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Psychê

ISSN: 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil

Cardoso Rezende, Marta


Violência,domínio e transgressão
Psychê, vol. VI, núm. 10, 2002, pp. 161-171
Universidade São Marcos
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30701010

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Violência, domínio e transgressão1

Marta Rezende Cardoso

Resumo

O objetivo desta comunicação é abordar a questão da violência por meio da análise das
passagens ao ato, nas quais a questão do poder – poder do outro – revela-se fundamen-
tal. O ato de dominar o objeto pela força traz, subjacente, uma desesperada tentativa de
dominação do excesso pulsional. Visando melhor apreender os fenômenos de violência
manifesta e elaborar a hipótese segundo a qual estes poderiam resultar, dentre outros
fatores, de uma invasão pulsional nas fronteiras do ego, será explorado o tema do poder
na vida psíquica, tendo-se em conta um de seus eixos básicos: a polaridade atividade/
passividade.

Unitermos

Pulsão de domínio; violência; excesso pulsional; alteridade; dominação.

m uma discussão sobre violência e transgressão, muito rapidamente so-

E mos levados a associar transgressão ao problema da Lei e da castração,


aos limites colocados ao sujeito pela cultura, e à violação dessa Lei, re-
presentada simbolicamente pelo interdito veiculado pelo Édipo. Vou desviar-
me um pouco desse rumo para lançar-me em uma outra vertente da questão.
Segundo o Dicionário Aurélio, transgredir é “passar além de, atraves-
sar”. Nele também é mencionada uma sugestiva expressão que, de certa for-
ma, serviu-me de inspiração na construção da idéia de uma transgressão pul-
sional, que suponho estar na base de comportamentos manifestamente vio-
lentos. Trata-se da expressão “transgressão marinha”, que consiste no “movi-
mento das águas do mar, ao invadirem um trecho do continente”. Como metá-
fora de um atravessamento pulsional no território egóico, a expressão vem
invocar a noção de fronteira, de limite, noção das mais importantes em Psica-
nálise.

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A pulsão, conceito fundamental, limítrofe entre o somático e o psíquico,


está situada, como sugere André Green (1999), nos limites da própria
conceituação. Na obra de Freud, uma série de elaborações vão se desdobrar
em torno da noção de limite, desde a construção do modelo da primeira tópica
– as fronteiras entre consciente, pré-consciente e inconsciente – e, de forma
mais sistemática, no modelo da Segunda Tópica, em que essa perspectiva se
enuncia mais explícita por meio das trocas e transições entre as instâncias.
Segundo Green, podemos considerar esses limites como zonas de elaboração
psíquica, os limites do ego, relativos à luta que trava com o id e o superego.
Já a questão do limite do ego com o objeto é bem menos explorada por
Freud. Contrariando, porém, essa tendência, os teóricos das relações de objeto
vão se dedicar quase exclusivamente a esse ângulo da questão. Isso não deixa
de representar, em algum plano, um certo risco para a necessária prevalência
do paradigma da pulsão no pensamento freudiano, sendo este ancorado, de
forma fundamental, no conceito de conflito psíquico, conflito entre pulsões.
Vale, no entanto, acrescentar que, na transição do primeiro ao segundo
modelo proposto por Freud, a conceituação do narcisismo, abrindo também
para a identificação, marca, a meu ver, um momento crucial na elaboração da
problemática do limite, tendo em vista o novo estatuto que será concedido à
relação eu-outro. Esse aporte promoverá, inclusive, os desenvolvimentos de
vários autores, tais como Federn, Ferenczi, assim como Winnicott, Anzieu,
dentre muitos outros que vão se debruçar sobre a questão da alteridade e,
alguns deles, a dos estados-limites.
Nessas patologias dos limites, duas angústias básicas, de caráter para-
doxal, insistem – e, como indica Figueiredo (2000), esta constatação parece
ser um ponto de concordância quase absoluto em meio à grande diversidade
que habita o pensamento dos autores – a angústia de separação e a angústia
de intrusão. Trata-se de angústias de “fronteira”, angústias de transgressão,
de transgressão pulsional2. Diante da ameaça de separação, de perda do amor,
há o risco de desamparo, de passividade ante a invasão do outro interno; dian-
te da ameaça de intrusão, ameaça, portanto, de perda de fronteiras, o risco de
não se poder dominar, ligar o excesso pulsional.
Nas passagens ao ato de natureza violenta, situação-limite, a questão do
poder, do domínio do objeto, revela-se fundamental. O ato de dominar o objeto
pela força traz, subjacente, uma desesperada tentativa de dominação da inva-
são interna da força pulsional, ou seja, tentativa de dominação da transgres-
são pulsional. Com o objetivo de melhor apreender os fenômenos de violência

