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A questão da modalidade

na música tradicional portuguesa *

A constatação de que uma parte significativa da canção tradicional

portuguesa está vazada em moldes melódicos não enquadráveis no

dualismo maior-menor característico da música mais corrente remonta à

década de 1930, mercê das recolhas de Rodney Gallop e Artur Santos e da

análise de alguns espécimes musicais feita pelo primeiro (Gallop 1937, pp.

27-34). Nos anos seguintes Fernando Lopes Graça explorou essa

descoberta, procurando clarificar a questão, do que resultou, no livro A

canção popular portuguesa (1953), um "esboço de classificação" das

melodias tradicionais. Após distinguir as canções monódicas das

polifónicas, Graça propôs-se classificar as canções, independentemente da

presença ou ausência de revestimento polifónico, como "tonais", "modais"

ou "cromáticas" (no caso de não serem apenas "melopeias" caracterizadas

pelo âmbito muito estreito e pela insistente repetição melódica),

considerando canções "modais" as que são afins a, ou identificáveis com,

os modos gregorianos, enquanto as "cromáticas", exibindo intervalos

diminutos ou aumentados, corresponderiam a "modos exóticos". O

carácter modal, em sentido lato, teria assim duas facetas, diatónica

(eclesiástica) e cromática (exótica). Rebelo Bonito, numa recensão a este

livro, chamou imediatamente a atenção para as dúvidas que se podem

levantar na classificação de uma melodia como estando neste ou naquele

tom ou modo, insuficientemente caracterizados pela escala, citando casos

em que discorda da análise de Lopes Graça (Bonito 1953-1954). A

classificação proposta n'A canção popular portuguesa não foi, contudo,

objecto de revisão substancial nem de contestação nos anos subsequentes.

*
Síntese originalmente escrita para a Enciclopédia da Música em Portugal no
século XX — entrada "Música tradicional" — mas aí finalmente não incorporada.
Ernesto Veiga de Oliveira (1964) sobrepôs-lhe uma divisão entre melodias

arcaicas (melopeias, canções modais e cromáticas) e recentes (canções

tonais). A dicotomia tonal/modal apareceria de seguida tratada de forma

dinâmica no trabalho de João Ranita da Nazaré (1979, 1984) sobre modas

alentejanas, em que se chama a atenção para a entoação flutuante de

certos graus melódicos e para a ambiguidade estrutural de algumas

melodias. A passagem de uma perspectiva estática a uma perspectiva

dinâmica da modalidade não levou, contudo, ao aprofundamento do tema.

