam
me convencer a derrubar o velho e abraçar o novo ...

‘Partículas [de ação]’ (‘Bits’)

‘Bit’ (partícula/parte/fração) - kusok - é uma grande palavra: ela também


pode significar ‘fragmento’ (piece) ou ‘pedaço’ (chunk), tanto que você poderia ter
um kusok de queijo ou um kusok de bolo. É uma palavra prática, cotidiana e, como
tal, tem enormes vantagens sobre a longe de científica e, particularmente,
alienante ‘unidade’. Há algo sobre ‘unidade’ que implica regularidade de medida,
como uma dose de bebida alcoólica. ‘Partícula’, por outro lado, permite diferentes
tamanhos; permite arestas e irregularidades – tudo que penso ser imensamente
útil. Aqueles de vocês que já tentaram coletivamente separar um texto em suas
‘partículas’ de ação vão saber que sempre desperta grande discussão, muitas
vezes dependendo de qual perspectiva do personagem você está vendo a cena.
Uma pessoa vai querer fazer uma divisão antes de uma frase em particular, outro
vai querer fazê-la depois da frase, assunto para o qual o personagem parece estar
no banco do motorista – ou mesmo qual ator na sala é o mais teimoso (subject to
which character seems to be in the driving seat – or even, which actor in the room
is the most opinionated).
O Capítulo 7 expõe muito simplesmente como acercar-se do processo de
dissecção:

A técnica de se dividir em Partículas [de ação] (Bits) é muito simples. Basta


perguntar a si mesmo: ‘Qual é a coisa essencial na peça?’ E então começar a
lembrar das principais passagens, sem entrar em detalhes. [...] [G]randes partes
(Bits), as quais foram bem pensadas, são fáceis para os atores dominarem. Partes
(Bits) como aquelas que se estendem por toda a extensão da peça, nos servem
como um canal navegável o qual nos mostra o curso certo a seguir, e nos conduz
através de baixios perigosos, recifes e as complexas tramas da peça, onde
podemos facilmente nos perder. (Stanislávski, 2008: 141)

17
Colocando em poucas palavras...

Lição 1: Olhar para as grandes Partículas [de ação] (Large Bits)

No entanto... o que emerge de bastante tranqüilizador neste capítulo é que


não parece haver nenhuma regra rígida ou fechada para dividir uma cena em suas
partículas (Bits) de ação: Stanislávski (sob o disfarce de Tortsov) sugere que você
pode começar por dividi-la em grandes Partículas (Bits), mas então

desenvolva cada Partícula (Bit) em detalhe. O que obriga a dividir todas as


partículas individualmente em suas menores partes constituintes, para desenvolvê-
las e transmitir cada uma delas claramente, em cada detalhe. (Stanislávski, 2008:
140)

Lição 2: Dividir as grandes Partículas em Partículas menores

No entanto... Ele também sugere a estratégia oposta:

Dividir uma peça e um papel em partículas [de ação] menores só é permitido como
uma medida provisória. [...] A peça e o papel não podem ser deixados em tal forma
fragmentada por muito tempo. [...] Com as partículas menores estamos lidando
com o trabalho preparatório, mas, quando na atuação, elas são combinadas em
grandes partículas, e garantimos que elas são máximas em tamanho e em número
mínimo. Quanto maior as Partículas, quanto menor o número e mais elas nos
ajudam a compreender a peça e o papel como um todo. (Stanislávski, 2008: 140)

Lição 3: não existe uma estratégia definitiva!

Em outras palavras, pode depender da peça, do diretor, e do grupo de


atores, como de saber se você começa com lotes de pequenas partículas e então
as agrega em pedaços maiores, ou se você começa com as grandes partículas e
as divide conforme necessita de uma análise mais detalhada.
Pessoalmente, quando estou dirigindo, eu tendo a ir para os pedaços
maiores. Embora eu possa observar as voltas/curvas (kinks) nas margens do rio,
eu realmente estou procurando os lugares onde o rio muda completamente o seu
curso. Isso porque eu geralmente uso a Análise Ativa de Stanislávski nos ensaios,
através da qual você nunca leva o script para o chão da sala de ensaio; em vez
disso, você descobre o texto através de uma série de improvisações. Improvisar a

18
cena pode ser extremamente complicado se você dividiu-a em muitas partículas.
Então, começar com largas pinceladas é a forma mais acessível de trabalhar, e os
detalhes podem ser definidos conforme os atores se tornam mais e mais
familiarizados com a arquitetura da cena. No entanto, se eu estou trabalhando em
um script a partir da perspectiva da atuação, eu o divido em tantas partículas
quanto eu precisar, a fim de adentrar nos processos de pensamento do
personagem. Então eu observo atentamente cada curva das margens, porque
cada curva será uma nova tática, e cada mudança de tática vai me dar uma visão
clara do modo como o personagem pensa e responde.