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manifesta, e de elaborar a hipótese segundo a qual estes poderiam resultar,


dentre outros fatores, de um atravessamento, de uma transgressão pulsional
nas fronteiras do ego, passo, então, à investigação do tema do poder na vida
psíquica, tendo-se em conta um de seus eixos básicos: a polaridade atividade/
passividade. Para tal, analisarei a noção freudiana de “pulsão de domínio”.

Pulsão de domínio / dominação da pulsão


Sobre esta noção, o Vocabulário de Psicanálise fornece importantes indi-
cações terminológicas e conceituais. Pulsão de domínio3 é a “denominação
usada em algumas ocasiões por Freud, sem que o seu emprego possa ser codi-
ficado com precisão. Freud entende por ela uma pulsão não-sexual, que só
secundariamente se une à sexualidade, e cujo alvo é dominar o objeto pela
força” (Laplanche e Pontalis, 1979, p. 512).
Mas a questão não é simples e os termos que Freud utiliza já sinalizam a
sua riqueza e complexidade. Segundo os autores, Bemächtigungstrieb é um
termo de difícil tradução. Pulsão de domínio parece ser a expressão mais ade-
quada, por evidenciar uma dimensão significativa contida em sich bemächtigen,
a do domínio pela força, a de “possessão”. Mas, ao lado de Bemächtigung,
encontraremos depois o termo de Bewältigung, que, embora próximo do pri-
meiro, não tem significação equivalente. Este último designa muito mais a
idéia de dominação, no sentido do exercício de um controle (maîtrise), e Freud
geralmente o utiliza para “designar o fato de alguém se tornar senhor da exci-
tação, quer esta seja de origem pulsional ou externa, o fato de a ligar” (Laplanche
e Pontalis, 1979, p. 514).
Advertem os autores, entretanto, que essa distinção terminológica não
deve ser considerada de forma rígida, em função das vias de passagem exis-
tentes entre a idéia de um domínio exercido sobre o objeto e a de dominação
da excitação pulsional. Como mostrarei mais adiante, minha tentativa será
também a de explorar a relação intrincada entre esses dois aspectos, à medida
que procurarei analisá-la a partir da perspectiva de um contraponto entre eles.
Para embasar a pertinência desta articulação, os referidos autores to-
mam o exemplo da noção de repetição, da qual Freud nos fala em Além do
princípio do prazer, pelo viés do jogo do fort-da e da neurose traumática, texto
no qual a tendência à repetição será atribuída à pulsão de domínio. Nesses
fenômenos, pode-se claramente vislumbrar o entrecruzamento dos dois as-
pectos: o domínio do objeto e a “ligação” da impressão traumática.

