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APONTAMENTOS ELEMENTARES ACERCA DA HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH

SCHLEIERMACHER

1
Prof. André Constantino Yazbek (UFLA)

Resumo: a partir de uma caracterização sumária da história da hermenêutica, o artigo


pretende lançar luzes sobre aspectos elementares do pensamento de Schleiermacher, bem como
de sua contribuição para a hermenêutica contemporânea.
Palavras-chave: Hermenêutica, Compreensão, Alteridade.

“Pensamento e expressão são íntima e


essencialmente a mesma coisa”
(Friedrich Schleiermacher)

A hermenêutica se encontra entre as principais correntes da chamada filosofia


contemporânea e, assim como a filosofia analítica, a fenomenologia e a semiótica, se
constituí atualmente não como uma disciplina particular, com limites e temas
determinados, mas sim enquanto uma “corrente” ou “tendência” que se ocupa de
questões dos mais diferentes setores da existência. Neste sentido, ela representa hoje
uma larga ampliação de sua função metódica original, posto que, nos séculos anteriores,
se considerava a hermenêutica uma metodologia destinada ao tratamento de textos da
tradição histórica clássica e sagrada2. Assim sendo, tratava-se de, metodologicamente,
enfrentar questões relacionadas com o correto acesso aos textos, com o modo adequado
de interpretá-los e, destarte, com a relação desses esforços de interpretação com outros
métodos.

Ora, se tais atividades, a começar pela exegese – uma disciplina que se propunha a
compreender um texto a partir de sua intenção e sobre o fundamento daquilo que ele
significa –, suscitaram um problema hermenêutico, ou seja, um problema de
interpretação, isto se deve ao fato de que toda a leitura de um texto se faz sempre no

1
Professor Adjunto de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras
(UFLA) E-mail: acyzk@hotmail.com
2
Segundo a sumária introdução histórica de Karl-Otto Apel, “O termo ‘hermenêutica’ – assim como
‘ontologia’, ‘sistema’, entre outros – é um vocábulo grecizado, do século XVII, que ingressou sobretudo na
teologia protestante, em substituição à expressão humanístico-latina mais antiga ars interpretandi.” Cf. APEL,
Karl-Otto. Transformações da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica e Hermenêutica. Tradução de Paulo
Astor Soethe. São Paulo: Ed. Loyola, 2000. p. 328.
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interior de uma comunidade, sob o fundo de uma tradição ou de uma corrente de


pensamento vivo que traz consigo – e desenvolve – pressuposições e exigências. Desse
modo, a leitura dos mitos gregos na escola estóica implica uma hermenêutica que difere
da interpretação rabínica da Tora; de mesmo modo, também a interpretação cristã à luz
do acontecimento maior da cristandade, efetuada por parte da geração apostólica,
redundará em uma leitura distinta daquela dos rabinos.

Dito isso, percebe-se claramente que a exegese implica uma teoria do signo e da
significação, como se pode notar em A Doutrina Cristã de Santo Agostinho, por exemplo3.
Se um texto pode comportar diversos sentidos – um sentido histórico e outro espiritual,
por exemplo –, faz-se necessário recorrer a uma noção de significação mais complexa
que aquela dos signos ditos unívocos, que requerem antes uma lógica da argumentação.
Portanto, o trabalho da interpretação nos revela um intento fundamental: o de vencer um
distanciamento cultural e histórico e, com isso, aplainar o leitor para um texto que se
configura como estrangeiro, de modo que se possa incorporar o seu sentido à
compreensão atual que um homem pode fazer de si mesmo4.

Um estímulo análogo desenvolverá um outro caminho para a doutrina da “arte da


compreensão” e da “interpretação”: a hermenêutica filológica aparecerá como um
conjunto de instrumentos para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura
clássica que, enquanto material de formação, estava sempre presente, mas havia sido
amoldada por completo ao mundo cristão. Em ambas as esferas da tradição – da
literatura dos clássicos à Bíblia –, trata-se de jogar luzes sobre o sentido original dos
textos.

Evidentemente, não se pode constituir nenhuma interpretação senão nos marcos dos
modos de compreensão disponíveis em uma época dada: mito, alegoria, metáfora,
analogia, etc. Donde se sucede a vinculação íntima entre a interpretação – no sentido
preciso da exegese textual – e a compreensão – tomada em seu sentido amplo de
“inteligência dos signos” –, já presente de certa forma em Aristóteles5. Ora, a

3
A regra básica para a interpretação dos textos sagrados, mais aceita pelos intelectuais cristãos durante a
Idade Média, era a de confrontar os textos de difícil compreensão com o todo da mensagem cristã; e se por
acaso o sentido oculto não aparecesse, dever-se-ia confrontá-los com os ensinamentos dos grandes
pensadores do cristianismo. Como se sabe, esta forma de interpretação, fundada na doutrina patrística,
sofrerá modificações diante da reabilitação da filologia clássica. Cf. AGOSTINHO, Santo. A Doutrina cristã.
Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1991.
4
RICOEUR, Paul. Hermenêutica y Estructuralismo. Traducion de Graziella Baravalle y Maria Teresa La Valle.
Buenos Aires: Megápolis, 1975, p. 8.
5
Idem ibidem, p. 8.
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hermenêutica acabará por romper os limites de uma técnica destinada a especialistas,


pois o que estará em jogo será precisamente o problema geral da compreensão.