‘Tarefas’

Quanto a ‘Tarefa’ (Task) – zadacha (também traduzível como


‘objetivo/meta’ [‘goal’]) – eu brigo um pouco com este termo uma vez que ele soa
mais (as it sounds rather) para trabalho intensivo, como em ‘tarefa mestra’ (‘task-
master’). A palavra ‘objetivo’ parece ter um componente psicológico que não é
necessariamente como se apresenta para mim no termo ‘Tarefa’. Dito isso, eu
também estou ciente de que a principal pergunta usada para definir um objetivo
para uma cena é, geralmente, ‘O que eu quero fazer... nesta cena? O que eu
quero alcançar...?’ Portanto, estar ativamente engajado em uma ‘Tarefa’ pode ser
uma maneira útil de abordar a essência da cena. A verdade da questão é que, na
vida, muitas vezes não sabemos realmente o que queremos até que estejamos no
meio de uma situação. Podemos pensar que temos uma intenção, mas no minuto
em que efetivamente nos encontramos em diálogo – seja um diálogo conflituoso
ou um harmonioso – nossa intenção pode sutilmente mudar em resposta ao nosso
parceiro. E é aqui que a nova tradução é muito útil. Definir sua ‘Tarefa’ – conforme
descrito em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) – resulta da interação direta
com outra pessoa. Se o termo ‘objetivo’, tem um sentido de predeterminar o que
você pode estar se esforçando por [fazer] antes de efetivamente ir para o palco,
‘Tarefa’ parece surgir das ações físicas nas quais você se envolve, uma vez que
você está [no palco]. A definição de Stanislávski deixa isso claro:

19
A vida, as pessoas, as circunstâncias, e nós mesmos determinamos infinitamente
uma série de obstáculos, um depois do outro e desbravamos nosso caminho
através deles, como se através de arbustos. Cada um desses obstáculos cria uma
Tarefa e a ação para superá-la.
Um ser humano quer alguma coisa, luta por alguma coisa, ganha alguma coisa a
cada momento de sua vida. [...]
O Teatro consiste na realização de grandes Tarefas humanas e das ações
genuínas/verdadeiras, produtivas e propositivas necessárias para cumpri-las.
Quanto aos resultados, eles cuidam de si mesmos se tudo o que foi feito de
antemão for adequado.
O erro que a maioria dos atores comete é que não pensam na ação, mas no
resultado. Eles ignoram a ação e vão direto para o resultado. O que você
atinge/alcança então é a retaguarda, interpretando o resultado, forçando,
barganhando (stock-in-trade).
Aprenda a não interpretar o resultado no palco, mas a cumprir a Tarefa
genuina/verdadeira, produtiva e adequadamente através da ação o tempo todo que
você estiver atuando. Você deve amar as Tarefas que você tem, encontrar ações
dinâmicas para elas. (Stanislávski, 2008: 143-4)

Esta definição torna absolutamente claro que a ‘Tarefa’ do ator no palco é


se engajar na real, dinâmica ação vital, na busca de objetivos e desejos que são
significativos e envolventes.

‘Objetivos’ e ‘Tarefas’: não poderíamos ter a ambos?

Há uma parte de mim que quer argumentar que ‘objetivos’ e ‘tarefas’ podem
ser um pouco diferentes uns dos outros e efetivamente podem co-existir. Meu
‘objetivo’ no momento poderia ser: ‘inspirar você, leitor, a amar Stanislávski’.
Assim, minha ‘tarefa’ é: ‘definir o meu argumento tão claramente quanto possível’,
e seguir nesta ‘tarefa’ através de uma série de ‘ações’. Essas ações podem ser:
‘Eu leio a nova tradução, eu a comparo com a tradução original, eu planejo meu
argumento, faço minhas notas, eu ligo o meu computador, eu tenho um novo
cartucho de tinta para minha impressora’, etc. Quem sabe? O que é tão
emocionante sobre a nova tradução de An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) –
como continuo a insistir – é que inevitavelmente vai provocar o debate. Se as
subsequentes discussões garantirem que nossos processos de atuação sejam
cada vez mais precisos e aperfeiçoados, isso certamente não é ruim.
Pode ser, contudo, um caso de querer ter o bolo de alguém e comê-lo, e até
mesmo Stanislávski cai nesta armadilha de quando em quando, como revelado no
Capítulo 12: ‘Estímulos psicológicos Internos’ (There can, however, be a case of

20
wanting to have one’s cake and eat it, and even Stanislavski falls into just such a
trap from time to time, as revealed in Chapter 12: ‘Inner psychological drives’).