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Mas uma pesquisa anterior mostra-se necessária: qual é o estatuto da pulsão


de domínio na economia geral das pulsões? Teria ela uma posição particular?
A introdução dessa noção se dá nos Três ensaios sobre a teoria da sexua-
lidade, por meio das pulsões parciais do voyeurismo e do exibicionismo, assim
como a tendência à crueldade na criança, na qual as relações internas com a
vida genital só aparecerão mais tarde. Vale sublinhar este caráter primitivo da
pulsão de domínio, a partir de seu estreito vínculo com as pulsões parciais.
Mas o texto de 1905, ainda que situe a idéia de domínio no universo dessas
pulsões, não vai lhe conceder significação estritamente sexual. Nesse momen-
to, ela é considerada como independente da sexualidade, mas pode se unir a
ela “num estágio prematuro devido a uma anastomose [conexão cruzada], pró-
ximo de seus pontos de origem” (Freud, 1905, p. 198, nota. 1).
O auto-erotismo é o campo no interior do qual poderíamos tentar situar,
originariamente, a pulsão de domínio. Segundo as proposições de F. Gantheret
(1981), é o tema da masturbação infantil que permitirá que Freud, nos Três
ensaios... venha a designar o domínio como pulsão: “A preferência pela mão,
demonstrada por meninos, já indica a importante contribuição que o instinto
[pulsão] de domínio está destinado a fazer à atividade sexual masculina” (Freud,
1905, p. 193). O domínio do objeto tem, então, como precursor o órgão erógeno
que se desloca rumo ao objeto. Encontramos, aí, “uma primeira indicação de
uma indexação da pulsão de domínio à polaridade masculino-feminino, e, so-
bretudo, a seu precursor pré-genital: ativo-passivo” (Gantheret, 1981, p. 106).
Segundo Assoun (1982, p. 235), a atividade/passividade é o pólo por
meio do qual a inteligibilidade da pulsão de domínio vai evoluir na obra de
Freud. Com relação a este tópico, o texto básico é a Disposição à neurose ob-
sessiva, de 1913, em que Freud opõe as tendências ativas às passivas, oposi-
ção que caracteriza a organização pré-genital. A pulsão de domínio é situada
ao lado da atividade, em oposição ao caráter passivo do erotismo anal. A ques-
tão do sadismo é introduzida neste texto e isto é feito a partir da suposição de
uma estreita relação entre sadismo e pulsão de domínio.
A tese sobre o sadomasoquismo é desenvolvida no artigo de 1915, Os ins-
tintos e suas vicissitudes, em que o domínio do objeto pela força, pela violência –
Uberwältigung – é tido como o objetivo maior do sadismo. Como afirma Assoun,
“com o sadismo, Bewältigung torna-se Überwaltigung” (Assoun, 1982, p. 236).
A introdução do segundo dualismo pulsional vai produzir um profundo
remanejamento do problema. A “pulsão de morte” passa a ser suficiente como

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modelo explicativo do sadismo, podendo derivar em direção ao objeto, ao mes-


mo tempo em que entra a serviço da função sexual. Nesse sentido, a idéia de
uma pulsão de domínio específica não mais se apresenta na obra freudiana.
Assim, a partir de Além do princípio do prazer, com a pulsão de morte, a
pulsão de domínio passará a ser entendida por Freud como uma das formas
que esta pode assumir. Trata-se agora, essencialmente, de uma função de do-
mínio, ativa, que diz respeito ao exercício de poder da pulsão de morte.
Lembremo-nos que a idéia de domínio como passagem a ativo sempre esteve
presente em Freud, porém agora esta passagem passa a ser concebida como
da ordem de uma função.
Em Além do princípio do prazer, o modelo do fort-da vem ilustrar esse
movimento de passagem a ativo. A criança, passiva até ali, não podendo senão
sofrer o acontecimento, torna-se ativa, repetindo-o. Trata-se, aqui, de uma
modalidade de funcionamento psíquico na qual estão em jogo, ao mesmo tem-
po, o objeto externo e o objeto interno. “Esses esforços podem ser atribuídos a
um instinto [pulsão] de dominação [domínio] que atuava independentemente
de a lembrança em si mesma ser agradável ou não” (Freud, 1920, p. 27).
Sobre isso, Gantheret assinala outro ponto de complexidade em Freud: a
presença de dois móveis no jogo do Fort-Da – por um lado, há o aspecto de
independência que este ato implica em relação ao sistema prazer/desprazer,
consistindo em uma passagem da passividade à atividade, espécie de ab-rea-
ção para se tornar senhor da situação (Herr der Situation); por outro lado, há a
presença de uma dimensão de prazer nesse poder “vingar”-se, poder “libe-
rar”-se da força transgressiva (excesso pulsional) advinda do outro. Freud vai,
então, se perguntar “se o impulso para elaborar na mente alguma experiência
de dominação [domínio], de modo a tornar-se senhor dela (sich seiner voll zu
bemâchtigen), pode encontrar expressão como um evento primário e indepen-
dentemente do princípio de prazer” (Freud, 1920, p. 28).
Veremos Freud, no decorrer de todo o texto, às voltas com o proble-
ma de integrar em seu modelo a compulsão de repetição, tendo também
que dar conta da questão da dominação da excitação. É assim que vai sur-
gir, ao lado do termo bemächtigen, o de bewältigen: “Até então, a outra
tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar (bewältigen) ou sujeitar
[ligar] as excitações, teria precedência, não, na verdade, em oposição ao
princípio de prazer, mas independentemente dele e, até certo ponto, des-
prezando-o” (Freud, 1920, p. 52).