Á parte o estagirita, portanto, onde se pode divisar a primeira e mais originária relação
entre o conceito de interpretação e o de compreensão (que já vincula entre si os
problemas técnicos da exegese textual com os problemas mais gerais da significação6), é
com o desenvolvimento da filologia clássica e das ciências históricas, em fins do século
XVIII e princípios do XIX, que se abrirá o caminho para uma hermenêutica geral. Assim, a
partir do século XVIII, autores como John Semler e John Ernesti, por exemplo,
reconheceram que, para se compreender adequadamente as Escrituras, seria preciso
antes admitir a diversidade de seus autores e, por conseqüência, abandonar a unidade
dogmática do cânon.

Desse modo, segundo Gadamer, a hermenêutica principiou por se separar de todos os


enquadramentos dogmáticos, se liberando para se elevar ao significado universal de um
organon histórico: a compreensão a partir do contexto do todo – postulada já em Lutero,
pois é o conjunto das Escrituras que deve guiar a compreensão do individual – requer
agora necessariamente a restauração histórica do contexto da vida a que pertencem os
documentos. Sendo que já não há mais, desde então, diferença alguma entre a
interpretação de escritos sagrados e profanos, estamos em face de uma só
hermenêutica, que agora não se circunscreve nos limites de uma função propedêutica de
toda historiografia, mas abarca, ela própria, toda a atividade historiográfica:

“O contexto histórico universal, no qual mostram-se em seu


significado verdadeiramente relativo os objetos individuais da
investigação histórica, tanto os grandes como os pequenos, é, ele
próprio, um todo, a partir do qual pode-se compreender
plenamente cada elemento individual em seu sentido; e ele,
inversamente, só pode ser plenamente compreendido a partir
desses elementos individuais: a história universal é, igualmente, o
grande livro obscuro, a obra completa do espírito humano,
composta nas línguas do passado, cujo texto terá de ser
entendido. A investigação histórica se compreende a si mesma
7
segundo o modelo da filologia, de que se serve.”

6
Idem ibidem, p. 9.
7
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de
Enio Paulo Giachini; revisão da tradução de Márcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p.
278. Grife-se ainda que Gadamer acaba por resvalar naquilo que será caracterizado por Schleiermacher
como círculo hermenêutico: toda compreensão do individual é condicionada pela compreensão do todo e,
inversamente, toda compreensão do todo só pode se configurar a partir do individual. Não obstante,
Schleiermacher aplicará o círculo também à compreensão psicológica: deve-se compreender cada
formulação do pensamento como um momento vital no contexto total de seu autor.
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Pois bem, ainda que se deva admitir que tal história da compreensão tem estado
acompanhada pela reflexão teórica desde os tempos da filologia antiga, da perspectiva
da contemporaneidade hermenêutica, seu ponto de clivagem se encontra em Friedrich
Schleiermacher e Wilhelm Dilthey. Portanto, se as reflexões da tradição pretendem servir
à “arte da compreensão” (do mesmo modo que a retórica serva à “arte de falar” ou a
poética à “arte de compor”), agora é a compreensão (Verstehen) enquanto tal que se
converte em problema – um problema cuja generalidade advém da consideração de que
a compreensão se converteu em uma tarefa num sentido muito diverso do que até então
lha era conferida: ela já não é mais uma “doutrina da arte” a serviço da práxis do filólogo
ou do teólogo. Com Schleiermacher e Dilthey, o problema hermenêutico se converte
enfim em problema fundamentalmente filosófico.

Nesta medida, retomando parcialmente a situação da hermenêutica nos séculos XIX e


XX, gostaria de partir sobretudo de alguns trechos selecionados dos Discursos
Acadêmicos pronunciados por Schleiermacher em 18298 para expor alguns
apontamentos elementares de sua hermenêutica. Tais discursos se apresentam sob a
designação geral de Discursos Acadêmicos [1829]: sobre o conceito de hermenêutica,
com referências às indicações de F. A. Wolf e ao compêndio de Ast. Em seu conjunto,
eles perfazem a tentativa de seu autor em fundar, diante de um público de intelectuais, a
necessidade de um método hermenêutico geral. É neste sentido que se deve
compreender o diálogo encetado com Friedrich August Wolf e Friedrich Ast: o primeiro
não acreditava na possibilidade de uma hermenêutica geral, enquanto que o segundo
oferecia já um exemplo de sua realização.

II.