Capítulo 12: Estímulos Psicológicos Internos


As alegrias de mudar sua terminologia

Há alguns anos, esta tem sido uma das minhas ferramentas favoritas no kit
de ferramentas de Stanislávski. Eu a uso eternamente em minha própria prática de
atuação, bem como quando estou apresentando aos alunos o ‘sistema’ psico-
físico de Stanislávski ou ministrando workshops ao estilo ‘M. O. T.’2 com atores
profissionais e diretores. Em An Actor Prepares (A Preparação do Ator), está
mencionado como as ‘forças motrizes internas’ e este é o nome que,
instintivamente, vem aos meus lábios. No entanto, é uma ferramenta em particular
à qual eu vou me esforçar para mudar minha terminologia.
A frase ‘estímulos psicológicos internos’ instantaneamente nos dá um
sentido muito mais claro do que estamos falando. ‘Psicológico’ (ao contrário de
‘interior’) permite-nos saber que estamos lidando com algo que reflete a nossa
personalidade. ‘Estímulos interiores’ (ao contrário de ‘forças motrizes’) nos dá a
sensação definitiva de que há ação envolvida, um tipo de ação interior-exterior que
nos move para escolhas e decisões individuais. Ainda há muito a ser dito para a
expressão ‘forças motrizes’, como a parte ‘motriz’ certamente ecoa a noção de
‘motivação’, a qual é um plus; por outro lado, a palavra ‘forças’ pode sugerir
tensão ou esforço, o que é uma desvantagem. Então, sou totalmente pela
mudança para ‘estímulos psicológicos internos’.

‘Mente/Razão’, ‘Sentimento’ e ‘Vontade’

Mas o que são eles exatamente, esses ‘estímulos psicológicos internos’ No


capítulo 12 de An Actor Prepares (A Preparação do Ator), a muito curta (oito
páginas) explicação das ‘Forças Motrizes Interiores’ descreve-as como
‘mente/razão’, ‘sentimentos’ e ‘vontade, e estes são:

2
My Own Technique (Minha própria técnica)??? (N.T.)

21
três motores nos impulsionando em nossa vida psíquica, três mestres que agem
(play) sobre o instrumento de nossas almas. (Stanislávski, 1937: 247)

‘Vontade’ é uma palavra curiosa, também traduzida como ‘desejo’ e (como


eu descobri durante meu próprio treinamento de ator na Rússia) ‘feitos’ ou ‘ações’.
Na vida, estamos ou pensando em alguma coisa ou sentindo alguma coisa ou
fazendo alguma coisa: Eu diria que não há outras atividades humanas
fundamentais. Com isso em mente, uma pessoa ou personagem pode ser
fundamentalmente pensada/planejada (thoughtled) (ou muito imaginativa ou muito
racionalmente, quer Walter Mitty3 ou Einstein), ou fundamentalmente
emotivado/conduzida pela emoção (emotion-led) (variando através da paleta
inteira de muito fogoso/impetuoso para muito compassivo), ou fundamentalmente
desejado/conduzido pela vontade (will-led) (ou muito impulsivo ou muito ativo, ou
um Casanova garanhão (sexually-charged) ou um muito prático Bob o Construtor).
Claro, todos nós podemos ser todas essas coisas, dependendo da circunstância, e
como Stanislávski continua dizendo em An Actor Prepares (A Preparação do Ator):

O poder dessas forças motrizes é reforçado por sua interação. Elas se apoiam e
incitam uma à outra com o resultado de que sempre atuam ao mesmo tempo, e em
estreita relação. Quando chamamos a nossa mente para a ação, ao mesmo sinal
provocamos nossa vontade e sentimentos. É somente quando estas forças estão
cooperando harmoniosamente que podemos criar livremente. (Stanislávski, 1937:
248)

O novo capítulo em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) enfeita


(embellishes) algumas dessas ideias muito úteis. Em um exemplo, Stanislávski
usa o artifício de uma conversa entre o diretor Tortsov e o
argumentativo/crítico/questionador estudante Grisha, para colocar em jogo uma
acusação que – mesmo assim – ele sabia que poderia ser das mais importantes
(como de fato está provado desde então). Aqui ele defende sua ênfase no
sentimento sobre o pensamento e a vontade, argumentando:

Sim, eu dei muita ênfase sobre o lado emocional do trabalho criativo, mas o fiz
intencionalmente, já que todas as outras escolas de atuação frequentemente
esquecem a respeito do sentimento. Temos muitos atores intelectuais, e produções

3
Personagem ficcional de James Thurber em ‘A vida secreta de Walter Mitty’. (N. T.)

22
que estão tudo na mente/só na cabeça, enquanto [que o] genuíno/verdeiro teatro
emocional é raramente encontrado. E assim eu sinto que tenho que prestar dupla
atenção ao sentimento, um pouco em detrimento do pensamento/da razão.
(Stanislávski, 2008: 276-7)

Curiosamente, muitas dessas ‘produções intelectuais’ ainda infestam


(haunt) os cartases (the boards) de hoje...