Um dos problemas que condiciona, ainda hoje, a sua compreensão é o

esquematismo que subjaz à definição corrente de "modo". Se as

características tonais são geralmente bem compreendidas, os paradigmas

eclesiástico e exótico — que não esgotam, aliás, as possibilidades de

definição modal — são frequentemente manipulados de forma simplista,

partindo não da monodia litúrgica, dos cantos populares de Espanha ou

dos modelos improvisatórios do Próximo-Oriente, mas de definições

apressadas que reduzem a modalidade à respectiva escala e evacuam a

dimensão histórico-cultural. Haveria, assim, na prática, para além dos

usuais modos maior (escala de dó) e menor (escala de lá com 7º grau

alterado, ou 6º e 7º graus alterados ascendentemente), os modos dórico

(ou de ré, nas teclas brancas do piano), frígio (ou de mi), lídio (ou de fá),

mixolídio (ou de sol), eólio puro (ou de lá), e ainda modos "exóticos" (por

tons inteiros, pentatónico, andaluz, etc.). O recurso ao paradigma

eclesiástico justifica-se devido à implantação territorial e à continuidade,

ao longo de mais de 1500 anos, de práticas litúrgicas cristãs que, em rigor,

não se reduzem ao repertório gregoriano e englobam o uso de fórmulas de

leitura e de tons diversos, não incluídos no sistema modal clássico; essa

presença contínua, em interacção com as culturas locais, resulta na

plausibilidade de uma possível influência sobre a música tradicional

portuguesa. No que respeita aos modos eclesiásticos, a terminologia


pseudo-grega de Glareano (1547), que é ainda a de Lopes Graça e Rebelo

Bonito ("modo dórico", etc.), foi sendo substituída no ensino dos

Conservatórios, na segunda metade do século XX, por uma terminologia

"neutra", objectivável no teclado do piano ("modo de ré", etc.), em que as

escalas se apresentam como modelo da realidade modal gregoriana (Fão

1960). Contudo, a identificação de uma escala no teclado não resolve o

problema, porque o "modo" é definido também, e de forma decisiva, por

outros factores (âmbito melódico, notas predominantes, fórmulas

associadas à demarcação de secções, tipo de entoação, etc.). Para dar um

exemplo: no canto gregoriano distinguem-se tradicionalmente oito modos,

baseados em ré (Protus:1º e 2º), mi (Deuterus: 3º e 4º), fá (Tritus: 5º e 6º) e

sol (Tetrardus: 7º e 8º); os modos ímpares são "autênticos" e os pares

"plagais"; a distinção entre "autêntico" e "plagal" decorre de factores que

ultrapassam a escala usada. Os modos baseados em fá exibem uma

estrutura melódica que, devido à bemolização quase constante do 4º grau

(si), se identifica com a escala de dó, sendo característica, no modo

"autêntico", a relação intervalar de quinta entre nota final e nota

(pre)dominante (havendo só uma), que nos habituámos a associar à

tonalidade; no modo "plagal", em que a nota (pre)dominante (havendo só

uma) se encontra num espaço de terceira acima do fá, e às vezes se

confunde com este, é frequente, sobretudo em peças posteriores ao século

IX, a ocorrência de uma forte relação de quarta entre o fá e o dó grave, que

facilmente se pode confundir com a tensão cadencial dominante-tónica

típica da tonalidade. Nestes casos, só o estilo melódico nos permite saber

se uma dada melodia é filiável num universo "modal" ou num universo

"tonal", e aqui, por falta de familiaridade com o primeiro, mesmo autores

consagrados se têm deixado enganar. A identificação do carácter "tonal"

ou "modal" de uma toada é, de facto, uma tarefa mais delicada do que

inicialmente parece. O conceito de "escala andaluza", por exemplo, varia


segundo os autores (uns apresentam-na como uma escala de mi com sol

sustenido ou variável, enquanto outros lhe adicionam, como característica,

a variabilidade do fá). Esta escala é interpretada por Gallop (1934, 1937),

na senda de Eduardo Torner, como uma forma peculiar do clássico modo

menor (sendo o mi visto como dominante de lá), o que não é pacífico. Pelo

contrário, Josep Crivillé (1983, pp. 312-16) vê nas segundas aumentadas

(entre sol sustenido e fá natural) do repertório de carácter "andaluz" que

presume mais antigo, e cujo âmbito intervalar não supera uma sexta, uma

clara afinidade com a música de tradição perso-árabe, e portanto, indício

de influência oriental, considerando a cromatização do fá um fenómeno

posterior, típico de uma "gama espanhola" não estritamente andaluza.

Uma melodia classificada por Gallop num "modo gregoriano", o "lídio",

que diz ser raramente encontrado em Portugal mas cujo uso, a seu ver,

não implicaria necessariamente influência eclesiástica (1937, p. 34)

poderia, com mais propriedade, integrar-se num tipo melódico

identificado por Marius Schneider (1946) como tipicamente berbere.