No curso dos séculos XIX e XX, a partir do papel de uma disciplina auxiliar subordinada,
a hermenêutica desenvolveu-se progressivamente, atingindo a dignidade de um tipo
filosófico de questionamento. À parte a plêiade de nomes que se ligam ao
desenvolvimento da hermenêutica contemporânea, pode-se seguramente conferir
especial destaque a Schleiermacher, que foi quem primeiro promoveu – nas palavras de
Paul Ricoeur – a desregionalização da visada hermenêutica:

8
SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”. In: Hermenêutica:
arte e técnica de interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes,
1999.
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“Vejo a história recente da hermenêutica dominada por duas


preocupações. A primeira tende a ampliar progressivamente a visada da
hermenêutica, de tal modo que todas as hermenêuticas regionais sejam
incluídas numa hermenêutica geral. Mas esse movimento de
desregionalização não pode ser levado a bom termo sem que, ao
mesmo tempo, as preocupações propriamente epistemológicas da
hermenêutica, ou seja, seu esforço para constituir-se em saber de
reputação científica, estejam subordinadas a preocupações ontológicas
segundo as quais compreender deixa de aparecer como um simples
modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e de relacionar-se
com os seres e com o ser. /.../ O verdadeiro movimento de
desregionalização começa com o esforço para se extrair um problema
geral da atividade de interpretação cada vez engajada em textos
diferentes. O discernimento desta problemática central e unitária deve-se
9
à obra de F. Schleiermacher.”

Antes da obra de Schleiermacher, com vimos, divisa-se duas esferas de aplicação da


hermenêutica: de um lado, uma filologia dos textos clássicos; de outro, uma exegese dos
textos sagrados (cada qual variando seu trabalho de interpretação conforme a
diversidade dos textos). Os filólogos que foram os predecessores do hermeneuta alemão
determinavam a hermenêutica pelo conteúdo do que se devia compreender: Ast, com
quem o autor dos Discursos dialoga durante toda a exposição, propõe como objetivo de
uma hermenêutica universal alcançar “a produção da unidade da vida grega e cristã”10 (o
que não difere em absoluto daquilo que pensam os “humanistas cristãos”).
Schleiermacher, ao contrário, já não buscará a unidade da hermenêutica na unidade de
conteúdo da tradição, mas sim na unidade de um procedimento que nem sequer é
diferenciado pelo modo como as idéias foram transmitidas – se por escrito ou oralmente,
se numa língua estranha ou na própria. Em outros termos: Schleiermacher foi o primeiro
a acentuar a genuína dimensão filosófica da hermenêutica na medida em que salientou o
problema da correta compreensão e interpretação não somente para os textos da
tradição escrita, mas, sobretudo, em direção à ampliação da tarefa hermenêutica para
todas as formas de comunicação, em especial o diálogo vivo: “/.../ tenho que repetir outra
vez que a hermenêutica não deve estar limitada meramente às produções literárias; pois

9
RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1990. p. 18-20. Note-se que Paul Ricoeur, ao vaticinar que o movimento de
desregionalização da hermenêutica não pode ser levado a cabo sem que as suas preocupações
propriamente epistemológicas estejam subordinadas a preocupações ontológicas, já aponta para aquilo que
será o desenvolvimento ulterior da hermenêutica, realizado em especial na filosofia de Heidegger em Ser e
Tempo, que não é senão, grosso modo, a consideração do compreender não como um simples modo de
conhecer, mas sim como uma maneira de ser e de relacionar-se com os seres e com o ser. Assim,
Heidegger dá um passo adiante em relação ao problema hermenêutico – passo preparado em parte por
Dilthey e sua escola, em parte pela fenomenologia de Husserl – quando faz recuar o problema da
“compreensão” à dimensão existencial do ser-aí (Dasein). Trata-se agora, com a filosofia de Ser e Tempo, de
uma compreensão original que antecede inclusive a dualidade entre o “explicar” e o “compreender”; e que,
acima de tudo, é dada com o próprio “ser da existência”, uma vez que a existência (Dasein) é marcada pela
compreensão do ser.
10
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p.29.
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eu me surpreendo seguidamente no curso de uma conversação [familiar] realizando


operações hermenêuticas”.11

É a partir deste esforço de Schleiermacher em ampliar progressivamente a “visada da


hermenêutica” – para que então todas as “hermenêuticas regionais” sejam incluídas em
uma “hermenêutica geral” – que se pode ultrapassar efetivamente a “localidade” da
linguagem escrita. Afinal, uma hermenêutica geral exige que nós possamos nos postar
para além das aplicações particulares referentes aos dois grandes ramos já mencionados
da hermenêutica dita tradicional, discernindo suas operações comuns. Por conseguinte,
devemos nos elevar não somente acima da particularidade do texto, mas também da
particularidade das regras textuais nas quais se dispersam sobremaneira a arte de
compreender. O movimento de desregionalização, portanto, acaba por tornar-se um
movimento de radicalização, no qual a hermenêutica se torna não somente geral, mas,
sobretudo fundamental – donde a aquisição de seu próprio status filosófico.