Respondendo aos desenvolvimentos científicos

Há também uma seção inteira neste capítulo, não encontrada em An Actor


Prepares (A Preparação do Ator), que é digno de nota por causa de sua lógica
curiosa, tanto como por seu atual conteúdo. Stanislávski oferece um outro
conjunto de termos para os ‘impulsos psicológicos internos’, descritos como ‘novos
termos científicos’ e são eles:

REPRESENTAÇÃO, AVALIAÇÃO/APRECIAÇÃO E VONTADE-SENTIMENTO


(Stanislávski, 2008: 277)

Como Benedetti aponta em suas notas finais, esta foi uma tentativa de
Stanislávski para colocar suas ideias em linha com a psicologia soviética. Tortsov
diz:

Estes termos são, em essência, os mesmos que os mais velhos/antigos (older


ones). Ele simplesmente os refinou. Quando você os compara, a principal coisa
que você irá notar é que a representação e a avaliação, quando combinadas,
cumprem a mesma função interna que mente/razão (o intelecto) na antiga/velha (in
the old) definição. Se você examinar os novos termos ainda mais você verá que as
palavras ‘vontade’ e ‘sentimento’ foram fundidos em um – ‘vontade-sentimento’.
(Stanislávski, 2008: 277)

Ele, então, passa a explicar por que ele fez esses ajustes à sua própria
terminologia. Basicamente, quando contemplamos alguma coisa – um evento,
uma pessoa, um lugar, uma possibilidade – ela aparece na nossa imaginação: tal
imagem é uma ‘representação’ do que quer que estejamos pensando, sonhando,
prevendo para o futuro, ou relembrando do passado. Nossos pensamentos
trabalham em imagens, em ‘representações’.

23
O próximo estágio do nosso processo de pensamento intelectual,
racionalizado (mind-led), é que nós avaliamos e fazemos julgamentos sobre o que
quer que estejamos imaginando. Fazemos uma ‘avaliação’. Stanislávski sugere
que é só depois de havermos conjurado a ‘representação’ e feito uma ‘avaliação’
de como é que os nossos sentimentos e desejos nos impulsiona para a ação. Ele
argumenta que os sentimentos e a vontade (desejos/ação) estão tão estreitamente
interconectados que seria difícil diferenciá-los. Estes dois ‘impulsos psicológicos
internos’ se unem num esforço comum:

Tentem dividi-los. Tentem, no seu tempo livre, pensar nos casos quando vontade e
sentimento estão separados, trace a linha [divisória] entre eles, me mostre onde
um termina e o outro começa. Não acho que vocês sejam capazes [disso] [...] É
por isso que os mais recentes termos científicos foram unidos em uma palavra –
vontade-sentimento.’ (Stanislávski, 2008: 278-9).

Pessoalmente, acho esta seção muito interessante por duas razões.


Primeiro de tudo, tenho encontrado frequentemente – na prática e em
workshops/oficinas – que quando eu proponho/desenvolvo exercícios para
traçar/desenhar/extrair (draw out) os vários impulsos por trás de cada um dos três
‘estímulos psicológicos internos’, estou ciente de que a separação é artificial,
porque os ‘estímulos’ (drives) interagem muito rapidamente. Eles, na verdade, têm
sido especialmente corretos/verdadeiros (true) quando se tenta separar emoções
e ações. Se alguma coisa toca realmente sua paisagem emocional interior, não
leva muito tempo para que você queira fazer alguma coisa a respeito: é o ponto
integral da atuação psicofísica, em que o corpo e o reino interior trabalham
incrivelmente íntima e sensivelmente um com o outro.
Em segundo lugar, é fascinante ver os aros através dos quais Stanislávski
teve que saltar. Ele tentou lidar com todas as coisas artísticas, pessoais e
esotéricas, num tempo em que o regime político soviético era marxista,
pragmático, resistente aos caprichos de personalidade. (Isto surge novamente
mais tarde no capítulo sobre ‘Comunicação’: Ver abaixo.) Sua própria incerteza
nesta área é revelada quando ele continua dizendo, com referência à noção de
‘vontade-sentimento’:

24
‘Aqueles de nós que trabalhamos no teatro reconhecemos a verdade deste novo
termo, e pressupomos aplicações práticas no futuro, mas não somos capazes de
usá-lo totalmente no momento. Isso precisa de tempo. Vamos usá-lo apenas
parcialmente, na medida em que tenhamos visto na prática, e para o resto, para o
momento, [vamos] nos contentar com os velhos/antigos, bem experimentados
termos.
Não vejo outra saída de nossa situação para o presente. Então/Assim (So), sou
obrigado a usar ambos os conjuntos de termos para os estímulos psicológicos
internos, o velho/antigo e o novo, dependendo de qual pareça mais fácil de
dominar, em cada caso individual. Se eu achar mais conveniente a qualquer
momento fazer uso do termo antigo, ou seja, não dividir as funções da
mente/razão, sem fundir vontade e sentimento, eu o farei (Stanislávski, 2008: 279).