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O jogo do Fort-Da continua a interpelar a teoria freudiana: a atividade da


criança ante a situação aponta para a idéia de uma dominação, dominação-
controle da excitação. Assim, ao lado de Bewältigen, Freud usará ainda um
terceiro termo – Beherrschung – em que Herr designa senhor, aquele que
comanda. Estamos, novamente, nas fronteiras entre o domínio violento do
objeto (externo-interno) e a dominação da transgressão, da inundação pulsional
– aspectos, a meu ver, indissociáveis.
A esse respeito, diz F. Gantheret (1981, p. 112) que “para compreender
estes pontos de passagem, no lugar de dissociar os dois processos, é preciso
entender por que Freud fala da necessidade de ligar a excitação de origem
interna, já que faz referência às experiências impressionantes vindas do exte-
rior”. A existência dessas vias de passagem incide diretamente nos limites
entre as duas dimensões do pulsional: a exterioridade e a interioridade, fron-
teira na qual se constitui a própria pulsão.

Ação – reação
Tendo como pano-de-fundo a “reação terapêutica negativa”, Pontalis
(1981) vem abrir novos horizontes no entendimento da pulsão de domínio.
Com relação a esse violento apego à doença, o autor supõe a idéia de um
princípio de agonia – de gozo e de dor – em que a lógica do prazer-desprazer
seria parcial ou totalmente recoberta por uma lógica do desespero. Ao explo-
rar o fenômeno da reação terapêutica negativa, Pontalis se apóia no próprio
termo reação, entendida como um re-agir, ou seja, como resposta a um “agir”
anterior. Esta remete-nos, novamente, às fronteiras entre o domínio do outro e
o processo de dominação da transgressão pulsional que, neste caso, vai se
limitar ao modo da reação.
Se o exercício do domínio – e esta também é a dinâmica que me parece
mover os atos de violência – centra-se no eixo ação-reação, isto pressupõe que
haja significativa dominância da polaridade ativo-passivo nesse modo de fun-
cionamento psíquico. Lutando para libertar-se do domínio do outro interno, o
sujeito, conforme acrescenta Pontalis, busca afirmar-se em sua individualida-
de. Os mecanismos baseados na reação se fundamentam na exigência de um
“não”: o “fazer não” precede o “dizer não”. A projeção no exterior, articulada
ao mecanismo da inversão no seu oposto, faz com que o indivíduo só possa
estar contra esse mundo que lhe parece estar contra ele. Nesse sentido, a
negação estaria na origem desse processo de expulsão, como o descreve Freud