Destarte, e em paralelo com sua atividade de teólogo e tradutor, Schleiermacher


consagra toda a sua maturidade à elaboração de uma teoria da hermenêutica que está
na base da própria hermenêutica contemporânea, que se considera uma teoria da
compreensão. Ainda que Schleiermacher dê à sua hermenêutica o nome de “doutrina da
arte” – quiçá envolto pelo sopro da tradição –, deve-se entender o sentido sistemático
completamente novo que ele confere ao termo: trata-se de buscar a fundamentação
teórica do procedimento comum a teólogos e filólogos, para então, aquém de ambos os
interesses, remontar a uma relação mais originária da compreensão do pensamento.12
Assim sendo, a hermenêutica da compreensão rompe com os limites da hermenêutica
tradicional – quer dizer, com os estreitos limites da prática metodológica hermenêutica
tradicional, que visa apenas estabelecer as regras de interpretação dos textos históricos
e sagrados –, e pretende se constituir como uma teoria da compreensão intersubjetiva,
isso é, dos “processos de leitura” que se desenrolam na esfera da comunicação entre
sujeitos-consciências. Trata-se mesmo de ultrapassar o nível ordinário da compreensão;
trata-se de afirmar que, no limite, indiscutível não é a compreensão, mas sim o mal-
entendido: a dificuldade de compreensão, a esfera do mal-entendido, já não é tida como
um momento ocasional, mas sim enquanto momento integrador e fundamental do

11
Idem ibidem, p. 33.
12
“Se esta arte [a hermenêutica] é uma coisa para a teologia cristã e é a mesma coisa para a ciência clássica
da antigüidade, então, nenhuma nem outra constitui a sua essência, mas esta é qualquer coisa maior, da
qual estas são apenas derivações /.../; cada uma configurada de maneira especial como Organon para uma
esfera determinada, para as quais, porém, deveria haver qualquer coisa de comum e de mais elevado”. Cf.
Idem ibidem, p. 29.
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problema geral da própria compreensão. Nos termos de Apel, neste ponto introduz-se
uma espécie de “dúvida cartesiana” na doutrina da antiga ars interpretandi, isto é,
introduz-se a dúvida onde antes subsistia o domínio da arte praticamente aplicada.13

Mas se assim o é, então a compreensão de um texto – razão de ser da antiga


hermenêutica – é primeiramente a compreensão do produto expressivo de um sujeito; e
isso de tal modo que Schleiermacher, em seus Discursos, afirma, peremptoriamente,
fazer uso da “prática da hermenêutica” não somente “no domínio da língua materna ou
estrangeira”, não apenas no âmbito “de todo estudo filológico ou teológico”, mas ainda, e
sobretudo, “no relacionamento imediato com os homens”.14

Portanto, não se trata mais aqui de uma prática circunscrita a um estudo filológico
apenas, nem mesmo de qualquer questão concernente à teologia. Trata-se, isso sim, da
consideração de que, enquanto compreensão de um texto, a hermenêutica é, acima de
tudo, a compreensão de um fenômeno de linguagem objetivo – que se define menos por
seu autor, ou pelo fato de se tratar da língua materna ou estrangeira, do que por sua
situação na história da língua e da cultura. Em Schleiermacher, a hermenêutica está
voltada para a compreensão de tudo o que é lingüístico: “o que se pressupõe e o que se
encontra em hermenêutica é apenas linguagem”.15

Esta subordinação das regras particulares da exegese e da filologia à problemática geral


do compreender, explicitada nos Discursos de Schleiermacher – afinal, trata-se de
discernir também o “como, em um amigo, pode se dar a passagem de uma idéia à outra”,
ou então de se questionar “acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que
ele se expresse, sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro”16 –,
constituirá, para a história da hermenêutica, uma reviravolta análoga àquela que fora
operada pela filosofia kantiana com referência às ciências da natureza: ao radicalizar o
questionamento do compreender historicamente mediado da Bíblia e dos autores
clássicos, Schleiermacher – juntamente com Dilthey, seu dileto discípulo – se vinculará à
pergunta kantiana acerca das condições de possibilidades e validade do conhecimento
objetivo, transladando-a, no entanto, para o nível de uma problemática geral da

13
APEL, Transformações da Filosofia I, op. cit., p. 331.
14
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33 (grifo
nosso).
15
Idem ibidem, p. 19.
16
Idem ibidem, p. 33.
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compreensão. Assim, e mais uma vez segundo Apel17, o retroagir metódico em direção a
um sujeito que ainda não compreende, sugerido em Schleiermacher, levará Dilthey ao
discernimento de que, ao contrário do que ocorre com o sujeito do conhecimento objetivo
nas ciências naturais, o sujeito de compreender não pode ser apreendido enquanto uma
consciência pura (que determinaria as “coisas-em-si” como elementos passíveis de
afecção exterior, vale dizer, como se fossem fenômenos regulares), mas sim enquanto
uma consciência que determina as “coisas-em-si” como a “vida” (Leben) que se entende
a si mesma de dentro, na “vivência” (Erlebnis) e na “expressão” (Ausdruck) da vivência18.
É exatamente por isso que Paul Ricoeur, desenvolvendo uma análise análoga a de Apel,
pôde afirmar que a “hermenêutica vai aparecer como uma resposta global trazida à
grande lacuna do kantismo”.19