E assim farei! Esta pequena seção nos lembra do valor destas novas
traduções: elas não estão só nos dando novos termos e passagens expandidas
anteriormente obscurecidas nas primeiras traduções, mas elas também servem
como tomos históricos úteis, nos dando uma percepção sobre a situação de
Stanislávski e sua penetração/sondagem/incursão (fathoming) fora dos processos
de atuação durante períodos sociopolíticos particulares.

Capítulo 10: Comunicação


‘Comunicação’ vs. ‘Comunhão’

O último capítulo que eu gostaria de submeter a algum escrutínio – embora


exista muitas ferramentas mais que eu poderia ter escolhido a partir desta nova
tradução – é o Capítulo 10 sobre ‘Comunicação’. Mais uma vez, esta é uma
ferramenta colocada no Ano 2, quando no capítulo 10 de An Actor Prepares (A
Preparação do Ator) me parece que aparece como parte do treinamento do
primeiro ano, e é chamado de ‘Comunhão’.
‘Comunhão’ sempre foi um termo complicado, até por causa de suas
diversas conotações religiosas: tomar a comunhão é parte de rituais Cristãos, e
outras crenças/religiões (faiths) falam com facilidade de ‘comunhão/comungar’
(‘communing’) com espíritos, etc. Portanto, é compreensível porque Benedetti
optou por ‘comunicação’. No entanto, ainda há problemas com esta palavra. Dado
o nosso mundo de alta velocidade do vigésimo primeiro século, de sistemas
globais de alta tecnologia, a palavra ‘comunicação’ poderia muito facilmente soar
científica e quase superficial/volúvel (glib). No entanto, vale a pena lembrar o

25
esboço de ‘comunicação’ fornecido no Glossário de Termos, em que ‘obschchenie’
é descrito como: ‘O ato de estar em contato com um objeto ou em comunicação
com outra pessoa, verbal ou não-verbalmente’. (Stanislávski, 2008: 683) A
referência ‘objeto’ e a referência ‘não-verbal’ são particularmente importantes para
se apegar: não estamos falando de telefones celulares e Skype e satélites,
estamos falando de uma troca de energias que pode se desenvolver
poderosamente tanto entre um ator e um objeto inanimado, como entre dois seres
humanos viventes. Ou, como coloca Stanislávski:

Breves momentos de estar em comunicação são criados por coisas as quais você
dá algo de si mesmo, ou a partir das quais você toma/pega/recebe (take) alguma
coisa. (Stanislávski, 2008: 231)

Quantos de nós insistimos com nossos carros para dar a partida numa
manhã fria de inverno? Quantos de nós gritamos com nossos computadores
quando eles falham no meio de uma operação? Quanto de nosso tesouro é o
romance favorito ou beber ‘daquela’ caneca de café? Momentos como estes são
tão ‘momentos de estar em comunicação’, como qualquer diálogo com outra
pessoa – às vezes mais...

Adaptações às referências ‘espirituais’ em An Actor Prepares (A Preparação


do Ator)

Há duas razões específicas do porque eu acho este capítulo provocativo.


Primeiro, ao longo da nova tradução, parece que há uma redução nas referências
‘espirituais’ que sempre me pareceram (struck me) tão extraordinárias em An
Actor Prepares (A Preparação do Ator). Neste capítulo em particular, há uma
curiosa omissão no que diz respeito aos centros de energia. A tradução de
Hapgood, de 1937, declara:

Eu li o que os Hindus dizem sobre este assunto. Eles acreditam na existência de


um tipo de energia vital chamada Prana, que dá vida ao nosso corpo. De acordo
com seus cálculos o centro de radiação dessa Prana é o plexo solar.
Consequentemente, além de nosso cérebro que é geralmente aceito como o centro
nervoso e psíquico do nosso ser, temos uma fonte parecida perto do coração, no
plexo solar. Eu tentei estabelecer a comunicação entre esses dois centros, com o
resultado de que eu realmente senti não só que eles existem, mas que eles, de