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no texto sobre a Verneinung : “...o ego prazer original deseja introjetar para
dentro de si tudo quanto é bom, e ejetar de si tudo quanto é mau. Aquilo que
é mau, que é estranho ao ego, e aquilo que é externo são, para começar, idên-
ticos” (Freud, 1925, p. 297).
Mas, resta ainda uma questão: o mau, o fora, a diferença, é aquilo que
foi originariamente incorporado. Essa incorporação do mau implica igualmen-
te “um desejo de apropriação e de controle do estrangeiro, o sujeito faz seu o
que por natureza lhe escapa...” (Pontalis, 1981, p. 70). Há, assim, algo excluí-
do, exclusão que se faz, porém, no interior das fronteiras de si mesmo. Este é
um aspecto essencial da questão, apontando para uma divisão interna. É nos
meandros dessa operação de “inversão” que a dominação da transgressão, da
invasão da pulsão de morte, vai procurar se exercer. Ela visa, pelo exercício do
domínio, “dobrar” o outro.

Relação de domínio
Sobre a relação de domínio, de violência, do indivíduo com um objeto
externo, deve-se considerar, sobretudo, os aspectos fantasísticos nela implica-
dos: o objeto parcial interno jamais está ausente na relação do indivíduo com
um outro. Roger Dorey descreve a relação de domínio como um “modo de
interação entre dois sujeitos, que não se reduz à atividade de uma única ten-
dência, mas corresponde a um agenciamento complexo da relação com o ou-
tro, cuja dinâmica pulsional resta inteiramente a precisar” (1981, p. 117).
O autor inicia sua análise com a indicação de três níveis semânticos do
termo domínio.
- termo Bemächtigung implica a idéia de tomada, de captura, de saisie.
É o sentido arcaico do termo, presente na linguagem jurídica do século XVII:
designa a ação que consiste em tomar os terrenos por expropriação, ou seja,
uma apropriação por des-possessão do outro.
- a idéia de domínio, intelectual ou moral, do indivíduo; neste caso,
pode-se pensar no exercício de um poder supremo, tirânico, subjugando o
outro, que se sentirá, por sua vez, controlado, manipulado. Sublinho, aqui, a
dimensão de dependência e submissão.
- a idéia resultante da dupla ação da apropriação e do domínio; implica
necessariamente a inscrição de um traço, de uma marca. Uma marca é, então,

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gravada no indivíduo por aquele que exerce o poder, nele gravando sua pró-
pria figura.
Para Dorey, a sedução originária é o protótipo de toda relação de domí-
nio. Os cuidados corporais proporcionados pela mãe e os enunciados
identificatórios que esta endereça à criança vão, primeiramente, estabelecer
entre elas um modo de relação ilusória, sem lugar para a alteridade, para a
diferença. Evidentemente, a situação de desamparo da criança, submetida à
implantação das mensagens do adulto – e, caberia acrescentar, atravessada
por uma transgressão pulsional – é a condição básica para isto.
Será necessária uma nova série de enunciados “identificantes” para que
os dois protagonistas dessa relação possam assumir um lugar marcado pela
alteridade. Este trabalho de elaboração psíquica impõe ao indivíduo a exigên-
cia de um trabalho de luto, trabalho que pode não conseguir realizar de forma
favorável. Neste caso, para sua defesa, ele poderá fazer uso do modelo da
relação de domínio, repetindo-o.
Eric Toubiana sublinha que uma das características principais da relação
de domínio reside no seu caráter dual e alternativo.
A relação de domínio marca bem uma especificidade da relação objetal em que o
sujeito vê-se impossibilitado de levar à frente um investimento sem o risco de
viver os males da perda e da diferenciação. A relação de domínio não é senão uma
modalidade de relação de objeto que tende a excluir o advento de um momento de
separação e de encontro com a alteridade (1988, p. 31- 21).