Deve-se considerar ainda, como o faz Ricoeur, que se tratava também, e sobretudo, de
revolucionar a concepção de sujeito do kantismo: ao ter se limitado à busca das
condições universais da objetividade na física e na ética, a filosofia kantiana só conseguiu
evidenciar o espírito impessoal, quer dizer, portador das condições de possibilidade dos
juízos universais. Sob este diapasão, o programa hermenêutico de Schleiermacher será
portador de uma dupla marca: 1) a marca romântica, devida ao seu apelo a uma relação
viva com o processo de criação; 2) e a marca crítica, explicitada em seu desejo de
elaborar regras universalmente válidas da compreensão.20 Seu propósito crítico, com
efeito, estaria explicitado na seguinte divisa: “há hermenêutica onde houver não
compreensão”21. Isto é: “existe para cada um o estranho nos pensamentos e expressões
de um outro”.22 Desde então se pode aquilatar com clareza o peso conferido à prática
hermenêutica: ao confessar a pratica hermenêutica no domínio da língua – “eu confesso
que tenho essa prática da hermenêutica no domínio da língua /.../ no relacionamento

17
APEL, Transformações da Filosofia I, op. cit., p. 331-332.
18
Pode-se, aqui, divisar o peso da influência de Dilthey na filosofia heideggeriana de Ser e Tempo:
“Heidegger em Ser e Tempo está ligado justamente a essa concepção de Dilthey: de acordo com
ela, a vida humana que é inteligível desde dentro, e na qual não se pode retroagir mais, já abrange
desde sempre a separação sujeito-objeto cartesiano-kantiana e pode, portanto, ser interpretada a
partir de sua própria autocompreensão. Em sua hermenêutica existencial, Heidegger substitui a
vida que é inteligível no círculo hermenêutico de vivência e expressão pelo ‘ser-aí’ humano; neste,
o ser em geral teria conquistado uma relação entre o Compreender e si mesmo. Essa abordagem
permite-lhe renovar a pergunta platônico-aristotélica sobre o ser do ente /.../ enquanto pergunta
sobre o ‘sentido do ser’, e sob o pressuposto de que existe um horizonte de entendimento para tal
questão, qual seja, o próprio ser-aí do ser humano, que ‘sabe-ser’ em seu ser, e que com isso
também entende desde sempre, e de maneira não-expressa (‘pré-ontológica’), o ser de todo ente
restante”. Cf. Idem ibidem.
19
RICOEUR, Interpretação e Ideologias, op. cit., p. 21.
20
Idem ibidem.
21
Schleiermacher apud Ricoeur, Idem ibidem.
22
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33.
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imediato com os homens”23 –, Schleiermacher confessa aquilo que não precisaria de


confissão alguma, pois se evidencia cotidianamente (ainda que de modo não
tematizado); está-se em meio aos homens, em relação inter-subjetiva com eles; o que
significa, a todo momento, fazer hermenêutica, quer dizer, esforçarmo-nos por
compreendê-los, pois em todos eles, para cada um de nós, divisa-se o estranho, o não-
compreendido: justamente porque cada alma é “no seu ser único o não-ser dos outros, a
incompreensão não se dissipará nunca inteiramente”24. Há hermenêutica pelo simples
fato de haver um mundo de intersubjetividades, de haverem “vidas”. Destarte,
Schleiermacher pretende compreender cada pensamento ou expressão a partir do
conjunto de um contexto vital do qual provêm:

“Pois a presença imediata do falante, a expressão viva que manifesta a


participação de todo o seu ser espiritual, a maneira como ali os
pensamentos se desenvolvem a partir da vida em comum, tudo isso
estimula, muito mais do que o exame solitário de um texto inteiramente
isolado, a compreender uma seqüência de pensamentos
simultaneamente como um momento da vida que irrompe e como uma
ação conectada com muitas outras, mesmo aquelas de gêneros
25
diferentes” .

Nesta medida, o trecho acima é bastante expressivo: a compreensão se move em todos


os planos referentes à inter-expressividade dos sujeitos (em última instância, pode haver
também uma compreensão dos gestos, dos atos, etc.), mas seu espaço de ação
fundamental é a linguagem, que não é senão o médium de explicitação da vida em
comum, posto que a compreensão é em geral centrada nas expressões lingüísticas orais
ou escritas. Em poucas palavras, isso significa que toda a cena de desdobramento da
inter-expressividade dos sujeitos, donde emana seu sentido e contexto vital, é
forçosamente a linguagem entendida como expressão da “individualização da vida
universal”:

“O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo a sua


concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse
modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou
radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da
compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do
entendimento inter-humano significou no seu conjunto um
aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto
acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base

23
Idem ibidem.
24
Idem ibidem, p. 46.
25
Idem ibidem, p. 34 (grifo nosso).
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hermenêutica. A hermenêutica tornou-se base de todas as ciências


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históricas do espírito e não só da teologia.”