26
fato, entram em contato um com o outro. O centro cerebral afigura-se como sendo
a sede da consciência e o centro nervoso do plexo solar – a sede da emoção. A
sensação era que meu cérebro praticava relações sexuais com os meus
sentimentos/sentidos. Fiquei muito satisfeito porque eu tinha encontrado o sujeito e
o objeto os quais eu estava procurando. A partir desse momento fiz a descoberta
de que eu era capaz de me comunicar comigo mesmo no palco, seja audívelmente
ou em silêncio, e com perfeito domínio de si.
Não tenho nenhum desejo de provar se realmente Prana existe ou não. Minhas
sensações podem ser puramente individuais para mim, a coisa toda pode ser fruto
da minha imaginação. Isso tudo não tem nenhuma consequência, desde que eu
possa fazer uso disso para os meus propósitos e isso me ajude. Se o meu método
prático e não-científico puder ser de utilidade para você, tanto melhor. Se não, eu
não devo insistir’. (Stanislávski, 1937: 198-9).

O que temos em An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) é:

Aprendi que há outro centro, além do centro do sistema nervoso no cérebro,


localizado perto do coração – o plexo solar.
Tentei fazer com que esses dois centros falassem um com o outro.
Fiquei maravilhado no fato de que não só eu senti que eles de fato existem, mas
que eles começaram a conversar entre si.
Peguei o centro em minha cabeça para representar a consciência e o plexo solar
para representar a emoção.
Portanto, minha impressão era de que minha cabeça estava em comunicação com
o meu coração. ‘Bem, então’, eu disse a mim mesmo: ‘deixe-os conversar.’ Meu
sujeito e meu objeto foram encontrados.
A partir daquele momento, quando se tratava de estar no palco meu estado de
espírito se sentia seguro, não só nas pausas silenciosas, mas também quando
falava em voz alta.
Não tenho nenhum desejo de saber se o que eu senti é aceitável para a ciência ou
não. Meu critério é o modo como eu senti. Isto pode ser, com efeito, puramente
pessoal, pode de fato provar-se ser produto de minha própria imaginação, mas isto
me ajuda, então eu faço todo o possível para usá-lo.
Se a minha técnica prática e não científica também for útil para você, então tanto
melhor. Eu não faço alegações. (Stanislávski, 2008: 233-4)

Eu citei isso longamente porque a omissão das referências à Prana é muito


interessante. Voltei para a minha cópia russa de An Actor’s Work on Himself (O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo), publicado em Moscou em 1985, e encontrei
que não há lá nenhuma referência à Prana. Então, quando foi suprimida? Está lá
na primeira versão russa, publicado na União Soviética, em 1938, apenas algumas
semanas após a morte de Stanislávski? Ou havia certas ideias que ele poderia
somente expor para seus leitores americanos, e não para o seu próprio público
nativo?

27
O Prefácio de Benedetti explica isso claramente: o que estamos tratando
aqui é com a edição Soviética, não a versão [Norte] Americana de Hapgood.
Como escreve Benedetti:

[Stanislávski] travou uma amarga batalha com a psicologia pseudo-marxista


soviética, que era Behaviorista e não reconhecia a existência do subconsciente ou
da Mente/Razão. Consequentemente, ele reescreveu substancialmente passagens
inteiras numa tentativa de apaziguar as autoridades. (Stanislávski, 2008: xvii)

As razões por trás disto são desenvolvidas por Anatoly Smeliansky em seu
Posfácio, no qual ele menciona sobre os vários comunicados entre Stanislávski e
sua editora russa, Lyubov Gurievich. Gurievich salienta que o gosto e o estado de
ânimo dos russos no momento não poderiam estar mais longe daqueles da
sociedade estrangeira. Na verdade, o próprio Stanislávski reconheceu que:

Para mim, o maior perigo do livro é ‘a criação da vida do espírito humano’ (você
não está autorizado a falar sobre o espírito). Outro perigo: o subconsciente,
transmissão e recepção, a palavra alma. Não seria isso um motivo para banir o
livro? (Stanislávski, 2008: 698). (Grifo no original)

Isto constitui outra descoberta emocionante: de nenhum modo An Actor’s


Work (O Trabalho do Ator) torna An Actor Prepares (A Preparação do Ator)
obsoleto, uma vez que este nos dá certo conhecimento do que Stanislávski queria
explorar em termos da alma e do ‘espiritual’ de um modo que a versão Russa foi
muito menos capaz. Atores e diretores não precisam jogar fora suas traduções de
Elizabeth Reynolds Hapgood e substituí-las por todo o tempo pelas de Jean
Benedetti: eles simplesmente precisam incluir/adicionar An Actor’s Work (O
Trabalho do Ator) à sua biblioteca e permitir que o Stanislávski de orientação
[Norte] Americana dialogue com o Stanislávski de orientação Russa de um jeito
verdadeiramente instrutivo/esclarecedor (truly enlightening).