Como se liberar desse outro superpotente que grava sua marca para
sempre, devendo, ao mesmo tempo, assimilá-lo, representá-lo em seu territó-
rio? Se o trabalho de luto, como elaboração psíquica, tornar possível uma se-
paração, ele permitirá, então, ao indivíduo, liberar-se do outro.
Como indiquei anteriormente, diante de uma alteridade radical, o sujei-
to enfrenta intensa angústia de natureza paradoxal. Por um lado, deve conse-
guir separar-se do outro; por outro, é submetido a seu poder sexual, o que
pressupõe uma dupla face do outro, sedutor e protetor, simultaneamente. O
sofrimento advém do fato de o sujeito ser ameaçado, de uma só vez, pela per-
da do objeto e pela alienação no objeto.
Reencontramos, neste ponto, as duas angústias básicas dos “fronteiri-
ços”, as quais parecem também mover aqueles que, em seus atos de violência
contra o outro, buscam, de forma extrema, a dominação de uma transgressão

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pulsional, além dos limites do representável: de uma só vez, angústia de sepa-


ração e de intrusão. O domínio do outro, a transgressão dos limites do outro,
como resposta psíquica extrema, arcaica, está sempre presente na vida psíqui-
ca, já que dela é constitutiva. Porém, em situações singulares, marcadas por
um além de violência e que implicam, dialeticamente, uma fragilidade das
fronteiras egóicas, este modo defensivo pode vir a se cristalizar.
A questão da alteridade tem aqui um lugar maior, em que a relação de
domínio traduz “uma tendência muito fundamental à neutralização do desejo
de um outro, ou seja, à redução de toda alteridade, de toda diferença, à aboli-
ção de toda especificidade; a visada é a de levar o outro à função e ao estatuto
de objeto inteiramente assimilável” (Dorey, 1981, p. 118).
A relação sujeito/objeto, quando cristalizada no modo do domínio em
função, em última instância, de uma recusa da alteridade promove, como pude
indicar, uma inversão de posições: transformação no contrário, destino dos
mais elementares da pulsão. Trata-se, no fim de contas, de uma primitiva luta
pela dominação do outro interno, dominação da transgressão pulsional, por
meio de uma passagem a ativo em que se invertem os papéis entre aquele que
inflige e aquele que é submetido ao domínio, à violência.
Por meio da recusa da alteridade, e a conseqüente transgressão das fron-
teiras do outro – bem mais básica, penso eu, que uma suposta recusa da cas-
tração, da Lei (tão freqüente e apressadamente invocada, como sugeri no iní-
cio desta reflexão, quando se trata de pensar o tema da violência) – tenta-se
uma dominação-limite por apropriação, último recurso para inscrever, ainda
que no corpo do outro, a marca traumática, marca de um ataque, de uma
transgressão pulsional, além do princípio do prazer, além do representável.

Notas
1. Versão completa do trabalho apresentado no VI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fun-
damental, 05 a 08 de setembro de 2002, Recife. Agradeço a Pedro Henrique B. Rondon a
cuidadosa revisão deste texto.
2. Na acepção acima proposta.
3. A tradução em português do Vocabulário é “pulsão de dominação”. Optei, aqui, por “pulsão
de domínio”, justamente – como será mostrado mais adiante – por levar em conta as difi-
culdades conceituais apontadas pelos referidos autores.

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Violence, Mastering and Transgression


Transgression
Abstract

This communication aims at approaching the issue of violence through the analysis of the
acting-outs in which the issue of power – the power of the other – is crucial. A desperate
attempt at dominating the drive excess underlies the act of mastering the object by force.
For better understanding the phenomena of manifest violence, and working out the
hypothesis according to which such phenomena result from the invasion of drives through
the borders of the ego, among other factors, we will study the theme of power in psychic
life, based on one of its pivotal axes: the polarity of activity/passivity.

Key-words
ey-words

Instinct to master; violence; drive excess; otherness; mastering.

Marta Rezende Cardoso


Doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental pela Universidade de Paris VII;
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFRJ (Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica); Membro Efetivo da SPCRJ; Membro da Associação Universitária de
Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.

Rua Gustavo Sampaio, 710 / 1805 – 22010-010 – Rio de Janeiro/RJ


tel: (21) 2543-8630
e-mail: rezendecardoso@ig.com.br

– Recebido em 12/09/02 –
– Versão revisada recebida em 15/10/02 –

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