Portanto, o sentido normativo básico de um texto, quer dizer, o elemento que


originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, encontra-se aqui em segundo
plano: tendo-se em vista que um dos mais profundos impulsos da época romântica foi a
“fé” no diálogo como uma fonte de verdade não-dogmática, pode-se perfeitamente
entender que a capacidade para o diálogo, isto é, para a comunicação em geral,
ocupasse um posto privilegiado nas preocupações hermenêuticas de Schleiermacher – a
experiência humana originária da capacidade para a amizade, para o diálogo e para a
relação epistolar, constituirá o ponto de partida do hermeneuta. Destarte, ao indicar
expressamente que a “arte da compreensão” não é necessária somente para o trato com
os textos, mas sobretudo no trato da conversação, Schleiermacher acabará por
expressar a convicção de que a hermenêutica é mais do que um método das ciências, ou
de um grupo em particular de estudos eruditos. Ela designaria, antes de tudo, um
elemento intrinsecamente ligado à esfera da realidade humana (considerada do ponto de
vista primordial de sua expressividade inter-subjetiva). Quer dizer: a hermenêutica, em
última instância, é a experiência de uma relação entre humanos por intermédio da
linguagem. O que implica – veremos a seguir – na pré-existência de “algo em comum” na
relação lingüística entre interpretante e interpretado.27

III.

De acordo com Gadamer, o método postulado por Schleiermacher – denominado de


hermenêutica psicológica pelo autor de Verdade e método, uma vez que se fundamenta
no postulado de que importa compreender um autor melhor do que ele próprio teria se
compreendido –, não é senão uma fórmula que, desde então, tem sido repetida
incessantemente, e em cujas interpretações cambiantes caracteriza-se parte substancial
da história da hermenêutica contemporânea28. E o mesmo Gadamer também não deixará
de notar – e em seus Discursos o hermeneuta não faz senão confirmá-lo – o fato de que
Schleiermacher não considera a tarefa da filologia e da exegese bíblica, que consiste em
compreender um texto composto em uma língua estrangeira e procedente de uma época

26
GADAMER, H. G. Verdade e Método II. Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução
de Márcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 119-120.
27
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 64.
28
Idem ibidem, p. 299.
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passada, mais problemática do que qualquer outro compreender29: como vimos, o


esforço da compreensão tem lugar cada vez que não se dá uma compreensão imediata
e, por conseqüência, a cada vez que se tem de contar com a possibilidade do mal-
entendido – a experiência da alteridade e da possibilidade do mal-entendido são
universais. Desde o início das considerações de seus Discursos, portanto,
Schleiermacher articula o exercício da hermenêutica ao surgimento (sempre presente) de
uma esfera de estranheza em um momento qualquer dos discursos que o intérprete se
propõe a compreender – a hermenêutica, deste modo, consiste em um trabalho de
dissipação de estranhezas.30

No entanto, ainda há mais a ser observado: claro está que a hermenêutica não deve
atuar apenas no domínio clássico – outrora sua seara específica –, não sendo, portanto,
um mero órganon filológico deste domínio; claro está também que em “todo lugar” onde
houver qualquer “coisa de estranho”, “na expressão do pensamento pelo discurso /.../, há
ali um problema que apenas pode se resolver com a ajuda de nossa teoria
[hermenêutica]”.31 Não obstante, se há algo estranho a ser compreendido, dialeticamente
deve-se considerar que a condição de possibilidade de compreender este “algo” reside
justamente no fato de haver também “pontos de contato para a compreensão”:

“[quando tudo fosse algo absolutamente estranho], a hermenêutica não


saberia entabular o seu trabalho. Do mesmo modo no caso oposto, a
saber, quando nada fosse estranho entre aquele [que fala e aquele que
ouve], ela não precisaria ser entabulada, antes a compreensão seria
dada simultaneamente com a leitura e audição /.../. Na verdade, /.../ se o
que é para ser compreendido fosse completamente estranho àquele que
deve compreender, e não houvesse nada de comum entre ambos, então,
32
não haveria ponto de contato com a compreensão”.