‘Aperto/Controle/Agarrar com Firmeza’ (‘Grip’) ou


‘Aferrar/Agarrar/Apertar/Dominar’ (‘Grasp’)

Se eu tenho qualquer tipo de ‘apego’ (‘gripe’) com as novas traduções, é


com relação ao termo ‘grip’ (‘aperto/controle/agarrar com firmeza’).

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‘Aperto/Controle/Agarrar com Firmeza’ (‘Grip’) é uma ferramenta escondida no
Capítulo 10 sobre ‘Comunicação’, descrita assim por Stanislávski:

[S]e você usa uma longa linha de vivências/experiências e sentimentos que estão
numa sequência lógica e estão interligados, então a ligação será reforçada, irá
crescer e, finalmente, desenvolver o grau de força que chamamos de punhos de
ferro (iron grip) e que torna o processo de emissão e recepção dos raios [de
energia] mais forte, mais nítido e mais concreto.
‘Que tipo de punhos de ferro são esses?’ perguntaram os alunos com interesse.
‘Do tipo que um bulldog tem em seus dentes’, explicou Tortsov. ‘E devemos ter
punhos de ferro no palco, nos olhos, nos ouvidos, em todos os cinco sentidos.
(Stanislávski, 2008: 251) (Grifo meu)

Esta é, na verdade, uma das minhas ferramentas favoritas. Em An Actor


Prepares (A Preparação do Ator) é chamado de ‘domínio’ (grasp), e eu tenho que
dizer que é um dos termos antigos com o qual eu provavelmente vou estar colada.
Como escrevi em meu próprio livro, The Complete Stanislavsky Toolkit (O Kit de
Ferramentas Completo de Stanislávski):

DOMÍNIO (GRASP) é um termo incorporado no Capítulo 10 de An Actor Prepares


(A Preparação do Ator), intitulado ‘Comunhão’, e eu li o livro nove vezes antes de
realmente notar/perceber o termo, quanto mais ter compreendido plenamente o
seu impacto e aplicabilidade como ferramenta. Eu já estava familiarizada com
COMUNHÃO e ‘irradiação’, que cobrem um território semelhante, mas as duas
palavras foram bastante alienantes e inacessíveis. DOMÍNIO (GRASP), por outro
lado, parecia muito mais imediato e compreensível. (Merlin, 2007: 208).
(Maiúsculas no original.)

Ter alguém em ‘em seus punhos’ é uma imagem tangível, exequível, a ideia
é que se você e seu parceiro ator podem realmente ter um ao outro ‘cada um nos
punhos do outro’ – se vocês podem realmente ouvir e responder uns aos outros
de forma dinâmica e atentamente – o público será atraído pela sua comunicação e
magnetizado para a ação no palco.
‘Punhos de ferro’ (‘Iron grip’) parece um pouco tenso para mim: ‘agrilhoar
alguma coisa’ carrega em si a sugestão de falta de flexibilidade, e ‘ferro’ parece
um tanto frio e como que máquina/mecânico (and machine-like). De acordo com o
dicionário, a palavra russa khvatka poderia ser traduzida como ‘aperto’ (‘grip’) ou
‘domínio’ (‘grasp’): eu prefiro ‘domínio’ (‘grasp’). Tudo isso vai mostrar mais uma

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vez que as duas traduções irão provocar discussão, e a discussão é boa, uma vez
que estimula a precisão.

Apêndices

Finalmente, vale a pena voltar atenção para as páginas finais de An Actor’s


Work (O Trabalho do Ator). Não são somente as traduções em si que são
inestimáveis, mas os Apêndices são extremamente úteis.

Treinamento e Prática [de exercícios] (Drill)