Ocorre também que a "modalidade" imanente a uma ou várias melodias

exija uma descrição particular independente dos paradigmas eclesiástico e

exótico, com possível recurso a modelos históricos alternativos, como seja

a sobreposição de núcleos modais ou de tetracordes conjuntos. Põe-se

igualmente o problema das variantes que podem afectar uma melodia, o

que recomenda a contextualização da sua análise através da identificação

de famílias melódicas, tendo em conta tendências evolutivas e

interferências ou transformações estilísticas (uma melodia "modal" pode

facilmente assumir, com o tempo, características "tonais"). Finalmente,

temos de admitir que a identidade de uma certa prática vocal pode

consistir tanto num certo contorno melódico relativamente fixo, como

numa certa "cor" modal compatível com diferentes realizações melódicas,

como ainda na utilização de fórmulas, quer melódicas, quer rítmicas,


associadas ou não a uma determinada função; os tipos operativos num

dado repertório podem, em suma, ser transversais às categorias estilísticas

correntes. Mas apesar da ausência de uma categorização da canção

tradicional portuguesa suficientemente flexível e abrangente, gerou-se, na

senda de Gallop e de Graça, um consenso quanto à extensão, no século XX,

do fenómeno modal na música tradicional portuguesa. A modalidade tem

grande importância nas terras rurais do interior a norte do Tejo,

especialmente nas regiões da Beira-Baixa e Trás-os-Montes, e também, até

certo ponto, no Alentejo, enquanto que no litoral e no sul algarvio as suas

manifestações documentadas são escassas. No entanto, podem encontrar-

se exemplos de cantos arcaicos, frequentemente confinados a funções

igualmente arcaicas, em praticamente todas as regiões do território,

incluindo as regiões insulares. Atendendo à variedade das práticas vocais

documentadas no espaço nacional, à complexidade da sua caracterização

musical e às dificuldades no acesso às recolhas efectuadas, não é prudente

apresentar uma estimativa da frequência relativa com que determinada

modalidade ocorre entre nós, embora, dentro da classificação geralmente

aceite (e que peca, como vimos, por simplismo), se possa afirmar que o

"modo de sol" está bem representado de norte a sul do território, inclusive

nas polifonias do Minho e do Alentejo, e que o "modo de mi" e a "escala

andaluza" antiga (sem fá sustenido) se encontram mais facilmente na

Beira-Baixa, como observaram Rodney Gallop e Fernando Lopes-Graça.

Contudo, se tomarmos a antologia de Michel Giacometti (1981),

poderemos também encontrar o "modo de mi" no Minho (transcrição nº

38) e na Estremadura (nº 140) e a "escala andaluza" na Beira Litoral (nº

159) e no Algarve (nº 123). A mesma antologia inclui igualmente

ilustrações musicais do Protus, com origem na Beira-Baixa (nºs 78, 81, 141)

e em Trás-os-Montes (nºs 86, 130), e ainda do Tritus — tanto plagal (nº40)

como autêntico (nº45)—, documentado na Beira-Baixa. Há, finalmente,


exemplos de estruturas cromáticas ou modulantes pouco comuns (nºs 49,

56, 60, 79, 82, 121), recolhidos maioritariamente nesta última província.

Uma amostra abrangente como a de Giacometti pode pois servir como

ponto de partida para ilustrar a variedade modal existente na tradição,

mas o aprofundamento da análise exige investigações centradas em

repertórios delimitados por género ou região. Um tentame recente nesse

sentido é o livro de Anne Caufriez (1998), que se debruça sobre o

romanceiro transmontano, e em que é referida a presença dos modos de

ré, mi e sol no repertório, bem como de tipos melódicos penta- ou

hexacordais assimiláveis aos modos de ré e de sol. Um exame

particularizado de determinado corpus melódico não nos deve fazer

esquecer, porém, da necessidade de submeter os resultados da análise a

um tratamento comparativo que tenha em conta tradições afins dos

pontos de vista morfológico, cultural ou geográfico.

Bibliografia citada:

Porfírio Rebelo BONITO, "Nótulas de Etnografia Musical, XIII", Gazeta Musical, nº


39-40 [Dez.1953-Jan. 1954], pp. 197-201
Anne CAUFRIEZ, Le chant du pain, Paris: Gulbenkian, 1998,
Josep CRIVILLÉ, Historia de la música española, vol. 7, Madrid: Alianza, 1983
Artur FÃO, Teoria musical, 2ª edição, Lisboa: Sassetti, s.d. [1960]
Rodney GALLOP, "The Folk Music of Eastern Portugal", The Musical Quarterly, vol.
XX [1934], pp. 96-106; id., Cantares do Povo Português, Lisboa: Instituto de Alta
Cultura, 1960/1937
Michel GIACOMETTI, Cancioneiro Popular Português, Lisboa: Círculo de Leitores,
1981
Henricus GLAREANUS, Dodecachordon, Basel: H. Petri, 1547
Fernando Lopes GRAÇA, A canção popular portuguesa, Lisboa: Europa-América,
1974/1953
João Ranita da NAZARÉ, Música tradicional portuguesa — Cantares do Baixo
Alentejo, Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979; id., Prolegomenes a
l'ethnosociologie de la musique, Paris: Gulbenkian, 1984.
Ernesto Veiga de OLIVEIRA, Instrumentos musicais populares portugueses, Lisboa:
Gulbenkian, 1982/1964
Marius SCHNEIDER, "A proposito del influjo árabe", Anuario Musical, vol. I [1946],
pp. 31-141

Manuel Pedro Ferreira, 21 de Março de 2001

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