Donde se segue, justamente, a dinâmica conferida à hermenêutica por Schleiermacher:


compreender o outro – ao fim e ao cabo, é disso que se trata – implica de alguma forma
em compreendê-lo já desde sempre, em partilhar com ele algum “ponto de contato”, algo
em comum que torne possível a própria compreensão. Nesta medida, há desde sempre
um nível ordinário da compreensão; e é precisamente com base neste “nível ordinário”
que se deve promover a tarefa hermenêutica de elevar as questões da linguagem – cuja
polissemia constituí o traço característico – até a exigência de um trabalho de
interpretação que se posta primeiramente no nível mais banal da conversação. Assim, o

29
Idem ibidem, p. 195.
30
Idem ibidem, pp. 25 ss.
31
Idem ibidem, p.31.
32
Idem ibidem.
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manejo do contexto, que é o complemento necessário e inelutável da polissemia da


linguagem – seja ela materna ou estrangeira –, põe em jogo uma atividade de
discernimento. Considerada deste modo, tal atividade será uma atividade de
interpretação: trata-se de reconhecer a mensagem relativamente unívoca que o locutor
construiu, sempre apoiado sobre a base polissêmica das línguas naturais. Segundo
Ricoeur, o discernimento se dá a partir de uma “permuta concreta” de mensagens que,
trocadas entre os interlocutores, têm por modelo o “jogo da questão e da resposta”; mas
o que ocorre, observa ainda Ricoeur, é que no âmbito da hermenêutica contemporânea a
escrita parece não mais preencher “as condições de interpretação direta mediante o jogo
da questão e da resposta”, tal como se daria através do diálogo. 33 Neste momento,

“São necessárias /.../ técnicas específicas para se elevar ao nível do


discurso a cadeia dos sinais escritos e discernir a mensagem através
das codificações superpostas, próprias à efetuação do discurso como
34
texto.”

Tais técnicas específicas, nas palavras de Schleiermacher,

“não dependem absolutamente de que o discurso esteja fixado para os


olhos através da escrita, mas ocorre sempre onde nós temos que
apreender pensamentos ou encadeamentos de pensamentos através de
35
palavras”.

Assim com elas tampouco se limitam “aos casos em que a língua é uma língua
estrangeira”,

“mas também na própria língua e, note-se, inteiramente independente


dos diversos dialetos nos quais ela eventualmente se decompõe, ou de
36
particularidades que se encontram em um e não em outro”.

Portanto, se não se deve limitar o trabalho hermenêutico nem à linguagem materna e


nem tampouco àquilo que está redigido em língua estrangeira, é porque à estreiteza
destas posições – ambas identificadas pelo autor dos Discursos37 – deve-se opor um
“conselho urgente” para que possamos precisar o verdadeiro alcance da tarefa
hermenêutica: exercitar com zelo a interpretação das “conversações significativas”38.
Com efeito, trata-se aqui de distinguir o procedimento do compreender para dotá-lo de

33
RICOEUR, Interpretação e Ideologias, op. cit., p. 20.
34
Idem ibidem.
35
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33.
36
Idem ibidem, p. 33.
37
Idem ibidem, p. 32.
38
Idem ibidem, p. 34.
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autonomia suficiente: a hermenêutica deve elevar-se ao status de um método autônomo


(“pois o mal-entendido se produz por si mesmo, e a compreensão é algo que temos de
querer e de procurar em cada ponto”39); em um esforço que se coaduna perfeitamente
com a exigência de libertar-se das proposições de tarefas redutoras, a partir das quais os
predecessores de Schleiermacher – Ast e Wolf – haviam fixado a essência da
hermenêutica: sob a batuta do autor dos Discursos, mesmo no conhecido, quer dizer,
naquilo que nós é familiar, “é de fato o estranho que se manifesta na língua, quando uma
ligação de palavras [renega-se a tornar-se clara]”.40

Mas se ainda assim o “ponto de contato” para a compreensão é sempre possível, se a


tarefa da compreensão já se vincula desde sempre à esfera inter-expressiva – caso
contrário, não haveria mundo inter-subjetivo –, é porque está pressuposta a idéia de que
cada individualidade é uma manifestação do viver total e que, por isso mesmo, cada qual
traz em si um mínimo de cada um dos demais. Assim, ao pontuar a problemática da
compreensão no âmbito da individualidade, surge para Schleiermacher a tarefa da
hermenêutica enquanto hermenêutica universal: tanto o extremo da alteridade como o da
familiaridade se dão com a diferença relativa de toda individualidade – presta-se contas,
então, tanto do caráter provisório quanto da infinidade da tarefa da compreensão.41
Compreender é sempre mover-se em círculos.42

Enfim, a hermenêutica é geral na medida em que ela é co-extensiva ao ato de


compreender, não sendo, portanto, redutível aos problemas de uma única não-
compreensão específica: enquanto ato hermenêutico por excelência, a compreensão se
aplica a todas as situações humanas nas quais se requer a explicitação das intenções
manifestas de uma outra consciência. Postulada por Schleiermacher nesses termos, a
extensão da tarefa hermenêutica ao “diálogo significativo” mostra o quanto se