Ao longo de An Actor Prepares (A Preparação do Ator) e An Actor’s Work


(O Trabalho do Ator), há inúmeras referências a ‘Treinamento e Prática [de
exercícios] (Drill)’, geralmente liderado pelo diretor assistente, Rachmanov. Eu
sempre me perguntei em que território estava ‘Treinamento e Prática [de
exercícios] (Drill)’. Agora nós sabemos, já que um dos apêndices na nova tradução
é dedicado a este assunto. O que se revela neste apêndice é que muitos dos
exercícios criados por Tortsov nas principais aulas são repetidos muitas vezes
com Rachmanov em suas oficinas continuadas. Estes exercícios são muitas vezes
muito simples, mas durante o ‘Treinamento e Prática [de exercícios](Drill)’, eles
geralmente são executados sem a ‘quarta parede’, ou seja, sem o conforto de um
estúdio ou um espaço de ensaio, mas no palco. A combinação das repetições e do
uso do espaço do palco significa que os alunos são capazes de crescer mais e
mais familiarizados com os exercícios diários, enquanto que, ao mesmo tempo, se
torna menos provável que as pressões de estar em ‘público’ possam perturbar seu
processo interior.
Esta é uma seção importante. Ela realmente nos dá a sensação de que as
aulas empreendidas com Tortsov são apenas a ponta do iceberg, a parte
submersa que as repetições com Rachmanov, em que os alunos podem trabalhar
no sentido de mudar os maus hábitos e aprimorando em geral o seu senso
estético e artístico. Ela também nos relembra que todas as ferramentas oferecidas
por Tortsov – ‘comunicação’, ‘Partículas [de ação] e Tarefas’ (‘Bits and Tasks’),
‘memória emotiva’, ‘imaginação’, etc. – não se aprendem apenas da noite para o
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dia. ‘Treinamento e Prática [de exercícios] (Drill)’ contínuos e em geral, trabalho
duro, jazem no coração do ‘sistema’. Eles são o único caminho para um ator
eliminar verdadeiramente as ‘mentiras’ e criar ‘um senso de verdade e de crença’.
A cereja do bolo neste apêndice é a relevância da mímica dos adereços:
uma vez que os adereços reais foram usados algumas vezes, os alunos são
incentivados a mimar aqueles adereços em infinitos detalhes, não tanto para
aguçar suas habilidades de mímica, mas para reforçar seu senso de verdade e de
crença. O apêndice ‘Treinamento e Prática [de exercícios] (Drill)’ é uma seção
muito brincalhona e divertida, quase garantindo a inclusão no corpo principal do
texto.

Exercícios e Trabalhos de Aula

‘Exercícios e trabalhos de aula’ é outro apêndice de valor inestimável, com


uma gama de exercícios fora da prateleira (‘off-the-shelf’), que não são apenas
úteis e acessíveis por seu próprio direito, mas também nos dá outra visão sobre
como o cérebro de Stanislávski trabalhou como professor e um orientador/regente
de oficina. Há exercícios de atuação em ‘Ações Físicas’, ‘Os cinco sentidos’,
‘Imaginação’, ‘Solidão pública’, ‘Silêncio natural para duas pessoas’, ‘Silêncio
natural para várias pessoas’, ‘Ações’ e mais. Para aqueles professores e
orientadores/regentes de oficinas sempre em busca de estímulos e exercícios, não
procure mais. As ideias do próprio Stanislávski lhes dará quase tudo que você
precisa.

E finalmente...

Há certo valor sentimental ligado à minha cópia surrada, velha [e]


remendada com fita de An Actor Prepares (A Preparação do Ator), que tem
rabiscos na margem das nove diferentes leituras, que vão desde o meu primeiro
encontro com o livro como uma jovem estudante, em 1984, a 2007, quando eu
estava escrevendo The Complete Stanislavsky Toolkit (O Kit de Ferramentas
completo de Stanislávski). Então eu não devo queimar minha tradução de
Hapgood na pressa. Além disso, eu acredito que há algumas coisas úteis nela. Ao
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mesmo tempo, foi com grande entusiasmo que minhas primeiras anotações de
margem foram rabiscadas em meu exemplar novinho em folha de An Actor’s Work
(O Trabalho do Ator). Esta é uma contribuição inestimável para os estudos de
Stanislávski, para não mencionar os processos de atuação e práticas de direção.
Cordiais felicitações devem ir para Jean Benedetti e Katya Kamotskaia, e
certamente a Talia Rodgers na Routledge, cuja incansável e sincera dedicação ao
longo dos últimos anos trouxe finalmente este volume para o domínio público. Sim,
An Actor’s Work (O Trabalho do Ator) está finalmente terminado/pronto (done)!

Bibliografia

Mamet, D., True or False: Heresy and Common Sense for the Actor (Verdadeiro
ou Falso: Heresia e Senso Comum para o Ator), London: Faber and Faber, 1998.

Merlin, B., The Complete Stanislavsky Toolkit (O Kit de Ferramentas Completo de


Stanislávski), London: Nick Hern Books, 2007.

Redgrave, M., Mask or Face: Reflections in an Actor’s Mirror (Máscara ou


Rosto/Face: Reflexões num Espelho de Ator), London: Heinemann,1958.

Stanislavski, C., An Actor Prepares (A Preparação do Ator), trans. Elizabeth


Reynolds Hapgood, London: Geoffrey Bles, 1937

Stanislavski, K., An Actor’s Work (O Trabalho do Ator), trans. Jean Benedetti,


London: Routledge, 2008.

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