39
GADAMER, Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, op. cit., p.
289.
40
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 45.
41
“No que diz respeito à compreensão, duas máximas opostas. 1) Compreendo tudo até o
momento em que me choco com uma contradição ou com um sem-sentido; 2) Não compreendo
nada se não o reconheço e não posso construí-lo como necessário. De acordo com essa última
máxima, compreender é uma tarefa infinita”. Cf. SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Les aphorismes de
1805 et de 1809-1810”. In: Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987, p. 48.
42
Tradicionalmente, a concepção de círculo hermenêutico entende que o conhecimento anterior
da obra é fundamental à compreensão de suas partes, assim como a compreensão adequada das
partes é fundamental para uma boa interpretação do todo. Nas palavras de Schleiermacher, “Cada
particular apenas pode ser compreendido por meio do todo e, portanto, toda explicação do
particular pressupõe já a compreensão do todo”. Cf. SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos
(13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 46-47.
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transformou o sentido da “estranheza” presente na relação entre quem discursa e quem


interpreta – cuja superação a hermenêutica deveria ser capaz de alcançar – frente ao que
até então se havia proposto na tradição: em um sentido novo e universal, a estranheza
doravante estará ligada indissoluvelmente com a individualidade do tu – esfera do
reconhecimento efetivo da alteridade –, de sorte que os consensos fundamentados
biblicamente, ou mesmo racionalmente, não formam mais o fio condutor dogmático de
toda a compreensão do texto. Destarte, Schleiermacher se atêm a proporcionar à
reflexão hermenêutica uma motivação fundamental, que situe o problema hermenêutico
em um horizonte até então inaudito: a relação circular da tarefa hermenêutica extrapola
os limites estritos do texto e, estendendo-se à linguagem em geral, concerne à expressão
de vida de seu autor. O que implica mais do que a mera transposição do problema
hermenêutico da compreensão daquilo que foi fixado por escrito para a compreensão do
discurso em geral. Implica, isto sim, um deslocamento fundamental: o que deve ser
compreendido não é a literalidade das palavras e seu sentido objetivo, mas, ao fim e ao
cabo, também a individualidade de quem fala, quer dizer, do próprio autor.43 E mais:
deve-se conceber imediatamente a individualidade do autor transformando-se a si
mesmo, concomitantemente, em outrem. Neste processo, cada qual evoca a alteridade
de uma perspectiva alheia com a qual possa erguer-se em sua própria perspectiva.

No universo hermenêutico de Schleiermacher, o verdadeiro problema da compreensão


somente emerge quando, no esforço para se compreender um conteúdo, questiona-se
“acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que ele [outrem] se expresse,
sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro.”44 Um questionamento
hermenêutico desta envergadura anuncia uma forma de reconhecimento da alteridade
em sua radicalidade eminente – com a conseqüente afirmação da possibilidade efetiva de
formação de consenso a partir deste reconhecimento – e, em última instância, significa
uma renúncia a um sentido comum. Aqui reside, de fato e de direito, a percepção da
individualidade do tu, bem como a consideração de sua peculiaridade por parte do
esforço da compreensão. Interpretante e interpretado, eu e outrem, se inter-relacionam a
partir de uma comunidade compreensiva prévia e necessária à expressão inter-subjetiva:
a hermenêutica postulada por Schleiermacher encontra sua garantia – e a justa medida

43
“Assim, paralelamente à interpretação gramatical, ele [Schleiermacher] coloca a psicológica
(técnica) – e nesta é que se encontra o que ele tem de mais próprio. /.../ A hermenêutica abrange
a arte da interpretação gramatical e psicológica. É, em última análise, um comportamento
divinatório, um transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o
‘decurso interno’ da feitura da obra, uma reformulação do ato criador”. Cf. GADAMER, Verdade e
Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, op. cit., p. 291-292.
44
SCHLEIERMACHER, “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”, op. cit., p. 33.
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de sua tarefa – no fato de que cada espírito, em sua singularidade mesma, representa
uma individuação da vida universal.45

45
STAROBINSKI, Jean. “Avant-propos: L’Art de Comprendre”. In: SCHLEIERMACHER, F. D. E.
Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987, p. 09.
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Referências:

AGOSTINHO, Santo. A Doutrina cristã. Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulinas, 1991.

APEL, Karl-Otto. Transformações da Filosofia I: Filosofia Analítica, Semiótica e Hermenêutica.


Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.

GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.


Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução de Márcia de Sá Cavalcante-Schuback.
Petrópolis: Vozes, 2002.

__________. Verdade e Método II. Tradução de Enio Paulo Giachini; revisão da tradução de
Márcia de Sá Cavalcante-Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.

RICOEUR, Paul. Hermenêutica y Estructuralismo. Traducion de Graziella Baravalle y Maria Teresa


La Valle. Buenos Aires: Megápolis, 1975.

__________. Interpretação e Ideologias. Tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Rio de


Janeiro: Francisco Alves Editora, 1990.

SCHLEIERMACHER, F. D. E. “Discursos acadêmicos (13 de agosto de 1829)”. In: Hermenêutica:


arte e técnica de interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis:
Vozes, 1999.

__________. “Les aphorismes de 1805 et de 1809-1810”. In: Herméneutique. Genève: Editions


Labor et Fides, 1987.

STAROBINSKI, Jean. “Avant-propos: L’Art de Comprendre”. In: SCHLEIERMACHER, F. D. E.


Herméneutique. Genève: Editions Labor et Fides, 1987.

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